OPOSIÇÃO À PENHORA
HABILITAÇÃO DE SUCESSORES
CAPACIDADE JUDICIÁRIA DO INSOLVENTE
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
Sumário

I - O incidente de habilitação de sucessores constitui o meio processual para operar a modificação subjetiva da instância, através da substituição da parte primitiva pelos respetivos sucessores na relação substantiva em litígio.
II – No âmbito de uma ação executiva, aquela habilitação em nada contende com outros matizes da execução nomeadamente a medida de responsabilidade dos herdeiros por essa dívida.
III – A declaração de insolvência de pessoa singular não afeta a capacidade judiciária desta, mantendo-se intacto o exercício de todos os direitos pessoais estranhos àquela insolvência.
IV - A eficácia da autoridade do caso julgado, além do mais, exige que a decisão anterior defina de modo inequívoco o efeito pretendido na ação posterior no quadro da mesma relação material controvertida.

Texto Integral

Processo n.º 1074/16.8T8OAZ-B.P1

Sumário elaborado pelo relator
(artigo 663º, nº7 do Código do Processo Civil)
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I – Relatório
Nos presentes autos de execução, B… veio apresentar oposição à penhora contra C…, SA, alegando a nulidade do registo de penhora com a AP 1917 de 06/03/2019 sobre o imóvel ali identificado pelo Sr. Agente de Execução por força do disposto nas alíneas c) e e) do art. 16º do Código de Registo Predial.
Invoca, em suma, que, previamente ao registo da penhora sobre o imóvel que se constitui como bem da herança aberta por óbito de D…, o Agente de Execução não procedeu ao registo da aquisição da metade indivisa do referido imóvel pertencente à falecida a favor do cônjuge não falecido, aqui executado, e dos restantes herdeiros, no caso o único filho de ambos, E…, sem determinação de parte e direito, violando o princípio do trato sucessivo.
Afirma ainda a ilegalidade da penhora do bem imóvel penhorado nos autos principais uma vez que o mesmo constitui bem da herança aberta por óbito de D…, não se tendo ainda procedido à respetiva partilha o que inviabiliza a sua inclusão no património do executado, não podendo ser objeto de penhora.
O exequente deduziu contestação, defendendo a legalidade da penhora e do seu registo.
O Agente de Execução veio juntar a requisição do registo, conforme pretendido pelo executado e prestar esclarecimentos sobre o registo do imóvel a 17.01.2020.
Foi ainda prestada informação quanto à questão da validade do registo pelo Conservador de Registos.
Notificadas as partes para apresentarem, querendo, alegações com vista à decisão foram as mesmas apresentadas pela exequente, reiterando a defesa da legalidade da penhora.
Foi proferida decisão final, alvo do presente recurso, a qual se reproduz na respetiva parte dispositiva:
Decisão:
Face ao exposto, julgo totalmente improcedente a oposição à penhora deduzida, por a mesma ser legal, devendo os autos executivos prosseguir os seus normais trâmites.
Custas a cargo do oponente (art. 527º, 1 e 2 do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
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Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o executado/oponente de cujas alegações se transcrevem as respetivas conclusões:
1. Conforme decorre do ponto 2 dos factos provados, o recorrente, na sequência da douta sentença proferida no apenso A, que julgou procedente o incidente de habilitação de herdeiros deduzido pela recorrida, foi o único herdeiro habilitado para prosseguir a ação executiva em substituição de D…, sua falecida esposa.
2. Porém, consta expressamente da sentença que julgou procedente o incidente de habilitação de herdeiros deduzido pela recorrida o seguinte:
“Considerando os dados como provados concluiu-se que o requerido mencionado nos factos provados, na qualidade de marido da falecida, é seu sucessor e herdeiro, nos termos dos arts. 2024º, 2025º (a contrario), 2133º, nº1, a) e 2134º todos do Código Civil.
Deve, em consequência, ser declarado habilitado, para em substituição da falecida prosseguir a causa até ao valor recebido na herança nos termos do artigo 2098º do Código Civil.
Relativamente ao filho da falecida, considerando que foi declarado insolvente, não podem os autos prosseguir quanto ao mesmo, apesar de também ter a qualidade de herdeiro, nos termos do disposto no art. 88º do CIRE.”
