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COMPRA E VENDA DE BEM ALHEIO
NULIDADE
Sumário
I – O juízo de protecção e tutela de terceiros de boa fé equacionado no artº. 291º, do Cód. Civil, apenas opera quando é o verdadeiro titular do direito a dar origem á cadeia de negócios que vai culminar com a aquisição onerosa, por terceiro de boa fé ; II – não tem pertinência o recurso a tal enquadramento jurídico quando o encadeamento de negócios que envolveu os ora Réus e Interveniente – sucessivos contratos de compra e venda do mesmo veículo automóvel - não teve origem em acto praticado validamente pela Autora, verdadeira titular do direito de propriedade sobre o veículo em equação ; III – com efeito, na lógica de um registo com natureza meramente declarativa, aquele normativo não tem por desiderato a protecção do terceiro adquirente, ainda que beneficiário dos requisitos inscritos no nº. 1, caso não tenha sido o verdadeiro proprietário a iniciar a cadeia de negócios nulos, ou seja, como parte no primeiro negócio inválido ; IV – in casu, é clara a inaplicabilidade do nº. 2, do artº. 17º, do Cód. do Registo Predial – ex vi do artº. 29º, do Cód. do Registo Automóvel -, pois inexiste qualquer situação de conflito entre dois adquirentes do mesmo transmitente, em que um dos negócios é válido e urge proteger a confiança do adquirente nos dados constantes do registo ; V - antes ocorrendo uma concreta e efectiva sucessão de negócios jurídicos nulos, em que ocorre não a validade (como na situação os terceiros para efeitos do registo), mas antes a real invalidade do primeiro negócio transmissivo, que, inquinando, se estende e transmite às subsequentes transmissões ; VI – o regime de tutela previsto no artº. 1301º, do Cód. Civil, fundado na necessidade de proteger a confiança de quem adquire bens a um comerciante, não é aplicável às coisas móveis sujeitas a registo, tal como sucede com o veículo automóvel em equação, o que resulta da ratio legis da norma em equação, compreensível num numa ordem jurídica em não vigora o princípio de posse vale título (cf., artº. 1268º, do Cód. Civil) ; VII - não deve conhecer-se acerca da impugnação da matéria de facto apresentada quando tal se configure como a prática de um acto inútil, legalmente sancionado pelo artº. 130º, do Cód. de Processo Civil ; VIII - o que acontece nas situações em que, ainda que lograsse obter procedência a apresentada impugnação da matéria factual, a decisão da causa não poderia deixar de ser a mesma, fruto do enquadramento jurídico operado, traduzindo-se então tal reapreciação na prática de uma acto absolutamente inútil, claramente contrário á observância dos princípios da economia e celeridade processuais. Sumário elaborado pelo Relator – cf., nº. 7 do artº. 663º, do Cód. de Processo Civil
Texto Integral
ACORDAM os JUÍZES DESEMBARGADORES da 2ª SECÇÃO da RELAÇÃO de LISBOA o seguinte [1]:
I – RELATÓRIO
1 – RCI GEST – INSTITUIÇÃO FINANCEIRA de CRÉDITO, S.A., com sede na Rua Dr. José Espírito Santo, Lote 12, Lisboa, veio instaurar acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra:
- COOPERATIVA ..., CRL, com sede na Rua ..., 1, Verdelho, Achete ;
- AAA, residente na Urbanização ..., Viana do Castelo ;
- BBB, residente na Rua da ... – Bairro da Mina, São Domingos de Rana,
deduzindo o seguinte petitório:
1. Que a acção seja julgada procedente, por provada, e em consequência, deverá proferir-se decisão que:
1.1. declare a nulidade dos contratos celebrados a que aludem os artigos 17º e 18º da p. i., ordenando o cancelamento do registo de propriedade inscrito a favor dos Réus ;
1.2. reconheça judicialmente o direito de propriedade da Autora sobre a viatura de marca Renault, modelo Laguna Break 2.0 150 cv, chassis/nº. série: ... e matrícula XX-XX-XX ;
1.3. condene os Réus a proceder á restituição da referida viatura á Autora, em bom estado de conservação.
Alegou, em súmula, o seguinte:
§ Celebrou com a primeira Ré, com data de início em 9.11.2009, um contrato de locação financeira do identificado veículo ;
§ Tal contrato foi outorgado pelo período de 60 meses, tendo a Ré vindo a incumpri-lo por falta de pagamento das rendas vencidas entre Dezembro de 2009 e Agosto de 2010 ;
§ Tendo acabado por resolver o contrato, por carta registada com aviso de recepção datada de 1.11.2010 sem que a demandada lhe tenha restituído o veículo até ao momento ;
§ Veio então a constatar que o veículo se encontra registado em nome do terceiro Réu ;
§ Sendo que nunca vendeu nem autorizou a venda a nenhum dos Réus, nem a qualquer outra pessoa, e que os documentos usados com vista à transferência da propriedade do veículo foram falsificados, tendo apresentado a competente queixa-crime ;
§ Deste modo, a venda efectuada pela primeira Ré ao segundo Réu é nula, o mesmo sucedendo com a venda efectuada pelo 2º Réu ao 3º Réu.
Juntou vários documentos, tendo a acção sido proposta em 06/04/2011.
2 – Citados os Réus, e com excepção da Ré Cooperativa ..., Lda., que não contestou, vieram os demais apresentar contestação, fazendo-o, em resumo, nos seguintes termos:
- pelo Réu BBB (3º Réu): Por excepção:
- A petição inicial deve ser julgada inepta, pois não é proprietário do veículo, já o tendo vendido a terceiros, em Julho de 2010 ;
- Sendo o mesmo presentemente propriedade da firma [...], Lda., tendo onerada uma reserva de propriedade inscrita a favor de Totta Crédito Especializado, Instituição Financeira de Crédito, S.A. ;
- Pelo que os factos apresentados pela Autora são manifestamente insuficientes para o efeito pretendido ;
- Por outro lado, para assegurar a legitimidade passiva dos Réus, é necessário que todos os que foram ou são proprietários do veículo sejam chamados aos presentes autos ;
- Não tendo o contestante adquirido a viatura ao Réu AAA, , mas antes a um comerciante de automóveis de nome CCC ;
- Que a terá adquirido ao identificado AAA, ora 2º Réu ;
- Existindo, assim, preterição de litisconsórcio necessário passivo, determinante da absolvição dos Réus da instância ; Por impugnação:
- É essencial o resultado do processo crime pendente, pelo que os presentes autos deverão ser suspensos, nos termos do artº. 279º, nº. 1, do Cód. de Processo Civil ;
- Ao adquirir o direito de propriedade do veículo desconhecia estar a lesar o direito de terceiro, tendo-o feito mediante a apresentação de documentação da mesma e de um comerciante de automóveis ;
- Pelo que beneficia do regime do artº. 1301º, do Cód. Civil, devendo impor-se à Autora que deposite a quantia em causa á ordem dos presentes autos.
Conclui pela procedência da contestação apresentada, com as legais consequências.
- pelo Réu AAA:
- O tribunal é territorialmente incompetente, pertencendo a competência ao Tribunal da Comarca de Aveiro ;
- Não conhece os co-Réus nem a Autora e jamais teve qualquer contacto com qualquer deles, nunca tendo assinado qualquer contrato nem adquirido qualquer veículo automóvel ;
- Existe utilização abusiva do seu nome e dados da sua identidade, bem como falsificação da sua assinatura.
Conclui, no sentido da incompetência territorial do Tribunal, bem como pela improcedência da acção, com a sua consequente absolvição do pedido.
3 – A Autora veio apresentar resposta às contestações apresentadas – cf., fls. 138 a 140 e 143 a 146 -, defendendo a competência territorial do Tribunal, e consequente improcedência da excepção dilatória invocada, a inexistência de qualquer nulidade por ineptidão da petição inicial, a legitimidade do Réu BBB e requerer a intervenção principal provocada de [...] – Tecnologias Equipamentos e Montagens de Produtos Electrónicos, Lda., e Totta Crédito Especializado, Instituição Financeira de Crédito, S.A..
4 – Após pronúncia dos Réus, por despacho de 23/11/2012 – cf., fls. 158 e 159 -, foram admitido s a intervir nos presentes autos como Réus:
- [...] – TECNOLOGIAS, EQUIPAMENTOS E MONTAGENS de PRODUTOS ELECTRÓNICOS, LDA. ;
- TOTTA CRÉDITO ESPECIALIZADO, INSTITUIÇÃO FINANCEIRA de CRÉDITO, S.A..
5 – Citadas as Intervenientes, veio a [...], Lda., apresentar contestação, referenciando, em súmula, o seguinte:
- a suspensão da presente acção até decisão a proferir no procedimento criminal ;
- a excepção dilatória de ilegitimidade passiva de todos os demandados, por preterição de litisconsórcio necessário passivo (por força da não demanda, inicial, do vendedor CCC, identificado pelo Réu BBB) ;
- em caso de procedência da lide, a condenação da Autora a indemnizá-la, por se tratar de adquirente de boa-fé, pedido efectuado através da dedução de pedido reconvencional.
6 – Conforme fls. 201 a 204, veio a Autora apresentar resposta a tal contestação, pugnando pela não suspensão da presente acção e pela improcedência da excepção de ilegitimidade.
7 – Em resposta a convite efectuado para sanação de pretensa excepção dilatória de ilegitimidade passiva, por preterição de litisconsórcio necessário, veio a Autora – cf., fls. 235 a 237 -, deduzir o incidente de intervenção principal provocada de CCC.
8 – O que foi admitido, conforme decisão de 10/11/2014 – cf., fls. 287 -, admitindo-se a intervenção, pelo lado passivo, de CCC, determinando-se a sua citação como Chamado.
Tal citação veio a concretizar-se editalmente, conforme fls. 340 e 341, tendo-se ordenado a citação do Ministério Público, conforme despacho de 31/10/2016, concretizada a fls. 343, sem que tivesse sido apresentada qualquer contestação.
9 – Por despacho de 28/03/2017 – cf., fls. 356 a 358 -, conheceu-se acerca da excepção dilatória de incompetência territorial do Tribunal, em sentido procedente, considerando-se incompetente o Juízo Local Cível de Cascais e competente a Instância Local Cível de Lisboa, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.
10 – Conforme despachos de 08/11/2017 – cf., fls. 440 a 443:
Ø Decidiu-se pela dispensa da realização da audiência prévia ;
Ø Proferiu-se saneador stricto sensu ;
Ø Foram fixados o objecto do litígio e os temas da prova ;
Ø Foi fixado o valor da causa ;
Ø Foram apreciados os requerimentos probatórios.
11 – Procedeu-se à realização da audiência final de discussão e julgamento, respeitando os formalismos legais, como resulta das actas de fls. 466 a 468, 472 e 473.
12 – Posteriormente, em 21/01/2019, foi proferida sentença – cf., fls. 474 a 494 -, traduzindo-se o Dispositivo nos seguintes termos:
“Decisão Em consequência do anteriormente exposto decide-se: A) Julgar procedente, por provada, a acção e, consequentemente, declarar nulas as compras e vendas do veículo automóvel de marca Renault, modelo Laguna Break 2.0 150 Cv, chassis/nº de série ..., de matrícula XX-XX-XX, compra essa pela 1ª Ré á Autora, venda pela primeira Ré ao segundo Réu, venda pelo segundo Réu ao terceiro Réu e venda feita pelo terceiro Réu à interveniente [...] – Tecnologias, Equipamentos e Montagens de Produtos Electrónicos, Lda., com o cancelamento dos registos de aquisição da propriedade do veículo a favor da primeira a terceiro Réus e da interveniente aludida e dos ónus respectivos, de tais registos decorrentes. B) Julgar procedente, por provada, a acção e, consequentemente, condenar os primeiros três Réus e a interveniente [...] – Tecnologias, Equipamentos e Montagens de Produtos Electrónicos, Lda. a reconhecer o direito de propriedade da Autora sobre o veículo de marca Renault, modelo Laguna Break 2.0 150 Cv, chassis / nº de série ..., de matrícula XX-XX-XX, condenando esta última ( a interveniente [...] – Tecnologias, Equipamentos e Montagens de Produtos Electrónicos, Lda., sua actual detentora desde o Verão de 2010 ) a entregar o veículo à Autora, em bom estado de conservação. C) No mais, julgar improcedente, por não provada a acção e, por isso, absolver o interveniente principal CCC do pedido. D) Julgar improcedente os pedidos - formulados pelo Réu BBB e pela interveniente [...] – Tecnologias, Equipamentos e Montagens de Produtos Electrónicos, Lda. - de condenação da Autora a depositar o valor pelos mesmos alegadamente pagos a título de preço, em consequência das vendas anuladas ( efectuadas pelo 2º Réu ao 3º Réu e por este àquela interveniente ). E) Custas por Autora e 1º a 3ºs Réus e interveniente adquirente, referida – sendo a Autora quanto à improcedência da lide relativamente ao interveniente CCC e ao pedido de condenação de todos os Réus a restituírem-lhe o veículo, por este apenas proceder quanto ao actual detentor. X Do valor da causa – Fixado a fls. 442 dos autos. X Registe e notifique”.
13 – Inconformadas com o decidido, foram interpostos recursos de apelação, por referência à sentença prolatada, pelos:
Ø Interveniente [...] – TECNOLOGIAS, EQUIPAMENTOS E MONTAGENS de PRODUTOS ELECTRÓNICOS, LDA. ;
Ø Réu AAA ;
Ø Réu BBB.
14 – Apresentou, em conformidade, a Recorrente [...], Lda. as seguintes CONCLUSÕES (que ora se transcrevem, na íntegra):
“A. No presente processo veio a A. alegar ter celebrado com a 1.ª R.,em 9.11.2009, um contrato de locação financeira de veículo mediante o qual disponibilizou a esta o veículo automóvel Renault, modelo Laguna Break 2.0 e no qual esta se comprometeu a liquidar em 60 meses no valor de € 672,60.
B. No âmbito do referido contrato, a A. procedeu ao registo da viatura e do ónus da locação financeira a favor da 1.ª R.
C. Não tendo a 1.ª R. cumprido com as prestações acordadas, a A. resolveu o contrato mediante o envio de carta datada de 1.09.2010.
D. Na referida missiva, a A. comunicou à 1.ª R. que deveria restituir de imediato o veículo automóvel à A.
E. Tal restituição não ocorreu.
F. Entretanto, verificou a A. que o veículo em causa já não se encontrava registado a seu favor mas em nome de terceiros e que os documentos que serviram de suporte à transação que permitiu o registo do referido veículo em nome da 1.º R., designadamente o cancelamento da reserva de propriedade se encontrava falsificado.
G. A A. deu entrada da acção e procedeu ao seu registo em 20.2.2012.
H. Conclui peticionando a nulidade dos contratos de compra e venda do 1.º para o 2.º R., do 2.º para o 3.º R. e para a ora recorrente bem como o cancelamento de todos os registos realizados e o reconhecimento de propriedade da A. enquanto proprietária do veículo e bem assim a sua restituição.
I. A douta sentença determinou a nulidade de todos os contratos de compra e venda do referido veículo e o reconhecimento de propriedade da A. bem como a restituição do veículo à A. por parte da ora recorrente nos termos do disposto no artigo 291.º do Código Civil.
J. Erradamente, porém, dado que procedeu a uma incorrecta aplicação do direito.
K. Com efeito, o artigo 291.º do Código Civil não é aplicável ao presente caso.
L. Efectivamente, a douta sentença deveria ter-se socorrido da aplicação do artigo 17.º n.º 2 do Código Registo Predial ex vi artigo 29.º do Código do Registo Automóvel que dispõe que a declaração de nulidade do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé, se o registo dos correspondentes factos for anterior ao registo da ação de nulidade.
M. Por força do n° 2 do art. 17° do Código do Registo Predial, a declaração de nulidade do registo de aquisição a favor da A. nunca poderá implicar a nulidade ou o cancelamento do registo a favor da ora recorrente, na medida em que se verificam todos os requisitos exigidos por aquela disposição: - aquisição do direito a título oneroso; - boa fé do terceiro, como aliás, resulta da sentença; - prioridade do registo dos correspondentes factos relativamente ao registo da acção de nulidade e cancelamento.
N. Com efeito, o artigo 17.º n.º 2 CRP vem precisamente no seguimento do artigo 16.º que determina na sua alínea a) que o registo é nulo quando tiver sido lavrado em títulos falsos, que é precisamente o caso dos presentes autos!
O. Assim, dado que a ora recorrente adquiriu de boa fé, fazendo-o com base no registo, ocorre de imediato a situação que o Professor Oliveira Ascensão denomina por “efeito atributivo do registo”: o negócio anterior é nulo e nulo permanece (nomeadamente na venda de bem alheio), mas o terceiro de boa fé recebe na sua esfera jurídica um direito que se tornou inquestionável, face à fé pública do registo e à norma expressa do artigo 17 n.º 2 CRP.
