CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
COVID 19
PENA
Sumário

O Decreto 2-B/2020 não tendo criado novo tipo de crime de desobediência pelo menos alterou a medida da pena do crime 
Ocorre que a criação de tipos de ilícitos criminais é matéria da reserva relativa da Assembleia da República, nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 165º da CRP
O Decreto 20-A/2020 ao definir um novo tipo de crime, invade a competência legislativa que lhe não compete e que só competiria se tivesse sido prevista por uma lei de autorização legislativa. É também nisto que consiste o princípio do Estado do direito democrático estabelecido no artigo 2º da CRP.
Acresce que olhando o teor da Resolução da Assembleia da República 15A/2020 de 18/03 que autorizou o Presidente da República a declarar o estado de emergência, não se retira dela que contenha uma autorização para que o Governo pudesse criar um novo tipo de crime.
Não basta estatuir que ficam parcialmente suspensos alguns direitos, nomeadamente o direito de deslocação, para daí retirar sem mais a aceitação de que a suspensão de direitos implica automaticamente a criminalização das condutas.
O Decreto 2-B/2020 de 02.04., no seu artº 43º nº 6, é organicamente inconstitucional nos termos sobreditos (na parte relativamente ao agravamento da pena.
A medida da pena é a constante do artº 348º nº 1 al b) do Código Penal e não a medida agravada constante do Dec Lei 20-A/2020.

Texto Integral

Decisão proferida na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
 
Por sentença proferida no dia 17 de Abril de 2020, após julgamento em processo sumário, ADO_______ foi absolvido da prática de um crime de desobediência agravado, por violação do dever geral de recolhimento domiciliário, previsto e punido pelas disposições conjugadas do art.° 348°, n.° 1, al. b), do Código Penal, conjugado com os art.°s 5°, 43°, n.° 1, al. c) e d), e n.° 6, todos do Decreto 2-B/2020, de 2/4, com o art.° 7°, da Lei 44/86, de 30/9, e com o art.° 6°, n.°s 1 e 4, da Lei 27/2006, de 3/7.
Inconformado com tal decisão o Ministério Público interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
VIII - Conclusões:
a) É o presente recurso interposto da douta sentença que absolveu o arguido da prática de um crime um crime de desobediência agravado, por violação do dever geral de recolhimento domiciliário, previsto e punido pelas disposições conjugadas do art.° 348°, n.° 1, al. b), do Código Penal, conjugado com os art.°s 5°, 43°, n.° 1, al. c) e d), e n.° 6, todos do Decreto 2-B/2020, de 2/4, com o art.° 7°, da Lei 44/86, de 30/9, e com o art.° 6°, n.°s 1 e 4, da
Lei 27/2006, de 3/7, por entender, grosso modo, que a deficiente redacção do Decreto 2B/2020, de 2/4, não permite ao julgador ter uma percepção clara e livre de contradições das condutas que são criminalmente punidas, bem como de quais os poderes que as Forças de
Segurança têm para impor o cumprimento aos cidadãos do dever geral de recolhimento domiciliário, decorrente do art.° 5°, do Decreto 2-B/2020, chegando a uma situação de impasse interpretativo que resolveu a favor do arguido, absolvendo-o da prática do crime pelo qual vinha acusado.
b) A sentença proferida padece de nulidade, nos termos do art.° 410°, n.° 2, al.
b), do Código de Processo Penal, por contradição insanável no que tange à sua fundamentação, na matéria de facto dada como provada e não provada, além de estar fundamentada de forma manifestamente insuficiente, tendo ainda sido feita uma incorrecta aplicação do principio in dubio pro reu.
c) Esta contradição insanável caberá na previsão do art.° 410°, n.° 1, al. b), do Código de Processo Penal, que dispõe que o recurso pode ser interposto quando o vício resulta do próprio texto da decisão recorrida, pois, no presente caso, não se poderia dar simultaneamente como provado que a ordem dada ao arguido, de dispersão e recolha ao seu domicílio, era não legítima (sendo que o oposto de ser não legítima era ser legítima) e que a mesma não era legítima, como resulta do texto da sentença.
d) Conforme resulta da sentença agora em crise, no ponto 18 da factualidade provada é considerado que “Dá-se como não provado que a ordem dada ao arguido de dispersamento e de não poder estar na rua naquelas condições foi legítima”, mas, doutro passo, na factualidade não provada, considera o Tribunal a quo, no seu n.° 19, “ Dá-se como não provado que esta ordem não foi legítima ”.
e) Tentando compaginar a factualidade vertida sob os n.°s 18 e 19, verifica-se ser impossível proceder à sua harmonização, pois se uma ordem não é considerada legítima ela será necessariamente ilegítima, mas se depois se decide não estar provado que a ordem não era legítima ela será necessariamente legítima.
f) No caso vertente estamos perante um verdadeiro non liquet, uma decisão que não é clara, o que não é aceitável, pois, nos termos do art.° 8° do Código Civil, o julgador não se pode abster de julgar, invocando a falta ou obscuridade da lei ou alegando dúvida insanável acerca dos factos em litígio.
g) Ao decisor é exigido que decida, que de acordo com as normas vigentes e a
factualidade assente, que tome uma decisão clara, que no caso era tão só considerar se a ordem dada - de se recolher ao domicílio - e a respectiva cominação - se voltasse a infringir o dever geral de recolhimento cometeria um crime de desobediência -, era ou não era legítima, não se podendo admitir um terceiro género, fruto das dúvidas de interpretação dos normativos legais indicados na acusação pública, sendo certo que a dúvida do julgador, neste caso concreto, não residiu na decisão de quais as condutas efectivamente adoptadas pelo arguido, e que estão dadas como assentes, mas sim no enquadramento jurídico da ordem dada ao arguido, recebida e entendida por este e, finalmente, incumprida, o que gerou a sua detenção e a imputação da prática de um crime de desobediência.
h) Não se decidindo se uma ordem é legítima ou não, não pode a sentença deixar de ser considerada nula, por contradição insanável entre a matéria dada como assente nos citados pontos 18 e 19.
