PROCESSO DE PROTECÇÃO DE CRIANÇA
MEDIDA DE ACOLHIMENTO RESIDENCIAL
Sumário


Sumário (do relator):

- As nulidades da sentença, sendo vícios intrínsecos da mesma, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento, estes, a sindicar noutro âmbito;
- Na sua intervenção no âmbito de processo de protecção de criança, o tribunal deve nortear-se pelos princípios estabelecidos pelo legislador no art.º 4.º, da L.P.C.J.P., com destaque para os do seu interesse superior, intervenção mínima, da proporcionalidade e actualidade, responsabilidade parental, primado da continuidade das relações psicológicas profundas e prevalência da família.
- Em concretização de alguns desses princípios e estando aplicada medida de acolhimento residencial, assiste à criança o direito de não ser transferido da casa de acolhimento ou da família de acolhimento, salvo quando essa decisão corresponda ao seu superior interesse, tal como reafirma o art. 58º, nº 1, al. g), da L.P.C.J.P..
- Por iniciativa fundada do tribunal é, em tese, admissível, a realização de uma segunda perícia não só nos termos do disposto no arts. 487º, nº 2 , do Código de Processo Civil, como da regra especial, do art. 986º, nº 2, do mesmo Código, aplicável aos processos de jurisdição voluntária.
- A não sujeição a critérios de legalidade estrita subjacente aos processos de jurisdição voluntária não comporta a possibilidade de disciplinar o processo sem obediência aos elementares princípios do processo civil, a menos que outros devam prevalecer, como é o caso do superior interesse da criança, e então caberá densificar tal superior interesse que faça claudicar tais princípios pela supremacia de outros.
- Isso ocorrerá quando, apesar da realização de perícias psiquiátricas e psicológicos aos progenitores, então não representados por advogado, esses discutem os relatórios emitidos e urge consolidar os dados que desses exames possam ser retirados, com um contraditório mais assertivo, visando a eficaz definição do futuro da criança e, assim, o seu melhor interesse.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – Relatório

Recorrente(s):
- O menor J. M.
- MINISTÉRIO PÚBLICO;

*
O presente processo de promoção e protecção foi desencadeado pelo Ministério Público em 26.10.2018, alegando que se encontrava em risco o recém-nascido, filho de T. M., a quem tinha sido aplicada pelo CPCJ a medida de acolhimento residencial.

Na sequência desse pedido, na mesma data, foi confirmada por, decisão urgente, essa medida cautelar, por seis meses, pelo que se veio a perceber mais tarde, na Associação de Apoio à Criança, melhor identificadas nos autos e sita em ….

Em 16.1.2019, a EMAT da S.S. apresentou relatório social, que aqui se dá por reproduzido, no qual concluía, sic: Tendo em conta a inexistência, quer de contacto telefónico e/ou presencial por parte da progenitora e/ou família alargada, o que revela total desinteresse pela participação no projecto de vida da criança, em concordância com a casa de acolhimento, propõe-se a manutenção da medida vigente, i.é de Acolhimento Residencial.

Na reapreciação da medida, foi decidido, em 22.1.2019, que, sic: “O relatório que antecede evidencia um a situação de absoluto abandono do menor por parte da progenitora e da família alargada que foi determinante para a aplicação da medida de promoção e protecção. Com efeito inexiste, por parte da progenitora qualquer contacto presencial ou por qualquer outro meio, bem como da família alargada, o que demonstra um alheamento completo pela situação do menor. Assim, uma vez que se mostram inalterados os pressupostos que determinaram a aplicação da medida fixada acolhimento residencial, art.º 35.º, n.º 1, f), da LPCJP, sendo que a mesma continua a revelar-se a única adequada a salvaguardar o superior interesse do menor, decido, nos termos do artigo 62º, nº 1 e 3, da LPCJP, prorrogá-la pelo período de 3 meses.”

Designadas três conferências, a progenitora faltou, uma vez que não foi encontrada.
Só em 11.7.2019 foi possível a conferência com os alegados progenitores do J., T. M. e o pai, D. F..
Nesse acto, estes subscreveram acordo mediante o qual declararam a sua aceitação da medida aplicada ao J., o qual foi homologado e sustentou a aplicação da mesma medida de protecção por mais seis meses.
Só em 16.1.2020 foi elaborado novo relatório da S.S., que se dá aqui por reproduzido e que concluía, sic, “como mais adequada e segura a medida prevista no art.º 35 alínea g) da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro, alterada pela Lei n.º 31/2003, de 22 de agosto, nomeadamente, Confiança Judicial com vista a futura Adopção.
Em face disto, o Ministério Público promove a manutenção da medida e a marcação de conferência em ordem a melhor ponderar os factos alegados pela EMAT.
Manteve-se a medida e agendou-se nova conferência, que viria a ocorrer em 5.3.2020.
Antes disso, em 24.2.2020, a EMAT leva ao conhecimento do Tribunal comportamentos disruptivos do progenitor.
Nessa conferência de 5.3.3030, após audição dos intervenientes processuais, incluindo os progenitores, foi decidido:
“Como doutamente promovido, requisite C.R.C.’s dos progenitores, art.º 3.º, n.º 1, da L. 113/2009, de 17/09, na redacção conferida pela Lei n.º 103/2015, de 24/08. Solicite avaliação psicológica e psiquiátrica de ambos os progenitores para avaliação das capacidades parentais, bem como os dados de ambos ao C.R.I. informando-se que ambos prestaram consentimento para tal. Prorrogo a medida em vigor por mais 3 meses (sem prejuízo de ser necessário mais tempo), tudo nos termos do disposto nos arts. 35.º, n.º 1, als. f), respectivamente, e 62.º, n.º 3, al. c) da L.P.C.J.P, solicitando-se relatório de acompanhamento antes de completar o terceiro mês sem prejuízo de a Segurança Social comunicar o que tiver por conveniente em qualquer momento. Notifique-se e comunique ao C.D.S.S. Notifique-se ainda a A.A.C. de que o pai poderá ter visitas diárias durante a semana, preferencialmente entre as 17.30 e as 18.30 horas, ou noutro horário que pontualmente combinem (incluindo às terças-feiras). Deverá ser tida em conta também a possibilidade de o progenitor articular directamente com a técnica da E.M.A.T. outro horário para que possa haver saída ao exterior da instituição supervisionada por aquela (sem prejuízo de uma cuidadora da A.A.C. acompanhar também). Caso a mãe requeira mais visitas, deverão ser deferidas nos termos e horários da instituição.”