P. É precisamente esta a situação que agora nos ocupa, tal como aliás resulta directa e taxativamente do facto 32.º dado como provado na douta sentença que aqui se transcreve “ A [...]., Lda., não conhecia, à data da aquisição,pela mesma, do veículo referido em 1 - os anteriores negócios de que o veículofora objeto, tendo-se certificado, antes da compra, que o veículo estava registadoem nome do terceiro Réu.
Q. Assim, deve ser reconhecido o direito de propriedade da recorrente, por aplicação do disposto no artigo 17 n.º 2 do Código do Registo Predial ex vi artigo 29.º do Código do Registo Automóvel e ser revogada a douta sentença.
R.Subsidiariamente, ainda que assim não se entenda, o que por mera cautela de patrocínio se concebe, vem a recorrente impugnar a matéria de facto.
S. A douta sentença do tribunal a quo deu como provado, no tocante à ora recorrente, que: 22 - Por documento escrito datado de 2.7.2010, o Réu BBB declarou ter vendido à interveniente principal [...], Lda. o veículo referido em 1 - e em causa nos autos, pelo preço de 28.750,00 Euros. 23- Com vista à compra referida em 21 - a [...], Lda. outorgou com a Totta Crédito especializado um financiamento da quantia de 22.360,00 Euros, acordo esse de financiamento celebrado por escrito datado de 23.7.2010, em que as partes acordaram entre si que seria liquidado tal financiamento contra o pagamento, pela interveniente à financiadora referida, de 36 prestações, nas condições constantes dos documentos de fls. 185 a 191 dos autos.
T. Porém, considera como não provado “Quais os valores pagos pela interveniente [...], Lda. em consequência da compra do veículo referido em 1.
U. Pelo que deve o mesmo ser retirado e aditado aos factos provados o ponto 33 que determine que a [...], Lda. pagou ao 3.º R. € 28.750,00 pela aquisição do veículo.
V. Devendo a sentença ser revogada e, caso a recorrente seja condenada na restituição da viatura Laguna Break com a matrícula XX-XX-XX deve igualmente a A. ser condenada no pagamento da quantia de € 28.750,00 à ora recorrente.
W. Fundou a sua convicção na circunstância de a interveniente [...], Lda. não ter junto aos autos qualquer documento comprovativo dos valores por si pagos em consequência do negócio e mesmo do financiamento referido em A); 23 -.
X. O facto da recorrente não ter junto um cheque, um documento comprovativo de transferência bancária é, neste caso, perfeitamente irrelevante.
Y. De facto, dado que os documentos juntos a fls. 185 e 191 não foram impugnados, o seu conteúdo faz prova plena em relação às declarações atribuídas ao seu autor nos termos do disposto no artigo 376 do Código Civil.
Z. Neste caso, que o 3.º R. declarou ter vendido à interveniente principal [...], Lda. o veículo referido em 1 - e em causa nos autos, pelo preço de 28.750,00 Euros.
AA. Mais, sendo o 3.º R. como ficou provado, um vendedor de automóveis, não iria certamente emitir a referida declaração sem receber o montante aí referido.
BB. Tem sido entendido que deverá ser dado por provado um pagamento de determinada quantia se as partes apresentarem prova da verosimilhança do mesmo, assente em documentos que o indiciam.
CC. Ora, neste caso, é por demais evidente que tal prova de pagamento foi realizada.
DD. Acresce que a prova documental é ainda complementada com prova testemunhal.
EE. Com efeito, a instâncias da Meritíssima Juiz o gerente da ora recorrente Rui Pedro Silva Rosa, disse que o veículo automóvel foi comprado pela ora recorrente ao Sr. BBB pelo valor de cerca de € 28.000,00 conforme consta a declarações prestadas em audiência de julgamento no dia 26/11/2018, (resultando da respetiva ata que as mesmas tiveram início pelas 10:00h e termo pelas 10h20h), afirma o seguinte
Passagem / Excerto das Declarações ao minuto 6h18:
MJ: “O Sr. também disse que chegaram a um acordo quanto ao valor. Qual foi o valor pelo qual foi comprado o carro?” Rui Rosa: € 28.000,00 e qualquer coisa.
FF. Assim, atendendo aos documentos juntos aos autos, designadamente a declaração de venda junta como documento 2 com a contestação da ora recorrente bem como as declarações prestadas pelo gerente da ora recorrente em que atesta a venda do veículo pelo valor de cerca de € 28.000,00, foi incorretamente dado como não provado o ponto 4 -Quais os valores pagos pelainterveniente [...], Lda. em consequência da compra do veículo referidoem 1 -.
GG. Pelo que deve o mesmo ser retirado e aditado aos factos provados o ponto 33 que determine que a [...], Lda. pagou ao 3.º R. € 28.750,00 pela aquisição do veículo.
HH. Devendo a sentença ser revogada e, caso a recorrente seja condenada na restituição da viatura Laguna Break com a matrícula XX-XX-XX deve igualmente a A. ser condenada no pagamento da quantia de € 28.750,00 à ora recorrente.
Conclui, requerendo que a sentença seja revogada.
15 – Por sua vez, o Recorrente AAA apresentou as seguintes CONCLUSÕES (que ora se transcrevem, na íntegra ; corrigem-se os lapsos de redacção):
“1. Autora e primeira Ré acordaram entre si que o acordo em causa tinha início no dia 9.11.2009 e termo no dia 8.11.2014;
2. Do firmado entre Autora e primeira Ré ficou acordado que a primeira Ré pagava, a título de caução, naquela data de 9.11.2009, a quantia de 6.333,27 Euros, que liquidou Autora.
3. A Autora adquiriu à Renault Retail Group Gondomar, em 30.10.2009 e pelo preço de 42.221,76 euros o veículo automóvel descrito nos autos e entregou-o à primeira Ré.
4. Na sequência do não pagamento de qualquer outra renda referente ao contrato melhor identificado nos autos, a Autora tentou por contactos telefónicos e cartas contactar a primeira Ré sem que por alguma vez tenha tido sucesso.
5. A Autora nunca conseguiu qualquer contacto com a primeira Ré.
6. Em 20 de Maio de 2010, a Autora requereu à Conservatória de Registo de Automóveis de Lisboa que lhe fosse certificado qual o proprietário e quais os ónus ou encargos que incidiam sobre o veículo de matrícula XX-XX-XX, bem como todos os documentos que tivessem servido de suporte a tais actos.
7. Em 15.6.2010, a Conservatória de Registo de Automóveis passou certidão referente ao veículo e na qual fez constar que a propriedade do mesmo se encontrava registada a favor do Réu BBB, através da ap. nº. 04154, de 15.3.2010.
8. Não obstante tal conhecimento a Autora e apenas em 1.9.2010 dirigiu à primeira Ré para a morada constante do acordo, carta a comunicar o débito que, na altura, ascendia a 12.058,89 Euros e que, não tendo a Ré correspondido eficazmente aos compromissos assumidos nos últimos contactos, considerava esgotadas quaisquer outras negociações que permitissem a continuidade do acordo em causa e que, por isso, o resolvia.
9. Ora que compromissos foram assumidos nos últimos contactos, se nunca foi possível contactar a primeira Ré como ficou bem claro no depoimento da testemunha da Autora?
10. E não seria expectável, independentemente de antemão se presumir (ou não já que a carta fala em compromissos assumidos em últimos contactos?) que esta não ia ter qualquer efeito, fazer, desde logo, referência à venda então concretizada, supostamente, sem sua autorização a BBB.
11. A Sentença a quo deu como provado que EEE nunca foi procuradora da Autora, se bem que do depoimento da testemunha da Autora tal não se pudesse de todo concluir, já que, a mesma de tal nada sabia limitando-se a verificar no sistema informático os elementos dele constantes.
12. A carta da Autora de 1.09.2010 comunicava igualmente à primeira Ré que deveria restituir à Autora, de imediato, a viatura, devendo tal entrega ser feita directamente na RCI Gest.
13. Como seria de se esperar se ab initio nunca foi possível qualquer contacto com a primeira Ré, a carta não foi reclamada e foi devolvida a Autora, com a menção de “objecto não reclamado.”
14. Foi desta forma expedita que a Autora quis acautelar o seu direito de propriedade do veículo.
15. Foi com uma singela carta Registada com A.R. que a Autora, passado um ano e depois de nunca ter tido qualquer contacto com a Ré promoveu a retoma do veículo.
16. Sendo comum a Autora intentar providência cautelar quando não conseguia a retoma da viatura, neste caso não o fez.
17. A viatura constava na Conservatória do Registo Automóvel em nome de um terceiro em 15.6.2010 sem que a Autora tivesse conseguido qualquer contacto com a Ré desde o momento em que lhe entregou a viatura e mesmo assim, no caso não foi interposta qualquer providência cautelar.
18. Apenas através da Ap. nº 4813, de 20.2.2012, foi registada provisoriamente - por existir reserva de propriedade e o proprietário ser pessoa diversa dos requeridos - a propositura da presente acção.
19. O Réu AAA sempre alegou ter sido vítima de falsificação de elementos identificativos, indicou o processo crime anterior alusivo a factos da mesma natureza, prestou todos e quaisquer esclarecimentos no processo crime intentado pela Autora, não conhecia ninguém nos autos, nem alguém dos autos o poderia conhecer e mesmo assim acaba condenado por factos “alegadamente” praticados.
20. O tribunal a quo não considerou duvidoso o teor da carta de resolução emitida um ano depois a formalização do acordo em conjugação com o depoimento da Autora que mais não sabia do que o que apurou dos registos informáticos do processo.
21. O tribunal a quo conclui que a maior prejudicada nos autos foi a Autora, desprezando por completo RR que por culpa da inércia desta se viram arrastados e incomodados desde 2010.
22. O tribunal a quo criou a sua convicção e deu como provados factos em completa contradição com os meios probatórios, constantes do processo, nomeadamente em registo áudio (depoimento da testemunha da Autora prestado em 15.05.2018 e transcrito nesta peça).
23. Ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou o disposto no art. 640º., do Código Processo Civil, porquanto a prova produzida impõe decisão diversa da recorrida”.
Conclui, no sentido da procedência do recurso, e consequente alteração da decisão proferida.
16 – Por fim, o Recorrente BBB, nas alegações recursórias apresentadas, formulou as seguintes CONCLUSÕES (que ora se transcrevem, na íntegra):
“I. MAL ANDOU O TRIBUNAL “A QUO” AO CONSIDERAR A PRESENTE AÇÃO PROCEDENTE;
II. DEVERIA O TRIBUNAL “A QUO” TER CONSIDERANDO PROVADO QUE O RÉU BBB ADQUIRIU O VEICULO AO INTERVENIENTE CCC.
III. DOS DOCUMENTOS APRESENTADOS AO ORA RECORRENTE, RESULTA CLARO A REGULARIDADE DO REGISTO A FAVOR DE QUEM ASSINOU A DECLARAÇÃO DE VENDA A SEU FAVOR, TUDO ATRAVÉS DE UMA SUCESSÃO DE DOCUMENTOS COM RECONHECIMENTO E CERTIFICAÇÃO LEGAL DA SUA VALIDADE.
IV. OS RÉUS APRESENTARAM TÍTULOS DE AQUISIÇÃO COM DATAS POSTERIORES À INSCRIÇÃO DO DIREITO DA AUTORA NO REGISTO E REGISTARAM TAIS AQUISIÇÕES, POSTERIORMENTE, COMO RESULTA DOS DOCUMENTOS JUNTOS AOS AUTOS, SENDO QUE A AÇÃO CUJA DECISÃO ORA SE SINDICA FOI INTENTADA EM MOMENTO POSTERIOR AO REGISTO DE AQUISIÇÃO EFETUADO A FAVOR DO R. ORA RECORRENTE;
V. A PRESENTE AÇÃO NÃO FOI PROPOSTA E REGISTADA DENTRO DOS TRÊS ANOS POSTERIORES À CONCLUSÃO DO NEGÓCIO CUJA DECLARAÇÃO DE NULIDADE SE PRETENDE;
VI. PARA OS EFEITOS DO N.º 2 DO ARTIGO 17.º DO CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL, A BOA-FÉ TRADUZ-SE NO DESCONHECIMENTO SEM CULPA POR PARTE DO TERCEIRO, DA DESCONFORMIDADE ENTRE A SITUAÇÃO REGISTRAL E A SITUAÇÃO SUBSTANTIVA.
VII. O RECORRENTE FOI CONSIDERADO TERCEIRO DE BOA-FÉ.
VIII. A QUESTÃO CINGE-SE EM SABER SE OS DIREITOS ADQUIRIDOS PELOS RÉUS, SÃO PREJUDICADOS EM CONSEQUÊNCIA DO VÍCIO QUE ESTÁ NA SUA BASE, MAIS CONCRETAMENTE O NEGÓCIO DE COMPRA E VENDA DE BEM ALHEIO
IX. A DELIMITAÇÃO ENTRE AS HIPÓTESES QUE CAEM SOB A ALÇADA DO N.º 2 DO ARTIGO 17.º DO CRP E AS QUE ESTÃO SUJEITAS AO REGIME PREVISTO NO ART.º 291º DO CÓDIGO CIVIL DEVE FAZER-SE DE ACORDO COM O SEGUINTE CRITÉRIO: O REGIME PREVISTO NO ART.º 291.º DO CÓDIGO CIVIL SÓ DEVE APLICAR-SE QUANDO O TERCEIRO DE BOA-FÉ NÃO TENHA ATUADO COM BASE NO REGISTO, ISTO É, QUANDO O NEGÓCIO NULO OU ANULÁVEL NÃO TENHA SIDO REGISTADO, À CONTRARIO O REGIME PREVISTO NO ARTIGO 17 Nº2 DO CRP, DEVERÁ SER OBSERVADO QUANDO O ADQUIRENTE TENHA ATUADO DE BOA-FÉ E COM BASE NO REGISTO.
X. ESTANDO PROVADA A BOA-FÉ DA RECORRENTE E A ANTERIORIDADE DO REGISTO DO SEU DIREITO, NÃO PODE A MESMA SER PREJUDICADA PELA DECLARAÇÃO DE NULIDADE DOS CONTRATOS DE COMPRA E VENDA E CANCELAMENTO DO REGISTO DE PROPRIEDADE A FAVOR OS RÉUS.
XI. DISPÕE O ARTIGO 291.º N.º 1 QUE «A DECLARAÇÃO DE NULIDADE OU A ANULAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO QUE RESPEITE A BENS IMÓVEIS, OU A MÓVEIS SUJEITOS A REGISTO, NÃO PREJUDICA OS DIREITOS ADQUIRIDOS SOBRE OS MESMOS BENS, A TÍTULO ONEROSO, POR TERCEIRO DE BOA FÉ, SE O REGISTO DA AQUISIÇÃO FOR ANTERIOR AO REGISTO DA ACÇÃO DE NULIDADE OU ANULAÇÃO OU AO REGISTO DO ACORDO ENTRE AS PARTES ACERCA DA INVALIDADE DO NEGÓCIO».
XII. O RECORRENTE ADQUIRIU O SEU DIREITO DE FORMA ONEROSA E FAZENDO-O DE BOA-FÉ.
XIII. ACRESCE QUE, POR FORÇA DO N.° 2 DO ART. 17° DO CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL, A DECLARAÇÃO DE NULIDADE DO REGISTO DE AQUISIÇÃO A FAVOR DO 1.° RÉU NUNCA PODERÁ IMPLICAR A NULIDADE OU O CANCELAMENTO DO REGISTO DE AQUISIÇÃO A FAVOR DO 3.º RÉU, ORA RECORRENTE.
XIV. SENDO O REGISTO AUTOMÓVEL DOTADO DE FÉ PÚBLICA, COM A INERENTE PRESUNÇÃO DE VERDADE, POR ATUAÇÃO DE UM PRINCÍPIO DE LEGALIDADE SUBSTANCIAL, LOGRANDO MESMO DESENCADEAR A AQUISIÇÃO DE DIREITOS DOMINIAIS, AO DECIDIR-SE COMO SE DECIDIU, EM CLARA PRETERIÇÃO DA APLICAÇÃO DO ARTIGO 17.º N.º 2 DO CÓDIGO REGISTO PREDIAL.
XV. AO DECIDIR-SE COMO SE DECIDIU, NÃO INTEGRANDO O DISPOSTO NOS ARTIGOS 5.° N.º 1 E 4 DO MESMO DIPLOMA LEGAL, DECISÃO ORA SINDICADA, INCORRE NUMA INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL, JÁ QUE É ESTA VIOLADORA DOS PRINCÍPIOS DA BOA-FÉ NOS NEGÓCIOS, NA PUBLICIDADE DO REGISTO DA EQUIDADE E DA JUSTIÇA, POR PRETERIÇÃO DO DISPOSTO DOS ART°S 12.°, 13.°, 204.° E 277.° DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA”.
Conclui, no sentido da sentença recorrida ser revogada, devendo ser substituída por outra que:
“a) declare improcedente o pedido de nulidade dos contratos de compra e venda respeitantes ao veículo com a matricula XX-XX-XX; b) declare válido os registos de aquisição efetuados a favor dos RR; c) declare improcedente o pedido, formulado pela A., de reconhecimento do direito de propriedade do veículo com a matricula XX-XX-XX”.
17 – A Apelada/Recorrida Autora apresentou contra-alegações, relativamente ao recurso apresentado pela Interveniente [...] – Tecnologias, Equipamentos, e Montagens de produtos Electrónicos, Lda., nas quais formulou as seguintes CONCLUSÕES (que ora se transcrevem):
“34. Não existe qualquer contradição entre os factos dados como provados e não provados.
35. Era a recorrente que cabia a prova do alegado pagamento.
36. No entanto a mesma não juntou qualquer comprovativo do alegado pagamento efectuado.
37. Pelo que bem andou o Tribunal ao considerar tal facto como não provado.
38. Os documentos juntos não estão abrangidos pelo disposto no artigo 376.º do C.C., uma vez que não se trata de documentos com autoria reconhecida nos termos dos artigos anteriores.
39. Pelo que, deverá manter-se a sentença recorrida nos termos em que foi proferida.
40. Bem andou a douta sentença ao considerar a aplicável ao caso o n.º 2 do artigo 291.º do Código Civil.
41. Dúvidas não existem que verificando-se a falsificação das assinaturas constantes do requerimento de registo automóvel, a 1.ª Ré não tinha legitimidade para realizar a venda do veiculo em questão.
42. Ora, “sendo nula a primeira venda…, nulas são, consequentemente, as demais vendas outorgadas.”
43. Não podia a interveniente adquirir de forma legitima um veículo que não fora vendido pela Autora à primeira Ré.
44. Tem sido entendimento unânime na nossa jurisprudência a aplicação do supra referido artigo em situações semelhantes.
45. “O conceito de terceiro para efeito do registo não coincide com o conceito de terceiro a que se reporta o artigo 291º do Código Civil, porque na primeira situação o conflito é entre dois adquirentes do mesmo transmitente e, na segunda, o conflito ocorre entre o primeiro transmitente e o último subadquirente, numa cadeia de negócios inválidos. (sublinhado nosso) Na primeira situação é pressuposta a validade do primeiro negócio de transmissão e na segunda a sua invalidade, ali é protegida a confiança do adquirente nos dados constantes no registo, e aqui é protegida a estabilidade dos negócios jurídicos. O terceiro a que se refere o artigo 291.º do CC é protegido na medida em que lhe não pode ser oposta a nulidade do primitivo contrato de compra e venda se tiver adquirido o direito sobre imóveis a título oneroso, de boa fé, inscrito no registo predial a sua aquisição e haja decorrido um triénio sobre a data do primeiro contrato sem haver sido instaurada a acção de nulidade. Contudo, para funcionar a proteção conferida pelo art. 291.º, a cadeia de negócios inválidos tem que ser iniciada pelo verdadeiro proprietário, não estando abrangida no seu âmbito de aplicação a situação em que um sujeito obtém um registo falso e aliena o bem a um terceiro.” (melhor disponível paraconsulta emhttp://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/d360fbcb44f3 f4eb80258076004e74e9?OpenDocument).
46. O pedido de condenação da Autora no pagamento da quantia de € 28.750,00 à recorrente não tem qualquer sentido nem fundamento legal.
47. Perante todo o exposto, apenas poderá ser indeferida a pretensão da Recorrente, mantendo-se a douta sentença proferida”.
Conclui, no sentido da improcedência do recurso, e consequente manutenção da decisão recorrida.
18 – Veio igualmente a Autora Apelada apresentar resposta às alegações do Recorrente BBB, formulando as seguintes CONCLUSÕES (que se transcrevem integralmente):
“16. Ao contrário do que alega o Recorrente a acção encontra-se devidamente registada.
17. A própria sentença faz menção ao comprovativo do registo que se encontra junto a fls. 265 dos autos.
18. Pelo que, dúvidas não existem de que se encontra preenchido o n.º 2 do artigo 291.º do C.C., que afasta o reconhecimento do direito de terceiro.
19. O veículo foi vendido através de um requerimento de registo automóvel com recurso a assinaturas falsificadas.
20. O Recorrente nunca adquiriu o veículo de forma legitima, uma vez que não o adquiriu ao seu legitimo proprietário.
21. “O conceito de terceiro para efeito do registo não coincide com o conceito de terceiro a que se reporta o artigo 291º do Código Civil, porque na primeira situação o conflito é entre dois adquirentes do mesmo transmitente e, na segunda, o conflito ocorre entre o primeiro transmitente e o último subadquirente, numa cadeia de negócios inválidos.” (vide acórdão da Relação deGuimarães de 27.10.2016)
22. Acrescenta que: “Na primeira situação é pressuposta a validade do primeiro negócio de transmissão e na segunda a sua invalidade, ali é protegida a confiança do adquirente nos dados constantes no registo, e aqui é protegida a estabilidade dos negócios jurídicos.” (vide acórdão da Relação de Guimarãesde 27.10.2016)
23. “O terceiro a que se refere o artigo 291.º do CC é protegido na medida em que lhe não pode ser oposta a nulidade do primitivo contrato de compra e venda se tiver adquirido o direito sobre imóveis a título oneroso, de boa fé, inscrito no registo predial a sua aquisição e haja decorrido um triénio sobre a data do primeiro contrato sem haver sido instaurada a acção de nulidade.” (videacórdão da Relação de Guimarães de 27.10.2016)
24. Em face do exposto, apenas poderá improceder o presente recurso”.
Conclui, no sentido da improcedência do recurso, devendo manter-se a decisão recorrida.
19 – Os recursos foram admitidos por despacho de fls. 541, como apelação, com subida nos próprios autos, de imediato e com efeito suspensivo.
20 - Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar, valorar, ajuizar e decidir.
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II – ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO
Prescrevem os nºs. 1 e 2, do artº. 639º do Cód. de Processo Civil, estatuindo acerca do ónus de alegar e formular conclusões, que:
“1 – o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão. 2 – Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: a) As normas jurídicas violadas ; b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas ; c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
Por sua vez, na esteira do prescrito no nº. 4 do artº. 635º do mesmo diploma, o qual dispõe que “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”, é pelas conclusões da alegação dos recorrentes Apelantes que se define o objecto e se delimita o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente,apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto dos interpostos recursos.
Pelo que, no sopesar das conclusões expostas, a apreciação a efectuar na presente sede determina o conhecimento das seguintes questões:
- no que concerne ao recurso 1 = interposto pela Interveniente [...], Lda.
1. do ENQUADRAMENTO JURÍDICO DA CAUSA
a) da incorrecta aplicação do direito ;
b) da não aplicabilidade do artº. 291º, do Cód. Civil ;
c) da aplicabilidade do artº. 17º, nº. 2, do Cód. do Registo Predial, ex vi do artº. 29º, do Cód. do Registo Automóvel ;
d) da manutenção da validade do registo de propriedade a favor da Recorrente – Conclusões alegacionais J) a Q) e Conclusões contra-alegacionais 40. a 47. ; subsidiariamente
2. DA EVENTUAL PERTINÊNCIA DA MODIFICABILIDADE DA DECISÃO PROFERIDA SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
a) da contradição entre os factos provados 22 e 23 e o ponto 4 não provado ;
b) da eliminação do ponto 4 não provado e do aditamento aos factos provados de um novo ponto (33) donde conste que:
“A [...], Lda., pagou ao 3º Réu € 28.750,00 pela aquisição do veículo” - Conclusões alegacionais R) a HH) e Conclusões contra-alegacionais 34. a 39..
- no que concerne ao recurso 2 = interposto pelo Réu AAA
1. da impugnação da matéria de facto (??), o que implica eventual conhecimento DA PERTINÊNCIA DA MODIFICABILIDADE DA DECISÃO PROFERIDA SOBRE A MATÉRIA DE FACTO, nos quadros do artº. 662º, do Cód. de Processo Civil ;
a) do aparente não cumprimento do artº. 640º, do Cód. de Processo Civil ;
2. da SUBSUNÇÃO JURÍDICA EXPOSTA NA DECISÃO RECORRIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS, o que implica apreciação do ENQUADRAMENTO JURÍDICO DA CAUSA, nomeadamente:
a) da alegada inércia da Autora.
- no que concerne ao recurso 3 = interposto pelo Réu BBB
1. DA EVENTUAL PERTINÊNCIA DA MODIFICABILIDADE DA DECISÃO PROFERIDA SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
a) Do ponto 2 da matéria de facto não provada - da pretensão que passe a figurar como provado que:
“o Réu BBB adquiriu o veículo ao Interveniente CCC” - Conclusões alegacionais I) e II) ;
2. da SUBSUNÇÃO JURÍDICA EXPOSTA NA DECISÃO RECORRIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS, o que implica apreciação do ENQUADRAMENTO JURÍDICO DA CAUSA, nomeadamente:
a) da alegada não prova do registo da presente acção, impossibilitando a verificação da situação inscrita no nº. 2, do artº. 291º, do Cód. Civil ;
b) do não registo da acção no prazo de 3 anos - Conclusões alegacionais III) a V) e Conclusões contra-alegacionais 16. a 18. ;
c) da aplicabilidade do nº. 2 do artº. 17º do Cód. de Registo Predial - Conclusões alegacionais VI) a XIV) e Conclusões contra-alegacionais 19. a 23. ;
d) da inconstitucionalidade material da decisão - Conclusão alegacional XV).
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Por razões de precedência lógica, o conhecimento dos recursos em equação, será efectuado segundo a seguinte ordem cronológica:
- em 1º lugar, conhecer-se-á da aparente impugnação da matéria de facto, relativamente ao recurso 2, interposto pelo Recorrente Réu AAA, e relativamente ao recurso 3, interposto pelo Réu BBB ;
- em 2º lugar, e no âmbito do enquadramento jurídico da causa, conhecer-se-á:
a. em 1º lugar, relativamente á argumentação expedida no recurso 2, interposto pelo Recorrente Réu AAA ;
b. em 2º lugar, acerca da argumentação exposta nos recursos 1 e 3, interpostos pela Interveniente [...], Lda. e Réu BBB ;
- em 3º lugar, atento o juízo de subsidiariedade exposto, conhecer-se-á, eventualmente, acerca da impugnação da matéria de facto relativamente ao recurso 1, interposto pela Interveniente [...], Lda..
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III - FUNDAMENTAÇÃO
A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Na sentença recorrida, foi considerado como PROVADO o seguinte (corrigem-se os lapsos de redacção):
1 - Por acordo reduzido a escrito e intitulado contrato de locação financeira, a RCI Gest – Instituição Financeira de Crédito, S. A. acordou com a Cooperativa ..., CRL ceder à mesma, para seu gozo pelo período de 60 meses, o veículo automóvel de marca Renault, modelo Laguna Break Dynamique S4C 2.0, de matrícula 54 – II - 18, contra o pagamento, pela primeira Ré, de 60 rendas mensais, sendo a primeira no valor de 2.461,22 Euros, acrescido de I.V.A. e as restantes 59 no valor mensal de 672,60 Euros, com I.V.A. incluído, tendo a primeira Ré pago à Autora aquela primeira renda.
2 - No acordo referido em 1 - Autora e primeira Ré acordaram entre si que o acordo em causa tinha início no dia 9.11.2009 e termo no dia 8.11.2014 e que a primeira demandada pagava, a título de caução, naquela data de 9.11.2009, a quantia de 6.333,27 Euros, que liquidou à Autora.
3 - Nos termos do acordo referido supra a Ré podia, no termo do prazo de duração do contrato, adquirir o veículo contra o pagamento, à Autora, do valor residual de 6.333,26 Euros.
4 - Nos termos do acordo supra referido, as rendas seriam pagas, pela primeira Ré à Autora, por meio de débito directo na conta bancária daquela da entidade bancária CCAM, dependência de Alcanhões, com o nº 40080783694.
5 - Com vista ao cumprimento do acordo referido sob 1 - a 4 -, a Autora adquiriu à Renault Retail Group Gondomar, em 30.10.2009 e pelo preço de 42.221,76 Euros, o veículo aludido em 1 - e entregou-o à primeira Ré.
6 - A primeira Ré não pagou à Autora qualquer renda do acordo referido 1 - a 4 - para além da primeira e do valor da caução referidos em 1 - e 2 -.
7 - Na sequência do não pagamento, pela primeira Ré, das rendas referentes ao acordo aludido em 1 - a 4 -, a Autora tentou, por contactos telefónicos para a mesma e por cartas, que a primeira Ré regularizasse a situação e os pagamentos em débito, não o tendo logrado.
8 - Na sequência do referido em 6 - e 7 - e por carta registada com aviso de recepção, datada de 1.9.2010, dirigida pela Autora à primeira Ré para a morada constante do acordo aludido em 1 - a 4 -, a demandante comunicou à primeira demandada que o seu débito, por referência ao acordo aludido sob 1 - a 4 - supra ascendia, na altura, a 12.058,89 Euros e que, não tendo a Ré correspondido eficazmente aos compromissos assumidos nos últimos contactos, considerava esgotadas quaisquer outras negociações que permitissem a continuidade do acordo em causa e que, por isso, o resolvia.
9 - Na carta referida em 8 - a Autora comunicou ainda à primeira Ré que deveria restituir à Autora, de imediato, a viatura, devendo tal entrega ser feita directamente na RCI Gest, onde seria devidamente recepcionada, que caso a viatura apresentasse danos, os respectivos custos seriam da inteira responsabilidade da Ré e que não se verificando a entrega, a sua utilização considerar-se-ia abusiva e actuaria de acordo com o nº 3 da cláusula 13ª do contrato.
10 - Na carta referida sob 8 - e segs. a Autora comunicou ainda à primeira Ré que o valor pela mesma em débito à demandante seria amortizado pela utilização da caução referida em 2 -, devendo o remanescente ser pago à Autora no prazo de 5 dias a contar da mesma carta.
11 - Por a Ré, no momento da entrega da carta referida sob 8 - e segs. pelos CTT não ter atendido, foi deixado o correspondente aviso postal em 21.9.2010, não tendo a carta em causa sido reclamada e, assim, sido devolvida à Autora, com a menção de “ objecto não reclamado “.
12 - Na sequência do referido em 8 - e segs., a primeira Ré não restituiu à Autora o veículo identificado em 1 - nem o mesmo foi, até hoje, à mesma restituído.
13 - Em 20 de Maio de 2010 a Autora requereu à Conservatória de Registo de Automóveis de Lisboa que lhe fosse certificado qual o proprietário e quais os ónus ou encargos que incidiam sobre o veículo de matrícula 54 – II – 1, bem como de todos os documentos que tivessem servido de suporte a tais actos.
14 - Com data de 15.6.2010 a C. R. de Automóveis de Lisboa passou certidão referente ao veículo aludido em 1 - e 13 -, de que foi feito constar que a propriedade do mesmo se encontrava registada a favor do Réu BBB, através da ap. nº 04154, de 15.3.2010.
15 - Em 8.2.2010 foi requerido à C. R. Automóvel de Lisboa uma segunda via do certificado de matrícula do veículo de matrícula XX-XX-XX, por extravio, tendo nessa data e para tais efeitos, sido declarado que o sujeito activo ( comprador/adquirente/requerente/locador ) era a primeira Ré e o sujeito passivo ( vendedor/transmitente/requerente/exequente ) era a Autora, mostrando-se apostos, em tal requerimento, os carimbos da Autora e da primeira Ré e as assinaturas, em nome da primeira e da segunda, de “ DDD “ e de “ EEE “ - esta como alegada procuradora da Autora -, relativamente a cujas assinaturas foi feito constar terem as mesmas sido feitas na presença de HHH, advogada.
16 – EEE nunca foi procuradora da Autora.
17 - A Autora nunca autorizou a venda do veículo referido em 1 - à primeira Ré nem acordou com a mesma a sua venda e nunca o faz sem o cumprimento do contrato de locação financeira.
18 - Quando a Autora acorda com um locatário a venda de um veículo, é emitido, pela mesma, o documento para essa extinção (DUC), sendo tal documento assinado por um seu procurador, que é único e a sua assinatura reconhecida por advogado que não a indicada em 15 -.
19 - Com data de 18.2.2010 foi requerido à C. Registo Automóvel o registo da aquisição, a favor do segundo Réu, da viatura referida em 1 -, por contrato verbal de compra e venda da mesma viatura, alegadamente outorgado entre a primeira Ré e o segundo Réu, AAA, tendo a aquisição sido registada e quanto às assinaturas do requerimento em causa, sido feito constar terem as mesmas ( como sendo de DDD e de AAA ) sido feitas na presença de HHH, advogada.
20 - O reconhecimento das assinaturas aludidas em 15 - e 19 - não foi feito pela advogada HHH.
21 - Através da Ap. 4154, com data do pedido de 12.3.2010 e de apresentação de 1.3.2010, foi requerido à C. Registo Automóvel o registo de propriedade por contrato de compra e venda verbal outorgado em 5.3.2010 e quanto ao veículo referido em 1 -, a favor do Réu BBB, por compra a AAA, facto que foi registado, tendo o veículo em causa sido adquirido por BBB, por valor não apurado, para seu uso pessoal.
22 - Por documento escrito datado de 2.7.2010, o Réu BBB declarou ter vendido à interveniente principal [...], Lda. o veículo referido em 1 - e em causa nos autos, pelo preço de 28.750,00 Euros.
23 - Com vista à compra referida em 22 [e não 21, como, por lapso, consta da sentença] - a [...], Lda. outorgou com a Totta Crédito especializado um financiamento da quantia de 22.360,00 Euros, acordo esse de financiamento celebrado por escrito datado de 23.7.2010, em que as partes acordaram entre si que seria liquidado tal financiamento contra o pagamento, pela interveniente à financiadora referida, de 36 prestações, nas condições constantes dos documentos de fls. 185 a 191 dos autos.
24 - O Réu BBB Bernardo adquiriu o veículo referido em 1 -, por valor não apurado, tendo tido conhecimento de que o mesmo se encontrava para venda através de FFF que, por sua vez, de tal teve conhecimento através de uma intermediária, de nome GGG, alegadamente da M..., compra e venda essa em que foi também intermediário o interveniente CCC, tendo aquela e este mostrado o veículo ao terceiro Réu, bem como os respectivos documentos.
25 - À data referida em 15 - os membros da Direcção da primeira Ré eram III e JJJ.
26 - Na sequência do referido supra a Autora apresentou queixa-crime contra a primeira Ré, DDD, EEE, AAA, BBB e HHH, por alegada falsificação das assinaturas dos seus legais representantes no pedido de cancelamento de registo de reserva de propriedade a seu favor junto da C. R. Automóvel.
27 - A queixa referida em 26 - deu origem ao processo de inquérito com o NUIPC 6378/10.0TDLSB-01, que correu os seus termos na 3ª Secção do Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa.
28 - Por despacho de 11.4.2013 proferido no processo referido em 27 - foi - por não se ter logrado provar quem forjou o requerimento de extinção de registo de propriedade a favor da Autora e não se vislumbrar qualquer outra diligência útil à descoberta da verdade – determinado o arquivamento dos autos, ao abrigo do artº 277, nº 2 do C. P. Penal, em face da inexistência de indícios suficientes de quem tivesse sido o agente da prática do crime.
29 - No âmbito do processo referido em 27 - e 28 - foi efectuada perícia, cujo relatório consta de fls. 244 e segs. dos autos.
30 - Através da Ap. nº 4813, de 20.2.2012, foi registada provisoriamente - por existir reserva de propriedade e o proprietário ser pessoa diversa dos requeridos - a propositura da presente acção.
31 - O Réu BBB era comerciante de automóveis à data em que a interveniente [...], Lda. lhe adquiriu o veículo referido em 1 -.
32 - A [...]., Lda., não conhecia, à data da aquisição, pela mesma, do veículo referido em 1 - os anteriores negócios de que o veículo fora objecto, tendo-se certificado, antes da compra, que o veículo estava registado em nome do terceiro Réu.
---------- E foi considerado como NÃO PROVADO que (corrigem-se os lapsos de redacção e assinala-se com * os factos objecto de impugnação):
1 - Os factos constantes dos artºs. 8º a 15º da contestação do segundo Réu, AAA.
2 - Que o Réu BBB não tenha adquirido o veículo referido em A), 1 - ao Réu AAA e o tenha adquirido ao interveniente CCC e que este, por sua vez, o tenha adquirido ao segundo Réu. *
3 - Que CCC seja ou fosse, à data, comerciante de automóveis.
4 - Quais os valores pagos pela interveniente [...], Lda. em consequência da compra do veículo referido em 1. *
*
B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
I) Da REAPRECIAÇÃO da PROVA GRAVADA decorrente da impugnação da matéria de facto
QUESTÃO PRÉVIA: do aparente incumprimento do disposto no artº. 640º, nº. 1, do Cód. de Processo Civil, conducente à rejeição do recurso interposto, no que concerne ao Recurso 2 – Recorrente AAA
Na pretensão recursória apresentada, e por referência ao corpo alegacional, alude o Recorrente AAA, após transcrever toda a factualidade dada como provada na sentença recorrida, que esta resulta “do depoimento de uma única testemunha da Autora (…) e naturalmente dos documentos juntos aos autos”.
Após, evidenciando surpresa pelo resultado da lide, acrescenta justificar-se “a necessidade de novo escrutínio”, aditando, ainda que, “em suma, os meios probatórios constantes do processo ou do registo áudio nele realizado impunham decisão diversa da ora recorrida”.
Em sede de conclusões, aduz que “o tribunal a quo criou a sua convicção e deu como provados factos em completa contradição com os meios probatórios, constantes do processo, nomeadamente em registo áudio (depoimento da testemunha da Autora prestado em 15.05.2018 e transcrito nesta peça)”, pelo que, ao decidir “violou o disposto no art. 640º., do Código Processo Civil, porquanto a prova produzida impõe decisão diversa da recorrida”. Decidindo:
Prevendo acerca da modificabilidade da decisão de facto, consagra o artigo 662º do Cód. de Processo Civil os poderes vinculados da Relação, estatuindo que: “ 1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. 2 - A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento; b) Ordenar em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova; c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta; d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”.
Para que tal conhecimento se consuma, deve previamente o recorrente/apelante, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir o ónus a seu cargo, plasmado no artigo 640º do mesmo diploma, o qual dispõe que: “ 1 -Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º” (sublinhado nosso).
Presentemente, o sistema vigente nas situações em que o recurso de apelação envolve a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, implica que “relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos”.
E, ainda que “em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões”.
Acrescentando, ainda, dever ainda o Recorrente deixar “expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente” (sublinhado nosso).
Pelo que deve ocorrer rejeição, total ou parcial, do recurso respeitante à impugnação da matéria de facto, sempre que se verifique “falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640º, nº. 1, al. a))”, servindo igualmente esta especificação “para delimitar o objecto do recurso”.
Bem como deve ainda ocorrer igual rejeição, total ou parcial, na “falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”.
Assim, ainda que se reconheça dever interpretar-se tais exigências legais à luz de um necessário critério de rigor, como consequência ou decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, se “em lugar de uma sincopada e por vezes estéril localização temporal dos segmentos dos depoimentos gravados, o recorrente optar por transcrever esses trechos, ilustrando de forma mais completa e inteligível os motivos das pretendidas modificações da decisão da matéria de facto, deve considerar-se razoavelmente cumprido o ónus de alegação neste campo. A indicação exacta das passagens das gravações não passa necessariamente pela sua localização temporal, sendo a exigência legal compatível com a transcrição das partes relevantes dos depoimentos” [2].
Acrescenta, todavia, o mesmo Ilustre Conselheiro, importar que “não se exponenciem os requisitos formais a um ponto que seja violado o princípio da proporcionalidade e seja denegada a reapreciação da decisão da matéria de facto com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador”. E, citando douto aresto do STJ de que foi Relator [3] aduz ser “necessário que a verificação do cumprimento do ónus de alegação regulado no art. 640º seja compaginado com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, atribuindo maior relevo aos aspectos de ordem material”, aludindo, ao nível do Supremo Tribunal de Justiça, a uma “tendência consolidada no sentido de não se exponenciarem os efeitos cominatórios previstos no art. 640º”.
Lavrou, então, o mesmo Relator em tal aresto sumário, no sentido de dever “considerar-se satisfeito o ónus de alegação previsto no art. 640º, se o recorrente, além de indicar o segmento da decisão da matéria de facto impugnado, enunciar a decisão alternativa sustentada em depoimento testemunhal que identificou e localizou”, sendo que “na verificação do cumprimento do ónus de alegação previsto no art. 640º, os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade” (sublinhado nosso).
O mesmo Acórdão referencia jurisprudência do STJ, no pugnado sentido, donde se realça, por atinente ao caso sub júdice, a seguinte:
- datado de 09/07/2015, onde se refere que “tendo o apelante, nas suas alegações de recurso, identificado os pontos de facto que considerava mal julgados, por referência aos pontos da base instrutória, indicado o depoimento das testemunhas que entendeu mal valorados, fornecido a indicação da sessão na qual foram prestados e o início e o termo dos mesmos, apresentado a sua transcrição e referido qual o resultado probatório que deveria ter tido lugar, relativamente a cada quesito e meio de prova, tanto bastava para que a Relação tivesse procedido à reapreciação da matéria de facto, ao invés de a rejeitar” (sublinhado nosso) ;
- de 19/02/2015, no qual se referencia que “enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já o mesmo se não se afigura que a especificação dos meios de prova ou a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações” (sublinhado nosso).
Acrescenta, ainda, o Ilustre Autor ser frequentemente constatável “que uma leitura concertada das alegações, e não apenas das respectivas conclusões, permite afirmar o preenchimento dos requisitos mínimos a que deve obedecer uma peça processual para a qual não está legalmente prevista uma estrutura rígida quer na parte da motivação, quer no segmento conclusivo”, pelo que os aspectos “fundamentais a assegurar neste campo são os relacionados com a definição clara do objecto da impugnação (que se satisfaz seguramente com a clara enunciação dos pontos de facto em causa), com a seriedade da impugnação (sustentada em meios de prova que são indicados ou em meios de prova oralmente produzidos que são explicitados) e com a assunção clara do resultado pretendido” [4].
Deve ter-se ainda em consideração, realçando-se, o sumariado no douto aresto do STJ de 29/10/2015 [5], no qual se refere que “face aos regimes processuais que têm vigorado quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes e consta actualmente do nº1 do art. 640º do CPC; e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes (e que consta actualmente do art. 640º, nº2, al. a) do CPC).
2.Este ónus de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento - como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da acta, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento complemente tal indicação é complementada com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objecto do recurso” (sublinhado nosso).
Referencie-se, igualmente, o sumariado em aresto do mesmo Alto Tribunal de 19/02/2015 [6], no sentido de que “a especificação dos concretos meios probatórios convocados e a indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, como decorre do preceituado no n.º 1 do artigo 662.º do CPC”.
Assim, “é em vista dessa função que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação com a sanção da rejeição imediata do recurso, nos termos do artigo 640.º, n.º 1, proémio, e n.º 2, alínea a), do CPC”, pelo que “nessa conformidade, enquanto que a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória”.
Pelo que “tendo o recorrente, nas conclusões recursórias, especificado os concretos pontos de facto que impugna, com referência às respostas dadas aos artigos da base instrutória, indicando também aí a decisão que, no seu entender, deve sobre eles ser proferida, enquanto que só no corpo das alegações especifica os meios de prova convocados e indica as passagens das gravações dos depoimentos em foco, têm-se por preenchidos os requisitos formais do ónus de impugnação exigidos pelo art.º 640.º, n.º 1 e 2, alínea a), do CPC” (sublinhado nosso).
Por fim, referencie-se, ainda, o sumariado no douto aresto do STJ de 01-10-2015 [7], no sentido de que:
“I - No recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, e enuncie a decisão alternativa que propõe.
II - Servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso.
III - Não existe fundamento legal para rejeitar o recurso de apelação, na parte da impugnação da decisão da matéria de facto, numa situação em que, tendo sido identificados nas conclusões os pontos de facto impugnados, assim como as respostas alternativas propostas pelo recorrente, não foram, contudo, enunciados os fundamentos da impugnação nem indicados os meios probatórios que sustentam uma decisão diferente da que foi proferida pela 1.ª instância, requisitos estes que foram devidamente expostos na motivação.
IV - Com efeito, o ónus a cargo do recorrente consagrado no art. 640º, do Novo CPC, não exige que as especificações referidas no seu nº 1, constem todas das conclusões do recurso, mostrando-se cumprido desde que nas conclusões sejam identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação”.
Do exposto, resulta, assim, ser legítimo concluir-se, da articulação ou concatenação do prescrito nos artigos 639.º e 640.º, do Cód. de Processo Civil, que o ónus principal a cargo do recorrente exige, pelo menos:
§ a indicação nas conclusões recursórias, com precisão, dos concretos pontos de facto da sentença que são objecto de impugnação, ou seja, cuja modificação é pretendida pelo recorrente, sem o que não é possível ao tribunal de recurso sindicar eventuais erros no julgamento da matéria de facto ;
§ a indicação expressa, na motivação ou corpo alegacional, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação, ou seja, relativamente a cada questão de facto impugnada.
Ora, compulsadas as conclusões recursórias apresentadas pelo Réu/Apelante AAA, constata-se não constarem das mesmas qualquer indicação, por mínima que seja, dos concretos pontos de facto da sentença apelada que são objecto de impugnação, isto é, dos pontos factuais que o Recorrente pretende ver modificados, nem em que sentido pretenderá tal putativa modificação.
Efectivamente, alude expressamente ter o Tribunal a quo dado como provados factos em completa contradição com os meios probatórios, nomeadamente com o aludido registo áudio, mas sem esclarecer ou concretizar quais, e qual o sentido propugnado para a potencial alteração.
Ou seja, e concretizando, compulsado o teor do corpo alegacional, não figura qualquer especificação ou indicação dos factos alegadamente objecto de impugnação, sendo totalmente omissa a sua alusão, por referência à factualidade provada e não provada, e sem se indicarem, logicamente (atenta aquela omissão), qual a decisão que deveria ser proferida relativamente a tal núcleo factual.
Donde decorre, com nitidez, existir incumprimento do enunciado ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto recursório e das pretendidas consequências da impugnação da matéria factual, não devendo este Tribunal substituir-se ao Apelante na concretização ou definição do objecto recursório.
Pelo que, na constatação de tal omissão, e sendo certo que esta não permite o apelo a despacho de aperfeiçoamento [8], impõe-se, nos termos da alínea a), do nº. 1, do artº. 640º, do Cód. de Processo Civil, a total rejeição da apelação interposta, relativamente à impugnação da matéria de facto apresentada pelo Recorrente AAA.
- Da impugnação da matéria de facto apresentada no Recurso 3 – Recorrente BBB
Referencia o presente apelante que a matéria factual feita constar no ponto 2 não provado - que o Réu BBB não tenha adquirido o veículo referido em A), 1 - ao Réu AAA e o tenha adquirido ao interveniente CCC e que este, por sua vez, o tenha adquirido ao segundo Réu - deve passar a figurar como matéria de facto provada, com a seguinte redacção:
“o Réu BBB adquiriu o veículo ao Interveniente CCC”.
Considera ter sido desconsiderada a prova documental junta aos autos, bem como a prova testemunhal decorrente do depoimento da testemunha FFF, que parcialmente transcreve.
Assim, referencia ter sido devidamente esclarecido que o negócio foi feito com o CCC, que se apresentou no local com os documentos do veículo, sendo a testemunha e uma Dª. GGG apenas intermediários da compra.
Donde, conclui, inexistirem dúvidas que a aquisição por parte do Réu Recorrente foi realizada por compra àquele CCC, depreendendo-se ter sido este a receber o preço pago.
No que concerne á factualidade em equação, a sentença apelada fundamentou o juízo negativo adoptado, nos seguintes termos: “b) no que se prende com os factos discriminados em 2 - e 3 - como não provados: da circunstância de resultar do depoimento da testemunha FFF, arrolada pelo Réu BBB, ter resultado claro que o interveniente CCC se limitou a ser uma das pessoas que mostrou o carro àquele demandado, tendo consigo os documentos do mesmo, não tendo sido produzida qualquer prova quanto à alegada qualidade de comerciante, designadamente de automóveis, desse interveniente ou deu proprietário do veículo”. Apreciando:
O Tribunal procedeu á total audição do depoimento prestado pela testemunha FFF, que se identificou como gestor de frotas, prestando serviços para várias firmas, possuindo ainda oficinas e procedendo à venda de automóveis. Mencionou, ainda, ser amigo do Réu BBB, pretendendo ajudá-lo.
A parte transcrita do depoimento corresponde às declarações prestadas aquando da inquirição operada pelo Ilustre Mandatário do Réu BBB, que arrolou tal testemunha.
Para além de tais declarações, idoneamente transcritas, referenciou, ainda, não se recordar quem era o proprietário da viatura, que verificaram a declaração de venda e um papel donde constava inexistirem ónus sobre o veículo e que o negócio foi proposto e efectuado pela Dona GGG, que trabalhava na M... e que costumava arranjar negócios com veículos, tendo-o contactado a si, pelo que o BBB comprou o veículo através de si, o que considera normal.
Mencionou, ainda, que o BBB tinha dois stands de automóveis, que adquiriu a viatura para si e que desde logo a registou.
Ora, do teor da globalidade das declarações prestadas não é possível concluir nos termos reclamados pelo Impugnante Réu, ou seja, que o Réu BBB tenha adquirido o veículo ao ora Interveniente CCC.
Aliás, o papel desempenhado por este surge fluído e impreciso, tendo alegadamente estado presente aquando da outorga do negócio, e transportando a documentação, nunca decorrendo do depoimento prestado que o negócio tenha sido feito com o identificado CCC, mencionando inclusive a testemunha, de forma expressa, não se recordar quem era o proprietário do veículo.
Pelo contrário, do próprio depoimento o papel mais activo na outorga do negócio é atribuído à tal Dona GGG (R… ?), não se podendo concluir que o papel desempenhado por aquele Interveniente fosse além de acompanhante e portador da documentação.
O que não permite, claramente, concluir nos termos reivindicados pelo Impugnante Réu, mas antes se confirmando o teor da fundamentação/motivação feita constar na sentença recorrida.
Donde, improcede a presente impugnação da matéria factual, mantendo-se o ponto 2 da matéria de facto não provada nos seus precisos termos, num juízo de não acolhimento, neste segmento, das conclusões recursórias formuladas.
II) DA VERIFICAÇÃO DE ERRO DE JULGAMENTO NA SUBSUNÇÃO JURÍDICA EXPOSTA NA DECISÃO RECORRIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS Do Recurso 2 apresentado pelo Réu AAA
o Apelante Réu questiona a sentença proferida na parte em o condenou, aludindo a uma alegada inércia da Autora.
Referencia, nomeadamente, que perante o incumprimento da 1ª Ré, a Autora tentou contactá-la, mas sem sucesso, tendo requerido, em 20/05/2010, “à Conservatória de Registo de Automóveis de Lisboa que lhe fosse certificado qual o proprietário e quais os ónus ou encargos que incidiam sobre o veículo de matrícula XX-XX-XX, bem como todos os documentos que tivessem servido de suporte a tais actos”.
Acrescenta que a certidão emitida pela Conservatória de Registo Automóvel foi emitida em 15/06/2010, da qual constava que a propriedade do veículo “se encontrava registada a favor do Réu BBB, através da ap. nº. 04154, de 15.3.2010”, e que, não obstante tal conhecimento, apenas em 01/09/2010 “dirigiu à primeira Ré para a morada constante do acordo, carta a comunicar o débito que, na altura, ascendia a 12.058,89 Euros e que, não tendo a Ré correspondido eficazmente aos compromissos assumidos nos últimos contactos, considerava esgotadas quaisquer outras negociações que permitissem a continuidade do acordo em causa e que, por isso, o resolvia”.
Questiona, assim, a forma como a Autora quis acautelar o seu direito de propriedade, o facto de não ter intentado providência cautelar para a retoma da viatura, contrariamente ao usual, e o facto do Tribunal ter concluído que a maior prejudicada foi a Autora, desprezando por completo os Réus “que por culpa da inércia desta se viram arrastados e incomodados desde 2010”.
Pretende, assim, num juízo de provimento do recurso, a alteração da decisão proferida.
Por muito que indaguemos, não descortinamos fundamentos jurídicos na presente apelação, conducente à reclamada alteração da decisão proferida.
Efectivamente, o Réu Apelante limita-se a reproduzir um quadro factual em que aponta uma alegada inércia da Autora em não ter providenciado anteriormente pela tutela e salvaguarda dos seus direitos, mas sem aludir ou justificar como tal afectou a sua posição substantiva ou causou-lhe a responsabilidade que subjaz à sua condenação.
Com efeito, não se olvide que o quadro factual pelo mesmo alegado, consubstanciado nos artigos 8º a 15º da sua contestação, não mereceu qualquer prova – cf., o facto não provado 1 –, defendendo naquele ser totalmente alheio a qualquer intervenção nas alienações do veículo automóvel em equação.
Por outro lado, olvida, ou parece olvidar, que tendo a Autora outorgado com a 1ª Ré um contrato de locação financeira relativo ao mesmo veículo, perante o incumprimento desta, urgia seguir determinados trâmites, através de interpelações, concessões de prazos e procura de resolução da questão mesmo antes de recurso à via judicial, o que é perfeitamente compreensível e admissível que, surgindo o incumprimento no final de 2009, a resolução contratual apenas tenha operado aproximadamente 9 meses depois, em Setembro de 2010, pois, ademais, sempre cumpriria converter em cumprimento definitivo a situação de mora em que a locatária, ora 1ª Ré, havia incorrido.
Ademais, não logra o Apelante alegar ou justificar como tal invocada delonga temporal possa ter afectado a sua posição, ou lhe possa ter causado prejuízo, quando é certo que os registos de propriedade a favor da 1ª Ré, do 2º Réu e do 3º Réu, iniciam-se em Fevereiro de 2010, sendo que, logo no mês seguinte – Março – já se encontravam requeridos os registos a favor de tais Réus.
Por todo o exposto, e inexistindo quaisquer outros fundamentos enunciados, com um mínimo de juridicidade, pertinentes ao questionar da sentença apelada, improcedem, in totum, as conclusões recursórias enunciadas pelo Recorrente/Apelante/Réu AAA. Dos Recursos 1 e 3 apresentados, respectivamente, pelo Interveniente [...], Lda. e pelo Réu BBB
Relativamente à Recorrente [...], Lda. – Recurso 1 -, as questões enunciadas são as seguintes:
a) da incorrecta aplicação do direito ;
b) da não aplicabilidade do artº. 291º, do Cód. Civil ;
c) da aplicabilidade do artº. 17º, nº. 2, do Cód. do Registo Predial, ex vi do artº. 29º, do Cód. do Registo Automóvel ;
d) da manutenção da validade do registo de propriedade a favor da Recorrente
Argumenta a presente Apelante que o artº. 291º, do Cód. Civil não é aplicável ao caso sub júdice, mas antes o estatuído no artigo 17.º n.º 2 do Código Registo Predial ex vi artigo 29.º do Código do Registo Automóvel.
Desta forma, acrescenta, “a declaração de nulidade do registo de aquisição a favor da A. nunca poderá implicar a nulidade ou o cancelamento do registo a favor da ora recorrente, na medida em que se verificam todos os requisitos exigidos por aquela disposição: - aquisição do direito a título oneroso; - boa fé do terceiro, como aliás, resulta da sentença; - prioridade do registo dos correspondentes factos relativamente ao registo da acção de nulidade e cancelamento”.
Justificando-o, aduz que “o artigo 17.º n.º 2 CRP vem precisamente no seguimento do artigo 16.º que determina na sua alínea a) que o registo é nulo quando tiver sido lavrado em títulos falsos, que é precisamente o caso dos presentes autos!”.
Pelo que, tendo a ora Recorrente adquirido de “boa fé, fazendo-o com base no registo, ocorre de imediato a situação que o Professor Oliveira Ascensão denomina por “efeito atributivo do registo”: o negócio anterior é nulo e nulo permanece (nomeadamente na venda de bem alheio), mas o terceiro de boa fé recebe na sua esfera jurídica um direito que se tornou inquestionável, face à fé pública do registo e à norma expressa do artigo 17 n.º 2 CRP”.
Donde, conclui, sendo esta a situação em equação, “deve ser reconhecido o direito de propriedade da recorrente, por aplicação do disposto no artigo 17 n.º 2 do Código do Registo Predial ex vi artigo 29.º do Código do Registo Automóvel e ser revogada a douta sentença”.
Na resposta apresentada, a Apelada Autora defende o teor da decisão proferida, referenciando ser indubitável que “verificando-se a falsificação das assinaturas constantes do requerimento de registo automóvel, a 1.ª Ré não tinha legitimidade para realizar a venda do veiculo em questão”, pois, “sendo nula a primeira venda…, nulas são, consequentemente, as demais vendas outorgadas.”.
Assim, aduz, a Interveniente não podia “adquirir de forma legítima um veículo que não fora vendido pela Autora à primeira Ré”, citando entendimento jurisprudencial no sentido de que “o conceito de terceiro para efeito do registo não coincide com o conceito de terceiro a que se reporta o artigo 291º do Código Civil, porque na primeira situação o conflito é entre dois adquirentes do mesmo transmitente e, na segunda, o conflito ocorre entre o primeiro transmitente e o último subadquirente, numa cadeia de negócios inválidos”.
Por sua vez, relativamente ao Recorrente BBB – Recurso 3 -, as questões enunciadas, sendo parcialmente coincidentes, são as seguintes:
a) da alegada não prova do registo da presente acção, impossibilitando a verificação da situação inscrita no nº. 2, do artº. 291º, do Cód. Civil ;
b) do não registo da acção no prazo de 3 anos ;
c) da aplicabilidade do nº. 2 do artº. 17º do Cód. de Registo Predial ;
d) da inconstitucionalidade material da decisão.
Referencia o Réu Apelante resultar dos documentos que lhe foram apresentados “a regularidade do registo a favor de quem assinou a declaração de venda a seu favor, tudo através de uma sucessão de documentos com reconhecimento e certificação legal da sua validade”, tendo os Réus apresentado “títulos de aquisição com datas posteriores à inscrição do direito da autora no registo e registaram tais aquisições, posteriormente, como resulta dos documentos juntos aos autos, sendo que a ação cuja decisão ora se sindica foi intentada em momento posterior ao registo de aquisição efetuado a favor do r. ora recorrente”.
Acrescenta que a “presente ação não foi proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio cuja declaração de nulidade se pretende”, delimitando a questão a apreciar como “em saber se os direitos adquiridos pelos réus, são prejudicados em consequência do vício que está na sua base, mais concretamente o negócio de compra e venda de bem alheio”.
Em contraposição com o prescrito no artº. 291º, do Cód. Civil, defende a aplicabilidade do estatuído no nº. 2, do artº. 17º do Cód. do Registo Predial, através do qual “a declaração de nulidade do registo de aquisição a favor do 1.° réu nunca poderá implicar a nulidade ou o cancelamento do registo de aquisição a favor do 3.º réu, ora recorrente”, pois, “sendo o registo automóvel dotado de fé pública, com a inerente presunção de verdade, por atuação de um princípio de legalidade substancial, logrando mesmo desencadear a aquisição de direitos dominiais”, decidindo-se, assim, em clara preterição do disposto naquele nº. 2, do artº. 17º, do Cód. do Registo Predial.
Por fim, defende que a decisão apelada “não integrando o disposto nos artigos 5.° n.º 1 e 4 do mesmo diploma legal (….), incorre numa inconstitucionalidade material, já que é esta violadora dos princípios da boa-fé nos negócios, na publicidade do registo da equidade e da justiça, por preterição do disposto dos art°s 12.°, 13.°, 204.° e 277.° da Constituição da República Portuguesa”.
Na resposta contra-alegacional, a Recorrida Autora referencia que, contrariamente ao aduzido, a acção encontra-se devidamente registada, inexistido dúvidas quanto ao preenchimento do nº. 2, do artº. 291º, do Cód. Civil, que afasta o reconhecimento do direito de terceiro.
Acrescenta que o “veículo foi vendido através de um requerimento de registo automóvel com recurso a assinaturas falsificadas”, pelo que o Recorrente nunca o adquiriu de forma legítima, pois não o fez ao seu legítimo proprietário.
Conclui, citando jurisprudência (já anteriormente referenciada), defendendo a improcedência do recurso, pois “o conceito de terceiro para efeito do registo não coincide com o conceito de terceiro a que se reporta o artigo 291º do Código Civil, porque na primeira situação o conflito é entre dois adquirentes do mesmo transmitente e, na segunda, o conflito ocorre entre o primeiro transmitente e o último subadquirente, numa cadeia de negócios inválidos”.
Analisemos, esquematicamente, o juízo expresso na sentença sob sindicância:
- a Autora (RCI Gest, S.A.) cedeu á 1ª Ré o veículo através da outorga, entre ambas, de um contrato de locação financeira, que a 1ª Ré (Cooperativa Agrícola, CRL) incumpriu, ao não pagar as prestações acordadas ;
- tal contrato acabou por ser resolvido pela Autora locadora, donde resulta claramente não lhe ter a 1ª Ré adquirido o veículo, sendo pacífica a falsificação das assinaturas apostas nos documentos de fls. 253 e 254 (documento único automóvel e declaração de reconhecimento de assinatura de alegada procuradora da Autora locadora) ;
- incumbia à 1ª Ré locatária o ónus probatório de ter cumprido as obrigações contratuais de correntes da outorga do contrato de locação financeira, o que não fez, não tendo, sequer, alegado o cumprimento ;
- é evidente a nulidade da venda do veículo pela 1ª Ré ao 2º Réu (AAA), bem como as subsequentes vendas efectuadas:
Ø do 2º Réu ao 3º Réu (BBB) ;
Ø do 3º Réu à Interveniente ([...], Lda.) ;
- efectivamente, a 1ª Ré não adquiriu a propriedade do veículo em causa, pelo que também não podia transferir ou transmitir a propriedade sobre o mesmo ao 2º Réu, nem este, nem o 3º Réu podiam, sucessivamente, transmitir uma propriedade que não adquiriram, por a primeira transmissão registada não ser válida ;
- donde, sendo nula a primeira venda (efectuada entre a 1ª Ré e o 2º Réu), são nulas as consequentes vendas outorgadas entre o 2º e 3 Réus, e entre este e a Interveniente [...], Lda. ;
- por outro lado, o disposto no artº. 291º, do Cód. Civil é inaplicável à suposta boa-fé do 3º Réu e da Interveniente, pois, o 3º Réu não podia adquirir de forma legítima um veículo que não fora vendido pela Autora à 1ª Ré, nem por esta ao 2º Réu ;
- pois, os direitos do 3º Réu e da Interveniente nunca poderiam sobrepor-se aos direitos da demandante Autora, atento o facto do registo da presente acção ter sido efectuado antes do decurso de 3 anos sobre as vendas em causa nos autos ;
- efectivamente, todos os alegados contratos de compra e venda tiveram lugar entre Novembro de 2009 e Março de 2010, tendo a acção sido registada em 20/02/2012 ;
- não tendo a 1ª Ré adquirido da Autora o bem, a venda efectuada ao 2º Réu é nula, por se tratar de venda de bem alheio, o que determina a consequente nulidade das vendas subsequentes (do 2º Réu ao 3º Réu e deste à Interveniente) – cf., artigo 892º, do Cód. Civil, em conjugação com os artigos 286º e 291º, ambos do mesmo diploma ;
- pelo que, desta forma, tem a Autora direito a ver declarada a nulidade das compras e vendas em equação, a ver cancelado o registo de propriedade dos Réus e Interveniente sobre o veículo, a efectuar o registo de propriedade a seu favor e a obter a condenação da Interveniente [...], Lda., a restituir-lhe o veículo, em bom estado de conservação ;
- todavia, no que concerne ao Interveniente CCC, não se provando que o mesmo tenha efectuado a venda do veículo ao 3º Réu, o juízo é de improcedência da acção ;
- por fim, no que concerne aos pedidos deduzidos pelo 3º Réu (BBB) e Interveniente ([...], Lda.), no sentido da Autora dever depositar o valor pago pelo 3º Réu na aquisição e pela Interveniente a este, nos termos do artº. 1301º, do Cód. Civil, o juízo é de total improcedência ;
- com efeito, por um lado, não se provou a aquisição da viatura pelo 3º Réu ao Interveniente CCC (ou que este fosse comerciante de automóveis, ou qual o valor alegadamente pago a título de preço) ;
- por outro, na venda efectuada pelo 3º Réu à Interveniente [...], Lda., aquele não o podia ter vendido na qualidade de comerciante, porquanto o havia adquirido para o seu uso pessoal e não para venda comercial ;
- ademais, não se provou, no que concerne à Interveniente [...], Lda., que o 3º Réu tenha agido, ao proceder á venda do veículo, na qualidade de comerciante, nem qual o preço que lhe pagou ao 3º Réu e ou à financiadora para a compra da viatura ;
- acresce que às vendas em equação não é aplicável o disposto naquele artº. 1301º, do Cód. Civil, sendo discutível na jurisprudência a aplicabilidade daquele normativo aos bens móveis sujeitos a registo.
Ora, exposto o juízo em crise nos recursos interpostos, vejamos o principal quadro legal a ponderar:
No âmbito do contrato de compra e venda, e prevendo acerca da venda de bens alheios, estatui o artº. 892º, do Cód. Civil, ser “nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar; mas o vendedor não pode opor a nulidade ao comprador de boa fé, como não pode opô-la ao vendedor de boa fé o comprador doloso”.
Por sua vez, prevendo acerca da nulidade do negócio jurídico, aduz o artº. 286º, do mesmo diploma, ser a mesma “invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal”.
O nº. 1, do artº. 289º, ainda do mesmo diploma, ajuizando acerca dos efeitos da declaração de nulidade e da anulação, referencia que “tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente”.
O artº. 291º, igualmente do Cód. Civil, dispondo acerca da inoponibilidade da nulidade e da anulação, procedendo à conjugação da tutela da boa-fé e de um efeito lateral do registo, prescreve que: “1. A declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a móveis sujeitos a registo, não prejudica os direitos adquiridos sobre os mesmos bens, a título oneroso, por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio. 2. Os direitos de terceiro não são, todavia, reconhecidos, se a acção for proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio. 3. É considerado de boa fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável”.
Ponderável é, igualmente, o prescrito no artº. 17º do Cód. do Registo Predial – DL nº. 224/84, de 06/07 -, aplicável ex vi do artº. 29º, do Cód. do Registo Automóvel – DL nº. 54/75, de 12/02 -, que, prevendo acerca da declaração de nulidade, dispõe que: “1 - A nulidade do registo só pode ser invocada depois de declarada por decisão judicial com trânsito em julgado. 2 - A declaração de nulidade do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé, se o registo dos correspondentes factos for anterior ao registo da ação de nulidade. 3 - A ação judicial de declaração de nulidade do registo pode ser interposta por qualquer interessado e pelo Ministério Público, logo que tome conhecimento do vício”.
Referenciam Pires de Lima e Antunes Varela [9] consagrar o artº. 291º “um desvio do princípio geral sobre nulidade ou anulabilidade expresso no artigo 289º, quando esteja em causa a restituição de bens imóveis ou de móveis sujeitos a registo, «na medida em que permite ao titular da inscrição efectuada no registo, embora só a partir de certo período posterior á conclusão do contrato nulo ou anulável, fazer prevalecer o seu direito (real) referente ao imóvel ou ao móvel sujeito a registo sobre o direito, relativo à mesma coisa, do beneficiário da nulidade ou da anulação»”.
Acrescentam que o nº. 2 do mesmo normativo está em harmonia com a regra geral, “pois não se reconhecem os direitos de terceiro constituídos sobre as coisas a restituir, mesmo que haja registo de aquisição anterior ao registo da acção de nulidade ou de anulação, se esta for proposta e registada dentro do prazo de três anos”, sendo que, “decorrido este prazo, são protegidas as aquisições a título oneroso por terceiro de boa fé, se o registo da aquisição for anterior ao registo da acção”.
Ora, é certo que o “negócio nulo não produz, desde o início (ab initio), por força da falta ou vício de um elemento interno ou formativo os efeitos a que tendia”.
E, acrescente-se, a “retroactividade da nulidade e da anulação, levada às suas últimas consequências lógicas, conduziria à oponibilidade da destruição dos efeitos do negócio em face de terceiros”.
Assim, o actual Código Civil resolveu tal problema da oponibilidade da nulidade e anulabilidade a terceiros “de forma original, através de um sistema de compromisso entre os interesses que estão na base da invalidade e os interesses legítimos de terceiros e do tráfico”. Estabeleceu-se, desta forma, “que a declaração de nulidade ou a anulação do negócio respeitante a bens sujeitos a registo, se não for proposta e registada nos três anos posteriores á conclusão do negócio, é inoponível a terceiros de boa fé, adquirentes, a título oneroso, de direitos sobre os mesmos bens” [10].
Referencia Ana Prata [11] que, em bom rigor, a declaração de nulidade não tem efeito retroactivo, pois, “se o negócio é nulo, nunca produziu efeitos, pelo que não há efeitos a destruir, retroactivamente ou não. Há, simplesmente, o dever de restituir o que foi recebido – pois que foi recebido na sequência de um negócio jurídico nulo – e o direito a receber o que foi prestado” [12].
Assim, se o negócio nulo não produziu efeitos, “está bem de ver que quaisquer direitos adquiridos por terceiro na sequência de tais negócios inválidos são também destruídos”, sendo que um tal regime, “como é evidente, não dá qualquer protecção às posições jurídicas putativamente adquiridas por terceiros de boa fé, isto é, aqueles que desconheciam – sem que tivessem o dever de conhecer – o vício do negócio jurídico”.
E, daí, que o citado artº. 291º, do Cód. Civil tenha vindo, relativamente a certos negócios jurídicos, estabelecer “um regime de protecção dos referidos terceiros de boa fé, verificados que estejam, cumulativamente, certos pressupostos”.
Deste modo, e em primeiro lugar, “não são protegidos todos os terceiros de boa fé, mas apenas os que adquiram direitos sobre coisas imóveis ou coisas móveis sujeitas a registo”.
Em segundo lugar, “só são protegidos os terceiros de boa fé que tiverem adquirido tais direitos a título oneroso”.
Em terceiro lugar, e por último, “os direitos do terceiro nunca são protegidos nos três anos posteriores à conclusão do negócio inválido ; e, após esses três anos, só o são se o registo da aquisição do direito do terceiro anteceder o registo de uma eventual ação judicial que peça a declaração de nulidade ou a anulação do negócio inválido, ou se anteceder o registo de um eventual acordo a que as partes tenham chegado sobre a invalidade do negócio”.
Acrescenta a mesma Autora que este último requisito permite a adopção de “uma solução equilibrada, que atende, por um lado, à proteção de terceiros de boa fé (os únicos que poderiam ser surpreendidos com as consequências destrutivas da anulação ou da declaração de nulidade de um negócio jurídico anterior inválido) ; e que, por outro, não deixa desprotegidos os interessados na invocação dos vícios do negócio jurídico inválido”.
Desta forma, “durante os três primeiros anos de vida do negócio jurídico inválido, encontra-se na idade de ser impugnado: quaisquer interessados na invocação dos vícios do negócio disporão deste prazo para o impugnar, e, fazendo-o, verão a declaração de nulidade ou a anulação surtir plenos efeitos, quer entre as partes quer perante terceiros. Após esses três anos, é ainda possível aos interessados obter a declaração de nulidade ou a anulação do negócio com pleno êxito – mas se, e só se, não houver já um registo de aquisição, por terceiro, de algum direito sobre a coisa objecto do negócio”.
Por fim, citando Rui de Alarcão [13] , clarifica que “dentro deste prazo – prazo de caducidade – dá-se prevalência, portanto, aos interessados na nulidade ou na anulação ; depois de transcorrido ele, têm prevalência […..] os interesses de terceiros, que poderão ter toda a confiança na validade das suas aquisições” [14].
Em termos jurisprudenciais, afigura-se-nos com particular ênfase o entendimento exposto no douto Acórdão do STJ de 19/04/2016 [15] que, após enunciar a questão a apreciar – saber se um negócio nulo, por falta de legitimidade para transferir a propriedade por parte do alienante e as subsequentes alienações às quais se estende a nulidade do negócio primitivo, são ou não oponíveis ao verdadeiro proprietário, que não foi parte naqueles negócios, assistindo-lhe o direito de reivindicar a coisa, em quaisquer circunstâncias, apesar do registo a favor dos ulteriores adquirentes, não sendo aplicável o regime estabelecido no art. 291.º do Código Civil -, aprecia situação com evidente pertinência para a reapreciação em equação.
Realçando a inovação do artº. 291º, introduzida pelo Cód. Civil de 1966, realça que, tendo sido “introduzida num país de registo declarativo e que até há pouco tempo era facultativo, não pode assumir o mesmo significado que assume na ordem jurídica alemã, em que o registo é constitutivo”.
Pelo que, o facto de tal normativo se enquadrar “num sistema de registo declarativo, de mera condição de oponibilidade em face de terceiros, nos termos do art. 5.º do CRPred. (aplicável ao registo automóvel), limita o seu âmbito de aplicabilidade, o qual não pode ser semelhante ao princípio da fé pública do registo no direito alemão”.
Desta forma, o registo automóvel, tal como o registo predial “não supre os vícios do título, ou seja, não supre outros vícios para além da falta de legitimidade do alienante, resultante de uma alienação ou oneração anterior não registada. Neste sentido, o registo não garante ao adquirente que o prédio pertence ao transmitente e não a outrem nem assegura a bondade dos títulos inscritos ou do ato de inscrição. A ser de outro modo, qualquer pessoa, mesmo que tivesse registado o respetivo facto constitutivo, poderia vir a ser expropriada dos seus bens, se alguém conseguisse registar um título falso e posteriormente alienasse o «pseudo-direito» a terceiro de boa fé que registasse a aquisição, o que representaria uma insegurança demasiado grande nas posições jurídicas estáticas” [16].
Pelo que, na situação de dupla alienação do mesmo bem, “os chamados efeitos centrais do registo (Orlando de Carvalho, «Terceiros para efeitos de registo», BFD, Vol. LXX,1994, p. 101), a prioridade da inscrição registal não protege o terceiro adquirente, se este adquirir de um sujeito que nunca foi proprietário do bem. O registo visa assegurar, não a titularidade efetiva do alienante, mas apenas que o direito a ter existido, ainda se conserva (Vaz Serra, «Hipoteca», BMJ, n.º 62, Jan. 1957, p.7)” (sublinhado nosso).
Explicita, então, ter sido o registo “introduzido em Portugal para constituir um instrumento de pressão à inscrição dos negócios aquisitivos ou constitutivos de direitos reais, acompanhado da consequente sanção para quem não registasse – a inoponibilidade do ato perante terceiros – sanção que criava, nos casos da dupla alienação ou oneração do mesmo bem, o risco da perda do direito a favor de um terceiro de boa fé que registasse em primeiro lugar. Contudo, está ao alcance do titular do direito evitar a perda do seu direito, procedendo ao registo da sua aquisição”.
Sendo que, o mesmo registo nunca teve por finalidade, “nas ordens jurídicas em que assume natureza declarativa, constituir um instrumento de proteção perante os vícios do ato inscrito, decorrentes de uma invalidade substancial do próprio ato ou de outro ato anterior da cadeia de negócios” (sublinhado nosso).
Seguidamente, após enunciar a função do artº. 291º e quais os requisitos necessários ao seu preenchimento, acrescenta que tal norma visa “resolver um problema de conflito de direitos entre o primeiro alienante, o verdadeiro proprietário, e o terceiro sub-adquirente de boa fé, que desconhecia, sem culpa, o vício do negócio, atuou de forma honesta e com a diligência exigível no tráfico jurídico e registou a sua aquisição”, sendo que o contrato “entre o alienante não legitimado (que celebrou o primeiro negócio inválido com o verdadeiro titular do direito) e o terceiro de boa fé não pode padecer de outra causa de invalidade para além da falta de titularidade do alienante” (sublinhado nosso).
Todavia, ressalva-se, a intenção legal “foi a de não levar demasiado longe a protecção de terceiros, pois tal significaria um sacrifício grave dos interessados na nulidade ou na anulabilidade, para além de ter sido considerado que o nosso sistema registal não oferece as garantias de exactidão que oferecem outros sistemas, como o alemão”, pelo que usou “um conceito ético de boa fé, excluiu a protecção dos terceiros adquirentes a título gratuito e consagrou um período de carência de três anos (art. 291.º, n.º 2)”.
Desta forma, acrescenta, citando Maria Clara Sottomayor [17], que “o método que fundamentou a decisão legislativa, relativamente a esta questão, terá sido o da ponderação conjunta dos interesses do proprietário na reivindicação do bem, do interesse do terceiro e do interesse colectivo da segurança do tráfico jurídico, que é também, indirectamente, o interesse do proprietário na facilidade de circulação dos seus direitos. A tutela do interesse do proprietário está limitada a um período de três anos decorridos após a conclusão do negócio inválido. A lei pretende, com este prazo, dar uma oportunidade ao verdadeiro proprietário para repor a verdade jurídica material, considerando que, após o decurso do prazo, o seu interesse deixa de merecer protecção. O centro do raciocínio do legislador é o comportamento do verdadeiro titular, justificando-se o sacrifício do direito deste, na sua própria negligência ou inércia em impugnar o negócio inválido, durante um período de três anos, após a sua conclusão».
«(…) o fundamento do art. 291.º é a estabilidade dos negócios jurídicos, sofrendo o alienante que deu origem à cadeia de negócios inválidos as consequências de não ter actuado, dentro do prazo de três anos, interpondo a acção de nulidade ou de anulação. A lei faz uma conciliação entre os interesses do verdadeiro proprietário, que pode impor a realidade jurídico-material ao terceiro, durante um prazo de três anos, a contar da data da conclusão do negócio inválido, e os do terceiro sub-adquirente, interessado em salvaguardar a sua aquisição dos efeitos retroactivos da invalidade»”.
Todavia, e esta é a verdadeira pedra de toque em equação, esta protecção conferida pelo artº. 291º, do Cód. Civil apenas opera “quando o verdadeiro titular do direito dá origem à cadeia de negócios que vai culminar com a aquisição onerosa de terceiro adquirente de boa fé. A aquisição a non domino prevista no art. 291.º, n.º 1 do Código Civil não permite que, através da intervenção de um terceiro que obtenha um registo falso ou baseado em títulos falsos, fique sanada a nulidade negocial derivada da cadeia transmissiva assim gerada, pois tal solução seria equivalente a admitir a expropriação do verdadeiro titular que não terá meios para se aperceber da fraude por não ter praticado qualquer negócio jurídico que desse origem à cadeia de negócios inválidos”.
Desta forma, “dentro da lógica de um registo meramente declarativo, o art. 291.º do Código Civil não protege o terceiro adquirente que beneficia dos requisitos do n.º 1, caso não tenha sido o verdadeiro proprietário a iniciar a cadeia de negócios nulos, como parte do primeiro negócio inválido”, pois, para funcionar aquela protecção “a cadeia de negócios inválidos tem que ser iniciada pelo verdadeiro proprietário, não estando abrangida no seu âmbito de aplicação a situação em que um sujeito obtém um registo falso e aliena o bem a um terceiro” (sublinhado nosso).
Por sua vez, o douto Acórdão do STJ de 27/04/2005 [18], começando por realçar que o registo tem apenas valor declarativo e não eficácia constitutiva, acrescenta que a “presunção derivada do registo automóvel, decorrente das disposições conjugadas dos arts 29 do dec-lei 54/75, de 12 de Fevereiro, e do art. 7 do Cód. Reg. Predial, é uma mera presunção "juris tantum ", ilidível mediante prova em contrário.
Tal prova pode resultar da nulidade do próprio registo ou da invalidade do acto substantivo inscrito (Antunes Varela, R.L.J. Ano 118- 307).
O art. 5, nº1, do C.R.P. , aplicável à aquisição de veículos automóveis, estabelece o principio geral de que "os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo ".
Entre esses factos, incluem-se os factos jurídicos que determinem a aquisição do direito de propriedade - art. 2, nº1, al. a).
E, para efeito do referido art. 5, nº1, são considerados terceiros aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si, como foi definido pela jurisprudência do Acórdão uniformizador do S.T.J. nº 3/99, de 18-5-99, que depois veio a ser consagrada no nº4, do mesmo art. 5, na redacção introduzida pelo dec-lei 533/99, de 11 de Dezembro”.
Seguidamente, ao estabelecer a conjugação entre o enunciado artº. 17º, nº. 2, do Cód. do Registo Predial e o artº. 291º, do Cód. Civil, esclarece que este “está em vigor, não tendo sido revogado pelos arts 5, nº1 e 17, nº2, do C.R.P., pelas razões já sobejamente evidenciadas no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 14-11-96 Col. Ac. S.T.J., IV, 3º, pág. 104).
De resto, a plena vigência do mencionado art. 291 da lei civil é aceite pela generalidade da doutrina (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed, pág. 267 ; Antunes Varela, R.L.J. Ano 118- 310 ; Mota Pinto, Teoria Geral de Direito Civil, 3ª ed, pág. 617; Menezes Cordeiro, Direitos Reais, I, 1979, pág. 383 e segs) ; Heinrich Horst, Rev. de Dir. e Economia, Ano 8º, pág. 136 e segs )”.
Por fim, citando Antunes Varela [19], acrescenta que "os efeitos extintivos característicos da nulidade ou anulação (do contrato) mantém-se plenamente durante os três anos posteriores à conclusão do negócio impugnado, desde que a acção, estando sujeita a registo, seja efectivamente registada.
Passado, no entanto, esse período de defeso cerrado, se o contrato nulo ou anulado respeitar a bens imóveis (ou a móveis sujeitos a registo), e esses bens tiverem sido alienados ou onerados a favor de terceiro, que tenha registado a sua aquisição, os efeitos da nulidade ou anulação podem ter que ceder perante o direito do terceiro adquirente.
Bastará para tal que o registo da aquisição de terceiro seja anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação, que a aquisição tenha sido a título oneroso e que o adquirente tenha agido de boa fé ".
Logo a seguir, o insigne Professor Antunes Varela acrescenta que a disciplina instituída pelo citado art. 291 do Cód. Civil pode, assim, ser retratada sob um duplo prisma de observação ( obra e local cit.): " Por um lado, a disposição legal confirma a falta de valor constitutivo (autónomo) do registo, na medida em que durante os três anos posteriores à conclusão de qualquer contrato não defende o titular do direito formalmente inscrito nos livros do registo predial contra os efeitos da nulidade ou da anulação do contrato que tenha servido de pressuposto à sua aquisição ".
" (...) Por outro lado, o preceito legal representa uma primeira e significativa conquista do registo contra o regime tradicional da nulidade ou anulação, na medida em que permite ao titular da inscrição efectuada no registo, embora só a partir de certo momento posterior à conclusão do contrato nulo ou anulável, fazer prevalecer o seu direito (real) referente ao imóvel ou ao móvel sujeito a registo sobre o direito, relativo à mesma coisa, do beneficiário da nulidade ou anulação ".
E conclui: A nova disciplina formulada no art. 291 do Cód. Civil (...) " não representa uma limitação à força anteriormente atribuída ao registo, mas, bem contrário, um triunfo, uma vitória, uma conquista em suma (embora limitada e condicionada) do registo sobre a eficácia (extintiva ou destruidora) reconhecida no direito anterior à declaração de nulidade (absoluta ou relativa)”.
Aqui chegados, neste excurso argumentativo, a questão nuclear que se coloca é mesmo a de saber e apurar se a solução jurídica pertinente ao caso concreto não passa pela concreta aplicabilidade do artº. 291º, do Cód. Civil, mas antes pela estrita aplicabilidade do regime da venda de bens alheios, atenta a prova concreta de que não foi a Autora locadora, verdadeira proprietária do veículo, a iniciar a cadeia dos negócios nulos subsequentes. Ou seja, e como constatámos, para que aquela protecção do artº. 291º pudesse funcionar, o encadeamento dos negócios inválidos teria que ser iniciada pelo verdadeiro proprietário, isto é, a ora Autora Apelada, o que não sucedeu, antes se radicando em situação de obtenção de um registo falso e consequente alienação a terceiro.
Efectivamente, não tendo sido a Autora a iniciar tal cadeia transmissiva, as sucessivas alienações e onerações do veículo automóvel sempre seriam, perante si, ineficazes, por ser a verdadeira proprietária do mesmo.
Ora, idêntica solução foi igualmente sufragada pelo douto aresto do STJ de 06/12/2018 [20], ao defender-se o entendimento de que “a protecção conferida ao adquirente pelo artigo 291º do Código Civil pressupõe que “a cadeia de negócios inválidos” foi desencadeada “pelo verdadeiro proprietário””.
Assim, surge evidente que “a alienação de coisa alheia como própria é ineficaz em relação ao verdadeiro proprietário”, o que determina a irrelevância da invocação do estatuído nos artigos 291º, do Cód. Civil ou 17º, nº. 2, do Cód. do Registo Predial.
E, conclui, aduzindo ter já o Supremo Tribunal de Justiça se pronunciado diversas vezes “ no sentido de que o disposto no artigo 291º do Código Civil, que excepciona dos efeitos retroactivos da declaração de nulidade ou da anulação certas aquisições inválidas (cfr. nº 1 do artigo 289º do Código Civil), fazendo-as subsistir, não se aplica em caso de ineficácia do acto, como sucede, em relação ao verdadeiro proprietário, com a venda de coisa alheia. Assim por ex., os acórdãos de 16 de Novembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 42/2001.C1.S1, de 29 de Março de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 2442/05.8TBVIS.C1.S1 ou de 1 de Agosto de 2015, www.dgsi.pt, proc. nº 129/11.0TCGMR.G1.S1” (sublinhado nosso).
Por fim, em termos jurisprudenciais, referenciemos, ainda, o entendimento sufragado no douto Acórdão da RG de 27/10/2016 [21], que apreciou situação factícia com evidentes semelhanças ao caso sub júdice.
Balizando-se a questão em controvérsia como a averiguação dos efeitos da nulidade de negócio da venda de bem alheio em relação a terceiros de boa fé, bem como qual o campo de aplicação do prescrito nos artigos 291º, do Cód. Civil e 17º, do Cód. do Registo Predial, começa por referenciar que procedendo uma das rés á venda do veículo pertencente à autora, acto para o qual carecia de legitimidade, “tal venda consubstancia uma venda de bem alheio, que é nula, nos termos do disposto no artigo 892.º do Código Civil, cabendo averiguar se os direitos adquiridos pelos restantes réus – três registos posteriores – são ou não prejudicados em consequência do vício substantivo que está na sua base.
Deve desde já dizer-se que esta venda de bem alheio, se encontra ferida de nulidade nas relações entre alienante e adquirente, mas ela é ineficaz em relação ao proprietário – veja-se Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II, 3.ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, pág. 189 “No que se refere ao verdadeiro proprietário da coisa, a venda, como res inter alios, é verdadeiramente ineficaz (anotação de Vaz Serra ao Acórdão do STJ de 21/01/1972, na RLJ, ano 106.º, pág. 26)”.
E, ressalva, não se reconduzir a situação ao caso em que “a mesma pessoa vende um bem a mais que um comprador, sendo estes terceiros para efeitos de registo, nos termos consagrados pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 3/99 “terceiros para efeitos do disposto no artigo 5.º do CRP, são os adquirentes de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa”. Não é o caso dos autos, em que se verifica uma sucessão de negócios jurídicos nulos, em que o transmitente e o adquirente são sempre diferentes”.
Afastando a aplicabilidade do consagrado no artº. 17º, do Cód, do Registo Predial, aduz que “o conceito de terceiro de boa fé para efeitos de registo (AUJ n.º 3/99, já citado), que está implícito na redação do artigo 17.º do CRP, não tem aplicação no caso dos autos, uma vez que não existe aqui uma situação de conflito entre dois adquirentes, em que um dos negócios é válido e em que se protege a confiança do adquirente nos dados constantes do registo.
O que existe é uma sucessão de negócios jurídicos nulos, em que o conflito se estabelece entre o primeiro transmitente e o último sub-adquirente, pressupondo-se, não a validade (como no caso dos terceiros para efeitos de registo), mas antes a invalidade do primeiro negócio de transmissão.
Ou seja, declarada a nulidade de um contrato de compra e venda, em simultâneo deve o comprador restituí-lo ao vendedor e este entregar àquele o respectivo preço (artigos 290º, 874º e 879º do Código Civil)” (sublinhado nosso).
Donde, conclui, sumariando, que:
1 - O art. 291.º, nºs 1 e 2 do Código Civil está em vigor, não tendo sido revogado pelos arts 5.º, nº 1 e 17.º, nº 2, do Código de Registo Predial.
2 – O conceito de terceiro para efeito do registo não coincide com o conceito de terceiro a que se reporta o artigo 291º do Código Civil, porque na primeira situação o conflito é entre dois adquirentes do mesmo transmitente e, na segunda, o conflito ocorre entre o primeiro transmitente e o último sub-adquirente, numa cadeia de negócios inválidos.
Na primeira situação é pressuposta a validade do primeiro negócio de transmissão e na segunda a sua invalidade, ali é protegida a confiança do adquirente nos dados constantes no registo, e aqui é protegida a estabilidade dos negócios jurídicos.
3 - O terceiro a que se refere o artigo 291.º do CC é protegido na medida em que lhe não pode ser oposta a nulidade do primitivo contrato de compra e venda se tiver adquirido o direito sobre imóveis a título oneroso, de boa fé, inscrito no registo predial a sua aquisição e haja decorrido um triénio sobre a data do primeiro contrato sem haver sido instaurada a acção de nulidade.
4 – Contudo, para funcionar a proteção conferida pelo art. 291.º, a cadeia de negócios inválidos tem que ser iniciada pelo verdadeiro proprietário, não estando abrangida no seu âmbito de aplicação a situação em que um sujeito obtém um registo falso e aliena o bem a um terceiro” [22][23].
Aqui chegados, urge começar a retirar conclusões:
- resulta evidente da factualidade provada não ter a 1ª Ré (Cooperativa ..., CRL) adquirido o veículo automóvel à Autora, pois o contrato celebrado entre ambas, e incumprido pela 1ª Ré, traduziu-se, apenas, no provado contrato de locação financeira ;
- tal alegada venda do veículo pela Autora à 1º Ré teve por base os documentos constantes de fls. 253 e 254, nitidamente falsificados quanto às assinaturas ali apostas, pois a Autora, por si ou por procurador, nunca autorizou ou acordou tal venda ;
- ou seja, tal alegada venda da Autora à 1ª Ré teve por base documentação falsa, sendo totalmente ineficaz perante a Autora, verdadeira dona do veículo ;
- o que determina que as posteriores vendas, nomeadamente a da 1º Ré ao 2º Réu (AAA), bem como as vendas subsequentes – do 2º Réu ao 3º Réu (BBB) e deste 3º Réu à Interveniente [...], Lda. -, são nulas, por se tratar de vendas de bem alheio, carecendo os vendedores de legitimidade substantiva para tal ;
- efectivamente, a primeira transmissão registada não era válida, pois os documentos referentes ao registo de tal aquisição mostram-se falsificados ;
- desta forma, não se coloca, sequer, a questão da aplicabilidade do juízo de protecção de terceiros de boa fé equacionado no apreciado artº. 291º, do Cód. Civil, nem o eventual preenchimento dos requisitos de tutela pelo mesmo exigíveis ;
- pois, a protecção e tutela ali conferida apenas opera quando é o verdadeiro titular do direito a dar origem á cadeia de negócios que vai culminar com a aquisição onerosa, por terceiro de boa fé ;
- o que não sucedeu in casu, pois a cadeia de negócios que envolveu os ora Réus e Interveniente – sucessivos contratos de compra e venda - não teve origem em acto praticado validamente pela Autora, verdadeira titular do direito de propriedade sobre o veículo em equação ;
- sendo que, na lógica de um registo com natureza meramente declarativa, aquele normativo não tem por desiderato a protecção do terceiro adquirente, ainda que beneficiário dos requisitos inscritos no nº. 1, caso não tenha sido o verdadeiro proprietário a iniciar a cadeia de negócios nulos, ou seja, como parte no primeiro negócio inválido ;
- omissão de intervenção claramente preenchida pela situação da ora Autora ;
- por outro lado, é clara a inaplicabilidade em concreto do citado nº. 2, do artº. 17º, do Cód. do Registo Predial, pois, in casu, inexiste qualquer situação de conflito entre dois adquirentes do mesmo transmitente, em que um dos negócios é válido e urge proteger a confiança do adquirente nos dados constantes do registo ;
- antes ocorrendo uma concreta e efectiva sucessão de negócios jurídicos nulos, em que ocorre não a validade (como na situação os terceiros para efeitos do registo), mas antes a real invalidade do primeiro negócio transmissivo, que se estende e transmite às subsequentes transmissões ;
- donde, não se pode deixar de concluir pela nulidade das compras e vendas do veículo automóvel em equação, nos termos sufragados pela sentença apelada, para além do efectivo reconhecimento do direito de propriedade da Autora sobre o mesmo, e consequente condenação da actual detentora (Interveniente [...], Lda.) a entregar-lhe o veículo, nos termos determinados ;
- conducente a juízo, neste segmento, de total improcedência das conclusões recursórias.
No excurso recursório apresentado, alega o Apelante Réu BBB estar a decisão em sindicância maculada de inconstitucionalidade material, por que violadora dos princípios da boa fé nos negócios, na publicidade do registo, da equidade e da justiça, preterindo os artigos 12º, 13º, 204º e 277º, todos da Constituição da República Portuguesa, ao não aplicar o prescrito no artº. 17º, nº. 2, do Cód. do Registo Predial e procedendo à devida integração com o prescrito no artº. 5º, nºs. 1 e 4, do mesmo diploma.
Os princípios constitucionais questionados pelo Recorrente são os da universalidade e igualdade, não concretizando propriamente o arguente os reais fundamentos do afirmado juízo de inconstitucionalidade.
E, reconheçamos, não logramos igualmente verificá-lo na decisão em sindicância, que antes aplicou os normativos que considerou pertinentes e que mereceu, pelo menos até ao presente, total sancionamento por este Tribunal.
Com efeito, delimitou-se o âmbito de aplicabilidade do citado artº. 17º, nº. 2, do Cód. do Registo Predial, e o campo proteccional dos terceiros de boa fé daí decorrente, em conjugação com semelhante protecção procurada conferir pelo também citado artº. 291º, do Cód. Civil.
Não se negou a sua abstracta aplicação, mas antes a sua concreta idoneidade e pertinência ao caso sub júdice, o que se fundamentou, concluindo-se pela adopção de diferenciado enquadramento legal.
Nas palavras do citado douto Acórdão da RG de 27/10/2016, que apreciou invocação de semelhante argumentário de inconstitucionalidade, “não se verifica qualquer inconstitucionalidade material por violação dos princípios da boa fé nos negócios, na publicidade do registo da equidade e da justiça, conforme pretende o recorrente (….) uma vez que a não aplicação do artigo 17.º do CRP não resulta de qualquer discordância, ou interpretação mais restritiva desse normativo, mas pura e simplesmente, porque o mesmo não é de aplicar à situação dos autos, existindo, na lei civil, norma que tutela a questão substantiva em análise, de acordo com a opção do legislador ordinário, a quem cabe densificar os conceitos em causa”.
Efectivamente, não pode falar-se, certeiramente, em violação da confiança do registo e da fé pública que lhe é conferida.
Conforme referencia o citado aresto do STJ de 06/12/2018, negando tal violação, o Tribunal Constitucional “já por diversas vezes teve a oportunidade de analisar a conformidade constitucional de normas acusadas de ofender o princípio constitucional do Estado de Direito (artigo 2º da Constituição) por lesarem a fé pública do registo predial. Apenas a título de exemplo, cfr. os acórdãos nº362/2002 e 363/2002, procs. 403/2002 e 404/2002, ambos de 17 de Setembro de 2002. www.tribunalconstitucional.pt, e jurisprudência neles citada”.
Donde, conclui-se, igualmente, pela improcedência do suscitado juízo de inconstitucionalidade, com consequente não acolhimento do fundamento recursório em apreciação.
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No âmbito da pretensão recursória deduzida, defende a Apelante Interveniente [...], Lda., que caso “seja condenada na restituição da viatura Laguna Break com a matrícula XX-XX-XX deve igualmente a Autora ser condenada no pagamento da quantia de € 28.750,00 à ora recorrente”.
Na resposta apresentada, referencia a Apelada Autora que tal pedido “não tem qualquer sentido nem fundamento legal”, e que, se tal valor for efectivamente devido, o que desconhece e não tem o dever de saber, terá a Recorrente “de o pedir a quem o entregou e não à Autora”.
Tal pretensão foi apreciada na sentença apelada, tendo então sido deduzida pelo Réu BBB (3º Réu), e pela Interveniente [...], Lda., que novamente a suscita na presente sede recursória.
Decidiu-se, então, nos seguintes termos: “Também improcedem os pedidos do terceiro Réu e da interveniente sociedade [...], Lda. no sentido de a demandante dever depositar (ou pagar o valor por tal 3º Réu pago pela compra do bem e pela interveniente ao 3º Réu ou, uma vez que a interveniente o não esclareceu, à financiadora, para a aquisição do bem. É que não se provou a compra da viatura pelo 3º Réu àquele CCC ( e ou que esse fosse comerciante ), sendo que quanto à venda feita pelo 3º Réu à interveniente referida não podia aquele, ao vender o bem, tê-lo vendido em tal qualidade porquanto o adquirira para seu uso pessoal e não para venda comercial, actividade a que se dedicava. Aliás, diga-se, de qualquer modo, não ser aplicável, às vendas em causa, o disposto no artº 1301 do C. Civil. É que os requisitos de aplicação de tal norma nem se mostram preenchidos. Efectivamente e como se disse, nem se provaram os factos supra referidos (de o 3º Réu ter adquirido o veículo a CCC e que este fosse comerciante de automóveis ou qual o valor por si alegadamente pago a título de preço), sendo que, quanto à interveniente sociedade adquirente, também não resultou provado que o terceiro Réu tenha, ao proceder à venda do veículo à mesma, agido na qualidade de comerciante nem, diga-se, qual o preço por si pago ao 3º Réu e ou à financiadora para compra da viatura. Com efeito, uma coisa é a outorga do contrato de financiamento por um determinado valor e outra o seu cumprimento… Por outro lado, também cumpre salientar ser discutível, na jurisprudência, a aplicabilidade do artº 1301 do C. Civil a bens sujeitos a registos (ver, neste sentido, designadamente o Ac. do S.T.J. de 30.3.1982, in BMJ 315, a págs. 296, citado na obra supra referida, o “ Código Civil Anotado “, Abílio Neto). Diga-se que, a admitir-se a aplicabilidade de tal disposição legal a tal tipo de bens móveis e a verificação dos respectivos requisitos de aplicação e estar-se-ia a onerar a Autora, ou seja, a maior prejudicada nos autos com os factos sob análise, por se ter visto privada, desde 2010, de um bem que é seu, de forma ilegítima e sem para tal ter contribuído, ao contrário do alegado pelos demandados (pelo menos em sede de alegações em audiência de julgamento), por alegada inércia da mesma na resolução do contrato, por o ter resolvido em Setembro de 2010. É que cumpre não esquecer que os registos de propriedade a favor da primeira Ré, do segundo Réu e do terceiro Réu se iniciam em Fevereiro de 2010 e que em Março já se encontravam requeridos os registos a favor dos três primeiros demandados, sendo que ainda que a primeira demandada já estivesse em mora, a esse momento, sempre esta teria de ser convertida em incumprimento definitivo, não podendo tal ocorrer com semelhante rapidez. Na verdade, a Autora teria, certamente, muitos outros locatários em situação de incumprimento e a conversão em incumprimento definitivo (art. 808 do C. Civil) obriga à concessão de um prazo para regularizar o cumprimento sob pena, não o fazendo, de perda de interesse na manutenção do negócio, tempo que teria de decorrer e que não permitiria nunca a resolução atempadamente por forma a evitar as sucessivas vendas, claramente efectuadas em tempo recorde e a que se seguiu, no Verão de 2010, a venda à interveniente sociedade adquirente”.
Analisemos.
Estatui o artº. 1301º, do Cód. Civil, sob a epígrafe de coisa comprada a comerciante, que “o que exigir de terceiro coisa por este comprada, de boa fé, a comerciante que negoceie em coisa do mesmo ou semelhante género é obrigado a restituir o preço que o adquirente tiver dado por ela, mas goza do direito de regresso contra aquele que culposamente deu causa ao prejuízo”.
Referencia Rodrigues Bastos [24] proteger fortemente o presente normativo “os interesses do comércio regular”, pois “o adquirente de boa fé, que adquiriu a coisa a um particular não comerciante, não goza do benefício a que alude o artigo”. Sendo que para a sua invocação “o possuidor deve estar de boa fé e a sua posse deve ser isenta de vícios”.
Acrescenta que, sendo norma excepcional, não comporta interpretação analógica, só abrangendo “a compra de objectos mobiliários, e o direito reconhecido é o da restituição do preço da compra, e não o do valor da coisa”.
Por sua vez, Pires de Lima e Antunes Varela [25] referenciam que a regra constante deste normativo “é manifestamente determinada pela necessidade de proteger a confiança de quem adquire bens a um comerciante, designadamente em estabelecimento aberto ao público, o que, de um modo geral, não tem razões para suspeitar que eles foram furtados ou que, por outros motivos, o comerciante não dispõe de legitimidade para os alienar”.
Todavia, atenta desde logo a sua inserção sistemática, referencia o douto Acórdão do STJ de 09/10/2008 [26]o presente normativo “é inaplicável às coisas móveis sujeitas a registo, como é o caso dos veículos automóveis, em que são publicitados os direitos que sobre eles, sujeitos que estão a registo automóvel”.
Tal entendimento é igualmente sufragado pelo douto aresto desta Relação de 01/04/2008 [27], onde se refere que a “disciplina contida neste artigo só se aplica às coisas móveis não sujeitas a registo, é uma norma excepcional, e portanto não tem aplicação ao comprador de boa fé de veículo automóvel”, considerando-se tal posição como unânime.
Jurisprudencialmente, e por fim, confira-se, ainda, Acórdão desta mesma Relação de 18/09/2007 [28], no qual se refere, igualmente de forma expressa, que o “preceituado no art.º 1301º, do Código Civil, não se aplica às coisas móveis sujeitas a registo, como é o caso da venda de veículos automóveis” [29].
Ora, para além dos fundamentos aduzidos na sentença recorrida, no sentido do afastamento da responsabilidade da Autora na restituição do preço alegadamente suportado pela Apelante Interveniente, que se sufragam, urge, desde logo, atentar à não aplicabilidade do normativo em equação às coisas móveis sujeitas a registo, tal como sucede com o veículo automóvel em equação.
E, atenta tal não aplicabilidade, fundada na ratio legis da norma em equação, compreensível num numa ordem jurídica em não vigora o princípio de posse vale título (cf., artº. 1268º, do Cód. Civil), o juízo só pode ser de improcedência da requerida condenação da Autora, no pagamento da alegada quantia de 28.750,00 €, à Interveniente [...],. Lda., assim improcedendo, igualmente neste segmento, a pretensão recursória deduzida. Da impugnação da matéria de facto relativamente ao Recurso 1, interposto pela Interveniente [...], Lda.
Conforme supra expusemos, a impugnação da matéria de facto deduzida pela Interveniente [...], Lda., foi apresentada de forma subsidiária, para eventual apreciação no caso de não proceder a revogação da sentença apelada fundada na argumentação de direito.
Alega a Impugnante existir contradição entre os factos provados 22 e 23 e o ponto 4 não provado, os quais têm a seguinte redacção:
“22 - Por documento escrito datado de 2.7.2010, o Réu BBB declarou ter vendido à interveniente principal [...], Lda. o veículo referido em 1 - e em causa nos autos, pelo preço de 28.750,00 Euros. 23 - Com vista à compra referida em 22 [e não 21, como, por lapso, consta da sentença] - a [...], Lda. outorgou com a Totta Crédito especializado um financiamento da quantia de 22.360,00 Euros, acordo esse de financiamento celebrado por escrito datado de 23.7.2010, em que as partes acordaram entre si que seria liquidado tal financiamento contra o pagamento, pela interveniente à financiadora referida, de 36 prestações, nas condições constantes dos documentos de fls. 185 a 191 dos autos. 4 - Quais os valores pagos pela interveniente [...], Lda. em consequência da compra do veículo referido em 1.”.
Pugna pela eliminação do ponto 4 da factualidade não provada, devendo aditar-se aos factos provados um novo facto (a identificar como ponto 33), com a seguinte redacção:
“a [...], Lda., pagou ao 3º Réu € 28.750,00 pela aquisição do veículo”.
Na resposta apresentada, a Recorrida Autora nega a apontada contradição, mencionando que era á Recorrente que incumbia a prova do alegado pagamento, mas que não juntou qualquer comprovativo, sendo certeira a decisão de considerar tal facto como não provado.
Na sentença apelada, e relativamente aos factos provados 22 e 23, consta da fundamentação/motivação que:
“i) no que se refere ao facto 22 -: no teor do documento constante de fls. 183 dos autos; j) quanto ao facto 23 -: no teor dos documentos constantes de fls. 185 a 191 dos autos”.
E, no que respeita ao facto não provado 4, consta ter-se fundado “na circunstância de a interveniente [...], Lda. não ter junto aos autos qualquer documento comprovativo dos valores por si pagos em consequência do negócio e mesmo do financiamento referido em A); 23”. Decidindo:
A pretensão ora apresentada tem por desiderato a prova do valor alegadamente pago pela Interveniente [...], Lda., ao Réu BBB, no intuito ou desiderato de determinação do valor que a Autora deveria alegadamente restituir-lhe com base no enquadramento jurídico tipificado no artº. 1301º, do Cód. Civil.
Enquadramento que, todavia, conforme consignámos, mereceu total afastamento, urgindo, assim, num primeiro momento, aferir acerca da pertinência do efectivo conhecimento do teor da impugnação apresentada.
Conforme expressamente referenciado em aresto desta Relação de 24/04/2019 [30], “na decisão da matéria de facto, o Tribunal apenas pode considerar os factos essenciais que integram a causa de pedir (ou as exceções), bem como os factos instrumentais, complementares ou concretizadores que resultem da instrução da causa, e os factos notórios e de que tem conhecimento por via do exercício das suas funções (art. 5.º do CPC), estando-lhe vedado, por força do princípio da limitação dos atos consagrado no art. 130.º do CPC, conhecer de matéria que, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, se mostra irrelevante para a decisão de mérito. São manifestações do princípio dispositivo e do princípio da economia processual que se impõem ao juiz da 1.ª instância aquando da seleção da matéria de facto provada/não provada na sentença, mas também na 2.ª instância, no que concerne à apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto”.
Acrescenta-se, então, citando Acórdão desta Relação de 27/11/2018 [31], que a jurisprudência dos Tribunais Superiores vem reconhecendo que “a reapreciação da matéria de facto não constitui um fim em si mesma, mas um meio para atingir um determinado objetivo, que é a alteração da decisão da causa, pelo que sempre que se conclua que a reapreciação pretendida é inútil – seja porque a decisão sobre matéria de facto proferida pela primeira instância já permite sustentar a interpretação do direito aplicável ao caso nos termos sustentados pelo recorrente, seja porque ainda que proceda a impugnação da matéria de facto, nos termos requeridos, a decisão da causa não deixará de ser a mesma – a reapreciação sobre matéria de facto não deve ter lugar, por constituir um ato absolutamente inútil, contrariando os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2.º, n.º 1, 137.º, e 138.º do CPC)” (sublinhado nosso) [32].
Em consonância, refere-se expressamente no douto Acórdão do STJ de 17/05/2017 [33] que “o princípio da limitação de actos, consagrado no artigo 130º do Código de Processo Civil para os actos processuais em geral, proíbe a sua prática no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – desde que não se revelem úteis para este alcançar o seu termo”, tratando-se de uma das “manifestações do princípio da economia processual, também aflorado, entre outros, no artigo 611º, que consagra a atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes, e no artigo 608º n.º 2, quando prescreve que, embora deva resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, o juiz não apreciará aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.
Acrescenta, nada impedir “que também no âmbito do conhecimento da impugnação da decisão fáctica seja observado tal princípio, se a análise da situação concreta em apreciação evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual, cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir.
Com efeito, aos tribunais cabe dar resposta às questão que tenham, directa ou indirectamente, repercussão na decisão que aprecia a providência judiciária requerida pela(s) parte(s) e não a outras que, no contexto, se apresentem como irrelevantes e, nessa medida, inúteis”.
Pelo que, conclui, “para se aferir da utilidade da apreciação da impugnação da decisão fáctica importa considerar se os pontos de facto questionados se não apresentam de todo irrelevantes, se a eventual demonstração dos mesmos é susceptível de gerar um juízo diferente sobre a questão de direito, se é passível de influenciar e, porventura, alterar a decisão de mérito no quadro das soluções plausíveis da questão de direito” (sublinhado nosso).
Ora, tendo por pressuposto tal entendimento, afigura-se-nos resultar indubitavelmente o seguinte:
- conforme evidenciámos, a impugnação da matéria de facto em equação tinha por finalidade ou objectivo a determinação do preço alegadamente pago pela Interveniente ao 3º Réu, no encadeamento das transmissões do veículo automóvel, que possibilitasse o seu reivindicado direito ao ressarcimento ou restituição do preço, fundado no apreciado artº. 1301º, do Cód. Civil ;
- todavia, conforme justificámos supra, tal enquadramento não merece acolhimento ou pertinência, antes se tendo afastado o reivindicado direito da Interveniente a tal restituição ;
- pelo que, não releva nos presentes autos, nomeadamente para o conhecimento da controvérsia em equação, tendo em consideração a solução de direito adoptada, qual o concreto valor pago pela Interveniente na compra e venda outorgada com o 3º Réu ;
- pelo que, conhecer acerca da impugnação da matéria de facto apresentada na presente sede recursória, configurar-se-ia como a prática de uma acto inútil, legalmente sancionado pelo artº. 130º, do Cód. de Processo Civil ;
- ou seja, ainda que lograsse obter procedência tal impugnação da matéria factual, nos termos requeridos, e tal matéria passasse a figurar como provada, esta revelar-se-ia totalmente irrelevante e inócua para a sorte da pretensão recursória apresentada, pelo que aquela reapreciação da matéria de facto traduzir-se-ia na prática de uma acto absolutamente inútil, claramente contrário á observância dos princípios da economia e celeridade processuais ;
- pelo que, na decorrência de tal juízo, decide-se não conhecer da impugnação da matéria de facto apresentada pelo Recorrente Interveniente [...], Lda..
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Relativamente à tributação, decaindo os Recorrentes nos recursos interpostos, são os mesmos responsáveis pelo pagamento das custas em dívida, nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que goza o Recorrente Réu AAA.
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IV. DECISÃO
Destarte e por todo o exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, o seguinte:
- no que concerne ao Recurso 1 (interposto pela Interveniente [...] – Tecnologias, Equipamentos e Montagens de Produtos Electrónicos, Lda ):
I) não conhecer da impugnação da matéria de facto apresentada ;
II) julgar totalmente improcedente a demais apelação, confirmando-se a sentença apelada/recorrida ;
- no que concerne ao Recurso 2 (interposto pelo Réu AAA):
III) nos termos da alínea a), do nº. 1, do artº. 640º, do Cód. de Processo Civil, rejeitar totalmente a apelação interposta, relativamente à impugnação da matéria de facto apresentada ;
IV) julgar totalmente improcedente a demais apelação, confirmando-se a sentença apelada/recorrida ;
- no que concerne ao Recurso 3 (interposto pelo Réu BBB):
V) julgar totalmente improcedente a apelação, confirmando-se a sentença apelada/recorrida.
-relativamente á tributação, decaindo os Recorrentes nos recursos interpostos, são os mesmos responsáveis pelo pagamento das custas em dívida, nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que goza o Recorrente Réu AAA.
Lisboa, 28 de Janeiro de 2021
Arlindo Crua
António Moreira
Carlos Gabriel Castelo Branco
_______________________________________________________ [1] A presente decisão é elaborada conforme a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, salvaguardando-se, nas transcrições efectuadas, a grafia do texto original. [2] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª Edição, Almedina, pág. 155, 156, 158 e 159. [3] Acórdão datado de 28/04/2016, disponível in www.dgsi.pt . [4] Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 164 e 165. [5] Relator: Lopes do Rego, Processo nº. 233/09.4TBVNG.G1.S1, in www.dgsi.pt . [6] Relator: Tomé Gomes, Processo nº. 299/05.6TBMGD.P2.S1, in www.dgsi.pt . [7] Processo n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1, in www.dgsi.pt . [8] Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 157. [9]Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª Edição Revista, Coimbra Editora, pág. 267. [10] Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª Edição Actualizada, Coimbra Editora, pág. 610 e 617. [11]Código Civil Anotado, Vol. I, 2017, Almedina, pág. 358 a 360. [12] Alude Menezes Cordeiro – Tratado de Direito Civil Português, Tomo I, Parte Geral, 1999, Almedina, pág. 581 -, que a declaração de nulidade ou anulação do negócio faz estabelecer entre as partes “uma relação de liquidação: deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente (…)”. [13]Invalidade dos negócios jurídicos – Anteprojeto para o novo Código Civil, in BMJ, nº. 89, Outubro de 1959, pág. 251. [14] Acerca dos requisitos no preenchimento da tutela de terceiros conferida no artº. 291º, cf., ainda, Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 584, onde se refere expressamente que “os terceiros são protegidos por estarem de boa fé e por terem realizado o investimento de confiança: o título oneroso e o decurso dos 3 anos atestam-no”. [15] Relatora: Maria Clara Sottomayor, Processo nº. 5800/12.6TBOER.L1-A.S1, in www.dgsi.pt , citado na sentença recorrida. [16] Citando Maria Clara Sottomayor, Invalidade e registo, A protecção do terceiro adquirente de boa fé, Almedina, Coimbra, 2010, p. 332. [17]Ob. cit., pág. 336 e 338. [18] Relator: Azevedo Ramos, Processo nº. 05A837, in www.dgsi.pt . [19]RLJ, Ano 118, pág. 310. [20] Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Processo nº. 7787/12.6TBSTB.E1.S1, in www.dgsi.pt . [21] Relatora: Ana Cristina Duarte, Processo nº. 1122/11.8TBBCL.G1, in www.dgsi.pt . [22] Contra o entendimento exposto, nomeadamente da conjugação entre os artigos 291º, do Cód. Civil e 17º, nº. 2, do Cód. do Registo Predial, reconhecendo um âmbito de protecção deste muito mais amplo, e negando a subalternidade das regras do registo relativamente às regras do direito em geral, cf., Isabel Pereira Mendes, Código do Registo Predial Anotado, 6ª Edição, 1994, Almedina, pág. 90 a 95 e Estudos Sobre Registo Predial, 1997, Almedina, pág. 121 a 128 ; aparentemente no mesmo sentido, cf., o douto Acórdão da RC de 02/03/2010, Relator: Carlos Querido, Processo nº. 42/2001.C1, in www.dgsi.pt . [23] Menezes Cordeiro – ob. cit., pág. 584 -, refere expressamente que o artº. 291º, do Cód. Civil “não se confunde com o artigo 17º/2 do CRP: exige-se, aqui, um registo prévio, nulo ou anulado, não requerido pela lei civil”. [24]Notas ao Código Civil, Vol. V, 1997, Rei dos Livros, pág. 54. [25]Ob. cit., Vol. III, pág. 83. [26] Relator: Salvador da Costa, Processo nº. 08B2720, in www.dgsi.pt . [27] Relator: Rui Moura, Processo nº. 8698/2007-1, in www.dgsi.pt . [28] Relator: Luís Espírito Santo, Processo nº. 5175/2007-7, in www.dgsi.pt . [29] Doutrinariamente, neste sentido, cf., Mota Pinto, ob. cit., pág. 617, nota 2. [30] Relatora: Laurinda Gemas, Processo nº. 5585/15.4T8FNC-A.L1, no qual o ora Relator figurou como Adjunto. [31] Processo nº. 1660/14.0T8OER-E.L1. [32] Em idêntico sentido, citam-se ainda os acórdãos da Relação de Guimarães de 10-09-2015, no processo 639/13.4TTBRG.G1, e 11-07-2017, no processo n.º 5527/16.0T8GMR.G1, da Relação do Porto de 01-06-2017, no processo n.º 35/16.1T8AMT-A.P1, e do STJ de 13-07-2017, no processo 442/15.7T8PVZ.P1.S1, todos in www.dgsi.pt . [33] Relatora: Fernanda Isabel Pereira, Processo nº. 4111/13.4TBBRG.G1.S1, in www.dgsi.pt .