i) Entendendo a Mm.a Juíza a quo que, na dúvida, não estavam preenchidos os elementos objectivos do crime de desobediência, previsto e punido pelo art.° 348°, n.° 1, al.
b), do Código Penal, por referência à violação do art.° 5° do Decreto 2-B/2020, de 2/4, foram ignorados as demais normas e diplomas em que o Ministério Público assentou o seu libelo acusatório.
j) Ainda que tal omissão de pronúncia possa não assumir o relevo de uma nulidade da sentença, prevista no art.° 379°, n.° 1, al. c), do Código de Processo Penal, não se pode ignorar que a legitimidade da cominação das condutas que violem o dever geral de recolhimento domiciliário, previsto no art.° 5° do Decreto 2- B/2020, não surge exclusivamente da aplicação isolada de tal diploma ou sequer da aplicação única do seu art.° 5°, pois que o mesmo surge enquadrado por um conjunto normativo pré-existente, onde se destaca a Lei 44/86, de 30/9, a qual não foi sequer considerada, bem como o art.° 43°, n.° 6, do mesmo Decreto 2- B/20202. 
k) Fazendo apego ao princípio in dubio pro reu quanto ao expresso dilema interpretativo, optou-se por absolver o arguido da prática do crime pelo qual vinha acusado, o que não se afigura ser a aplicação correcta de tal princípio jurídico, estruturante da maioria dos sistemas de justiça de matriz ocidental e que apenas pode conduzir a uma decisão favorável ao
arguido com fundamento na falta de prova.
l) No caso em apreço não resulta, do texto da decisão recorrida, que tenha surgido no espírito do julgador qualquer dúvida inultrapassável que justifique lançar mão do sobredito princípio, cuja invocação se afigura, aqui, manifestamente incorrecta.
m) Face ao acervo factual constante da sentença, é evidente que não ficou no espírito do julgador qualquer dúvida referente aos factos dados como assentes, dúvida esta que possa ser valorada a favor do arguido. A dúvida do julgador situou-se exclusivamente no plano jurídico: saber qual o alcance do dever geral de recolhimento domiciliário, consagrado no art.° 5° do Decreto 2-B/2020, e saber se a sua violação pode autorizar as forças de segurança a cominar tal comportamento violador com a prática de um crime de desobediência, nos termos do art.° 348°, n.° 1, al. b), do Código Penal.
n) Ao julgador, assente a factualidade relevante, há que a enquadrar legalmente, face, em primeira linha, quanto aos normativos em que o Ministério Público estriba a sua acusação, pois, como decorre do art.° 8°, n.°s 1 e 2, do Código Civil, o Tribunal não se pode abster de julgar, invocando a falta ou obscuridade da lei, do mesmo passo que, por dever obediência à lei, não a pode afastar sob o pretexto de ser injusto ou imoral o conteúdo do preceito legislativo - que foi justamente o que aconteceu: por todas as dúvidas que a técnica legislativa consagrada no art.° 5° do Decreto 2-B/2020 lhe suscitou, a Mm.a Juíza a quo acabou por não decidir se a conduta imputada ao arguido, estar à porta de uma superfície comercial a beber bebidas alcoólicas e em contexto de convívio, lhe estava vedada nos termos do art.° 5° do Decreto 2-B/2020 e, estando-o, se podia ser cominada a prática de um crime de desobediência por tal violação. 
o) E quanto a isso, a essa decisão jurídica, não se podia a mesma furtar, uma vez que o próprio art.° 9° do Código Civil, com as necessárias adaptações ao processo penal, dota o aplicador das ferramentas necessárias para tal, no âmbito de uma interpretação que não se quer só literal mas que reconstitua o pensamento legislativo, tendo em conta a unidade do sistema (interpretação sistemática), as circunstâncias em que a lei foi elaborada (interpretação histórica) e as condições específicas do tempo em que é aplicada (elemento teleológico ou actualismo da interpretação), tendo sempre em mente que o legislador consagrou as soluções
mais acertadas e que soube exprimir adequadamente o seu pensamento.
p) Face à recente situação de calamidade por pandemia, ante a propagação da doença contagiosa denominada Covid-19, foi declarado o Estado de Emergência e foi estabelecido o dever geral de recolhimento domiciliário, comum aos Decretos 2-A/20202, 2B/2020 e 2-C/2020, seu art.° 5°, competindo às forças de segurança zelar e fiscalizar o cumprimento de tal dever, nos termos do art.° 43° do Decreto 2-B/2020.
q) - O facto de estar à porta de uma superfície comercial a consumir bebidas alcoólicas em situação de convívio social não é umas das excepções ao dever geral de recolhimento, nem, considerada a sua ratio, se pode considerar uma actividade de natureza análoga às demais elencadas, não se verificando qualquer motivo de força maior ou qualquer necessidade impreterível que tenha obrigado o arguido a tal conduta - art.° 5°, n.° 1, al. t).
r) - As forças de segurança têm poder para, legitimamente, ordenar aos cidadãos em violação do dever geral de recolhimento domiciliário que retornem às suas residências - art.° 43°, n.° 1, al. c).
s) - A resistência e a desobediência a ordens legítimas das autoridades competentes, quando tal desobediência ou resistência implique uma violação dos deveres impostos no Decreto 2-B/2020, é sancionada nos termos da lei penal - art.° 43°, n.° 6.
t) Sendo legítima a ordem para os cidadãos regressarem ao seu domicílio, a única questão juridicamente relevante é saber se as forças de segurança podem cominar a prática de um crime de desobediência para os cidadãos que sejam novamente fiscalizados em incumprimento de tal dever, podendo, nesse caso, proceder à sua detenção e apresentá-los em Tribunal para serem sujeitos a julgamento sob a forma de processo sumário.
u) No caso concreto, resultou provado (factos assentes n.°s 1 e 2) que no dia 16 de Abril de 2020 o arguido foi interceptado na via pública, por permaneceu a consumir bebidas alcoólicas conjuntamente com um grupo de indivíduos mas que já no dia 8 de Abril mesmo foi interceptado na via pública por Agentes da PSP em incumprimento do dever geral de recolhimento ao domicílio, razão pela qual foi devidamente notificado por estes Agentes de que não podia permanecer na via pública naquelas condições, atento o Estado de Emergência em que Portugal se encontra, devendo regressar imediatamente à residência, pois caso não o fizesse ou voltasse a incorrer no mesmo tipo de comportamento, cometia um crime de desobediência.
v) Sendo lícita a ordem para que os cidadãos regressem ao seu domicílio, a consequência quando voltem a incumprir tal dever não pode deixar de ser o cometimento de um crime de desobediência, tanto mais que, em situação prévia, contemporânea e semelhante, já o mesmo havia sido advertido de que, em caso de futura violação, cometeria o crime de desobediência.
w) Não se pode conceber que não haja qualquer crime no caso de violação do dever geral de recolhimento, e que tal crime esteja reservado para a violação do disposto no art.° 3° do Decreto 2-B/2020 (confinamento obrigatório) ou, após prévia cominação, apenas para as situações dos art°.s 6° (limitação à circulação no período da Páscoa), 9° (encerramento de instalações e estabelecimentos), 10° (suspensão de actividades no âmbito do comércio a retalho) e 11° (suspensão de actividades no âmbito da prestação de serviços), como parece decorrer do teor literal do art.° 43°, n.° 1, al. d), do art.° 43° do Decreto 2-B/2020.
x) Sendo um estado de excepção constitucional, que acarreta a suspensão de vários direitos, liberdades e garantias, o Estado de Emergência, para o que aqui nos interessa, depende do aparecimento de uma situação de calamidade em que a necessidade de salvaguardar a saúde pública e de travar o sistemático contágio do vírus Covid-19, levou ao decretamento de medidas extremas, comportando restrições de direitos liberdades e garantias, restrições essas que, com respeito pelos princípios da adequação e proporcionalidade, se devem limitar, quer pela sua duração, quer pela sua extensão, quer quanto aos meios utilizados, ao estritamente necessário ao rápido restabelecimento da normalidade.
y) Ficou bastante restringido o direito de deslocação dos cidadãos, bem como o direito de resistência, ficando impedidos os actos de resistência activa ou passiva às ordens emanadas pelas autoridades públicas competentes em execução do presente estado de emergência.
z) O regime a que obedeceu a concepção e execução do Estado de
Emergência teve como ponto de partida e limite a Lei 44/86, de valor reforçado, que dispões, no seu art.° 7, que “a violação do disposto na declaração do estado de sítio ou do estado de emergência ou na presente lei, nomeadamente quanto à execução daquela, faz incorrer os respectivos autores em crime de desobediência” aa) A revisão introduzida na Lei 44/86 pela Lei 1/2012, de 11/5, alterou expressamente este normativo, o art.° 7°, pois onde se falava em crime de responsabilidade para os titulares dos cargos com a função de executarem o regime jurídico e administrativo do Estado de Emergência fala-se agora de um crime de desobediência, não nos parecendo que os destinatários de tal consequência penal sejam somente os titulares de cargos político- administrativos, nada impedido que se dirija igualmente aos demais cidadãos.
bb) O Decreto do Presidente da República n.° 17-A/2020, de 2 de Abril, que renovou o Estado de Emergência, mantendo a restrição ao direito de deslocação e fixação, comportou uma novidade que não poderá deixar de ter consequências a título penal, passando a incluir um art.° 5°, em que expressamente se determina que fica impedido todo e qualquer acto de resistência activa ou passiva exclusivamente dirigido às ordens legítimas emanadas pelas autoridades públicas competentes em execução do presente estado de emergência, podendo incorrer os seus autores, nos termos da lei, em crime de desobediência.
cc) Neste contexto normativo não nos parece defensável que a violação do dever geral
de recolhimento não tenha qualquer consequência penal, que não comporte a prática de um crime de desobediência, ficando os poderes das forças policiais a meras “sensibilizações”,
“aconselhamentos” e “recomendações”.
dd) Tais autoridades têm o poder de, legitimamente, dar ordens aos cidadãos para que regressem ao seu domicílio, advertindo-os de que, caso voltem a incumprir tal dever geral, incorrerão na prática de um crime de desobediência, motivando a sua detenção e sujeição a julgamento pela prática de tal crime.
ee) De outra forma o Estado estaria a prescindir da sua autoridade, deixando que à boa vontade dos cidadãos o cumprimento do dever geral de recolhimento domiciliário, pois que o seu incumprimento apenas poderia dar lugar a uma recomendação ou aconselhamento para regressar ao domicílio, o que não só enfraqueceria desmesuradamente o comando ínsito na norma como frustraria a contenção da pandemia, o que não se quer, sendo certo que a responsabilidade penal do cidadão encontrará sempre arrimo nos citados art.° 7°, da Lei 44/86,
art.° 5° do Decreto do Presidente da República n.° 17-A/2020, de 2/4, art.° 5° da Resolução da Assembleia da República n.° 22-A/2020, de 2/4, e art.° 43°, n.° 6, do Decreto 2-B/20202, de 2/4, ainda que se exija a prévia cominação por parte das autoridades policiais, nos termos do art.° 348°, n.° 1, b), do Código Penal, a qual, no presente caso, efectivamente até existiu, no dia 8 de Abril, tal como referido na factualidade assente na sentença ora em crise.
Nestes termos deverá ser considerada nula a decisão recorrida ou, não o sendo, deverá ser a mesma substituída por outra, nos termos sustentados na motivação apresentada, que importe o a condenação do arguido pela prática de um crime de desobediência.
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O arguido, devidamente notificado, não respondeu ao recurso.
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Nesta Relação o SR PGA emitiu o competente parecer acompanhando o recurso apresentado pelo MP na primeira instância.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, nada tendo sido dito.
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Proferido despacho preliminar e colhidos os vistos foi o processo à conferência.
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O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente. Só estas o tribunal ad quem deve apreciar art.ºs 403º e 412º nº 1 CPP1 sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – art.º 410º nº 2 CPP.
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Como se verifica das conclusões de recurso, está em causa saber: 
(i) Se a sentença proferida enferma da nulidade decorrente da contradição entre os factos provados e não provados;
(ii) Se a ordem de recolhimento transmitida ao arguido por parte dos Senhores Agentes de Autoridade é ou não legítima.
(iii) Se os factos praticados pelo arguido preenchem ou não o crime de desobediência.
* Factos provados e respetiva motivação:
1) Que, no dia 16 de Abril de 2020, pelas, pelo, pelas 21 horas e 10 minutos, o arguido foi interceptado na via pública, na Rua Cidade de Viseu, em Camarate, área desta comarca, onde permaneceu a consumir bebidas alcoólicas, conjuntamente com um grupo de indivíduos, tendo na data sendo apreendido na posse do mesmo 2 pacotes de vinho, um dos quais se encontrava aberto e a ser consumido; 
2) Dá-se, também, como provado, que, já no dia 8 de Abril de 2020, o arguido foi interceptado na via pública por agentes da PSP, em incumprimento do dever geral de recolhimento do domicílio, razão pela qual foi, devidamente, notificado por estes agentes, porque não podia permanecer na via pública, naquelas condições, atento o estado de emergência em que Portugal se encontra, devendo regressar, imediatamente, à residência, pois, caso não o fizesse, ou voltasse a incorrer no mesmo tipo de comportamento, cometia um crime de desobediência;
3) O arguido ficou ciente dessa realidade, bem como do conteúdo da
declaração que assinou no dia 8 de Abril;
4) O arguido percebeu a ordem que lhe foi dada, teve consciência da
advertência que lhe foi feita;
5) Na data em causa dos factos, o arguido saiu de casa para ir ao Minipreço comprar os referidos pacotes de vinho que lhe foram apreendidos;
6) Ao sair do Minipreço, entendeu parar e ficar à conversa com o grupo de
indivíduos;
7) O arguido não tem televisão em sua casa, nem rádio, sabe que Portugal se encontra numa situação de pandemia e demonstrou saber o que é o coronavírus, mas sendo
certo que só sabe disto quando sai à rua e através de conversa com as pessoas, com os quais se pode informar, já que não tem acesso, em casa, a qualquer tipo de notícias;
8) Dá-se, também, como provado que, o arguido referiu em audiência saber que não podia estar na rua naquelas condições, porque foi essa a informação que lhe foi dada pela polícia anteriormente, referindo, igualmente, que, no seu entender, cometeu um erro ao não ir logo para casa e ficar na rua a conversar com os ditos indivíduos;
9) O arguido é operário da construção civil, há 6 meses que se encontra desempregado, reside sozinha, sozinho, numa casa que era do seu irmão, é ajudado economicamente por familiares;
10) Tem a 4.a classe de escolaridade e, como já foi referido, não tem televisão, nem rádio em casa;
11) O arguido não tem antecedentes criminais, sem prejuízo já foi julgado neste tribunal, no passado dia 13 de Abril de 2020, no âmbito do processo 289/20.9PLLRS processo no qual foi condenado pela prática de 2 crimes de desobediência, por violação do estado de emergência, um praticado a 10 de Abril, e outro praticado a 11 de Abril, tendo sido condenado em multa, em multa penal, sendo certo que tal decisão não está transitada em julgado e, portanto, o arguido não tem antecedentes criminais.
Dá-se como não provado que:
A) A ordem dada ao arguido, de dispersamento e de não poder estar na rua
nas condições em que o foi, foi legítima;
B) Dá-se, também, como não provado que esta ordem, que a mesma ordem não foi legítima, portanto, não se dá como provado nem que foi legítima, nem como não foi legítima.
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III. Motivação
Relativamente à motivação da, da decisão do facto, o tribunal fundou a sua convicção com base na totalidade da prova apurada nesta audiência de discussão e julgamento, conjugadas com as regras de experiência comum e pelo confronto das, das declarações do arguido com o depoimento da, da testemunha policial.
De facto, informou aqui o arguido e, e, e não existe prova contraditória, que saiu da sua residência, após vir de um, de um biscate que tinha feito no seu trabalho, para ir ao supermercado comprar os pacotes de vinho e que, ao sair, ficou a fumar um cigarro e acabou por beber um pacote de vinho, sendo certo que se encontrava um grupo de indivíduos que o arguido referiu serem duas ou 3 pessoas à conversa, e que o arguido ficou afastado desses, desses indivíduos. Mas, acabou por ir conversando com, com os mesmos também, até porque estavam a conversar sobre a situação do coronavírus e não tem televisão em casa, e, portanto, acaba por se ir informando das notícias desta, desta forma.
Inquirido o Sr. Agente de autoridade, o arguido, não está obrigado a falar, a falar com verdade, portanto, nem sequer está obrigado a falar, o Sr. Agente inquirido, prestando juramento e depondo de uma forma extremamente lógica, em termos de experiência comum e de forma avaliada jurídica, por parte do tribunal, não temos motivos para duvidar, referiu que o arguido estava juntamente com estes indivíduos, portanto, não estava afastado dos indivíduos, estava juntamente com o grupo, que o espaço era um espaço muito pequeno delimitado por muros com cerca de 20 ou 25 metros quadrados e que estariam todos à conversa e que terão dispersado relativamente quando viram a polícia chegar e que, portanto, todos os indivíduos, à excepção do arguido, terão fugido. Confrontada a testemunha sobre quantos indivíduos seriam, referiu o Sr. Polícia, o Sr. Agente da autoridade, que seriam 7 a 10 indivíduos, não conseguindo precisar, mas, seguramente, não seriam 2 ou 3. Ora, perante esta contradição, entre o depoimento da testemunha e o, e as declarações do arguido, o tribunal não tem motivos para, para duvidar da testemunha, foi extremamente precisa e relatou tudo com bastante pormenorização não, não, não se aferindo aqui nenhuma dúvida quanto ao que a testemunha disse e, daí o tribunal ter dado o facto como provado desta forma.
Referiu, também, a testemunha para esclarecer que sabe que estes indivíduos já estariam ali há algum tempo, que não conseguia precisar, mas que terá sido inferior a uma hora, perto de uma hora, uma vez que o seu colega que está a fazer gratificados no Minipreço terá visto estes indivíduos todos à conversa e terá ligado para a esquadra até chamar o piquete, a patrulha de serviço. Referiu-lhe o seu colega, também, que o arguido estaria nestes indivíduos e que, portanto, o arguido já estaria ali há algum tempo, não sabemos precisar, o arguido não conseguiu precisar falou em 5, 10 minutos, depois acabou por falar em 15, 20, conseguindo concretizar com o Sr. Polícia que terá sido 40, 45, 50; portanto, perto de uma hora, inferior a uma hora e daí o tribunal ter dado os factos provados desta, desta forma.
Quanto à legitimidade ou não da ordem da polícia, tem a ver com o enquadramento, vamos, o enquadramento jurídico que vamos fazer e, portanto, já explicaremos esta questão, aquando desse enquadramento.
Os factos relativos à situação pessoal e social do arguido foram dados como provados nas suas declarações e não foram contraditados por outro tipo de prova e, portanto, percebeu- se que o arguido não tem forma de ver notícias em casa, que é uma pessoa que vive em condições sociais extremamente precárias, e que a única forma que tem de se informar das questões da pandemia é exactamente através do recurso, a contactar e a conversar com as pessoas na, na rua.
Ora, o arguido, e levámos em consideração o também certificado registo criminal, que atesta que o arguido não tem antecedentes criminais e a sentença consta aqui do processo, que foi junto aos autos do processo 289/20.7PLLRS, que demonstra que o arguido já foi condenado pelo crime de desobediência, por violação do estado de emergência, sendo certo que tal decisão não está transitada em julgado, mas também não transitará durante o estado de emergência, uma vez que os prazos se encontram suspensos e o processo é urgente nos termos do artigo 103.°, apenas até à prolação da sentença e, portanto, isto para dizer que em todos, em teoria, os arguidos podem ser julgados todos os dias, mas nunca terão decisões transitadas em julgado para efeitos de condenação, e, portanto, andamos aqui a fazer condenações desta forma legislativa, que foi imposta pelo legislador.
*
Conhecimento das questões suscitadas no presente recurso:
(i) Da nulidade decorrente da contradição entre os factos não provados.
“Decorre da própria letra da lei que o vício deve resultar “do texto de decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal). Assim, importa salientar que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento [21].
Existe o vício previsto na alínea a) do nº 2 do art. 410º do Código de Processo Penal quando a factualidade dada como provada na sentença não permite, por insuficiência, uma decisão de direito ou seja, quando dos factos provados não possam logicamente ser extraídas as ilações do tribunal recorrido. A insuficiência da matéria de facto determina a incorrecta formação de um juízo, porque a conclusão ultrapassa as respectivas premissas[22]. Dito de outro modo: quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito e quando não foi investigada toda a matéria de facto com relevo para a decisão[23].
Existe o vício previsto na alínea b), do n.º 2 do art. 410.º quando há contradição entre a matéria de facto dada como provada, entre a matéria de facto dada como provada e a matéria de facto dada como não provada, entre a fundamentação probatória da matéria de facto, e ainda entre a fundamentação e a
decisão [24][1].
Finalmente, ocorre o vício previsto na alínea c), do nº 2 do art. 410º quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira,
ostensiva ou evidente[25]. Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (Ac. Relação de Lisboa de 13/09/2017, Proc. 353/16.9JELSB.L1-3, Relator Jorge Raposo, in www.dgsi.pt).
Ora, analisando a matéria de facto considerada provada e não provada verifica-se que, como bem aponta o Ministério Público, que na mesma se considera não provado o mesmo facto de forma negativa e positiva: o que deu fez constar nos pontos A) e B) dos factos não provados, relativamente à natureza da ordem emanada pelos agentes de autoridade – legítima ou não legítima.
Esta contradição tem como consequência a nulidade da decisão a não ser que a mesma seja suscetível de ser sanada ou resolvida por esta via de recurso, o que se mostra perfeitamente possível e é de realizar, uma vez que este facto deriva da atuação dos senhores agentes de autoridade e da sua conformidade ou não à lei. *
(ii) Da Legitimidade ou ilegitimidade da Ordem dos Senhores Agentes de Autoridade:
Deste modo, entramos já na análise da segunda questão colocada pelo MP no seu recurso concernente na natureza da intervenção dos senhores agentes de autoridade no âmbito de aplicação do diploma legal em vigor à data dos factos que impunha o dever geral de recolhimento domiciliário, o Decreto-Lei n.º 2B/2020 de 22/03.
Não há dúvida nenhuma que, perante os factos considerados provados que, apesar das dúvidas interpretativas do tribunal a quo relativamente ao diploma em questão, que a situação em que o arguido se encontrava quando foi surpreendido, novamente, pelos senhores agentes de autoridade, não se enquadra em nenhuma das situações que constituem a exceção do já referido dever de recolhimento domiciliário consagrado no art.º 5.º do Decreto-Lei n.º 2-B/2020 de 22/03. Para tanto basta ler atentamente a lei e ter presente o que se deu como provado em 1) Que, no dia 16 de Abril de 2020, pelas, pelo, pelas 21 horas e 10 minutos, o arguido foi interceptado na via pública, na Rua Cidade de Viseu, em Camarate, área desta comarca, onde permaneceu a consumir bebidas alcoólicas, conjuntamente com um grupo de indivíduos, tendo na data sendo apreendido na posse do mesmo 2 pacotes de vinho, um dos quais se encontrava aberto e a ser consumido.
Igualmente não se nos oferecem quaisquer dúvidas que o arguido sabia, apesar de se ter considerado provado que o mesmo não tem acesso a notícias em casa, que se encontrava a violar o referido dever uma vez que já anteriormente o mesmo havia sido surpreendido por agentes de autoridade no dia 8 de abril de 2020, ou seja oito dias antes dos factos em causa nos autos, que o notificaram e esclareceram que e porque não podia permanecer na via pública, naquelas condições, atento o estado de emergência em que Portugal se encontra, devendo regressar, imediatamente, à residência, pois, caso não o fizesse, ou voltasse a incorrer no mesmo tipo de comportamento, cometia um crime de desobediência (facto n.º 2). Acresce que igualmente se considerou provado que o arguido ficou ciente dessa realidade, bem como do conteúdo da declaração que assinou no dia 8 de Abril (facto n.º 3) e que O arguido percebeu a ordem que lhe foi dada, teve consciência da advertência que lhe foi feita (facto n.º 4).
Será a ordem de 8 de abril ilegítima? Como já vimos, o tribunal a quo dá como não provado que a mesma seja legítima e por outro lado considera não provado que a mesma não seja legítima. Ou seja, o mesmo facto de forma positiva e negativa.
A resposta para esta questão encontramo-la na lei, sendo por isso um facto normativo.
O Decreto 2-B/2020 de 02.04.2020 que rege a situação dos autos (como é pacificamente aceite) dispunha, no seu artº 5º, a regra geral de que só se podia circular na via pública se tal circulação visasse algum dos fins contidos nas diversas alíneas do preceito.
Já vimos que confraternizar na via pública com um grupo de outros indivíduos não preenche a previsão de qualquer das exceções legalmente previstas e admissíveis a tal dever, pelo que o arguido violou o dever a que estava obrigado.
O artº 43º do mesmo diploma refere que “Compete às forças e serviços de segurança e à polícia municipal fiscalizar o cumprimento do disposto no presente decreto, mediante: (…) d) A cominação e a participação por crime de desobediência, nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal, bem como do artigo 7.º da Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, por violação do disposto nos artigos 6.º, 9.º a 11.º do presente decreto, bem como do confinamento obrigatório de quem a ele esteja sujeito nos termos do artigo 3.º.
Ora, este preceito não se aplica ao caso dos autos. Na verdade, o dever geral de recolhimento domiciliário que o arguido violou encontra-se inscrito no artº 5º do diploma e este artº 5º não é referido no artº 43º al. d) do dito Decreto 2-B/2020.
Assim, a situação da violação só pode ser punida por via da al. b) do nº 1 do artº 348º do Código Penal.
São elementos do crime de desobediência (1) a ordem ou mandado, (2) a sua legalidade substancial e formal, (3) a competência da autoridade ou do funcionário para a sua emissão, (4) a regularidade da sua transmissão ao destinatário, (5) o conhecimento, por este, dessa ordem ou mandado, (6) a sua vontade de não a acatar e a falta à sua obediência e (7) a cominação, por disposição legal, da aplicabilidade da punição por desobediência.
O primeiro traduz-se na «imposição da obrigação de praticar ou deixar de praticar certo facto» (Luís Osório, citado por Leal-Henriques e Simas Santos,  Código Penal Anotado, 2º Volume, 3ª Edição, Rei dos Livros, pág. 1503) - no caso, o dever de não frequentar ou estar na via pública quando não se verificam nenhuma das exceções ao direito de não permanecer.
A emissão da ordem ou mandado deve conter-se no campo das competências da autoridade ou funcionário emitentes, isto é, caber na esfera das suas atribuições, e chegar ao conhecimento do destinatário, através de um processo regular e capaz de propiciar o entendimento do seu conteúdo.
A vontade de não acatar o comando e o faltar à sua obediência desagua no desrespeito pela ordem emanada, comunicada e apreendida, com o seu destinatário a atuar em sentido contrário ao que lhe foi imposto, violando o dever resultante da lei e que lhe fora regularmente transmitido e de cujo conteúdo estava ciente.
A tanto acresce, ainda, a necessidade de existir uma cominação legal a considerar a conduta violadora da ordem ou mandado como desobediência simples ou qualificada ou uma cominação não legal, mas expressa, da autoridade ou funcionário emitente da ordem ou mandado a conferir à conduta transgressora o carácter de desobediência simples ou qualificada (Leal-Henriques e Simas Santos, ob. cit., pág. 1505).
Ora, no caso concreto tal cominação não foi feita no dia da detenção mas foi feita no dia 8 de abril.
Em lado algum da Lei se diz que tem de existir uma contemporaneidade entre o mandado/ordem, a cominação e a detenção. Não tem de existir uma contemporaneidade destes fatores. Eles têm de existir e não podem estar de tal forma separados no tempo que o agente desconheça, em razão do tempo decorrido ou outras circunstâncias, a proibição e a ligação entre esta, a cominação que lhe foi feita e a sua conduta (Ac. da Rel. Lisboa, de 10 de fevereiro de 2021, proferido no Proc. 178/20.7PCLRS.L1, Relator Rui Teixeira, a aguardar publicação).
As interrogações e dúvidas do tribunal a quo, com o devido respeito, não têm razão de ser, desde logo atento o previsto no art.º 43.º, n.º 1, al. c) e n.º 6 do citado Decreto-Lei n.º 2-B/2020. Note-se que não é a deslocação do arguido ao Minipreço que está em causa nos autos, mas sim a circunstância de ter permanecido na rua para além do necessário para realizar as suas compras; ficou na rua a beber com outras pessoas tendo inclusivamente uma das embalagens de vinho abertas e estando a consumi-la. Ora, esta situação não se enquadra em qualquer das situações excecionais nem justifica qualquer das dúvidas exaradas na sentença recorrida sobre o tempo permitido de permanência na rua enquadrável nas exceções.
Demonstrada que está que os agentes de autoridade procederam em conformidade com a lei, informando e advertindo o arguido de que cometeria crime de desobediência se violasse a ordem que lhe estavam a comunicar, a única conclusão a retirar é a de que a ordem é legítima e legal.
Também temos como certo, porque foi alvo de prova, que o arguido estava ciente de que o desrespeito do dever de recolhimento o faria incorrer num crime de desobediência. 
Nada, mas rigorosamente nada, autoriza a pensar-se que o arguido desconhecia a ilicitude da conduta. Acresce que temos por assente que tinha consciência que a cominação que lhe foi feita se mantinha. Aliás, o período temporal em apreço (denominado de 1ª vaga da pandemia) é caracterizado pela ordem de ficar em casa, de se sair o mínimo possível e só para tarefas essenciais.
Mais, o arguido tinha perfeita consciência da ilicitude da conduta, como aliás resulta dos factos provados, desde logo porque, pese embora à data da sentença tais condenações ainda não se encontrassem transitadas em julgado, o mesmo já havia sido julgado e condenado por situações idênticas três dias antes.
Por outro lado, é matéria de presunção judicial que quem seja maior de idade e não seja inimputável tem consciência da ilicitude dos seus actos. É a existência de factos que obstem a tal presunção que tem de ser provada pois que se o não for a presunção mantém-se (neste sentido vide com interesse o Acórdão desta Relação de 15-12-2015, tirado no processo 200/15.9PBOER.L1-5, acessível em www.dgsi.pt) .
Assim, dúvidas não nos restam que ao arguido foi cominada, por quem de direito e no âmbito das suas funções e com suporte legal, a obrigação de não sair de casa exceto se se verificassem as exceções legais; que o arguido saiu de casa sabendo que não o podia fazer; mas querendo fazê-lo (pois que saiu) e; que agiu com a consciência de que agia desconforme à Lei (Ac. da Rel. Lisboa que vimos seguindo e a cuja decisão aderimos na totalidade, razão pela qual a ela aderimos na totalidade e transcrevemos).
*
Aqui chegados, porque os factos julgados não provados pela primeira instância são contraditórios, como se alcançou já supra, e estando assente que a ordem foi legítima, facto normativo que se encontrava julgado de forma contraditória, na sua formulação positiva e negativa, e agora assente, cumpre alterar a matéria de facto provada nos seguintes termos:
1) Que, no dia 16 de Abril de 2020, pelas, pelo, pelas 21 horas e 10 minutos, o arguido foi interceptado na via pública, na Rua Cidade de Viseu, em Camarate, área desta comarca, onde permaneceu a consumir bebidas alcoólicas, conjuntamente com um grupo de indivíduos, tendo na data sendo apreendido na posse do mesmo 2 pacotes de vinho, um dos quais se encontrava aberto e a ser consumido; 
2) Dá-se, também, como provado, que, já no dia 8 de Abril de 2020, o arguido foi interceptado na via pública por agentes da PSP, em incumprimento do dever geral de recolhimento do domicílio, razão pela qual foi, devidamente, notificado por estes agentes, porque não podia permanecer na via pública, naquelas condições, atento o estado de emergência em que Portugal se encontra, devendo regressar, imediatamente, à residência, pois, caso não o fizesse, ou voltasse a incorrer no mesmo tipo de comportamento, cometia um crime de desobediência;
3) O arguido ficou ciente dessa realidade, bem como do conteúdo da declaração que assinou no dia 8 de Abril;
4) O arguido percebeu a ordem que lhe foi dada, teve consciência da advertência que lhe foi feita;
5) Na data em causa dos factos, o arguido saiu de casa para ir ao Minipreço comprar os referidos pacotes de vinho que lhe foram apreendidos;
6) Ao sair do Minipreço, entendeu parar e ficar à conversa com o grupo de indivíduos;
7) O arguido não tem televisão em sua casa, nem rádio, sabe que Portugal se encontra numa situação de pandemia e demonstrou saber o que é o coronavírus, mas sendo certo que só sabe disto quando sai à rua e através de conversa com as pessoas, com os quais se pode informar, já que não tem acesso, em casa, a qualquer tipo de notícias;
8) Dá-se, também, como provado que, o arguido referiu em audiência saber que não podia estar na rua naquelas condições, porque foi essa a informação que lhe foi dada pela polícia anteriormente, referindo, igualmente, que, no seu entender, cometeu um erro ao não ir logo para casa e ficar na rua a conversar com os ditos indivíduos;
9) O arguido é operário da construção civil, há 6 meses que se encontra desempregado, reside sozinha, sozinho, numa casa que era do seu irmão, é ajudado economicamente por familiares;
10) Tem a 4.a classe de escolaridade e, como já foi referido, não tem televisão, nem rádio em casa;
11) O arguido não tem antecedentes criminais, sem prejuízo já foi julgado neste tribunal, no passado dia 13 de Abril de 2020, no âmbito do processo 289/20.9PLLRS processo no qual foi condenado pela prática de 2 crimes de desobediência, por violação do estado de emergência, um praticado a 10 de Abril, e outro praticado a 11 de Abril, tendo sido condenado em multa, em multa penal, sendo certo que tal decisão não está transitada em julgado e, portanto, o arguido não tem antecedentes criminais.
12) A ordem dada ao arguido, de dispersamento e de não poder estar na rua nas condições em que o foi, foi legítima;
*
Aqui chegados não há dúvida que o arguido cometeu o crime de desobediência, p. e p. pelo artº 348º nº 1 al. b) do Código Penal.
Contudo, haverá que determinar se a medida da pena é aquela constante do Código Penal (prisão até 1 ano ou multa até 120 dias) ou do artº 43º nº 6 do Decreto 2-B/2020 (prisão até 1 ano e 4 meses ou multa até 160 dias).
O Decreto 2-B/2020 não tendo criado novo tipo de crime de desobediência pelo menos alterou a medida da pena do crime 
Ocorre que a criação de tipos de ilícitos criminais é matéria da reserva relativa da Assembleia da República, nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 165º da CRP. Efectivamente, a CRP no artigo 165º dispõe que: 1- É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:
a) (…)
b) Direitos, liberdades e garantias;
c) Definições de crimes, penas, medidas de segurança e respetivos
pressupostos, bem como processo criminal.
(…)
Seguiremos, nesta parte, de perto o Ac. da Rel. de Guimarães de 09.11.2020, tirado no proc. 119/20.1PBCHV.G1, acessível em www.dgsi.pt, o qual, tirado numa situação de confinamento profilático tem, na parte em análise, a mesma razão de ser.
Ali se considerou “(…) não há dúvida de que a criação de novos crimes compete à AR em primeira linha, podendo também competir ao Governo, mas apenas com autorização da AR. E não é o facto de o tipo de ilícito previsto no artigo 3º do Dec. 2-A/2020 não ter moldura penal própria - uma vez que remete para o crime de desobediência previsto no artigo 348º do Código Penal – que afasta este entendimento, já que no tipo de ilícito previsto no referido Decreto está objetivada a realidade que a lei passou a punir como crime de desobediência (que, no que para agora interessa, é a violação do confinamento por parte dos cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado vigilância ativa).
Poder-se-ia questionar este entendimento com o argumento de que estando o
País em estado de emergência, como estava, - decretado pelo Presidente da República na sequência da Resolução da Assembleia da República 15-A/2020 que autorizou a declaração de estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, abrangendo todo o território nacional, - passava a ser inexigível observar os preceitos constitucionais, tal como se mostram definidos.
Ocorre que é a própria Constituição que impede o afrouxamento das exigências quanto ao cumprimento das regras de competência de cada um dos órgãos de soberania, ao estatuir no artigo 19º, nº 7 que “a declaração do estado de sítio ou do estado de emergência só pode alterar a normalidade constitucional nos termos previstos na Constituição e na lei, não podendo nomeadamente afetar a aplicação das regras constitucionais relativas à competência e ao funcionamento dos órgãos de soberania e do governo próprio das regiões autónomas ou os direitos e imunidades dos respetivos titulares”.
É certo que no nº 8 do mesmo artigo 19º é dito que a declaração do estado de sítio ou do estado de emergência confere às autoridades competência para tomarem as providências necessárias e adequadas ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional, mas tal não colide com a exigência de cada órgão de soberania manter a sua competência própria intangível, mesmo em estado de emergência.
Ora, não há dúvida que, também em estado de emergência a qualificação de um determinado comportamento como crime, continua a ser da competência da Assembleia da República, salvo autorização ao governo.
(…) não podem fazer esquecer o respeito devido pelos fundamentos democráticos da sociedade, porque “a democracia não poderá ser suspensa”, o certo é que a criação de um novo tipo de crime vai, obviamente, muito para além da competência administrativa invocada para a regulamentação do estado de emergência, pelo que não há dúvida de que o Decreto 20-A/2020 ao definir um novo tipo de crime, invade a competência legislativa que lhe não compete e que só competiria se tivesse sido prevista por uma lei de autorização legislativa. É também nisto que consiste o princípio do Estado do direito democrático estabelecido no artigo 2º da CRP.
Acresce que olhando o teor da Resolução da Assembleia da República 15A/2020 de 18/03 que autorizou o Presidente da República a declarar o estado de emergência, não se retira dela que contenha uma autorização para que o Governo pudesse criar um novo tipo de crime. Não basta estatuir que ficam parcialmente suspensos alguns direitos, nomeadamente o direito de deslocação, para daí retirar sem mais a aceitação de que a suspensão de direitos implica automaticamente a criminalização das condutas.”
O que ficou dito vale plena e integralmente para o caso dos autos.
Assim, entendemos que o Decreto 2-B/2020 de 02.04., no seu artº 43º nº 6, é organicamente inconstitucional nos termos sobreditos (na parte relativamente ao agravamento da pena).
Nestes termos, a medida da pena é a constante do artº 348º nº 1 al b) do Código Penal e não a medida agravada constante do libelo acusatório.
E nem sequer se diga que ao caso poderá ser aplicado n.º 4 do artigo 6.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho.
Na verdade, esta Lei é aplicável apenas e só em relação às situações de alerta, contingência ou calamidade, situações que não são aquela aqui em causa e estando em causa direitos, liberdade e garantias não é possível a aplicação de analogia ou interpretação extensiva (neste sentido vide Acórdão do Tribunal Constitucional nº 793/2013 de 09-12-2013 in Diário da República nº 238 Série I de 09/12/2013).
Também não vale a pena chamar à colação a Lei 44/86 ou sequer discutir se a desobediência ali referida se aplica a todos os cidadãos ou só e apenas aos titulares dos cargos com a função de executarem o regime jurídico e administrativo do Estado de Emergência. (cfr Parecer sobre o projeto de lei nº 146/XII/1ª da Comissão de Defesa Nacional e Nota Técnica da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, referidos por
Alexandre Au-Yong Oliveira in Estado de emergência – Covid 19, Implicações na Justiça (Jurisdição Penal e Processual Penal, 440– salientando o que consta em especial da p. 5 do Parecer e p.4 da Nota Técnica, com data de 08/02/2012).
Seja como for este preceito não cuida da medida da pena.
Dito isto, a medida da pena a considerar é a que consta do Código Penal (Ac. da Relação de Lisboa que vimos seguindo).
Não obstante se ter apurado que o arguido é operário da construção civil, há 6 meses que se encontra desempregado, reside sozinha, sozinho, numa casa que era do seu irmão, é ajudado economicamente por familiares (facto 9), desconhecemos se o mesmo aufere algum subsídio ou rendimento, razão pela qual entendemos não dispor de elementos suficientes para determinar a medida concreta da pena, e, por conseguinte, há que ordenar o reenvio do processo apenas para esse fim.
*
IV - Dispositivo
Por todo o exposto, acorda-se na 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em:
a) Julgar procedente o recurso interposto pelo MP, declarando o arguido ADO_______como autor material de um crime de desobediência p. e p. pelo artº 348º nº 1 al. b) do Código Penal conjugado com os art.º 5º e 43º, n.º 1, al. c) e d), e n.º 6, todos do Decreto 2-B/2020;
b) Ordenar a baixa dos autos para que seja averiguada a exata situação económica do arguido e determinada a medida concreta da pena a aplicar.
c) Declarar não conforme à Constituição o disposto no artº 43º nº 6 do Decreto 2-B/2020 de 02.04.2020, publicado in Diário da República n.º 66/2020, 2º Suplemento, Série I de 2020-04-02 na parte em que fixa a medida da pena para o crime de desobediência por violação do disposto no artº 165º a) e c) da Constituição.
d) Sem custas.
e) Notifique-se.
 
Lisboa, 24 de março de 2021
Maria Gomes Bernardo Perquilhas
Rui Miguel Teixeira

[1] Sublinhado nosso.