Em 29.6.2020 o progenitor dirigiu-se ao processo a solicitar a regularização das visitas ao J..
Após outras diligências e decisões, foi determinada, em 15.7.2020, a prorrogação da medida de acolhimento residencial do J..
Em 27.7.2020 o EMAT relatava o ponto da situação quanto às visitas dos progenitores e a necessidade de cumprirem regras estabelecida para a contenção da pandemia em curso.
Nos finais de Julho de 2020 nenhum dos progenitores havia marcado presença no IML para realização dos exames periciais agendados.
Em 17.8.2020 era junto relatório de perícia médico-legal de psiquiatria relativa à progenitora T. M., onde se conclui, sic:
“A examinanda tem características de personalidade dependente, impulsiva e imatura. Não apresenta psicopatologia invalidante. Não tem condições actuais, nem materiais, nem de estabilidade clinica, de proporcionar um ambiente familiar harmonioso e estruturante de que o seu filho necessita, pelo que se considera não possuir competências actuais suficientes para o desempenho autónomo do papel maternal.”

Em 8.9.2020 foi junto o relatório de perícia médico-legal de psicologia respeitante ao progenitor D. F., que aqui dá por reproduzido.

Após promoção do Ministério Público, em 16.9.2020, decidiu-se: Os moldes em que os contactos pai(s)-filho decorrerão foi já redefinido por douto despacho de 04/08/2020; assim, e tendo em conta a participação de 04/09, e para se evitar mais problemas, deverá o mesmo ser novamente notificado via O.P.C., que explicará o conteúdo. Os pais devem ser notificados do relatório pericial para, querendo, se pronunciarem. D.N. Oportunamente marcar-se-á a conferência, sendo que, decorridos 45 dias, deverá ser solicitado sucinto relatório social, bem como informação sobre todas as visitas ocorridas e comparências, ainda que não seguidas de visita por algum impedimento.”

Com registo de 17.9.2020, foram emitidas essas notificações, no caso do progenitor D. F. por contacto pessoal, ocorrida em 23.9.2020, conforme documentado com data de 7.10.2020.
Em 19.10.2020, após nova promoção do Ministério Público, foi decidido solicitar novamente relatório social e prorrogar a medida em vigor por mais três meses.
Em 9.11.2020, foi junta avaliação psiquiátrica forense do progenitor D. F., onde se conclui, sic: O examinado não apresenta sinais de doença psíquica ou psiquiátrica, tendo traços característicos de personalidade psicopática anti-social, manifestando extrema litigância contra as instituições judiciais e de apoio social envolvidas neste processo, que se sobrepõe à vinculação afectiva e empenho no provimento de um ambiente familiar harmonioso e estruturante para o desenvolvimento da criança.

Em 13.11.2020 foi junto novo relatório social, em que se conclui, sic:
“Face ao descrito, constata-se uma relação inconstante, dependente da vontade dos progenitores, desprovida de qualidade afetiva que não fortalece a interacção. Os mesmos, não se têm revelado figuras de referência, no sentido de promover o vínculo familiar com o descendente. A situação de acolhimento, considerado longo, para tão tenra idade, tem vindo a limitar o melhor desenvolvimento da criança, a qual precisa de uma família que lhe garanta o afecto, os cuidados e todo o acompanhamento imprescindível ao seu bem-estar, crescimento e desenvolvimento global.”
A progenitora foi notificada com registo de 20.11.2020.
Em 11.12.2020 é junto ofício da PSP que atesta a notificação ao progenitor da data designada para conferência e de relatórios sociais juntos entretanto.
Em 14.12.2020, sem nada a dizer sobre os dados entretanto surgidos nos autos, os progenitores pedem outros tipos de contactos com o filho, nomeadamente em sua casa e nas épocas festivas próximas.
Solicitada, em 21.12.2020, a AAC emitiu parecer negativo após consultar os relatórios forenses entretanto juntos.
Em 22.12.2020, a EMAT secundou esse parecer.
O Ministério Público secundou essa posição.
O Tribunal decidiu indeferir essas visitas, em despacho de 23.12.2020.

Em diligência realizada nos autos em 05 de Janeiro de 2021 ambos os progenitores questionaram a fidedignidade das perícias realizadas, sendo que o progenitor se dirigiu ao Tribunal como ameaças registadas em acta. Este questionou ainda a credibilidade das informações da AAC.
Nessa mesma data foi registada a entrada nos autos de novo manuscrito, não identificado, que se presume ser da progenitora, em que se pede “meio ano, trabalho para os dois, novas perícias, saídas da ACA acompanhadas”.

