PROPRIEDADE INTELECTUAL
DENOMINAÇÃO SOCIAL
MARCAS
AÇÃO DE ANULAÇÃO
CONCORRÊNCIA DESLEAL
NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
Sumário


Quando se aprecia a confundibilidade entre uma marca e um nome de domínio, para determinar se há concorrência desleal, deve distinguir-se a atribuição e o uso do nome de domínio — ainda que a atribuiçãodo nome de domínio seja válida e eficaz, o uso de um nome de domínio poderá ser ilícito.

Texto Integral



ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. — RELATÓRIO

1. Entreposto Setúbal – Comércio de Viaturas e Máquinas SA, com sede na ... nº ... em ..., propôs a presente acção, seguindo a forma de acção comum contra Sportagus – Comércio de Automóveis Lda, com sede na Rua ... lote ... ... na ..., pedindo:

a) a anulação da denominação social da Ré, com as consequentes comunicações e averbamentos junto do RNPC, incluindo a determinação do cancelamento dos respectivos registos e matrícula;

b) a anulação e determinação da remoção do nome do domínio www.sportagus.com ou, em alternativa, à escolha da Autora, a sua transmissão para a Autora;

c) a condenação da Ré a abster-se por si própria, pelos seus representantes ou por interposta pessoa, de usar a expressão “Sportagus” como denominação social, marca, logótipo, nome de domínio, sinalética, merchandising, nos social media ou outros;

d) a condenação da Ré no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, em valo a determinar pelo Tribunal por cada dia de incumprimento da decisão judicial, a contar do respectivo trânsito em julgado até efectivo e integral cumprimento.

 2. O Tribunal da Propriedade Intelectual julgou parcialmente procedente a acção.

 3. O dispositivo da sentença proferida pelo Tribunal da Propriedade Intelectual é do seguinte teor:

Por tudo o explanado e nos termos sobreditos, julgo parcialmente  procedente por provada a presente acção e consequentemente:

a) Anulo a denominação social da Ré, notificando o Instituto de Registo e Notariado para proceder ao respectivo cancelamento;

b) Condeno a Ré a abster-se de usar a expressão “Sportagus” isoladamente ou em conjunto com outros elementos como denominação social, marca, logótipo, nome de domínio, sinalética, merchandising ou outro meio;

c) Condeno a Ré a remover o nome de domínio www.sportagus.pt;

d) Condeno a Ré a pagar uma sanção pecuniária compulsória, no valor de 200€ por cada dia de incumprimento das injunções decretadas nas al b) e c);

e) Absolvo a Ré do pedido de litigância de má fé.

Custas a cargo da Autora e Ré na proporção de 1/5 e 4/5 respectivamente (art 527 nº 1 e 2 do CPC).

 4. Inconformada, a Ré Sportagus – Comércio de Automóveis, Lda., interpôs recurso de apelação.

5. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

a) A protecção da marca é limitada em relação a produtos ou serviços idênticos ou afins aos produtos ou serviços abrangidos pelo registo (nº 1 do art.º 249º do CPI).

b) A imitação entre uma marca e uma denominação só existe quando a imitada e a imitante digam respeito ao mesmo produto ou serviço ou a produtos ou serviços semelhantes, ou afins (neste sentido, vide, o Acórdão do STJ, de 28/09/2010, tirado no Recurso nº 235/05.0TYLSB.L1.S1).

c) A marca da ora recorrida foi registada em sede de “gestão de negócios comerciais, promoção de vendas para terceiros, difusão de material publicitário, incluindo objectos promocionais e marketing, publicidade via multimédia e através de redes mundiais de informática (internet).

d) O que, ao contrário do decidido na douta Sentença ora recorrida, nada tem a ver com o objeto social da recorrente, que não tem por actividade gerir negócios comerciais, não promove vendas para terceiros, não difunde material publicitário, nem tem por actividade a publicidade por qualquer via.

e) Tendo antes por objeto o comércio de automóveis, motociclos, barcos, manutenção e reparação de veículos, aluguer de veículos e intermediação financeira.

f) Pelo que, ao contrário do decidido na douta Sentença recorrida, não existe confundibilidade entre a denominação da ora recorrente e a marca da recorrida.

g) Assim, a douta Sentença padece de erro de julgamento, não podendo permanecer na ordem jurídica, o que se requer a Vossas Exas.

Nestes termos, nos melhores de direito, sempre com o douto suprimento de V. Exas., deve o presente Recurso ser julgado procedente por provado, revogada a douta Sentença do Tribunal “a quo”, e julgada parcialmente improcedente por não provada a acção na origem dos presentes autos, nos termos expostos, com todas as consequências legais daí advindas.

 6. A Autora Entreposto Setúbal - Comércio de Viaturas e Máquinas, S.A.,

  I. — contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso,

  II. — interpôs recurso subordinado.

7. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

II. Tendo o Tribunal a quo, reconhecido que a Ré/Apelante i) alegou que o estabelecimento da A. não se denominava “Sportagus”; e ii) juntou aos autos, para prova de tal alegação, fotografia parcial do edifício onde se localiza o estabelecimento, omitindo precisamente, e dolosamente, a parte da fachada do edifício onde se encontra afixada a denominação “Sportagus”, estão preenchidos todos os requisitos para que exista condenação da Ré/Apelante como litigante de má fé.