3. Conforme se extrai inequivocamente do ponto 2 dos factos provados, a sentença que julgou procedente o incidente de habilitação de herdeiros deduzido pela recorrida, apenas habilitou o recorrente a prosseguir a ação executiva em substituição de D…, sua falecida esposa.
4. Sendo que de tal facto não decorre que o recorrente seja o único herdeiro da decessa D…, conservando o único filho de ambos, E…, essa mesma qualidade de herdeiro.
5. Conforme igualmente consta da escritura de habilitação de herdeiros celebrada no dia 14/01/2019 no Cartório Notarial em São João da Madeira – Doc. nº 3 junto com a oposição à penhora.
6. Apesar do bem imóvel penhorado se encontrar registado em comum a favor do recorrente e da sua falecida esposa, a verdade é que o mesmo se constitui como bem da herança aberta por óbito de D…, não se tendo ainda procedido à respetiva partilha.
7. A herança não partilhada, como sucede in casu, constitui um património com vários titulares, património este que, embora constituído por determinados bens, não se confunde com o direito de propriedade sobre cada um desses bens por parte de cada um dos herdeiros.
8. O que implica que o imóvel dos autos não se pode incluir no património próprio do executado, não podendo em consequência ser objeto de penhora, conforme sucedeu na situação sub judice, porquanto o mesmo se integra numa herança indivisa.
9. Na herança indivisa, por se tratar de património autónomo, não existe uma situação de compropriedade, mas sim uma comunhão hereditária, geralmente entendida como universalidade jurídica, e que não se confunde com a compropriedade (artigo 1403º, nº1, do Código Civil), porquanto os herdeiros não são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa.
10. Da aceitação sucessória decorre apenas directamente para cada um dos chamados o direito a uma quota hereditária, sendo os herdeiros titulares, apenas, de um direito à herança, universalidade de bens, ignorando-se sobre qual ou quais esse direito hereditário se concretizará.
11. Até à partilha, os herdeiros são somente titulares do direito a uma fração ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fração seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada um dos elementos a partilhar, sendo certo que só depois da realização da partilha é que o herdeiro poderá ficar a ser proprietário ou comproprietário de determinado bem da herança.
12. Assim, a penhora efetuada sobre o imóvel dos autos, como se se tratasse de património próprio do executado, sendo que ao invés tal imóvel integra uma herança indivisa, sobre a qual o executado apenas detém um direito ideal ao acervo patrimonial que a compõe, violou os artigos 743º, nº 1 e 744º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil.
13. Não havendo, conforme sucede na situação sub judice, um bem autónomo, isto é, susceptível de penhora, o que deveria ter sido penhorado era tão-só a quota parte do direito detido pelo recorrente sobre a totalidade do bem, quota parte esta que é puramente ideal.
14. O artigo 743º, nº 1 do CPC é, aliás, claro neste sentido, proibindo expressamente a penhora dos “bens compreendidos no património comum ou uma fração de qualquer deles, nem uma parte especificada do bem indiviso”.
15. A penhora levada a cabo sobre o prédio urbano sito na Rua …, nº .., da freguesia …, concelho de Oliveira de Azeméis, descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Azeméis sob o número 855 e inscrito na respectiva matriz predial com o n.º 790, é, contrariamente ao que foi decidido pelo Tribunal Recorrido, objetivamente ilegal.
16. Ao decidir como decidiu, o douto aresto recorrido enferma da ilegalidade que resulta da violação da norma prevista no artigo 743º, nº 1 do Código de Processo Civil.
17. Errou a sentença recorrida quando julgou totalmente improcedente a oposição à penhora deduzida, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que declare procedente por provada a oposição à penhora e determine o cancelamento do registo de penhora que incide sobre o imóvel dos autos.
Termina o apelante peticionando que seja dado provimento ao presente recurso, revogando-se o douto decisório recorrido, e, nessa decorrência, substituindo-o por outro que determine a procedência da oposição à penhora e consequentemente ordene o levantamento da penhora efectivada e o cancelamento da apresentação nº. 1917, de 06/03/2019.

II - Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer, em regra, de matérias nelas não incluídas. Ora, neste enquadramento, está em causa discernir se a penhora em apreço viola, ou não, o disposto no artigo 743º do Código do Processo Civil que proíbe a penhora de partes especificadas de bens indivisos.