De seguida ficou exarada a seguinte decisão:
“O Mmº. Juiz determinou que se proceda a nova perícia (com cópia desta ata) à progenitora, que deverá ser feita por técnica diferente a fim de se aferir as capacidades parentais no presente.
O progenitor, como também refere que a perícia foi feita em conivência com a técnica da A.A.C. e também até do tribunal, entende que deverá ser feita nova perícia; assim, e com cópia desta ata, solicite também que seja feita nova perícia.
Neste momento pela progenitora foi dito ao subscritor que escreva mas que escreva depressa que tenho que trabalhar e que não está aqui juiz nenhum em frente a nós, no que foi confirmada pelo progenitor do filho, incluindo que é melhor pedir outro juiz porque aqui em frente não está nenhum (posteriormente esclarece que não foi assim que disse, que quer um juiz imparcial e que não ponha palavras na nossa boca e que seja empático), fazendo-o em tom de voz elevado.
Perante o teor desta ata, mostram-se indiciados, pelo menos, os actos de perturbação de funcionamento de órgão constitucional e de injúria, em autoria material e na forma consumada, pelo que remeta certidão à procuradoria da República para procedimento criminal.
Perante as acusações reiteradas ao procedimento da A.A.C., o C.D.S.S. deverá indicar em 5 dias nova instituição no concelho de …, a fim de que não haja acusações de falta de isenção.
Até lá, mantém-se o regime em vigor, decretado na última tomada de declarações (o pai e a mãe, pois agora vivem juntos, podem visitar de segunda a sexta feira das 17.30 horas às 18.30 horas e se não puderem comparecer deverão avisar de véspera, devendo cumprirem as regras da instituição incluindo quanto a medidas de higiene e covid 19 e permanecerem na sala de visitas).
Nos termos do artigo 103.º da L.P.C.J.P., e sendo que o rumo dos autos se afigura bastante incerto, desde já solicite defensor ao C.D.O.A. a ambos progenitores, por eventualmente os seus interesses poderem ser conflituantes com os do filho. A morada da progenitora é agora a do progenitor.
Tendo em conta o processado, o juiz subscritor ficará naturalmente impedido por ter apresentado queixa criminal contra os progenitores, pelo que, também nesta se pedirá escusa à Senhora Juíza Desembargadora Presidente do Tribunal da Relação, nos termos do disposto no art.º 119.º e 120.º, n.º 1, al. c), do C.P.C., o que por este meio se faz remetendo-se cópia da ata anterior e desta para melhor esclarecimento).
De tudo o presente são os elementos do G.I.S.P. presentes testemunhas (Chefe do GISP n.º …, bem como guarda principal 4684).
Notifique, comunique e demais D.N., sendo que deverá ser remetida cópia desta ata por email para o C.D.S.S. e à A.A.C. (de modo a que a 06/01 já possa haver visita), e, por correio, a S. Exa. a Presidente do Tribunal da Relação, com o "assunto": pedido de escusa por participação criminal nos termos sobreditos. ”

*
Inconformado com tal decisão, dela interpôs o menor J. o presente recurso de apelação, em cujas alegações formula as seguintes
Conclusões:

1- Visa o presente recorrer do Despacho de 05Jan.2021, na parte que determinou a alteração de estabelecimento de acolhimento do menor: (sic) “Perante as acusações reiteradas ao procedimento da A.A.C., o C.D.S.S. deverá indicar em 5 dias nova instituição no concelho de Guimarães, a fim de que não haja acusações de falta de isenção”.
2- Entende-se não estar reunidos todos os elementos que pudessem afiançar que, no caso concreto, esta alteração de estabelecimento de acolhimento respeita o superior interesse do menor.
3- Em primeiro lugar, a conferência com vista à obtenção de acordo de promoção e protecção, prevista no art.110.º, n.º1, al. b) e 112.º e ss LPCJP, desenrolou-se sem a presença das técnicas, que não foram convocadas.
4- Havendo uma preterição do disposto no art 112.º e ss.
5- A parte técnica deveria ser auscultada sobre o sentido de qualquer alteração do menor J. M..
6- Em segundo lugar, a razão de ser desta alteração de estabelecimento de acolhimento residencial tem um único fito: “a fim de que não haja acusações de falta de isenção”.
7- O que, com o devido respeito, não se afigura motivo suficiente para determinar tal alteração na vida de uma criança.
8- Até porque não foi exercido o contraditório, nem apresentada a versão diversa.
9- Mais se referindo o próprio contexto em que se desenrolou a diligência, o qual foi marcado pela altercação, resultando em participação criminal e pedido de escusa por parte do Ex.mo Sr Juiz.
10- Tudo isto considerado, é forçoso concluir que a decisão em crise não foi devidamente ponderada, pelo que se afigura urgente aferir da sua pertinência.
11- Pelo que deverá ordenar-se a repetição da conferência em crise, devendo até lá manter-se a criança no mesmo estabelecimento de acolhimento residencial, e sujeita ao mesmo regime de visitas conforme determinado.
Termos em que, com o douto suprimento de V. Ex.as, deverá ser dado provimento ao presente recurso, e ordenar-se a repetição da conferência em crise, devendo até lá manter-se a criança no mesmo estabelecimento de acolhimento residencial, e sujeita ao mesmo regime de visitas conforme determinado fazendo-se, assim, a costumada JUSTIÇA!

Igualmente o Ministério Público apresentou recurso dessa decisão, no qual conclui nos seguintes termos:

1º. A discordância deste recurso prende-se com o douto despacho judicial de 05 de jan. de 2021, na parte que determinou a alteração de estabelecimento de acolhimento do menor, decisão que se considera insuficientemente fundamentada.
2º. Também se discorda do facto de ser terem ordenado novas perícias; não foram alegadas pelas partes, fundadamente, as razões da sua discordância relativamente aos relatórios periciais; a reclamação das partes apud acta é intempestiva porque apresentada fora do prazo legalmente previsto no artigo 487º.,1, do CPC, aplicável por força do artigo 126º da LPCJP; nenhuma razão foi apontada que permitisse pôr em crise a respectiva fundamentação, isenção e objectividade, especialmente quanto progenitor, sendo o relatório respectivo exaustivo e eloquente; esta actuação constitui violação do disposto no artigo 487º CPC e 615º.,b) do CPC, pelo que não havia razão para o ter ordenado, oficiosamente, especialmente no que ao progenitor concerne.
3º. Ainda nesse douto despacho apresentou-se a seguinte fundamentação: “perante as acusações reiteradas ao procedimento da A.A.C., o C.D.S.S. deverá indicar em 5 dias nova instituição no concelho de Guimarães, a fim de que não haja acusações de falta de isenção”; não há qualquer razão objectiva para que o Tribunal pudesse concluir que a alteração de estabelecimento de acolhimento se harmoniza com o superior interesse do menor.
4º. A discordância fundamental deste recurso prende-se com o facto se ter decidido fazer transitar a criança de instituição, não estando suficientemente enunciadas nesse douto despacho as razões que justificam tal mudança.
5º. Tudo que se alega não poderá perder de vista que se está a viver um tempo de combate a pandemia e ao que flui dos relatórios dos autos, que os mesmos concluem e explicitam quanto aos percursos de vida dos progenitores e que pode influir no exercício de um futuro cuidado parental responsável (sempre com especial atenção e avaliação crítica dos relatórios sociais da EMAT e no próprio processo de promoção que correu termos na Comissão PCJ ( CPCJ) e dos relatórios periciais fundamentalmente da Exmª Perita em psicologia forense » refª 10448083 de 8 de Setembro de 2020 ).
6º. A criança está acolhida desde 26-10-2018 na Associação de Apoio à Criança por força do douto despacho judicial que aplicou cautelarmente tal medida; as zeladoras e técnicas dessa casa de acolhimento são as únicas pessoas de referência afectiva da criança, que tomam cuidado da mesma e com ela convivem diariamente; ou seja, não atendeu a decisão posta em crise à continuidade de relações de afecto de qualidade e significativas que devia continuar a implementar à luz do artigo 4º.,a) da LPCJP
7º. Salvo o devido respeito, cabia ao Tribunal preservar a relação de afecto, proximidade e de confiança (primary caretaker) com as zeladoras dessa casa de acolhimento, relações que seguramente se construíram desde 2018, o que flui das máximas da experiência comum ínsitas aos comandos normativos.
8º. Não se vislumbra qualquer razão para pôr em causa o papel e a qualidade dos cuidadores institucionais; o papel dos mesmos certamente contribui e contribuirá para o equilíbrio emocional e afectivo da criança (figuras de referência com vinculo); uma mudança poderá ser desastrosa para a criança; ainda, noutra perspectiva: a mudança não trará nenhum ganho para a criança e esta questão não foi considerada pelo Tribunal, sendo central para uma criança de tenra idade e que se encontra acolhida. Sendo mesmo que essa mudança poderá ser contraproducente!
9º. A alegada acusação de falta de isenção dos funcionários (em sentido amplo) da casa de acolhimento não está motivada em factos concretos passíveis de sindicância e avaliação crítica por parte do Tribunal; é uma mera alegação das partes, genérica e infundamentada!
10º. A indicada conferência de 5 de Janeiro de 2021, com vista à obtenção de acordo de promoção e protecção, prevista no art.110.º, n.º1, al.b) e 112.º e ss LPCJP, desenrolou-se sem a presença das técnicas, da EMAT e da Associação de Apoio à Criança, que não foram convocadas, com preterição do disposto no art 112.º e ss.
11º. Não obstante, a informação técnica superveniente da Emat com a refª 10980293 de 11- 1-2021, constituiu, em si mesma, uma avaliação de natureza pericial de eminente relevo; traduz nova circunstância (novo elemento) que deve agora ser relevada e aponta na direcção de que a alteração da casa de acolhimento resultará num concreto prejuízo para a estabilidade da criança e seu desenvolvimento afectivo e cognitivo.
12º.- Tal como no douto recurso da Ilustre Patrona da Criança que antecede, também se defende que a alteração de estabelecimento de acolhimento residencial, que tem um único fito: “a fim de que não haja acusações de falta de isenção”, não configura motivo suficiente para determinar tal alteração na vida de uma criança.
13º. Essa decisão de alteração da casa de acolhimento deve ser revogada, devendo-se ordenar a manutenção da criança na Associação de Apoio à Criança, dado que a ordenada alteração não se encontra em conformidade com o (concreto) interesse da criança.
14º. As visitas dos pais à criança devem decorrer num dos CAFAPs (Centro de Apoio Familiar e Acompanhamento Parental de …), 3 vezes por semana, nos concretos moldes a indicar pelas técnicas do CAFAP em articulação com a direcção técnica da casa de acolhimento e com a gestora do caso na EMAT, o que se r., sem se descurar a questão do combate à pandemia, designadamente o que decorre do Decreto n.º 3-A/2021, de 14 de Janeiro, que regulamenta o estado de emergência decretado pelo Presidente da República e demais legislação aplicável.
15º. O despacho recorrido interpretou incorrectamente o interesse fundamental da criança como decorre do artigo 1º e ss, 4º.,a) da LPCJP, nomeadamente em sede dos seus princípios orientadores, designadamente, que a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afecto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto, o artigo 112º dessa mesma LPCJP, e o espírito que resulta de várias normas e princípios constantes dos arts 1878º.1, 1974º., 1906º, 1776-A, 3, 1875º., 1881º.,2, e 1905º.,1, do CC e ainda artigos 13.º, n.º 2, 18.º, n.º 2, 36.º, n.ºs 5 e 6, 68.º, n.º 2, 69.º e 70.º da CRC- (os princípios jurídico-constitucionais estruturantes da Família e dos Menores ).
R. a revogação dos pontos indicados quanto ao douto despacho recorrido que, nas restantes questões, merece a nossa concordância.
Em consequência, os autos devem subsequentemente seguirem os seus termos, com nova conferência, a designar com brevidade, na tentativa de obtenção de um acordo de promoção “actualizado” já com a presença dos gestores do caso (na casa de acolhimento e na Emat ), abrindo-se, com o encerramento da instrução, a fase “preparatória” do debate judicial ( artigo 114º da LPCJP), o que se r.

Não foram apresentadas outras alegações.

II – Delimitação do objecto do recurso e questões prévias a apreciar:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos do artº 639º, do Código de Processo Civil (doravante C.P.C.).