III. De facto, e contrariamente ao que resulta da sentença a quo, o instituto da litigância de má fé, e a sua aplicação, não dependem da aptidão maior ou menor que os actos praticados têm para atingir um determinado fim, in casu, ser bem-sucedidos no objectivo de enganar o Tribunal e distorcer a verdade.

IV. O predito é pacificamente aceite pelas melhores Doutrina e Jurisprudência, sendo apenas exigível que seja possível formular um juízo intenso de censurabilidade pela actuação.

V. Salvo o devido respeito, que é muito, será impossível, no caso em apreço, não censurar veementemente a postura da Ré/Apelante, já que, objectivamente, temos em análise a comparação de sinais distintivos de comércio e uma denominação social “SPORTAGUS”, absolutamente idênticos, para assinalar a actividade de comércio automóvel.

VI. Temos deste modo, por um lado, a absoluta identidade entre a actividade exercida pela A./Apelada e assinalada pelo Logótipo n.º 29703 “SPORTAGUS”, e o objecto social prosseguido pela firma da Ré/Apelante, sob a denominação social “SPORTAGUS”: comércio de automóveis. Por outro lado, existe também densa afinidade entre os serviços assinalados na classe 35ª pela Marca Nacional n.º 395599 “SPORTAGUS” da A./Apelada, e o objecto social prosseguido pela Ré/Apelante.

VII. Ao predito acresce que os estabelecimentos que se localizam pertíssimo um do outro: para fácil referência, recordamos as capturas de ecrã do Google maps exibidas no art.º 63 da Petição Inicial, identificando os trajectos a pé (1,9 km!), e de automóvel (cerca de 3 km), entre a sede da Ré/Apelante sita na Rua dos Lusíadas, 1, Vale Figueira, 2815-854 Sobreda, e o estabelecimento SPORTAGUS da A./Apelada, sito na Rua Joaquim Pires Jorge, 28, Feijó, 2810-083 Almada.

VIII. Estando, portanto, demonstrado que a Ré/Apelante não só conhecia a situação de confusão que tinha criado, como acima de tudo, queria essa mesma confusão, tudo isto, servindo, em modesta opinião, de forma amplamente suficiente para que não existam dúvidas quanto ao dolo da actuação da Ré. Não poderia o Tribunal a quo ter deixado de condenar a Ré/Apelante como litigante de má fé, tal como peticionado, urgindo alterar-se a sentença proferida nesta parte, o que por esta via de recurso subordinado se requer.

IX. O comportamento contrário à Boa Fé é ainda adensado, pela própria interposição do recurso de apelação, eivada de má fé, não sendo mais do que um meio para protelar o trânsito em julgado da decisão proferida pelo Tribunal a quo, e portanto, caindo no reduto de aplicação da alínea d) do art.º 542.º do CPC: o articulado de recurso tem meros artigos, e se atentarmos nas alegações, verificamos, uma vez mais, que a Ré/Apelante insiste em tentar ludibriar o Tribunal, omitindo de forma descarada que a A./Apelada é titular não só da Marca Nacional n.º 395599 “SPORTAGUS”, como é titular do Logótipo n.º 29703 “SPORTAGUS”, ambos direitos válidos e em vigor, que conferem ao seu titular um direito de exclusivo, e sendo que o logótipo assinala precisamente a actividade da A./Apelada, não havendo sequer que formular juízos de afinidade.

X. Por tudo o supra exposto, e na senda dos ensinamentos do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no âmbito do processo n.º 1639/14.2TBVCT.G2, datado de 11/05/2017, disponível em www.dgsi.pt, impõe-se seja a Ré/Apelante condenada como litigante de má fé, mais aqui se peticionando que lhe sejam aplicadas as duas sanções previstas na lei: multa e indemnização à parte contrária, i.e., à A./Apelada, em montante que este Tribunal douta e prudentemente determine.

 8. O Tribunal da Relação de Lisboa julgou o recurso parcialmente procedente.

           

9. O dispositivo do acórdão recorrido é do seguinte teor:

Pelo exposto, acordam os juízes que compõem a Secção da Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente provido o recurso o recurso principal interposto e, consequentemente, revogar a decisão recorrida na parte em que condena a recorrente a abster-se de usar a expressão “Sportagus” como nome de domínio e em que condena a recorrente a remover o nome de domínio www.sportagus.pt. .

No mais mantém a decisão recorrida.

Mais julgam improcedente o recurso subordinado intentado por Entreposto Setúbal - Comércio de Viaturas e Máquinas, S.A.

Custas no recurso principal pela recorrente e pela recorrida repartindo as mesmas em ¾ (três quartos) para aquela e ¼ (um quarto) para esta.

Custas no recurso subordinado pela recorrente Entreposto Setúbal - Comércio de Viaturas e Máquinas, S.A.

 8. Inconformada, a Autora Entreposto Setúbal – Comércio de Viaturas e Máquinas SA, interpôs recurso de revista.

9. Finalizou a sua aletação com as seguintes conclusões:

I. Entende a A./Apelada e aqui recorrente, que a presente Revista é admissível porquanto:

a) Está em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente imprescindível para uma melhor aplicação do direito;

b) Estão em causa interesses de particular relevância social e;

c) O douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa está em contradição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Lisboa proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, datado de 26-02-2015, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

II. Em sede de 1.ª Instância, foi proferida sentença mediante a qual a acção intentada pela A./Apelada, e aqui Recorrente, ENTREPOSTO SETÚBAL - COMÉRCIO DE VIATURAS E MÁQUINAS, S.A., contra a sociedade SPORTAGUS – COMÉRCIO DE AUTOMÓVEIS, LDA., foi julgada totalmente procedente por provada, determinando-se a anulação da denominação social e a cessação imediata do uso não autorizado de sinais, e a proibição do uso futuro, incluindo a denominação social acima, e o nome de domínio www.sportagus.com, por constituirem imitação e usurpação dos direitos registados da A./Apelada, em clara violação do direito de exclusivo detido pela A., ao arrepio das normas estatuídas nos artigos 224.º, 245.º, 258.º, 304.º-A, 304.º-N e 317.º n.º 1, alíneas a) e c), todos do CPI (na sua versão anterior, aplicável ao caso).