III – Factos Provados
Pela instância apelada foram dados como provados os seguintes factos:
1. C…, S.A. intentou a presente ação executiva sumária contra E…, F…, G…, H…, B… e D…, com base em “escritura de compra e venda com hipoteca” – cfr. requerimento e título de fls. 1 e ss dos autos principais cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
2. Por sentença proferida no apenso A, em 18.02.2029, foi julgado procedente o incidente de habilitação de herdeiros deduzido pela exequente e em consequência habilitou unicamente o executado B… para prosseguir a ação executiva em substituição de D…, sua falecida esposa.
3. A 06.03.2019 foi penhorado nos autos principais o prédio urbano sito na R. …, n.º .., da freguesia … e concelho de Oliveira de Azeméis, destinado a habitação e composto por: Casa térrea com sala, 2 quartos, cozinha curral anexo, retrete e arrecadações; inscrito no Serviço de Finanças de Oliveira de Azeméis sob o artigo matricial urbano 790 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Oliveira de Azeméis sob o n.º 855/19980507. - cfr. cópia do auto de penhora inserta a fls. 6v e ss cujo teor se dá aqui por reproduzido.
4. Tal penhora foi registada pela Ap 1917 de 2019.93.06 constando a menção quanto ao executado B… “habilitado como sucessor (herdeiro) da executada D…”. –cfr. certidão predial inserta a fls. 6v e ss cujo teor se dá aqui por reproduzido.

IV - Fundamentação Jurídica
Descartada a questão relativa a uma eventual irregularidade do registo notarial da penhora, não arguida nesta sede e secundária face à substância do dissídio, o presente recurso deve centrar-se numa questão essencial: apurar se o imóvel em apreço nos autos é suscetível de penhora.
Ou seja, há que determinar se, no caso concreto, estamos, ou não, no âmbito da aplicação do disposto no artigo 743º, nº 1 do Código do Processo Civil que expressamente proíbe a penhora dos “bens compreendidos no património comum ou uma fração de qualquer deles, nem uma parte especificada do bem indiviso”.
A sentença apelada decidiu que não e justifica esse entendimento. Começando por aceitar que estamos, efetivamente, perante a penhora do direito a uma herança por partilhar, ou seja, a penhora de um quinhão hereditário, todavia, entende que, “atendendo a que estamos perante um único interessado – pois, conforme decorre da sentença de habilitação de herdeiros, este foi o único herdeiro a ser habilitado -, consideramos, e salvo o devido respeito por opinião contrária, que o sr. Agente de execução - face às explicações dadas nos autos a 17.01.2020 (cfr. ainda informação da Conservatória) - procedeu à conversão automática da penhora do direito à herança em penhora do bem em causa que forma o quinhão hereditário do executado/oponente, o que foi aceite pela Conservatória.
Nesta senda, entendemos que, nesta situação em concreto, a penhora em causa não é ilegal, devendo a presente oposição ser considerada improcedente.”
A justificação apresentada radica, como se depreende, na circunstância de existir uma habilitação de herdeiros concretizada nos autos e de a mesma implicar estarmos perante um só interessado, aquele único que foi habilitado.
Contrapõe o recorrente que, analisada a sentença que julgou procedente o incidente de habilitação de herdeiros deduzido pela recorrida (vide facto provado 2) e apenas habilitou o recorrente/executado a prosseguir a ação executiva em substituição de D…, sua falecida esposa, da mesma não decorre que o recorrente seja o único herdeiro da decessa D…; é que o único filho de ambos, E…, sempre conservaria essa qualidade de herdeiro.
Compulsada a sentença, na fundamentação da mesma pode ler-se com evidente relevância como melhor veremos adiante: “relativamente ao filho da falecida, considerando que foi declarado insolvente, não podem os autos prosseguir quanto ao mesmo, apesar de também ter a qualidade de herdeiro, nos termos do disposto no art. 88º do CIRE.”
Descrito o enquadramento fáctico e jurídico, é tempo de apreciar e decidir.
Sem prejuízo do trânsito em julgado da decisão relativa à habilitação de herdeiros no âmbito da presente execução a qual, no momento próprio, levaremos em conta, julgamos que, em tese geral, nada determina que um herdeiro, por força da situação de insolvência, não possa ser habilitado como tal aquando do concernente incidente e isto sempre sem prejuízo do disposto no artigo 88º do CIRE.
Vejamos. Nos termos do artigo 262.º do Código de Processo Civil, o incidente de habilitação de sucessores constitui o meio processual para operar a modificação subjetiva da instância, através da substituição da parte primitiva pelos respetivos sucessores na relação substantiva em litígio.