As questões enunciadas pelos recorrentes podem ser sintetizadas da seguinte forma:

· A mudança da instituição de acolhimento do J.;
· A nulidade da decisão respeitante às perícias renovadas;
· O acerto desta última decisão.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III – Fundamentos

1. Factos
São os que emergem do processo e acima são relatados, que aqui consideramos ao abrigo do disposto no art. 662º, nº 1, do Código de Processo Civil.

2. Direito
2.1. Da mudança da instituição de acolhimento

Segundo a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (Lei nº 147/99, doravante L.P.C.J.P.), há lugar à intervenção para a promoção dos direitos e protecção da criança quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de acção ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a resolvê-lo – art.º 3.º, n.º 1.
O despacho inicial deste processo considerou que o J., a criança visada por este processo, estava sujeito a perigo que justificava essa intervenção e desde então, 26.10.18, que vem sendo confirmada a medida de acolhimento residencial, previamente aplicada pela CPCJ e prevista no art. 35º, nº 1, al. d), da L.P.C.J.P.).
Sendo indiscutida essa medida, a questão suscitada por ambos os recursos em apreço prende-se com a sua execução, em concreto com a escolha da instituição em que a mesma deve ser materializada, sendo certo que na data da decisão em crise a criança, o J., mantinha-se naquela residência que o acolheu aquando do seu nascimento.
O enquadramento dessa questão é vasto, prende-se não só com o direito que imediatamente regula todo o processo de protecção da criança, plasmado essencialmente na referida L.P.C.J.P., mas também com todo o direito fundamental nacional e internacional que vincula toda a actuação do julgador neste campo.
Nessa matéria, v.g., estipula o art. 24º, da CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DA UNIÃO EUROPEIA, (1.) as crianças têm direito à protecção e aos cuidados necessários ao seu bem-estar. Podem exprimir livremente a sua opinião, que será tomada em consideração nos assuntos que lhes digam respeito, em função da sua idade e maturidade. (2.) Todos os actos relativos às crianças, quer praticados por entidades públicas, quer por instituições privadas, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança. (3.) Todas as crianças têm o direito de manter regularmente relações pessoais e contactos directos com ambos os progenitores, excepto se isso for contrário aos seus interesses.
Sem nos alongarmos nesse capítulo e centrando-nos na questão a decidir, é necessário ter presente que as medidas cautelares previstas não visam outra coisa, tal como dita o art. 37º, da L.P.C.J.P., que: a) Afastar o perigo em que estes se encontram; b) Proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral; c) Garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso.
Com efeito, constatada a situação de perigo a que se encontra sujeita a criança, cumpre decidir qual a medida mais adequada a afastar tal situação, face ao leque das que são estabelecidas pelo legislador no art.º 35.º, n.º 1 da LPCJP, sendo que estamos perante um processo urgente (art. 102º, da mesma Lei), ou seja, em que tais propósitos devem ser alcançados de forma mais expedita possível.
Nesse percurso, o da escolha da medida a adoptar, o tribunal deve nortear-se pelos princípios estabelecidos pelo legislador no art.º 4.º, com destaque aqui para os do interesse superior da criança, intervenção mínima, da proporcionalidade e actualidade, responsabilidade parental, primado da continuidade das relações psicológicas profundas e prevalência da família (1).
De entre esses, em qualquer circunstância, deve prevalecer o do melhor interesse da criança, aquele dos quais quase todos os restantes princípios a observar são concretização ou reflexo.

A legislação e a jurisprudência, nacionais e internacionais, têm afirmado a preponderância, nos processos de regulação do poder paternal, do interesse do menor na definição do regime parental das crianças.

Vide nesse sentido, além do acima citado, por exemplo:
- O art. 3º, da referida Convenção das Nações Unidas, onde se impõe que (1.) todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança;
- O art. 22º, da Convenção de Haia de 1996, onde refere que, sic, a aplicação da lei indicada pelas disposições do presente capítulo apenas poderá ser recusada se esta aplicação for manifestamente contrária à ordem pública, tendo em consideração os melhores interesses da criança;
- O preâmbulo dessa Convenção, onde se afirma que os melhores interesses da criança devem constituir consideração primordial;
- O art. 1906º, nº 7, do Código Civil, onde se estabelece que o tribunal decidirá sempre de harmonia com o interesse do menor, incluindo o de manter uma relação de grande proximidade com os dois progenitores, promovendo e aceitando acordos ou tomando decisões que favoreçam amplas oportunidades de contacto com ambos e de partilha de responsabilidades entre eles.
Sendo certo que, o interesse do menor é um conceito jurídico indeterminado, é necessário recorrer a critérios de oportunidade, de acordo com o caso concreto, de modo a concretizar o seu conteúdo.
O interesse do menor comporta diversos conteúdos consoante cada caso particular. Todavia, esses reconduzem-se essencialmente à defesa e melhoria de todos os factores que contribuem para o seu melhor desenvolvimento e satisfação das suas necessidades.
Entre esses, é determinante a qualidade, estabilidade e profundidade das relações afectivas indispensáveis ao seu são desenvolvimento.
Assim, o escopo fundamental da actividade do tribunal deve ser o de conseguir a melhor solução possível face às circunstâncias concretas do caso, procurando assegurar o mínimo de desestabilização e descontinuidade da vida da criança.
No caso, a decisão recorrida expressou entendimento de que, sic: Perante as acusações reiteradas ao procedimento da A.A.C., o C.D.S.S. deverá indicar em 5 dias nova instituição no concelho de Guimarães, a fim de que não haja acusações de falta de isenção.
Esta decisão, que podia ser lida como preliminar da mudança questionada, não deixa de poder ser interpretada como tal, não tendo o Tribunal expressado outro entendimento, maxime quando admitiu, sem mais, o recurso dessa sua decisão, razão pela qual a iremos ler como decisão dessa alteração.