III. No seguimento da interposição de Recurso de Apelação pela R./Apelante, com data de 06 de Outubro de 2020, foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que julgou parcialmente procedente o recurso, revogando a decisão recorrida na parte em que condena a recorrente a abster-se de usar a expressão como nome de domínio e em que condena a recorrente a remover o nome de domínio www.sportagus.pt.

IV. A solução preconizada por via do Douto Acórdão aqui sindicado é, em suma, a seguinte:

i. A A./Apelada e aqui Recorrente, é titular de direitos prioritários sob a expressão “Sportagus”, v.g. os que decorrem da titularidade do Logótipo n.º 29703 “SPORTAGUS”, válido e em vigor em Portugal, para assinalar a actividade de comércio de automóveis, pedido em 14/05/2002 e cujo registo veio a ser concedido em 14/09/2004.

ii. Em face desse direito prioritário, a denominação social da R./Apelante SPORTAGUS – COMÉRCIO DE AUTOMÓVEIS, LDA. não pode subsistir (vide página 7, 3.º parágrafo do referido acórdão) já que consubstancia uma clara imitação daquele, nos termos do disposto no art.º 245.º do CPI (actualmente art.º 238.º n.º 1) e possibilita, portanto, a indução em erro ou confusão que a Lei, designadamente o art.º 33.º do DL n.º 129/98 de 13 de Maio na sua redacção actual pretende evitar.

iii. O art.º 10.º das “Regras de Registo de Nomes de Domínio .pt” dispõe que o nome de domínio não pode corresponder a nomes que induzam em erro ou confusão sobre a sua titularidade, e não resta qualquer      dúvida que o nome de domínio www.sportagus.pt induz em erro ou confusão sobre a sua titularidade.

iv.  Não obstante o predito, e sublinhe-se, estamos perante a comparação do logótipo SPORTAGUS com o nome de domínio SPORTAGUS (parte caracterizante), conclui o referido Acórdão – surpreendentemente, não pode deixar de se consignar - pela inexistência de fundamento para a pretensão da A./Apelada e aqui recorrente, de ver a R./Apelante condenada a abster-se usar a expressão “Sportagus” como nome de domínio. (página 9 in fine).

V. No entendimento da aqui recorrente, a decisão do Acórdão resultou de uma errónea aplicação e interpretação das disposições conjugadas do art.º 10.º das Regras de Registo de Nomes de Domínio de .pt, da associação DNS.pt, e dos arts. 224.º n.º 1, 245.º n.º 1, 304.º N e 317.º n.º 1 alínea a) do CPI.

VI. A questão jurídica subjacente ao presente recurso incide, por conseguinte, na interpretação e aplicação daquelas normas e, mais concretamente, na determinação de poder ou não subsistir um nome de domínio que induz o consumidor padrão em erro ou confusão quanto à sua titularidade, significando tal subsistência uma coexistência no mercado com direitos de propriedade industrial iguais, e, consequentemente, na determinação da dimensão do exclusivo que um direito de propriedade industrial, nomeadamente uma marca ou logótipo conferem ao seu titular.

VII. Estas questões, decididas de forma adequada pela primeira instância, foram objecto de decisão diferente pela Relação, tratando-se de questões com uma repercussão que vai muito para além dos interesses das partes no caso concreto e que, por esse facto, justifica a sua reapreciação, a título excepcional, pelo STJ, por se revestir de extrema relevância, quer jurídica, quer social (alíneas a) e b), do art. 672.º, n.º 1).

VIII. São questões de enorme relevância jurídica porque não têm ainda solução sedimentada, razão pela qual se justifica a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça na prossecução da sua função jurisprudencial uniformizadora que evite, de ora em diante, dissonâncias interpretativas que ponham em causa a boa aplicação do Direito. Bem como se tratam de questões que, independentemente da decisão que sobre elas verse, produzirão efeitos no funcionamento leal do mercado, onde operam milhões de consumidores, nacionais e estrangeiros, v.g., titulares de marcas, logótipos e nomes de domínio, que indirectamente serão afectados pela solução que vier a ser adoptada.

IX. Importa esclarecer quanto à boa aplicação do Direito, para que não se permita que o conteúdo do direito de propriedade industrial - que é um direito absoluto, com as garantias estabelecidas por lei para a propriedade em geral, conforme estatui o art.º 316.º do CPI, e merecedor de tutela constitucional, de natureza análoga à dos “direitos, liberdades e garantias”, beneficiando, assim, do regime constitucional que a estes é aplicável, conforme resulta do artigo 17.º da Constituição da República Portuguesa - seja marca, seja logótipo, fique afectado irremediavelmente naquela que e a sua função primordial – a função distintiva – e para que se estabeleça, em definitivo, o repúdio de qualquer solução que permite que se institua no mercado o risco de confusão entre diferentes origens empresariais, sobretudo, quando estas são concorrenciais.