A decisão de habilitação na execução acarreta a consequência de fazer prosseguir a ação executiva, colocando na posição do executado os habilitados, garantindo, assim, o prosseguimento de uma instância suspensa “ope legis” (artigo 276º, nº 1, a) do CPC) e reiniciada “quando for notificada a decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida” (artigo 284º, nº 1, alínea a) do CPC).
Deste modo, a habilitação de herdeiros nada contende, nada terá a ver com outras matizes da execução nomeadamente nas que abrangem a definição do universo de bens chamados à instância executiva ou a medida de responsabilidade dos herdeiros por essa dívida.
Por outro lado, numa segunda dimensão, importa sublinhar que não se atribui qualquer relevância à declaração de insolvência em sede de incapacidade das pessoas singulares como decorre dos artigos 122º a 156º do Código Civil; quanto ao Código do Registo Civil resulta igualmente indiferente a situação de insolvente de um qualquer herdeiro nomeadamente quando se estabelece a legitimidade para promover os procedimentos simplificados de sucessão hereditária (art. 210º-B) e, dentro destes, quando se fixa o regime da habilitação de herdeiros (art. 210º-O).
Como é consabido, de acordo com o disposto no art. 1º do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas (CIRE) a finalidade do processo de insolvência é a satisfação dos credores, pela forma prevista num plano de insolvência. A declaração de insolvência comunga do caráter patrimonial do processo de execução universal em que se integra e tem como efeito a privação dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, sancionando a lei a contravenção dessa privação com a ineficácia em relação à massa insolvente (cfr. art. 81º do CIRE). Porém, citando Luís Menezes Leitão, em Direito da Insolvência, pág. 163, “o insolvente conserva o exercício de todos os direitos pessoais estranhos à insolvência e pode manter a administração dos bens estranhos à massa insolvente dos bens(…)” e “ a pretensa incapacidade do insolvente limita-se a impedir a prática de atos de onde possa resultar diminuição do seu património, o que se desvia do regime comum das incapacidades, que se destinam à proteção dos próprios incapazes, enquanto que a retirada dos poderes de administração e disposição de bens do insolvente visa antes a proteção do interesse dos seus credores”.
Numa terceira ordem de razões, ressalte-se que o herdeiro insolvente (filho da executada falecida) não é devedor da exequente. E, também por isso, salvo melhor opinião, não faria sentido afastar aquele da habilitação requerida. Se aceitássemos dever a execução prosseguir apenas contra os sucessores habilitados não insolventes – no caso, o marido da executado – então teríamos a situação singular de uma única dívida da executada falecida pela qual devem responder os bens da herança respetiva ter que ser desmembrada por dois processos distintos (o de execução e insolvência) e isto contra a evidência legal de, até à partilha, os herdeiros, insolventes ou não, não poderem deter sobre os bens concretos, em particular sobre o imóvel penhorado, outro direito que não seja o de uma quota ideal (neste mesmo sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18 de Fevereiro de 2020, processo nº 2746/14.7TBLRA.C1, em dgsi.pt).
Isto posto, assentando que, a nosso ver, não deveria ter sido afastado da habilitação ocorrida na presente ação executiva nenhum herdeiro, designadamente o filho único da executada falecida, E…, pois que a declaração de insolvência deste em nada afeta a sua qualidade de herdeiro, não pondo em causa a respetiva capacidade judiciária nesta sede, certo será que o mesmo não foi judicialmente habilitado por via de sentença já há muito transitada em julgado.
Neste conspecto, assume particular importância a já transcrita frase que integra a decisão em causa onde se pode ler: “relativamente ao filho da falecida, considerando que foi declarado insolvente, não podem os autos prosseguir quanto ao mesmo, apesar de também ter a qualidade de herdeiro, nos termos do disposto no art. 88º do CIRE.”
Ou seja, o tribunal não pôs em causa a qualidade de herdeiro do E…; esta mantém-se, naturalmente, com consequências incontornáveis na elucidação do conflito dos autos.
Desde logo, a jusante, para afastar a invocação da autoridade de caso julgado relativamente à sentença exarada no incidente de habilitação de herdeiros a qual terá, seguramente, determinado a decisão ora sob escrutínio. Na verdade, como se lê na fundamentação da sentença sob apelação, a opção segundo a qual haveria apenas um único interessado/executado, o ora recorrente, decorreu exclusivamente “da sentença de habilitação de herdeiros” onde “este foi o único herdeiro a ser habilitado”.