Tendo isto em conta, perscrutando na decisão em crise os motivos que imporiam, à luz desse propósito, a alteração dos moldes em que está a ser executada a medida aplicada, mais concretamente a ditada alteração da instituição residencial que acolhe a criança, temos de conceder razão aos Recorrentes quando afirmam que ela carece de sustento.
Sendo certo que estamos perante processo de jurisdição voluntária (art. 100º, da L.P.C.J.P.), em que a decisão do julgador pode ser assente em critérios de oportunidade e conveniência, o que se torna até premente na matéria relacionada com os direitos das crianças, ela não pode, no entanto, deixar de ter como objectivo o seu melhor interesse.
Ora, no caso, o que transparece da decisão é apenas a necessidade de ir ao encontro de alegações indemonstradas dos progenitores - as ditas “acusações”, em suma, fazendo um julgamento sumário das mesmas, sem prova ou sequer concretização (na decisão) de algum facto que o justificasse, como é exigível (cf. art. 154º, nº1, do Código de Processo Civil).
Todavia, o que torna a decisão em apreço mais desconforme com o direito aplicável é falta de ponderação do melhor interesse da criança: em que é que essa mudança, em concreto, beneficiará o J., criança cuja única “família” que tem há mais de dois anos, por inépcia dos pais biológicos, é a instituição em que está acolhida?
Cremos que em nada, pelos dados de que dispomos.
Os pais desta criança têm sido figuras ausentes ou inconstantes, disruptivas e egoístas no interesse que prosseguem, como ressalta do seu comportamento e dos relatórios forenses constantes dos autos.
Deste modo, havendo necessidade de ponderar de forma segura e urgente os passos seguintes tendentes à definição do futuro do J., a criação de vínculos com essa criança deve ser feita de forma eficaz mas sem deixar de ter em atenção o melhor interesse daquele, o que, no caso, não se vislumbra.
Isso bastaria, segundo o princípio acima definido, para se evitar essa decisão, se não houvesse na lei processual aplicável norma expressa que vinca a existência de um direito da criança nessa matéria, como é a estabelecida no art. 58º, nº 1, al. g), da L.P.C.J.P.: (1) A criança e o jovem acolhidos em instituição, ou que beneficiem da medida de promoção de protecção de acolhimento familiar, têm, em especial, os seguintes direitos: g) Não ser transferido da casa de acolhimento ou da família de acolhimento, salvo quando essa decisão corresponda ao seu superior interesse; (…).
Deve, por tudo que fica dito, ser revogada decisão em apreço, julgando-se procedente a impugnação suscitada pelos Recorrentes.

2.2. Da renovação da perícia

No seu recurso, o Digno Magistrado do Ministério Público impugna a decisão do Tribunal a quo alegando, em suma, o que consta do item 2º das suas conclusões e invocando a violação do disposto nos arts. 487º e 615º, nº b), do Código de Processo Civil, que considera aplicáveis ex vi art. 126º, da L.P.C.J.P..
Começamos por discordar desta última referência legal, dado que os autos não patenteiam estar em fase de debate judicial e essa norma reporta-se a essa fase do processo em curso e não às fases precedentes, de instrução e decisão negociada que tardam em findar.
Sem prejuízo disso, sempre se dirá que o processo civil comum e as suas normas especiais respeitantes aos processos de jurisdição voluntária constituem, em nosso entender, direito subsidiário aplicável a este processo especial de jurisdição voluntária (cf. arts. 549º e 986º e ss., do Código de Processo Civil).

Tendo isso em mente, o que podemos dizer sobre a invocação da “violação do disposto” no citado art. 615º, nº 1, al. b) (2), do Código de Processo Civil?
Desde logo, há que deixar dito que, tecnicamente esta norma estabelece o vício presente na decisão supostamente afectada pela falta apontada e não a regra “violada”. Esta estará antes, neste caso, prevista, se nos ativermos ao direito ordinário, v.g., nos dispositivos dos arts. 154º e 607º, do Código de Processo Civil.
Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de actividade que afecta a validade da sentença.
Já ensinava a este propósito ALBERTO DOS REIS que (3) «Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto.» (4)
Nas palavras precisas de Tomé Gomes (5), «Assim, a falta de fundamentação de facto ocorre quando, na sentença, se omite ou se mostre de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar. Situação diferente é aquela em que os factos especificados são insuficientes para suportar a solução jurídica adoptada, ou seja, quando a fundamentação de facto se mostra medíocre e, portanto, passível de um juízo de mérito negativo. / A falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo factual, na sentença, não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão.»
Conforme se refere de forma lapidar no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.4.95, Raul Mateus, (6)“ (...) no caso, no aresto em recurso, alinharam-se, de um lado, os fundamentos de facto, e, de outro lado, os fundamentos de direito, nos quais, e em conjunto se baseou a decisão. Isto é tão evidente que uma mera leitura, ainda que oblíqua, de tal acórdão logo mostra que assim é. Se bons, se maus esses fundamentos, isso é outra questão que nesta sede não tem qualquer espécie de relevância.” O mesmo Tribunal precisou que a nulidade da sentença por falta de fundamentação não se verifica quando apenas tenha havido uma justificação deficiente ou pouco persuasiva, antes se impondo, para a verificação da nulidade, a ausência de motivação que impossibilite o anúncio das razões que conduziram à decisão proferida a final (Acórdão de 15.12.2011, Pereira Rodrigues, 2/08). Só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade, ou erroneidade – integra a previsão da alínea b) do nº1 do Artigo 615º, cabendo o putativo desacerto da decisão no campo do erro de julgamento – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.6.2016, Fernanda Isabel Pereira, 781/11. (7) «O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal e persuasivo da decisão – mas não produz nulidade.» (8)
A não concordância da parte com a subsunção dos factos às normas jurídicas e/ou com a decisão sobre a matéria de facto de modo algum configuram causa de nulidade da sentença (9).
No caso, relativamente à nova perícia “á progenitora”, não podemos deixar de considerar que o Tribunal a quo omitiu qualquer fundamentação expressa. Temos, portanto, que declarar, nesse aspecto, a nulidade do decidido, com as consequências previstas no art. 665º, do Código de Processo Civil.

Já no caso do progenitor, o Tribunal a quo, adiantou como motivo para determinar nova perícia que aquele “entende” que a perícia foi feita em conivência consigo e com a técnica da AAC, pelo que, bem ou mal, neste caso, está expressa a fundamentação desta particular decisão, razão pela qual, neste caso particular, julgamos improcedente a referida nulidade.

Sem prejuízo do exposto, subsiste a discussão do acerto dessa decisão relativa ao progenitor e da necessidade, ou não, de realização de nova perícia à progenitora.
E nesse ponto julgamos que assiste alguma razão ao Recorrente.
Com efeito, analisando o processo, constatamos que, quanto aos dados periciais recolhidos em Agosto e Setembro de 2020, os progenitores foram expressamente notificados e não reagiram ao relatório no prazo que lhes foi concedido para o efeito, pelo que, a aplicarmos o regime geral do processo civil comum, seja qual for o sentido da posição que tomaram na diligência, está largamente ultrapassado o prazo legal ai previsto para qualquer contraditório (reclamação ou pedido de novas perícias – cf. arts. 485º e 487º, do Código de Processo Civil.
No que toca ao exame que entrou nos autos em 9.11.2020, respeitante ao progenitor, aparentemente a diligência do Tribunal a quo não foi a mesma, este já não foi notificado expressamente do seu relatório e só em conferência terá sido confrontado com ele.

Posto isto, temos de acrescentar que o regime da L.P.C.J.P. se presta a interpretações dúbias sobre a forma como haverá de ou poderá ser exercido o contraditório previsto no art. 3º, do Código de Processo Civil, e o direito fundamental previsto no art. 20º, da Constituição da República Portuguesa, numa análise que se vem centrando essencialmente nos arts. 88º e 104º, da L.P.C.J.P..
No entanto, essa discussão é aqui praticamente impertinente.

Com efeito, incidindo sobre o caso, julgamos que relativamente aos dados periciais colhidos em Agosto e Setembro de 2020, ficou precludida a possibilidade de, em termos formais e cumprindo as regras de processo vigentes, os progenitores os questionarem de acordo com o regime legal aplicável, acima citado.
No que diz respeito ao último relatório pericial, entendemos que não se pode considerar que antes da diligência de 5.1.2021, o progenitor visado teve possibilidade de o conhecer ou se possa presumir, ao abrigo do citado art. 199º, do Código de Processo Civil, que entretanto tomou conhecimento da nulidade ou dela pudesse ter conhecido, agindo com a devida diligência (até por que, como acima demos a entender, ele poderia ser confrontado apenas na conferência e não através de notificação postal prévia).

Sem prejuízo disto, não pode deixar de ser considerado que a realização de uma nova perícia por iniciativa deste progenitor teria de ser sustentada em razões fundadas, para usarmos os termos do aplicável art. 487º, nº 1, do Código de Processo Civil, o que, em nosso entender, não se encontra demonstrado, nem o Tribunal a quo invocou (pelo contrário, parece que Tribunal a quo ter pressuposto que se tratam de alegações falsas e que inclusive podem consubstanciar comportamentos com relevo criminal).
Do tudo o que fica dito, conclui-se que a única possibilidade de admitir uma segunda perícia, em qualquer dos casos (do progenitor ou da progenitora), seria por iniciativa do Tribunal recorrido, o que, em tese, seria admissível, não só nos termos, do disposto no art. 487º, nº 2 (10), do Código de Processo Civil, como da regra especial, do art. 986º, nº 2 (11), do mesmo Código, que já acima vimos serem aqui aplicáveis.
Neste ponto, a ponderação dessa possibilidade conduz-nos novamente à análise dos fundamentos da decisão que em concreto foi proferida.

É que, a não sujeição a critérios de legalidade estrita subjacente aos processos de jurisdição voluntária não comporta a possibilidade de disciplinar o processo sem obediência aos elementares princípios do processo civil, a menos que outros devam prevalecer, como é o caso do superior interesse da criança, e então caberá densificar tal superior interesse que faça claudicar tais princípios pela supremacia de outros (12), e, no caso, esse cuidado não foi observado.
Não foi observado, no caso da progenitora, porque nada consta na decisão acerca do seu fundamento, sendo que, no caso do progenitor, o singelo argumento usado não colhe, pelas razões já acima adiantadas e as infra colhidas.
Estamos, portanto, perante casos em, que por iniciativa das partes/progenitores, seria inadmissível determinar nova perícia, ao abrigo da regra geral do art. 487º, nº 1, do C.P.C., a que acresce a especial circunstância de neste processo de protecção de criança existir regra que vinca o princípio da aquisição processual estabelecendo claramente que “os tribunais devem abster-se de ordenar a repetição de diligências já efectuadas, nomeadamente relatórios sociais ou exames médicos, salvo quando o interesse superior da criança exija a sua repetição ou esta se torne necessária para assegurar o princípio do contraditório”.

Neste contexto, temos de dar parcial razão ao Recorrente: tal como foram (ou não) justificadas e ordenadas e perante os dados que o processo fornece, as novas perícias decididas são inadmissíveis e pouco adiantaram à consolidação dos factos pertinentes, até porque, mais uma vez, se prescindiu do devido contraditório destinado ao envolvimento das partes, incluindo os progenitores, na definição do seu precioso conteúdo (cf. art. 477º, in fine, do Código de Processo Civil).
Em suma, o Tribunal a quo, embora pudesse ter implícitos bons motivos para repetir essas diligências, não adiantou, qualquer razão válida para, à luz do princípio do contraditório e/ou do interesse superior do J., se prolongar a instrução do processo desse modo.
Posto isto, o que se segue?
Em nosso entender, atendendo à circunstância de os dados coligidos até ao momento estarem a abrir caminho para uma solução que pode não passar pelo envolvimento futuro dos progenitores biológicos na vida do J., que já foi demasiado prejudicado pela ausência, inconstância e impreparação daqueles, há que, de uma vez por todas, alicerçar esses indícios ou, então, explorar de forma fundada e expedita a possibilidade de admitir que os mesmos façam parte da solução que se procura – o melhor interesse do J., um resto de infância no seio de uma vida familiar que melhor ampare o seu crescimento como pessoa.
Visando este propósito, julgamos que pode contribuir para essa definição e ao mesmo tempo satisfazer a necessidade de realização efectiva (que dificilmente terá substância sem o devido patrocínio forense) do contraditório a exercer pelos progenitores, que só recentemente passaram a estar representadas por mandatários forenses, a concessão de prazo para que estes e todos os demais intervenientes, se pronunciem sobre os exames em causa e, de forma fundada, requeiram, se for caso disso, o que tiveram por conveniente, para, posteriormente, se for necessário, ou seja, se o Tribunal a quo encontrar razões para as pretensões formuladas, se proceder a algum esclarecimento das perícias realizadas e/ou renovação das mesmas de forma objectiva e precisa (que deve envolver a formulação de questões concretas), sempre com o contributo de todos os envolvidos na definição das que deverão ser objecto de esclarecimento ou renovado exame (aliás com ditam as regras comuns do processo civil e o bom senso que se presume delas emanar).
Julgamos assim que este procedimento e o respeito das regras estabelecidas no processo será interessante para a consolidação dos factos em apreço, o que se presume ser do superior interesse do J., que com certeza pretende que todas as hipóteses de envolver ou não os seus pais biológicos no seu futuro sejam esgotadas de forma exaustiva e segura.
É, por estas razões, que se revoga a decisão proferida, quanto o progenitor, e, anulada a decisão respeitante à progenitora, se substituem ambas pela decisão infra expressa, que é proferida ao abrigo do disposto nos arts. 986º, nº 2, do Código de Processo Civil, e da excepção admitida pelo citado art. 83º, in fine, da L.P.C.J.P..

IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em:

I- Julgar procedente a apelação do menor J. e do Ministério Público e revogar a decisão recorrida no que diz respeito à pretendida mudança da instituição que o acolhe;
II- Julgar parcialmente procedente o recurso do Ministério Público, no que diz respeito às perícias ordenadas e, em conformidade:
a. Anular a decisão respeitante à progenitora, nos termos do art. 615º, nº 1, al. b), do C.P.C.;
b. Revogar a decisão respeitante ao progenitor;
c. Em sua substituição, conceder a todos os intervenientes o prazo de 10 dias para se pronunciarem sobre os exames periciais que foram realizados aos progenitores, tendo em mente os propósitos acima expostos.

Sem custas, tendo em conta o sentido da decisão e a qualidade dos recorrentes (cf. arts. 527º, do Código de Processo Civil, e 4º, als. a) e i), do R.C.P.).
N.
*
Guimarães, 08-04-2021

Relator – Des. José Flores
1º - Des. Conceição Sampaio
2º - Des. Elisabete Coelho de Moura Alves



1. A intervenção para a promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo obedece aos seguintes princípios: a) Interesse superior da criança e do jovem - a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afecto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto; b) Privacidade - a promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem deve ser efectuada no respeito pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada; c) Intervenção precoce - a intervenção deve ser efectuada logo que a situação de perigo seja conhecida; d) Intervenção mínima - a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas entidades e instituições cuja acção seja indispensável à efectiva promoção dos direitos e à protecção da criança e do jovem em perigo; e) Proporcionalidade e actualidade - a intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade; f) Responsabilidade parental - a intervenção deve ser efectuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o jovem; g) Primado da continuidade das relações psicológicas profundas - a intervenção deve respeitar o direito da criança à preservação das relações afectivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante; h) Prevalência da família - na promoção dos direitos e na protecção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adopção ou outra forma de integração familiar estável; i) Obrigatoriedade da informação - a criança e o jovem, os pais, o representante legal ou a pessoa que tenha a sua guarda de facto têm direito a ser informados dos seus direitos, dos motivos que determinaram a intervenção e da forma como esta se processa; j) Audição obrigatória e participação - a criança e o jovem, em separado ou na companhia dos pais ou de pessoa por si escolhida, bem como os pais, representante legal ou pessoa que tenha a sua guarda de facto, têm direito a ser ouvidos e a participar nos actos e na definição da medida de promoção dos direitos e de protecção; k) Subsidiariedade - a intervenção deve ser efectuada sucessivamente pelas entidades com competência em matéria da infância e juventude, pelas comissões de protecção de crianças e jovens e, em última instância, pelos tribunais.
2. É nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
3. In Código de Processo Civil Anotado, V Volume, p. 140
4. No mesmo sentido, vejam-se Acórdão da Relação de Coimbra de 14.4.93, Ruy Varela, BMJ nº 426, p. 541, Acórdão da Relação do Porto de 6.1.94, António Velho, CJ 1994- I, p. 197, Acórdão da Relação de Évora de 22.5.97, Laura Leonardo, CJ 1997-II, p. 266, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.2004, Oliveira Barros, acessível em www.dgsi.pt/jstj, RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de Processo Civil, III Vol., LEBRE DE FREITAS e OUTROS, Código de Processo Civil Anotado, II Vol., 2001, p. 669.
5. In Da Sentença Cível, p. 39
6. In CJ 1995 – II, p. 58
7. No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28.5.2015, Granja da Fonseca, 460/11, de 10.5.2016, João Camilo, 852/13.
8. Luís Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos, Quid Juris, p. 116.
9. Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.5.2012, Gilberto Jorge, 91/09
10. 2 - O tribunal pode ordenar oficiosamente e a todo o tempo a realização de segunda perícia, desde que a julgue necessária ao apuramento da verdade.
11. 2 - O tribunal pode, no entanto, investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes; só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias.
12. Aqui reproduzimos a doutrina que a propósito se inscreveu no Comentário à Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, da Procuradoria-Geral Regional do Porto, p. 413