X. Portanto, transitasse o acórdão se aqui não fora sindicado, como é, deparávamo-nos com uma situação mediante a qual, a R./Apelante não pode continuar a usar denominação social contendo a expressão “SPORTAGUS”, nem isoladamente nem em conjunto com outros elementos, nem pode usar essa expressão como marca, logótipo, sinalética, merchandising ou qualquer outro meio… excepto, como nome de domínio, permitindo-se que um titular de direitos de propriedade industrial válidos e em vigor, veja o seu direito de exclusivo afectado, irremediavelmente, por um concorrente directo, aceitando-se como possível que o consumidor seja induzido em erro ou confusão, sem contudo censurar tal comportamento.

XI. É, pois, inegável, que estamos na presença de questões com notória relevância jurídica, por um lado, reclamando-se uma melhor aplicação do Direito, por outro, sob pena de se comprometer um dos pilares fundamentais do Estado de Direito: o princípio da segurança jurídica.

XII. É patente que as questões objecto do litígio interferem com direitos de relevante dimensão social, como é o caso dos direitos da propriedade industrial, adquirindo uma dimensão que ultrapassa os limites da causa e acaba por poder afectar o futuro de um número indeterminado de sujeitos jurídicos, os consumidores, nomeadamente, titulares de marcas, logótipos e nomes de domínio, sendo hoje indiscutível a relevância que a propriedade industrial assume ao nível da criação de emprego e crescimento económico, criando valor nas empresas.

XIII. Ora, a interpretação e aplicação das normas referidas, num ou noutro sentido, será determinante para a forma como os agentes no mercado irão proceder, assim interferindo com a leal concorrência entre eles e com o exercício dos direitos de propriedade industrial, sendo de sublinhar que nos termos do art.º 1.º do CPI, a propriedade industrial desempenha a função de garantir a lealdade da concorrência, pela atribuição de direitos privativos.

XIV. O sentido da interpretação e aplicação das normas em questão é susceptível de ter um impacto social e jurídico de dimensão muito para além do caso sub iudice, pelo que o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça nestas circunstâncias é determinante para permitir uma melhor prossecução da Justiça.

XV. Acresce que, o acórdão aqui sindicado contraria flagrantemente o entendimento plasmado no Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do processo n.º 1288/05.6TYLSB.L1.S1, datado de 26/02/2015, cuja cópia se junta como Doc. 1, tendo sido requerida respectiva certidão cfr. Doc. 2, desde já se protestando juntar a certidão quando seja emitida.

XVI. Dos ensinamentos vertidos no supra referido Acórdão, retiram-se com especial relevo para a questão em apreço, em face do seu completo antagonismo relativamente ao Acórdão colocado em crise, que, patentemente, se estabelece que o nome de domínio tem um valor e função comercial que permite cativar o consumidor e orientá-lo deliberadamente para os produtos e serviços da empresa que utiliza esse nome de domínio, sendo, portanto, muito mais que um meio técnico-operativo como resulta do Acórdão posto em crise mediante o qual se entende que «(…) o domínio não é um elemento de marca de molde a se poder considerar que por se detém a marca se detém o direito exclusivo a um domínio que tenha o mesmo nome que a marca».

XVII. Mas o Acórdão-Fundamento do Supremo Tribunal de Justiça vai ainda mais longe, afirmando que o nome de domínio tem uma especial e particular importância, coincidente com sinais distintivos, permitindo ao consumidor médio individualizar o endereço de uma empresa, sem a conhecer previamente, através de um modelo de pesquisa simples.

XVIII. São evidentes os aspectos de identidade entre as situações objecto das decisões que se contradizem: estão em causa em ambos os processos, e no que ao presente recurso interessa, direitos de propriedade industrial (marcas e logótipos) e nomes de domínio absolutamente idênticos – “Sportagus” no caso em apreço, e “Niceday” no caso do Acórdão-Fundamento – para assinalar actividade concorrencial directa de agentes distintos, tendo-se preconizado decisões diferenciadas para a mesma questão fundamental de direito – no caso sub judice, o Tribunal da Relação de Lisboa determinou que o nome de domínio não pode violar o direito de propriedade industrial, já no caso do Acórdão-Fundamento, a solução plasmada é a oposta, tendo o Supremo Tribunal de Justiça entendido que o nome de domínio pode traduzir lesão da lei da propriedade industrial no que tange às regras de protecção de marcas e da concorrência desleal.

XIX. Ora, acontece que o Acórdão da Relação de Lisboa, aqui posto em crise, é nulo, por excesso de pronúncia, nos termos do estatuído no art.º 615.º n.º 1 alínea d), aplicável ex vi art.º 666.º n.º 1 do CPC. O recurso interposto pela R./Apelante abordava apenas uma única questão aí se apelando à improcedência parcial da acção, apenas se refere à comparação da Marca Nacional n.º ... com a denominação social. Logo, nunca se referindo à comparação entre a denominação social e o logótipo n.º ... pelo que, nesta parte, e salvo melhor entendimento, a decisão de 1.ª instância transitou.

XX. O âmbito do recurso é delimitado pelas suas próprias conclusões, contudo, e para o que ao presente recurso releva, o Acórdão recorrido entendeu serem de decidir as questões de a) Saber se entre a marca e o logotipo da recorrida e a denominação social da recorrente existe confundabilidade, atendendo, em particular à área de negócio de ambos e b) Saber se, assim sendo é legítimo decretar as medidas que forma decretadas.

XXI. Ora, não só não se trata de uma “questão a decidir” pois o recurso encontra-se balizado pelas conclusões da R./Apelante, que nunca afloram a questão do nome de domínio, como, salvo o devido respeito, não faz sequer qualquer sentido, pois essa é uma consequência da questão decidida (e transitada em julgado) da imitação de logótipo através da denominação social e nome de domínio.

XXII. Anda que não se entenda ter havido excesso de pronúncia pelo Tribunal da Relação de Lisboa, hipótese que se coloca meramente à cautela por dever de patrocínio, ainda assim o Acórdão recorrido decidiu contrariando a Lei e a jurisprudência, nomeadamente do Supremo Tribunal de Justiça conforme se dá conta.

XXIII. O nome de domínio, tal como a sinalética aposta na fachada de um edifício, como o papel timbrado e tantos outros suportes, constitui veículo de disseminação de informação e de identificação de uma empresa, mas não confere um direito de exclusivo, sendo, no entanto, perfeitamente apto de violar direitos exclusivos de propriedade industrial.

XXIV. Existe abundante jurisprudência nessa matéria, pelo que o Acórdão aqui sindicado segue um caminho totalmente ao arrepio do que é aceite maioritariamente, e ao arrepio das normas privadas da associação DNS.PT, nomeadamente a plasmada no art.º 10.º das “Regras de Registo de Nomeas de Domínio .pt”, permitindo-nos sublinhar quer as decisões arbitrais proferidas pelo Arbitrare – Centro de Arbitragem para a Propriedade Industrial, Nomes de Domínio e Denominações (disponíveis em https://www.arbitrare.pt/pt/senten%C3%A7as/), quer para além do Acórdão-Fundamento, o Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do processo n.º 295/02, datado de 23/04/2002, disponível em www.dgsi.pt.

XXV. Ora, o titular de um nome de domínio não possui qualquer direito exclusivo que possa accionar e executar contra terceiros, apenas possui o direito contratual a um especifico nome de domínio nos termos e pela duração do respectivo contrato, estando a regras que preveem, nomeadamente, que o nome de domínio não pode corresponder a nomes que induzam em erro ou confusão sobre a sua titularidade.

XXVI. In casu essa possibilidade de erro ou confusão existe com relação ao confronto entre o direito de logótipo e o nome de domínio, exactamente do mesmo modo e à semelhança do que se concluiu com relação ao confronto entre o logótipo e a denominação social, o que é inclusivamente afirmado pelo Acórdão aqui sindicado.

XXVII. Logótipo e Nome de Domínio (na sua parte caracterizante) são absolutamente idênticos, e o nome de domínio dirige o consumidor para um sítio de internet cujo conteúdo se refere à actividade desenvolvida pela R./Apelante, ou seja, o comércio de automóveis, precisamente a mesma actividade assinalada pelo logótipo da aqui recorrente.

XXVIII. Deste modo, o Acórdão recorrido enferma de claro erro de interpretação e aplicação das “Regras de Registo de Nomes de Domínio de .pt” da DNS.PT, bem como da sua concatenação com as normas dos arts. 224.º n.º 1, 245.º n.º 1, 304.º N e 317.º n.º 1 alínea a) todos do CPI, comprometendo, com uma solução peregrina, o direito de exclusivo dos titulares de marcas e logótipos que decorre do art.º 224.º do CPI, permitindo a manutenção de uma clara situação de concorrência desleal, a efectivar-se por via da internet, o maior mercado da actualidade, permitindo que o consumidor seja induzido em erro ou confusão, ao arrepio das mais elementares regras da propriedade industrial e de Direito!

XXIX. Deverá, portanto, conceder-se provimento ao recurso, revogando-se o douto Acórdão recorrido, na parte em que determinou a parcial procedência do recurso principal interposto pela R./Apelante, revogando a decisão recorrida na parte em que condenara a R./Apelante a abster-se de usar a expressão “Sportagus” como nome de domínio e a remover o nome de domínio www.sportagus.pt,

Assim decidindo, Colendos Conselheiros, uma vez mais se fará a costumada, e esperada, JUSTIÇA!

10. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cf. arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608.º, n.º 2, por remissão do art. 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), as questões a decidir, in casu, são as seguintes:

 I. — se o acórdão recorrido é nulo, por excesso de pronúncia;

       em caso de resposta negativa à primeira questão,

 II. — se o uso pela Ré da expressão “Sportagus” como nome de domínio conflitua com as “Regras de Registo de Nomes de Domínio de .pt”, em ligação com os arts. 224.º n.º 1, 245.º n.º 1, 304.º-N e 317.º, n.º 1, alínea a), do Código da Propriedade Industrial.

II. — FUNDAMENTAÇÃO

      OS FACTOS

11. O acórdão recorrido deu como provados os factos seguintes:

1. A Autora é titular da marca nacional nº 395599 “Sportagus”, assinalando na classe 35ª da classificação de Nice os serviços “gestão de negócios comerciais, promoção de vendas para terceiros, difusão de material publicitário, incluindo objectos promocionais e marketing, publicidade via multimédia e através de redes mundiais de informática (internet)”, cujo pedido foi apresentado no INPI em 17.11.2005 e concedido em 30.11.2006.

2. 2. A Autora é titular do logótipo nº 29703, resultante da conversão do Nome de Estabelecimento nº 45669 Sportagus, para assinalar a actividade de comércio de automóveis, cujo pedido foi apresentado em 14.5.2002 e concedido em 14.9.2004.

3. A Ré é titular da denominação social “Sportagus – Comércio de Automóveis Lda”

4. A Ré foi constituída em 2.5.2018, cujo objecto social é o comércio de automóveis, motociclos, barcos, manutenção e reparação de veículos, aluguer de veículos, intermediação financeira.

5. A Ré é titular do nome de domínio www.sportagus.pt , criado em 4.5.2018.

6. No exterior do estabelecimento da Autora existe um pórtico à entrada com o símbolo “Audi” e por cima os dizeres “Sportagus”.

7. O estabelecimento da autora dedica-se à venda, assistência técnica e peças de automóveis da marca “Audi”.

8. O público conhece o estabelecimento da Autora por “Sportagus”, por referência aos produtos comercializados da marca “Audi”.

9. A Autora não tem relação comercial com a Ré.

    O DIREITO

 12. O art. 45.º, n.º 3, do Código da Propriedade Industrial consta de um subcapítulo intitulado Recurso judicial.

 13. O subcaptítulo em causa começa com o art. 38.º, cuja epígrafe é Decisões que admitem recurso e cujo texto considera exclusivamente o recurso de decisões do INPI, IP.

 14. Face à inserção sistemática do art. 45.º, n.º 3, e ao teor dos arts. 38.º a 44.º do Código da Propriedade Industrial, conclui-se pela admissibilidade de recurso do acórdão da Relação, proferido sobre decisão do Tribunal da Propriedade Intelectual, em acção de anulação de denominação social, de anulação de nome de domínio e de condenação em abstenção do uso de uma expressão — Sportagus —  “como denominação social, marca, logótipo, nome de domínio ou sinalética, nos social media ou outros”.

  15. A primeira questão suscitada pela Recorrente consiste em determinar se o acórdão recorrido é nulo, por excesso de pronúncia.

16. A Autora, agora Recorrente, alega que

XIX. o Acórdão da Relação de Lisboa, aqui posto em crise, é nulo, por excesso de pronúncia, nos termos do estatuído no art.º 615.º n.º 1 alínea d), aplicável ex vi art.º 666.º n.º 1 do CPC. O recurso interposto pela R./Apelante abordava apenas uma única questão aí se apelando à improcedência parcial da acção, apenas se refere à comparação da Marca Nacional n.º 395599 com a denominação social. Logo, nunca se referindo à comparação entre a denominação social e o logótipo n.º 29703 pelo que, nesta parte, e salvo melhor entendimento, a decisão de 1.ª instância transitou.

XX. O âmbito do recurso é delimitado pelas suas próprias conclusões, contudo, e para o que ao presente recurso releva, o Acórdão recorrido entendeu serem de decidir as questões de a) Saber se entre a marca e o logotipo da recorrida e a denominação social da recorrente existe confundabilidade, atendendo, em particular à área de negócio de ambos e b) Saber se, assim sendo é legítimo decretar as medidas que forma decretadas.

XXI. Ora, não só não se trata de uma “questão a decidir” pois o recurso encontra-se balizado pelas conclusões da R./Apelante, que nunca afloram a questão do nome de domínio, como, salvo o devido respeito, não faz sequer qualquer sentido, pois essa é uma consequência da questão decidida (e transitada em julgado) da imitação de logótipo através da denominação social e nome de domínio.

 17. A sentença proferida pelo Tribunal da Propriedade Intelectual considerou que a denominação social da Ré Sportagus — Comércio de Automóveis, Lda., era confundível com as marca nacional Sportagus da Autora Entreposto Setúbal – Comércio de Viaturas e Máquinas, SA, e, em consequência, condenou a Ré no pedido de que se abstivesse de usar a expressão “Sportagus” como denominação social, marca, logótipo, nome de domínio, sinalética, merchandising, insígnia ou outras na sua actividade comercial.

 18. A Ré, então Recorrente, Sportagus — Comércio de Automóveis, Lda., ao interpor recurso de apelação, pretendia que se decidisse que a denominação social não era confundível com a marca nacional Sportagus da Autora e que, em consequência, fosse absolvida do pedido de que se abstivesse de usar a expressão “Sportagus” como denominação social, marca, logótipo, nome de domínio, sinalética, merchandising, insígnia ou outras na sua actividade comercial.

19. Os termos com que finaliza as suas alegações de recurso de apelação são elucidativos:

“… deve o presente Recurso ser julgado procedente por provado, revogada a douta Sentença do Tribunal “a quo”, e julgada parcialmente improcedente por não provada a acção na origem dos presentes autos, nos termos expostos, com todas as consequências legais daí advindas”.

 20. O acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, ao conhecer das questões relacionadas com o logótipo ou com o nome de domínio, conheceu de questões de que podia e de que devia conhecer.

21. Em resposta à primeira questão, deverá dizer-se que o acórdão recorrido não incorreu em excesso de pronúncia — logo, não é nulo.

 22. A segunda questão consiste em determinar se o uso pela Ré da expressão “Sportagus” como nome de domínio conflitua com as Regras de Registo de Nomes de Domínio de .pt”, em ligação com os arts. 224.º n.º 1, 245.º n.º 1, 304.º-N e 317.º, n.º 1, alínea a), do Código da Propriedade Industrial.

 23. O acórdão recorrido confirmou a decisão proferida pelo Tribunal da Propriedade Intelectual, na parte em que considerou:

  I. — que o logótipo da Autora referido no facto dado como provado sob o n.º 2 era confundível com a denominação social da Ré; e — II. — que, como o logótipo da Autora fosse confundível, a denominação social da Ré não podia subsistir.

24. O problema está tão só em averiguar se o facto de a Autora ser titular da marca referida no facto provado sob o n.º 1 ou do logótipo referido no facto provado sob o n.º 2 implica que a Ré deva ser condenada a abster-se de usar o nome de domínio sportagus.pt.

 25. O acórdão recorrido considerou que não, fundamentando a sua decisão nos seguintes termos:

“… o domínio é algo que não pertence à marca, não é parte dela nem dela depende por diversas ordens de razão.

Em primeiro lugar nada na letra da lei autoriza uma tal interpretação. Não existe elemento literal ou teleológico que suporte a asserção de que o domínio é uma extensão da marca.

Em segundo lugar, o domínio .pt não é exclusivo. Existem outros (por exemplo .com ou .eu) e não consta que a aqui recorrente reclame os mesmos para si.

Em terceiro lugar uma marca identifica um produto ou serviço e um domínio traduz-se numa forma de identificação perante terceiros numa plataforma digital (a internet) pelo que estamos perante realidades semelhantes mas distintas.

Por se tratar de realidades distintas os domínios, designadamente a gestão do domínio .pt que é aquele que nos ocupa, tem regras próprias.

Tais regras foram definidas pela associação Dns.pt no documento denominado ‘Regras de Registo de Nomes de Domínio de .pt’

A associação Dns.pt foi formalmente criada no dia 9 de maio de 2013 e sucedeu à Fundação para a Computação Científica Nacional, FCCN nos direitos e obrigações até então por esta prosseguidos no âmbito da delegação efetuada pela IANA – Internet Assigned Numbers Authority a 30 de Junho de 1988, (RFC …, …, … e …) e, em particular, na responsabilidade pela gestão, registo e manutenção de domínios sob o TLD (Top Level Domain) .pt, domínio de topo correspondente a Portugal, conforme resultou de decisão legislativa inserta no Decreto-Lei 55/2013, de 17 de Abril.

O Registo de Nomes de Domínio sob .PT obedece às regras jurídicas, técnicas e administrativas constantes das ‘Regras de Registo de Nomes de Domínio de .pt’ com o depósito legal nº... e cuja vigência iniciou a 16 de Junho de 2014, com as alterações decorrentes do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de Abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, RGPD, aplicáveis desde 25 de Maio de 2018.

O art. 10º do referido regulamento (acessível em https://www.dns.pt/fotos/gca/regras_registo_.pt_pt_20080123955bd74c2e2a444.pdf) dispõe, sob a epígrafe “Nomes de Domínio Proibidos” que ‘1. Para além das proibições previstas para cada hierarquia de .pt, o nome de domínio não pode: (…) c) Corresponder a nomes que induzam em erro ou confusão sobre a sua titularidade, nomeadamente por coincidirem com marcas notórias ou de prestígio pertencentes a outrem’.

Não pode restar qualquer dúvida que o nome do domínio induz em erro ou confusão sobre a sua titularidade.

Contudo, ainda assim também não se pode afirmar que a pretensão da recorrida possa proceder como procedeu.

É que a pretensão da recorrida na parte relativa do domínio carece de fundamento já que a sua atribuição advém de um negócio celebrado entre as partes que o levaram a cabo e do qual não há notícia de qualquer patologia e não do valor intrínseco da marca ou do logotipo.

Nestes termos não se verifica a violação de Direito de Propriedade Industrial para efeitos do artº 348º do CPI donde, nesta parte procede o recurso”.

 26. Ou seja: ainda que a marca e o logotipo referidos fossem confundíveis com o nome de domínio, que o nome de domínio sportagus.pt correspondesse a um nome “que induz[] em erro ou confusão sobre a sua titularidade” e que a atribuição do nome de domínio sportagus.pt fosse contrária ao art. 10.º das ‘Regras de Registo de Nomes de Domínio de .pt’, a Ré, agora Recorrida,  Sportagus – Comércio de Automóveis, Lda., só poderia ser condenada a abster-se de usar a expressão Sportagus como nome de domínio desde que o negócio concluído com a associação dns.pt estivesse contaminado com uma qualquer patologia — logo, desde que o negócio fosse inválido ou ineficaz.

 27. Ora deve distinguir-se a atribuição e o uso do nome de domínio — ainda que a atribuição do nome de domínio seja válida e eficaz, o uso de um nome de domínio poderá ser ilícito.

 28. Como se diz no acórdão do STJ de 16 de Fevereiro de 2012 — processo n.º 1288/05.6TYLSB.L1.S1 —,

“… o uso de um domínio, correctamente atribuído do ponto de vista técnico, pode traduzir lesão do direito ao nome, ou da lei da propriedade industrial, nomeadamente no que tange às regras da protecção de marcas e da concorrência desleal. E assim sendo, não obstante ter sido obtido o registo do domínio segundo as regras do sistema que regula a Internet, tal não significa que o mesmo esteja subtraído às normas jurídicas vigentes e cuja eficácia se estende, também, àquele espaço virtual”.

 29. O art. 311.º do actual Código da Propriedade Industrial, sob a epígrafe Concorrência desleal, é do seguinte teor:

1. — Constitui concorrência desleal todo o ato de concorrência contrário às normas e usos honestos de qualquer ramo de atividade económica, nomeadamente:

a) Os atos suscetíveis de criar confusão com a empresa, o estabelecimento, os produtos ou os serviços dos concorrentes, qualquer que seja o meio empregue;

b) As falsas afirmações feitas no exercício de uma atividade económica, com o fim de desacreditar os concorrentes;

c) As invocações ou referências não autorizadas feitas com o fim de beneficiar do crédito ou da reputação de um nome, estabelecimento ou marca alheios;

d) As falsas indicações de crédito ou reputação próprios, respeitantes ao capital ou situação financeira da empresa ou estabelecimento, à natureza ou âmbito das suas atividades e negócios e à qualidade ou quantidade da clientela;

e) As falsas descrições ou indicações sobre a natureza, qualidade ou utilidade dos produtos ou serviços, bem como as falsas indicações de proveniência, de localidade, região ou território, de fábrica, oficina, propriedade ou estabelecimento, seja qual for o modo adotado;

f) A supressão, ocultação ou alteração, por parte do vendedor ou de qualquer intermediário, da denominação de origem ou indicação geográfica dos produtos ou da marca registada do produtor ou fabricante em produtos destinados à venda e que não tenham sofrido modificação no seu acondicionamento.

2. — São aplicáveis, com as necessárias adaptações, as medidas previstas no artigo 345.º”

30. As instâncias estão de acordo em que o logótipo da Autora é confundível com o nome de domínio da Ré: o logótipo da Autora referido no facto dado como provado sob o n.º 2 assinala a actividade de comércio de automóveis e o objecto social da Ré referido no facto dado como provado sob o n.º 4 compreende a actividade de comércio de automóveis, de motociclos e de barcos. Entre as actividades da Autora e da Ré há uma coincidência parcial — e, como entre as actividades da Autora e da Ré haja uma coincidência parcial, o nome de domínio www.sportagus.pt referido no facto dado como provado sob o n.º 5 é susceptível de criar uma confusão relevante para efeitos da alínea a) do art. 311.º, n.º 1, do Código da Propriedade Industrial.

31. O Supremo Tribunal de Justiça tem chamado a atenção para que “[n]ão há sobreposição entre violação de direitos privativos da propriedade industrial e concorrência desleal” [1]: — por um lado “pode ocorrer concorrência desleal sem ofensa de direitos privativos”; — por outro lado, pode ocorrer ofensa de direitos privativos sem concorrência desleal; “sem quebra dos deveres de lealdade na concorrência” [2].

32. Como se diz, p. ex., no acórdão do STJ de 12 de Julho de 2018 — processo n.º 346/15.3YHLSB.L1.S1,

I - A noção de concorrência desleal é dada, como decorre do art. 317.º do CPI, através de uma definição ou cláusula geral, onde é referido que constitui concorrência desleal todo o acto de concorrência contrário às normas e usos honestos de qualquer ramo de actividade económica, seguida de uma enumeração exemplificativa de actos desleais.

II - Não sendo tal enumeração taxativa, constitui concorrência desleal a prática não só de qualquer acto nela inserido, mas também de quaisquer outros que, por si, contrariam as normas e usos honestos da actividade económica, ou seja, actos que implicam violação dos princípios da ética comercial.

33. O tema foi recentemente retomado no acórdão do STJ de 12 de Novembro de 2020 — processo n.º 61/16.0YRLSB.L1.S1 —, em cujo sumário se esclarece que,

“[a]través de uma cláusula geral, a par de uma enumeração exemplificativa de actos desleais, o direito substantivo civil textua a noção de concorrência desleal, sendo que cláusula geral, de carácter valorativo, e não taxativa, torna a apreciação da deslealdade do acto dependente da sensibilidade do julgador, propiciando a criação de algumas zonas pouco definidas e definitivas, encerrando, porém, algumas vantagens, nomeadamente, pela maleabilidade que permite adequar o conceito de concorrência desleal às múltiplas situações que, em cada momento e sector de actividade, se considerem contrárias às normas e usos honestos, apelando-se a um controlo ético geral de padrões sociais de conduta que permita traçar a linha divisória entre o que é leal e desleal”.

 34. Ora a confusão gerada pelo nome de domínio www.sportagus.pt pela Ré é susceptível de causar desvios de clientela da Autora para a Ré — e, como o uso do nome de domínio pela Ré seja susceptível de causar desvios de clientela, deve considerar-se contrário aos usos honestos do ramo de actividade em causa (comércio de automóveis).

III. — DECISÃO

  Face ao exposto, concede-se provimento ao recurso, revogando-se o acórdão recorrido e repristinando-se a decisão proferida pelo Tribunal da Propriedade Intelectual, na parte em que condenou a Ré a abster-se de usar a expressão Sportagus como nome de domínio e a remover o nome de domínio www.sportagus.pt.

   Custas pela Recorrida Sportagus – Comércio de Automóveis Lda.

Lisboa, 4 de Fevereiro de 2021

Nuno Manuel Pinto Oliveira (relator)

José Maria Ferreira Lopes

Manuel Pires Capelo

   Nos termos do art. 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos Exmos. Senhores Conselheiros José Maria Ferreira Lopes e Manuel Pires Capelo.

______

[1] Expressão do acórdão do STJ de 26 de Novembro de 2009 — processo n.º 08B3671.

[2] Cf. acórdão do STJ de 26 de Novembro de 2009 — processo n.º 08B3671.