Ora, conforme doutrina e jurisprudência assente, no quadro atual em que se impõem redobradas cautelas quanto aos efeitos da autoridade do caso julgado (a este respeito, leia-se o acutilante texto “Um polvo chamado autoridade do caso julgado”, acessível online https://portal.oa.pt/media/130340/jose-lebre-de-freitas_roa-iii_iv-2019-13.pdf, publicado, em 2019, na Revista da Ordem dos Advogados), a eficácia dessa autoridade sempre pressuporia “uma decisão anterior definidora de direitos ou efeitos jurídicos que se apresente como pressuposto indiscutível do efeito prático-jurídico pretendido em ação posterior no quadro da relação material controvertida invocada” (citamos Acórdão do STJ de 8.11.2018, processo nº478/08.4TBASL.E1.S1, disponível em dgsi.pt).
Acontece que, no caso concreto, esse pressuposto não se apresenta, longe disso, como indiscutível, como também nos parece exorbitar do que decorre daquela sentença de habilitação. Aliás, como vimos, é a própria decisão que esclarece não estar em causa a qualidade de herdeiro do filho da falecida D…; o alcance visado define-se, diríamos circunscreve-se, ao âmbito delimitado pelo artigo 88º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE). O preceito referido determina a “a suspensão de quaisquer diligências executivas (...) que atinjam os bens integrantes da massa insolvente”; ou seja, reporta-se exclusivamente aos bens do executado que, por força da declaração de insolvência, deixam de abarcar o património deste e passam a elencar o da massa insolvente.
No caso concreto, o bem penhorado não pertencia, ao insolvente mas sim à herança indivisa de sua mãe na qual o mesmo legalmente concorre com o seu pai, marido da falecida D…, como herdeiro.
Temos, portanto, que inexiste o efeito decorrente do trânsito em julgado relativamente à penhora do bem imóvel pertença, em parte, daquela herança indivisa no sentido de pretender existir apenas um único herdeiro do património da herança; tal asserção não constitui um “pressuposto indiscutível do efeito prático-jurídico” da sentença de habilitação.
Diríamos até, atenta a fundamentação da decisão jurisdicional em causa, que tal conclusão contraria aquelas pressuposições tanto mais que a sentença expressamente reconheceu permanecer incólume a qualidade de herdeiro do B….
A argumentação desenvolvida desemboca, como se percebe, na procedência do recurso sob escrutínio.
A penhora foi efetuada sobre o imóvel dos autos, como se se tratasse de património do executado, marido da falecida D…, tido como único interessado; mas, ao invés, tal imóvel, porque integra uma herança indivisa em que coexistem dois herdeiros, e em que o executado, tal como o seu filho ora insolvente, apenas detêm um direito ideal ao acervo patrimonial que a compõe, violou a regra legal imposta pelos artigos 743º, nº 1 e 744º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, que proíbem, por um lado, a penhora de uma parte especificada de um dado bem indiviso e, por outro, apenas admite a penhora de bens de um dado herdeiro que tenham sido por ele recebidos.
O imóvel constitui património da herança ilíquida e indivisa do “de cuius” que foi executada nos autos pois que, nos termos do artigo 2119º do Código Civil, apenas através da partilha “cada um dos herdeiros é considerado, desde a abertura da herança, sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos, sem prejuízo do disposto quanto a frutos”. Embora com efeitos retractivos à abertura da herança unicamente a partilha permite transformar um herdeiro em sucessor naquele património.
Assim sendo, não é passível de penhora o imóvel pertencente à herança de D…, sendo que são dois os herdeiros a considerar e não apenas o executado; para a exequente resulta admissível, no caso, a penhora do direito e ação da referenciada herança ilíquida e indivisa.
Em síntese conclusiva, perante a procedência do recurso deduzido, impõe-se revogar a sentença sob escrutínio, determinando-se a procedência da oposição à penhora com o consequente levantamento da penhora efetivada e cancelamento da apresentação nº. 1917, de 06/03/2019.

IV – Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso deduzido e, em consequência, revoga-se a decisão apelada, ordenando-se o levantamento da penhora em causa nos autos.
Custas pela apelada.

Porto, 9 de Março de 2021
José Igreja Matos
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues