I - Para efeitos do disposto no art. 8.º, n.º 2, do CSC apenas tem a qualidade de sócio o cônjuge que (de acordo com o regime de bens) levou a participação social para o acervo patrimonial comum.
II - O art. 8.º, n.º 2, do CSC apenas respeita ao conteúdo da participação social que se concretiza numa dimensão relacional com a sociedade, no qual cabem, por exemplo, os direitos previstos nas als. b), c) e d) do art. 21.º do CSC, no que respeita à sociedade por quotas.
III - Se o cônjuge do sócio tiver o poder para fazer refletir na vida da sociedade as crises conjugais, por exemplo, apresentando pedidos de informação, tal poderá constituir um fator de perturbação do normal funcionamento da sociedade.
IV - Se o art. 8.º, n.º 2, do CSC não reconhece ao cônjuge do sócio o direito de exigir o fornecimento de informações à sociedade, por identidade de razão também não lhe poderá ser reconhecida legitimidade para propor inquérito judicial à sociedade, tendo por base a recusa ilegítima do fornecimento de informações.
Recorrente: AA
Recorridos: “Farmanegócio, Ldª”; BB; CC; DD
[Revista excecional]
I. RELATÓRIO
1. AA propôs ação especial de inquérito judicial (com base nos artigos 216º e 292º do CSC e 1048º e ss. do CPC) contra “Farmanegócio, Ldª”, BB, CC, DD.
Pediu que os requeridos prestassem as seguintes informações:
- Todas as atas e deliberações dos sócios, da Assembleia Geral, desde a constituição em 2013 até à presente data;
- Detalhe contabilístico de todas as operações que resultam da distribuição e/ou aplicação dos resultados líquidos desde 2013 até 2017, acompanhada pelos respetivos documentos de suporte;
- Detalhe contabilístico de todas as formas de remuneração do trabalho, ou outras, da sócia 2ª requerida BB e respetivos documentos de suporte;
- Detalhe contabilístico de todos os fluxos da conta de suprimentos e da conta dos sócios, declarações de dívida assinadas pelos sócios e demais documentos de suporte;
- Detalhe contabilístico de todas as operações de aquisição ou alienação de ativos fixos tangíveis;
- Identificação de todas as contas de D.O. tituladas pela sociedade e ainda com a clarificação dos efetivos representantes de cada uma delas;
- Qual a origem dos saldos devedores que os sócios apresentam em 31.12.2014, em 31.12.2015 e em 31.12.2016 e os respetivos documentos de suporte;
- O balancete reportado a 12.10.2017 (data da separação de facto), a fim de aferir o valor da quota à data da retroação dos efeitos do divórcio.
2. Os requeridos apresentaram oposição invocando a ilegitimidade ativa do requerente, por não ser sócio da sociedade Requerida e, por isso, não lhe assistir o pretendido direito às Informações solicitadas. No mais pugnaram pela improcedência da ação.
3. Foi proferido despacho saneador que conheceu da exceção da ilegitimidade ativa do autor, tendo decidido nos seguintes termos:
«Atento todo o exposto, julgo procedente a exceção de ilegitimidade ativa do Requerente AA e, em consequência, absolvo da instância os Requeridos “Farmanegócio, Lda.”, BB, CC e DD.»
4. O autor apelou para o TRP, o qual confirmou a decisão da primeira instância, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diversa.
5. Inconformado, o autor interpôs o presente recurso de revista, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
«A) “Existindo uma participação social numa sociedade por quotas que constitua um bem comum de um casal por força do regime matrimonial de bens aplicável, o cônjuge meeiro do sócio é titular de direitos sobre a quota comum, a sociedade não lhos poderá negar e será necessário conferir-lhes adequada tutela jurídica”. - Rita Lobo Xavier, “Participação social em sociedade por quotas integrada na comunhão conjugal e tutela dos direitos do cônjuge e do ex-cônjuge do sócio”, in Nos 20 anos do Código das Sociedades Comerciais – Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, vol. III, Coimbra Editora, Coimbra, p. 994.
B) São bens comuns, para além do produto do trabalho dos cônjuges, os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam excetuados por lei (art.1724.º CC). No caso em apreço, tendo sido o matrimónio contraído em 30 de abril de 1998, no regime de comunhão de adquiridos, e a quota adquirida na constância do matrimónio, a mesma integra os bens comuns do casal.
C) Os bens comuns – quaisquer bens e, portanto, também as participações sociais (que são bens móveis, sujeitos a registo) - pertencem “aos dois cônjuges, mas em bloco, podendo dizer-se que os cônjuges são, os dois, titulares de um único direito sobre ela” - Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Vol. I, 5.ª ed., Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2016, p. 596.
D) Além disso, parece também certo, como bem referem Coutinho de Abreu e Rita Lobo Xavier que quem for titular de uma participação social é sócio dessa sociedade - Jorge M. Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Vol. II, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2011, p.209 e Rita Lobo Xavier, Reflexões…, cit., p. 58 e s. Defendendo que todos os contitulares são sócios, cfr., entre outros, José de Oliveira Ascensão, Direito Civil – Sucessões, 5.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2000, p. 270.
E) O art. 8.º, n. 2 CSC estabelece que “quando uma participação social for, por força do regime matrimonial de bens, comum aos dois cônjuges, será considerado como sócio, nas relações com a sociedade (ou seja apenas nas relações com a sociedade), aquele que tenha celebrado o contrato de sociedade ou, no caso de aquisição posterior ao contrato, aquele por quem a participação tenha vindo ao casal”.
F) Trata-se, por conseguinte, de uma norma que contempla um desvio às regras da administração dos bens comuns que decorrem do Código Civil e que «só pode significar que as alterações ao sistema de administração se limitam aos “atos sociais”, nada se modificando em tudo o que diga respeito às relações externas à sociedade», nem às relações entre os cônjuges, interpretação já defendida expressamente pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 30 de outubro de 2001 e repetida, posteriormente, noutros acórdãos - Rita Lobo Xavier, «Participação…», cit., p.999.
G) Acórdão do STJ, de 30 de outubro de 2001 (in CJ-STJ, IX, Tomo III, p.100), onde é afirmado: «Compreende-se que à estabilidade da vida social interesse que só um dos cônjuges seja considerado sócio, até para evitar eventuais discordâncias entre cônjuges que não logrem pôr-se de acordo e que pudessem adoptar soluções divergentes para a vida da sociedade; mas tal consideração já não pode prevalecer noutros domínios, como seja o das relações entre os próprios cônjuges.»
H) O art. 8.º, n.2 CSC não interfere com a titularidade da quota, nem com a qualidade de sócio de uma sociedade. Institui apenas uma norma especial, que vigora na constância do matrimónio, quanto à administração deste específico bem comum, limitada às relações com a sociedade, não obstando a que a participação social ingresse, como um todo, na comunhão conjugal, à semelhança do que acontece com qualquer outro bem.
I) Para além de Raúl Ventura (Raúl Ventura, «Sociedade por quotas – cessão de quotas a meeiro de sócio (parecer)», in CJ, XIV (1989), Tomo IV, pp. 37 e ss. Neste parecer o Autor sustentou que «tem a qualidade de sócio quem for titular da quota. (…) op. cit., pp. 42 e s.)., João Labareda (João Labareda, «Da alienação e oneração de participações sociais por sócio casado», in Direito Societário Português – algumas questões, Quid Iuris, Lisboa, 1998, pp. 217 e ss. (op. cit., pp. 222 e ss.). e Espírito Santo (cfr. João Espírito Santo, «Sociedade e cônjuges», in Estudos em memória do Professor Doutor João de Castro Mendes, Lisboa, 1994, pp. 404 e s., que também defende que o art. 8.º, n.2 CSC não recusa a qualidade de sócio ao cônjuge daquele que adquiriu a participação social que constitui um bem comum, entendendo que o referido preceito é uma norma especial sobre a administração de um bem comum do casal., opõem-se, igualmente, à tese contrária José de Oliveira Ascensão - que, considera que o art.8.º, n.2 CSC consagra «uma regra particular de designação» para exercer os direitos sociais, mas «a atribuição de um poder de administração, por regras diferentes das do direito matrimonial, a um dos cônjuges» não implica «a retirada da qualidade de sócio ao outro (cfr. José de Oliveira Ascensão, Direito Comercial, Vol. IV, Lisboa, 1993, pp. 360 e s.), Rita Lobo Xavier (Rita Lobo Xavier, Reflexões…, cit., esp. pp. 74 e ss., que se dedicou ao estudo desta questão de forma muito aprofundada na sua dissertação de mestrado e em estudos posteriores e, mais recentemente, José Miguel Duarte (José Miguel Duarte, «A comunhão dos cônjuges em participação social», in: Revista da Ordem dos Advogados, 2003, pp.487 e ss.. disponível para consulta em
http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=31559&idsc=45582&ida=45607
J) A interpretação proposta é também - vale a pena sublinhar – acompanhada pela mais elevada jurisprudência, como resulta, p. ex., do Acórdão proferido pelo STJ, em 30 de outubro de 2001, que recusou a tese segundo a qual apenas se comunicaria o valor económico da quota e defendendo que a quota deve ser descrita na relação de bens «por inteiro».
L) Não existe nenhuma norma especial prevista no CSC aplicável à hipótese de se verificar uma crise matrimonial que provoque a dissolução do matrimónio por divórcio e é precisamente nestas ocasiões que tendem ao correr atos que podem prejudicar os direitos do outro cônjuge.
M) Ao contrário do que refere o Acórdão sob recurso, pág. 32, o pedido de informação à sociedade, que originou a ação de inquérito judicial feito pelo Apelante, não é prévio à instauração da ação de divórcio, mas sim posterior a esta. A ação de divórcio deu entrada em Juízo em 13.10.2017 e a ação de inquérito judicial apenas em 13.01.2018.
N) Como Rita Lobo Xavier refere, é necessário questionar e refletir sobre «como proteger os seus direitos - os direitos do cônjuge meeiro - quando, em situação de crise, o outro aja de modo a tentar aumentar o seu património próprio em detrimento do património comum? Ou quando tome decisões que diminuam o valor da quota para obter melhores condições na divisão do património no momento da partilha? (…)», já que «se o ex-cônjuge que era “considerado como sócio” puder praticar quaisquer actos relativamente à quota, sem que o outro possa reagir (…) então, estar-se-á apenas a garantir o direito a um valor, não se protegendo o direito à quota enquanto tal» - Rita Lobo Xavier, «Participação…», cit., p.1009.
O) Como Rita Lobo Xavier defende, «sendo o artigo 8.º, n.2, uma norma sobre a administração dos bens comuns durante a vigência do casamento que constitui uma excepção às regras de administração previstas no Código Civil deverá deixar de se aplicar com a dissolução do mesmo….».
P) Quando os efeitos da dissolução do casamento forem eficazes, o regime jurídico a aplicar deverá ser de acordo com Rita Lobo Xavier, José Miguel Duarte e Maria Miguel Carvalho - o da contitularidade da quota, que é o regime previsto «em geral para todas as situações de indivisão», já que é esta precisamente a «situação da quota enquanto não for partilhada»
Q) Se com a dissolução do casamento qualquer um dos ex cônjuges pode pedir a separação de meações e se tem direito a reclamar a quota, então, por esta razão mas também por os contitulares serem solidariamente responsáveis pelas obrigações legais ou contratuais inerentes à quota (art. 222.º, n.º3 CSC), o ex-cônjuge - que não seja o representante comum - tem o direito de exercer os direitos necessários à proteção da sua posição jurídica, «de harmonia com o princípio de que, se a lei reconhece um direito, deve entender-se que, simultaneamente, reconhece os meios exigidos para o exercício desse direito», bem como de reagir contra atos que ponham em causa a conservação dos bens, de entre os quais as quotas, a que tenha direito «“em espécie” e não apenas “em valor”».
R) “Sendo assim, pode acontecer que seja indispensável à tutela dos direitos do ex-cônjuge (que não seja representante comum da quota, mas que é igualmente sócio daquela sociedade), o exercício do direito à informação. Não nos parece constituir um impedimento o facto de decorrer do art. 222.º, n.2 CSC que o exercício dos direitos inerentes à quota deve ser efetuado através do representante comum, pois o direito à informação tem, como é sabido, natureza instrumental. A determinação concreta dos seus destinatários e do seu alcance deve, por isso, ser feita casuisticamente, parecendo-nos que não deve ser recusada, liminarmente, a legitimidade ativa, pelo menos, na medida do que for necessário para acautelar os respetivos direitos ao ex- cônjuge, contitular da quota, enquanto a mesma não for objeto de partilha efetiva, não se duvidando que, dissolvido o casamento, e até para aferir o valor deste específico bem comum, se torne imprescindível aceder a informação contabilística e financeira das sociedades a que respeite aquela participação social, a integrar o inventário.”
S) No caso concreto importa, porém, explicitar o regime a aplicar aos casos em que a ação de divórcio está ainda em curso. Inexistindo uma decisão judicial de dissolução do casamento, mas atendendo a que o legislador afasta a regra de que os efeitos do divórcio se produzem a partir da data do trânsito em julgado da sentença (art. 1789.º, n.º1, 1.ª p. CC) e consagra, no que respeita às relações patrimoniais entre os cônjuges, o princípio da retroatividade dos efeitos do divórcio à data da propositura da respetiva ação (art. 1789.º, n.1, 2.ª p. CC) a solução deve ser a mesma daquela que é aplicável após a dissolução do casamento, porque os efeitos retroagem á data da entrada da ação de divórcio ou da separação de facto.
T) Os riscos para a tutela da posição jurídica do cônjuge meeiro podem ser muito graves porque se for negado àquele que, sendo sócio da sociedade, não é considerado como tal nas relações com essa sociedade, o exercício de determinados direitos (designadamente, o direito à informação) enquanto não transitar em julgado aquela decisão judicial, pode ser significativamente inviabilizada a efetivação dos direitos que lhe assistem.
U) E o Direito deve servir a Justiça. Não se pode atribuir ao cônjuge daquele que figura como sócio, na sociedade o direito à quota e aos dividendos, não se pode dizer que se trata de um bem comum, pertencente a ambos os cônjuges, e não se conceder meios para garantia desses direitos. Aceitá-lo seria esvaziar a Lei e impedir a realização do Direito!
V) Por isso, o art. 8.º, n.2 CSC não deve ser aplicado de forma absoluta àqueles casos em que - embora ainda exista formalmente um casamento - por já ter sido intentada a ação judicial tendente à declaração da dissolução do mesmo, se saiba que com um muitíssimo elevado grau de probabilidade, a relação matrimonial vai cessar e inclusivamente já seja conhecida a data da produção dos efeitos patrimoniais entre os cônjuges e que será anterior (e, nalguns casos, muito anterior) ao momento da discussão sobre a sua aplicação, pois retroagirá à data da propositura da ação
X) Pelo menos nestes casos, deverá ser reconhecida legitimidade ativa para o exercício do direito à informação ao, também sócio, cônjuge-meeiro (e futuro ex-cônjuge) daquele que (ainda) é considerado como sócio nas relações com a sociedade, na medida do que for necessário para acautelar a tutela dos seus legítimos interesses e que pode, inter alia, exigir o acesso às e a consulta de atas das assembleias gerais (em especial, respeitantes à aprovação de contas e aplicação de resultados; aumentos de capital social; amortizações de quotas), bem como de informações relativas à contabilidade e à situação financeira da sociedade, já que essas informações serão imprescindíveis para determinar o valor atual da participação social em questão (conveniente para o inventário); aferir a exata medida de eventual responsabilidade para com a sociedade e até para com terceiros e ainda para se provar a entrega dos frutos civis (dividendos) ao cônjuge considerado como sócio, na pendência da ação.
Z) Se as informações forem injustificadamente recusadas - e, do exposto, decorre que não constituirá fundamento de recusa suficiente alegar-se a falta de qualidade de sócio - ou se as informações prestadas forem falsas ou maliciosamente incompletas, deverá o cônjuge, coproprietário da quota, poder lançar mão do inquérito judicial (art. 216.º CSC e arts. 409.º e ss. CPC).
AA) Os bens comuns – todos os bens comuns, incluindo, como não poderia deixar de ser, as participações sociais integradas na comunhão conjugal - a considerar no momento da partilha são aqueles que existiam no património - então ainda comum - na data da propositura da ação do divórcio, como também tem sido evidenciado pelos nossos tribunais.
BB) A quota integra, nos termos delimitados, o acervo dos bens comuns do casal como qualquer outro bem, desde a data em que ingressou no património conjugal. Com a dissolução do casamento, qualquer um dos ex-cônjuges pode pedir a separação das meações, reclamando, para si, uma quota-parte ideal dos bens comuns, que corresponderá ao valor de metade dos bens comuns. Todavia, «o cônjuge meeiro não tem um mero direito de crédito relativamente ao valor de metade dos bens comuns, tem direito a partilhar os bens do património comum “em espécie” e não apenas “em valor”» (Rita Lobo Xavier, «Participação…», cit., p.1008.). Assim, pode muito bem vir a acontecer que a quota lhe venha a ser adjudicada, já que o pode ser a qualquer um dos cônjuges, pois, em princípio, ambos terão direito a reclamá-la
CC) Para além das quotas, também integram a comunhão conjugal os seus rendimentos, ou seja, os dividendos.
DD) Por isso deve ser-lhe reconhecida legitimidade ativa, que assenta na interpretação que já explicitamos, segundo a qual, apesar da aplicação do art. 8.º, n. 2 CSC, ambos os cônjuges são titulares da participação e como tal sócios da sociedade. Mas parece-nos que decorre dos exemplos que acabámos de referir, que também os autores que defendem posição diversa (a da cindibilidade da participação social, limitando a comunhão à parte patrimonial da quota) deverão chegar ao mesmo resultado, pois a recusa do direito à informação ao cônjuge daquele que é considerado como sócio poderá equivaler, na prática, à recusa da comunhão dos direitos patrimoniais da quota em questão, nomeadamente se, por causa desse impedimento, vier a tornar-se muito difícil ou impossível provar o valor daquela participação social e dos seus frutos, entretanto recebidos, nesta data.
EE) Mais, neste domínio, já estamos no domínio das relações entre os próprios cônjuges e não no domínio das relações do sócio (como tal) com a sociedade.
Termos em que deve ser reconhecida legitimidade ativa ao Recorrente revogando-se o douto Acórdão proferido nestes autos assim se fazendo inteira e merecida JUSTIÇA».
6. Os recorridos contra-alegaram sustentando tanto a inadmissibilidade como a improcedência do recurso.
7. Autor e rés juntaram aos autos pareceres de professores de direito, defendendo as respetivas teses.
8. Dada a existência de dupla conforme, foram os autos remetidos à Formação a que alude o art.672º, n.3 do CPC, a qual admitiu a revista excecional, com base no art.672º, n.1 alínea a) do CPC. Concluiu-se nessa decisão nos seguintes termos: «(…) estamos perante uma questão particularmente delicada, que não vem sendo abordada jurisprudencialmente com frequência, a respeito da qual a pouca jurisprudência produzida e a doutrina atinente não estão em sintonia. Tanto basta para se considerar preenchido o pressuposto da alínea a) do mencionado n.1 do art.672º, ficando prejudicada a apreciação dos demais também invocados”.
*
II. APRECIAÇÃO E FUNDAMENTOS DECISÓRIOS
1. Admissibilidade e objeto do recurso
Tendo o recurso sido admitido como revista excecional, com base na alínea a) do n.1 do art. 672º do CPC, é pelo correspondente âmbito de admissibilidade que se delimita o objeto da revista.
A questão a solucionar é, assim, a de saber: se o cônjuge da sócia tem legitimidade ativa para requerer inquérito judicial à sociedade, tendo por base a circunstância de essa sociedade lhe ter negado o acesso à informação por ele requerida, justificando tal negação com o facto de o requerente não ser sócio dessa sociedade.
Como a jurisprudência deste tribunal tem reiteradamente entendido, cabe apenas dar resposta à questão suscitada, e já não aos argumentos apresentados pelas partes na defesa das respetivas teses.
2. A factualidade provada:
O acórdão recorrido baseou-se na seguinte factualidade:
1- O Autor casou com a 2ª Ré, BB, em …. abril de 1998, no regime de comunhão de adquiridos.
2- Em 18.07.2013, a sua mulher, BB, constituiu juntamente com duas outras pessoas – CC e DD, aqui 3º e 4ª Réus – a sociedade Farmanegócio Ldª, tendo subscrito uma quota correspondente a 30% do capital social.
3- De acordo com a certidão do registo comercial, junta a fls. 14, são sócios da referida sociedade “Farmanegócio, Lda.”, os Requeridos BB, CC e DD.
4- Em 13.10.2017 a 1ª Ré instaurou ação especial de divórcio contra o Autor, que corre termos, com o n. …, no Juiz … do Juízo de Família e Menores .…; e em 18.10.2017 o Autor instaurou ação de divórcio contra a 1ª Ré, que corre termos com o n…., no Juiz … do Juízo de Família e Menores .....
5- O Autor solicitou à sociedade, aqui 1ª Ré, por carta datada de 31.07.2017, “ao abrigo do regime previsto no art. 214º do Código das Sociedades Comerciais, requer a V.Exas, a consulta da escrituração, livros e documentos da referida sociedade (…)”.
6- O Autor solicitou à aqui 1ª Ré, por carta datada de 26.9.2017, “o acesso á escrituração, livros e documentos ou o envio de toda a informação contabilística (atas das sociedades dos últimos 5 anos, dossiers de prestação de contas, nomeadamente relatórios de gestão, balanços, demonstrações de resultados e anexos, relativos aos últimos 5 anos das empresas que nos pertencem, mas das quais tu és a socia (…)”
7- Tais informações foram-lhe recusadas com o fundamento de ele, Autor, não ter a qualidade de sócio, tudo conforme teor dos documentos juntos como Docs. 6 e 7 da p.i.
8- O Autor intentou ação especial de Inquérito Judicial, em 17.10.2017, pedindo que os requeridos prestem a seguinte informação:
1. Todas as atas e deliberações dos sócios, da Assembleia Geral, desde a constituição em 2013 até à presente data;
2. Detalhe contabilístico de todas as operações que resultam da distribuição e/ou aplicação dos resultados líquidos desde 2013 até 2017, acompanhada pelos respetivos documentos de suporte;
3. Detalhe contabilístico de todas as formas de remuneração do trabalho, ou outras, da sócia, 2ª requerida BB e respetivos documentos de suporte;
4. Detalhe contabilístico de todos os fluxos da conta de suprimentos e da conta dos sócios, declarações de dívida assinadas pelos sócios e demais documentos de suporte;
5. Detalhe contabilístico de todas as operações de aquisição ou alienação de ativos fixos tangíveis;
6. Identificação de todas as contas de D.O. tituladas pela sociedade e ainda com a clarificação dos efetivos representantes de cada uma delas;
7. Qual a origem dos saldos devedores que os sócios apresentam em 31.12.2014, em 31.12.2015 e em 31.12.2016 e os respetivos documentos de suporte;
8. O balancete reportado a 12.10.2017 (data da separação de facto), a fim de aferir o valor da quota à data da retroação dos efeitos do divórcio.
3.O direito aplicável:
Como supra referido, a questão a decidir é a de saber se o autor tem legitimidade ativa para requerer inquérito judicial à sociedade, tendo por base o facto de esta lhe haver negado o direito à informação requerida por entender que ele não tinha a qualidade de sócio dessa sociedade.
A tese do autor é a de que lhe assiste tal legitimidade porque também é sócio (tendo acedido à contitularidade desse bem por ser casado em comunhão de adquiridos com a 2ª recorrida), pelo que o art. 8º, n.2 do CSC não afastaria o seu direito de exigir informações à sociedade. Por outro lado, alega que tendo a presente ação sido proposta depois de já ter dado entrada em tribunal da ação de divórcio, e considerando que essa ação terá efeito retroativo quanto às relações patrimoniais, sempre deveria ser considerado como comproprietário da quota (hipótese em que já não se aplicaria o art. 8º, n.2 do CSC), devendo ser-lhe reconhecida, pelo menos nesta hipótese, legitimidade ativa para o exercício do direito à informação.
3.1. O acórdão recorrido (que confirmou a decisão da primeira instância) sumariou o seu entendimento nos seguintes termos:
«I- O direito à informação previsto no artigo 21º n.1 al c) do CSC é um direito instrumental, que tem como objetivo permitir que o sócio conheça e acompanhe a vida da sociedade, designadamente o património, a atividade e os resultados da mesma e o concreto funcionamento da respetiva administração ou gerência, permitindo-lhe dessa forma exercer os demais direitos consagrados na lei e decorrentes do contrato de sociedade que lhe assistem na qualidade de sócio.
II- O cônjuge do sócio, pelo simples facto do regime de bens lhe reconhecer a comunhão em bens adquiridos onerosamente pelo seu cônjuge, ou levados por este para o casamento, não adquire a qualidade de sócio, já que essa qualidade de sócio é sempre indissociável da pessoa do titular da respetiva participação social.
III- Com efeito, por força do disposto no art. 8º n.2 do CSC, considerado sócio nas relações com a sociedade, é a segunda Ré, titular da respetiva participação social, que foi quem celebrou com aquela o contrato de sociedade. O seu cônjuge, o aqui Autor, nas relações com a sociedade não é, perante aquela, considerado sócio.
IV - Por isso se entende que, na comunhão de bens patrimonial entra apenas o valor patrimonial da quota, já não a qualidade de sócio com todo o correspondente complexo de direitos e deveres, a qual é sempre indissociável da pessoa do titular da respetiva participação social, sendo esta incomunicável, enquanto permanecer encabeçada na pessoa de um deles: o cônjuge que celebrou o contrato de sociedade, ou interveio no ato de aquisição da participação social.
V- Assim sendo, o exercício do direito social de Inquérito Judicial á Sociedade (ação especial regulada no art.1048º e ss do CPC) radicado em violação do direito á informação, está reservado apenas ao cônjuge, sócio da sociedade que constituiu a sociedade na pendência do matrimónio (ou que adquiriu na pendência do casamento a participação social).»
Cabe apreciar:
3.2. As partes sustentam diferentes linhas concetuais sobre os poderes dos cônjuges (e ex-cônjuges), fazendo desfilar argumentários dogmáticos de sentido oposto.
Independentemente dos modelos teóricos ou conceções dogmáticas que se possam defender, em geral, sobre os poderes e deveres dos cônjuges nas suas relações de conteúdo patrimonial (ou até no quadro específico do regime da comunhão de adquiridos), a realização judicativa do direito não pode deixar de partir sempre da expressão literal das específicas opções legislativas.
O enunciado interpretativo extraído da letra da lei (concluindo-se que o legislador soube exprimir o seu pensamento de forma adequada – art. 9º do CC), e valorativamente afinado pela compreensão do seu alcance teleológico, deverá ainda compaginar-se dialogicamente com o que a jurisprudência tem decidido em situações equiparáveis.
Assim, vejamos o que diz a lei, e consideremos o modo como a jurisprudência a tem aplicado.
Sobre a participação dos cônjuges em sociedade, rege o art. 8º do CSC, nos seguintes termos:
1- É permitida a constituição de sociedades entre cônjuges, bem como a participação destes em sociedades, desde que só um deles assuma responsabilidade ilimitada.
2 - Quando uma participação social for, por força do regime matrimonial de bens, comum aos dois cônjuges, será considerado como sócio, nas relações com a sociedade, aquele que tenha celebrado o contrato de sociedade ou, no caso de aquisição posterior ao contrato, aquele por quem a participação tenha vindo ao casal.
3 - O disposto no número anterior não impede o exercício dos poderes de administração atribuídos pela lei civil ao cônjuge do sócio que se encontrar impossibilitado, por qualquer causa, de a exercer nem prejudica os direitos que, no caso de morte daquele que figurar como sócio, o cônjuge tenha à participação.
3.3. Vejamos o quadro jurisprudencial pertinente.
Em casos equiparáveis ao dos presentes autos, onde também se apreciou a posição do cônjuge do sócio de sociedade por quotas, identificam-se, com pertinência para o caso concreto, os seguintes arestos:
- Acórdão do STJ, de 19.09.2019 (relator José Raínho), no proc.n.14148/17.9T8SNT.L1.S2:
«Em caso de amortização da quota é de entender que tudo se move ainda no âmbito das “relações com a sociedade”, de sorte que é de concluir que, por aplicação do n.º 2 do art. 8.º do CSC, não há necessidade de consentimento do cônjuge do sócio.»; publicado no site www.dgsi.pt
- Acórdão do STJ, de 19.06.2008 (Relator Serra Baptista), no proc. n.871/08:
«O princípio da pessoalidade do direito do sócio, consagrado no art. 8.º, n.º 2, do CSC, procurando imunizar o ente societário das dissensões familiares, apenas respeita aos actos sociais, vigorando, quanto às relações externas, em pleno, as regras imperativas do regime patrimonial de bens.»; publicado no site www.dgsi.pt
- Acórdão do STJ, de 29.06.2004 (Relator Azevedo Ramos), no proc. n. 2062/04:
«Tendo o réu constituído com uma filha, ambos farmacêuticos, uma sociedade por quotas para exploração de uma farmácia, na constância do seu casamento com a autora, com quem era casado no regime da comunhão geral de bens, a respectiva quota social do réu é bem comum do casal.
Nas relações com a sociedade, só é verdadeiramente sócio o cônjuge que levou a participação ao casal, não passando o outro, nesse aspecto da vida da participação social, de uma espécie de associado à quota.
Tendo havido dissolução do casamento por divórcio, o património comum do casal, onde a quota social se integra, existente à data da propositura da acção de divórcio, só termina com a respectiva partilha.»; publicado no site www.dgsi.pt
- Acórdão do STJ, de 30.10.2001 (Relator Silva Salazar), no proc. n. 989/01:
«Quando uma participação social for, por força do regime matrimonial de bens, comum aos dois cônjuges, nas relações com a sociedade, sócio é o cônjuge que tenha celebrado o contrato de sociedade ou aquele a quem a participação social tenha vindo ao casal (art.º 8, n.º 2, do CSC).»; publicado no site www.dgsi.pt
- Acórdão do STJ, de 28.11.2000 (Relator Lopes Pinto), no agravo n.3162/00:
«Na comunhão matrimonial de bens entra apenas o valor patrimonial de uma quota social numa sociedade por quotas de que um dos cônjuges é titular, não adquirindo o outro cônjuge a qualidade de sócio com todo o correspondente complexo de direitos e deveres associados à titularidade da quota social. (…)
O direito à informação, como direito ligado à titularidade da quota social, é um direito extra-patrimonial do sócio titular, é um direito corporativo ou de socialidade e inerente à qualidade de sócio, não sendo comunicável ao cônjuge do sócio.
Sendo a requerente mulher fiel depositária da quota social, na sequência de providência cautelar de arrolamento de bens, preliminar à acção de divórcio entre esta e o marido, sendo este o sócio, não sendo a requerente titular do direito à informação pela sociedade, ela não é portadora do interesse directo em demandar accionando um inquérito judicial à sociedade por violação daquele direito à informção.»; publicado no BMJ 501 (2000), págs.300 e seguintes.
3.6. Vejamos se o acórdão recorrido fez errada aplicação da lei:
O recorrente não tem, formalmente, a qualidade de sócio da sociedade primeira recorrida, pois da certidão do registo comercial (juntas a fls.14 dos autos) não consta o seu nome entre os que se encontram registados como sócios.
Como resulta da factualidade provada, o recorrente casou com a 2ª recorrida no regime da comunhão de adquiridos. Na constância do matrimónio, requereu àquela sociedade o fornecimento da informação que se encontra referida nos pontos n.5 e n.6 da matéria de facto provada. Tal informação foi-lhe negada pela sociedade 1ª recorrida pelo facto de não ter a qualidade de sócio. Com esse fundamento, o agora recorrente propôs a presente ação de inquérito judicial.
Como supra relatado, a primeira instância decidiu, e a segunda confirmou, que o autor não tinha legitimidade para requer tal inquérito, pelo que os requeridos foram absolvidos da instância. Fundaram-se, para tal, essencialmente no art.8º, n.2 do Código das Sociedades Comerciais, entendendo que o autor não pode ser tratado como sócio da sociedade requerida.
Em matéria de legitimidade, para além do critério geral enunciado no art.30º do CPC, baseado no concreto interesse de um autor em demandar, existem hipóteses específicas em que é a própria lei que identifica o detentor da legitimidade ativa[1]. Assim acontece quanto à legitimidade para requerer inquérito judicial à sociedade, porquanto o art.1048º do CPC remete a determinação do titular da legitimidade ativa (o interessado) para os termos em que a legislação societária admite a realização daquele inquérito.
Estando em causa o pedido de informações à sociedade (nos termos do art. 214º do CSC), estabelece o art. 216º do CSC que: “o sócio a quem tenha sido recusada a informação ou que tenha recebido informação presumivelmente falsa, incompleta ou não elucidativa pode requerer ao tribunal inquérito à sociedade”.
Neste tipo de hipóteses, a legitimidade ativa coincide com a qualidade de sócio da sociedade requerida.
No caso concreto, questiona-se se a legitimidade do autor depende de lhe ser reconhecida a qualidade de sócio.
Dado que da supra referida certidão do registo comercial (a fls. 14 dos autos) não consta que o autor seja sócio da sociedade requerida “Farmanegócio, Ldª”, este entende que a sua legitimidade decorre do facto de ser contitular de uma quota (no valor de €3.000,00) – a quota titulada pela 2ª ré, BB.
Sendo o recorrente casado em comunhão de adquiridos (com a 2ª recorrida), e tendo esta adquirido a quota da sociedade (1ª recorrida) na constância do casamento, a titularidade da quota pertence a ambos, como decorre do art. 1724º, alínea b) do CC.
Porém, o conjunto de poderes inerentes à titularidade de uma participação social, e particularmente nas sociedades de maior pendor pessoal, como a sociedade por quotas, não é idêntico ao conjunto de poderes que se identificam na titularidade de outros bens, como, por exemplo, de um imóvel. A titularidade de uma quota comporta, por inerência, uma dimensão relacional plurisubjetiva, espelhada no conjunto de direitos e deveres dos sócios relativamente à sociedade (e mediatamente, dos sócios entre si) que não tem paralelo na titularidade de outros tipos de bens (onde os poderes de domínio se exercem em sentido direto com esses bens).
É no quadro desta relação intersubjetiva, no qual o fator de conhecimento, confiança pessoal ou aptidão profissional dos sócios pode ser decisivo para a aquisição da qualidade de sócio, que se deve compreender o alcance do art. 8º, n.2 do CSC.
Ao estabelecer que “será considerado como sócio, nas relações com a sociedade, aquele que tenha celebrado o contrato de sociedade ou, no caso de aquisição posterior ao contrato, aquele por quem a participação tenha vindo ao casal”, aquela norma apenas respeita ao conteúdo da titularidade da participação social que se concretiza numa dimensão relacional com a sociedade [como os direitos previstos nas alíneas b), c) e d) do art. 21º do CSC, no que respeita à sociedade por quotas]; e já não ao conteúdo essencialmente patrimonial da participação.
Efetivamente, como afirma Ricardo Costa, sobre o alcance do art. 8º, n.2: «(…) a quota social adquirida por um cônjuge, nos regimes matrimoniais de comunhão, só se comunica ao cônjuge meeiro no que tange ao seu valor económico-patrimonial, já que este cônjuge não adquire a qualidade social pelo facto de o regime de casamento lhe conferir comunhão em bens adquiridos pelo seu cônjuge. Ao atribuir o exercício perante a sociedade dos direitos inerentes à participação social ao cônjuge que adquire a participação, partindo da dicotomia pessoal-patrimonial inerente à posição de sócio que subjaz à coordenada legal, parece que estamos perante uma titularidade formal e uma titularidade substancial da quota. A primeira é privativa do cônjuge adquirente, leva consigo o título de sócio inerente à pessoa (carreador da exclusividade para o exercício dos direitos de sócio, em particular, os de natureza administrativa) e está sujeita às limitações societárias colocadas à transmissão/cessão da quota. (…) Será na primeira que se enquadram as relações entre o cônjuge-sócio e a sociedade: e só este tem legitimidade para votar e deliberar em assembleia, impugnar essas deliberações, usar as coisas da sociedade, para participar nos órgãos sociais e eleger os seus membros, para se informar (…)»[2]
Identifica-se no alcance da norma um propósito que pode ir desde a ideia de facilitar ou agilizar a comunicação entre o titular da participação social e a sociedade, até uma ideia de preservação do ente societário a situações de discórdia entre os cônjuges contitulares da participação social (como se entendeu no supra referido acórdão do STJ, de 19.06.2008, relatado por Serra Baptista). Efetivamente, se o cônjuge do sócio tiver o poder para fazer refletir na vida da sociedade as suas crises conjugais, pedindo informações a qualquer momento, tal constituirá, tipicamente, um fator de perturbação do normal funcionamento da sociedade.
Este claro propósito legislativo é ainda reforçado pelo que se estabelece no n.3 do art.8º, nos termos do qual só a título excecional (por impossibilidade do titular da participação social) pode o seu cônjuge relacionar-se com a sociedade.
O n.2 do art. 8º do CSC não estabelece, assim, qualquer desvio às regras de contitularidade dos bens previstas no art. 1724º, alínea b) do CC. O seu propósito não é o de dispor sobre a titularidade das participações sociais, mas apenas o de regular (restringindo) a relação dos titulares das participações sociais com a sociedade. Esta norma não determina, para todo e qualquer efeito, quem é o titular da participação social, ou quem a pode administrar em geral. Diz apenas quem deve ser considerado como sócio para efeitos do exercício dos poderes que, pela sua própria natureza, envolvem a relação com a sociedade.
E é apenas esta temática que está em causa nos presentes autos. Não cabe, portanto, no âmbito da presente revista, discorrer sobre a temática (mais geral) de saber se o cônjuge do sócio adquire, ou não, por comunicabilidade de direitos a qualidade de sócio para todo e qualquer efeito.
Quer se entenda que a solução consagrada no art. 8º, n.2 é uma expressão da não comunicabilidade da qualidade de sócio, quer se entenda que se trata de uma específica restrição ao efeito da comunicabilidade, o que releva ao nível da realização judicativa do direito é que para os efeitos previstos nesta norma o cônjuge não é tratado como sócio.
Estando especificamente em causa o exercício do direito à informação [art. 21º, n.1, alínea c) do CSC], ou seja, matéria que se inscreve na dimensão intersubjetiva ou institucional do estatuto do sócio, porquanto sustentada na relação com a sociedade, deve entender-se que o art. 8º, n.2 reserva essa matéria ao sujeito que tem a qualidade de sócio para efeitos dessa relação.
Nestes termos, se a lei não reconhece ao cônjuge do sócio o direito de exigir o fornecimento de informações à sociedade, por identidade de razão também não lhe poderá ser reconhecida legitimidade para propor ação de inquérito judicial, tendo por base a recusa ilegítima do fornecimento de informações.
3.7. Por outro lado, alega o recorrente que tendo a presente ação sido proposta depois de já ter dado entrada em tribunal da ação de divórcio, e considerando que essa ação terá efeito retroativo quanto às relações patrimoniais, sempre deveriam ser já tomados em consideração os efeitos da dissolução do casamento, considerando-o como comproprietário da quota e devendo ser-lhe reconhecida, nessa qualidade, legitimidade ativa para o exercício do direito à informação.
Embora conste da factualidade provada que o recorrente e a 2ª recorrida propuseram ações de divórcio antes da propositura da presente ação, tal factualidade não assume, por si só, qualquer relevo normativo que pudesse alterar a solução apontada, na medida em que, à data dos factos (negação de informação) que originaram o presente inquérito, a 2ª recorrida mantinha intacto o estatuto da sua participação societária, por não se haverem produzido os efeitos jurídicos a que tendem tais ações.
Em resumo, conclui-se que o acórdão recorrido não merece censura, pois fez a correta aplicação da lei à factualidade apurada.
DECISÃO: Pelo exposto, nega-se a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 26.01.2021
Maria Olinda Garcia (Relatora)
Ricardo Costa
António Barateiro Martins
Tem voto de conformidade dos Conselheiros Adjuntos, nos termos do artigo 15ºA, do DL 10-A/2020, de 13.03, (aditado pelo DL 20/2020, de 01.05).
Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).
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[1] Como afirmam Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, pág.59
[2] RICARDO COSTA, A sociedade por quotas unipessoal no direito português. Contributo para o estudo do seu regime jurídico; Almedina, Coimbra, 2002 (páginas 432 e seguintes).