IMPEDIMENTOS
JUIZ
TRIBUNAL COLETIVO
REPETIÇÃO DO JULGAMENTO
IMPARCIALIDADE
PROCESSO EQUITATIVO
INDEPENDÊNCIA DOS TRIBUNAIS
JUIZ NATURAL
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DA POSSE
Sumário


I - O impedimento constitui uma proibição absoluta de o juiz praticar a função em determinado processo, porque o legislador entende que só assim se garante a imparcialidade dos juízes, na medida em que as causas de impedimento constituem influências suscetíveis de afetar essa imparcialidade ou pelo menos a sua aparência aos olhos da comunidade.
II - A al. c), do nº 1, do art. 115 do CPC, abarca circunstâncias de intervenção ou de pronunciamento (total ou parcial) sobre o objeto do processo, mas não na qualidade de juiz.
III - Quando um juiz (no exercício da função) se pronuncia sobre determinada questão processual, nada impede (não é fundamento de impedimento) que, nessa qualidade, se pronuncie sobre essa mesma questão no mesmo ou noutros processos porque tal circunstância não afeta as garantias de imparcialidade.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, 1ª Secção Cível.



Impedimento do juiz

Casius — Sociedade Imobiliária, S.A., pessoa coletiva com o NIPC 50…40, com sede na Rua …, …, União das Freguesias de …, …, …, deduziu contra Aposteriori - Compra e Venda de Bens Móveis e Imóveis, Lda., pessoa coletiva com o NIPC 50…35, com sede na Rua …, …, .., União de Freguesias de …, …, …, procedimento cautelar de restituição provisória de posse.

Seguindo o processo seus termos, foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação d …, do qual reclamou a apelada alegando impedimento de Tribunal (relator e adjuntos), por a Srª Desembargadora 2ª adjunta ser familiar (mãe) do Sr. Juiz que havia proferido a decisão recorrida, referindo “Ficará vedada aos restantes juízes que compõem o tribunal colectivo que proferiu o Acórdão a participação na nova deliberação e decisão que aprecie o recurso interposto pela Recorrente.

Impondo-se que se proceda a nova distribuição do recurso, excluindo-se da mesma todos os Senhores Juízes que intervieram na prolação do Acórdão anulado”.

A Srª Desembargadora 2ª adjunta declarou-se impedida e seguiu-se o regime de substituição de juiz impedido, vindo a ser proferido o seguinte despacho: “Dado o impedimento da Exmª Senhora Juíza Desembargadora AA, os autos foram, como decidido, com vista ao Senhor Juiz Desembargador substituto, como não podia deixar de ser, pois é o que emerge, com toda a clareza, dos arts. 115º, 1, f) e 116º, nº1, 3 e 4, do CPC. O que, diga-se, igualmente decorre do artº 661º do mesmo diploma (“Se a falta ou impedimento respeitar a um dos juízes-adjuntos, a substituição cabe ao juiz seguinte ao último deles”).

O que significa que, caso o Acórdão proferido venha a ser anulado – decisão a tomar em conferência, como requerido –, na nova decisão a proferir intervirá, naturalmente, o aludido substituto legal da Senhora Juíza Desembargadora impedida”.

Foi proferido o acórdão recorrido que, no que ora importa decidiu: “REQUERIMENTO DE 29.6, COM A REFEERÊNCIA 35…89

O suscitado impedimento da Sr-º Desembargadora Adjunta, AA, já há muito que foi decidido: a mesma Srª Desembargadora declarou-se impedida (cfr. despacho de 2.7).

Na sequência desse impedimento, foram os autos com vista ao Senhor Juiz Desembargador substituto, como se refere no despacho de 15.7. Nesse despacho se acrescentando: “como não podia deixar de ser, pois é o que emerge, com toda a clareza, dos arts. 115°, 1, f) e 116°, n° 1, 3 e 4, do CPC. O que, diga-se, igualmente decorre do art° 661° do mesmo diploma (“Se a falta ou impedimento respeitar a um dos juízes-adjuntos, a substituição cabe ao juiz seguinte ao último deles”).

O que significa que, caso o Acórdão proferido venha a ser anulado - decisão a tomar em conferência, como requerido -, na nova decisão a proferir intervirá, naturalmente, o aludido substituto legal da Senhora Juíza Desembargadora impedida”.

Mais se fez constar nesse despacho que, oportunamente, os autos iriam à conferência, para decisão da arguida nulidade e termos subsequentes. Tal despacho foi notificado às partes.

Cumpre apreciar, então, da suscitada nulidade.

O Acórdão que conheceu do recurso foi proferido com intervenção da Senhora Juíza Impedida.

Como tal, foi praticado acto que a lei não admite, influindo tal irregularidade no exame e decisão da causa (cfr. artigo 195°, n° 1, do CPC).

A declaração de nulidade abrange o Acórdão proferido, como resulta do disposto no artigo 195°, n°s 1 e 2, 1ª parte.

Como tal, e sem mais delongas por de todo desnecessárias, declarar-se-á nulo o Acórdão proferido em que interveio a Senhora Desembargadora impedida, AA.

Já quanto ao pretendido impedimento dos demais Senhores Juízes Desembargadores que intervieram no Coletivo e eventual nova distribuição do recurso (“excluindo-se da mesma todos os Senhores Juízes que intervieram na prolação do Acórdão anulado”), obviamente que não faz qualquer sentido.

O impedimento foi apenas e só da Srª Desembargadora Adjunta.

É estranho que se venha lançar uma eventual “nuvem” de suspeição sobre a integridade dos demais Senhores Desembargadores. Não se vê o mínimo fundamento (legal ou doutra natureza) para tal.

Recorda-se à requerente o que se plasmou no despacho de 3.7: “Dado o impedimento da Exma Senhora Juíza Desembargadora AA, os autos foram, como decidido, com vista ao Senhor Juiz Desembargador substituto, como não podia deixar de ser, pois é o que emerge, com toda a clareza, dos arts. 115°, 1, f) e 116°, n°l, 3 e 4, do CPC. O que, diga-se, igualmente decorre do art° 661° do mesmo diploma (“Se a falta ou impedimento respeitar a um dos juízes-adjuntos, a substituição cabe ao juiz seguinte ao último deles”).

Atuou-se, assim, em perfeita sintonia com o plasmado na lei. Não se vislumbrando, francamente, qualquer fundamentação legal para o pretendido afastamento dos demais Senhores Desembargadores que subscreveram o Acórdão ora anulado! Obviamente que (ao contrário do que insinua a Recorrida) não são influenciáveis por quaisquer “opiniões e argumentos que tenham sido esgrimidos pela Senhora Desembargadora impedida”. Cada Desembargador pensa pela sua cabeça e limita-se a emitir pronúncia em conformidade e na mais pura integridade.

Termos em que se declara nulo o Acórdão supra proferido em que interveio a Senhora Desembargadora impedida, AA.

O novo Acórdão sobre o mérito do recurso, aqui prolatado, obviamente que é prolatado já com intervenção do Exm° Senhor Desembargador “substituto legal da Senhora Juíza Desembargadora impedida””.

É deste segmento do acórdão que indeferiu o requerimento no qual se pretendia o impedimento dos demais Senhores Juízes Desembargadores que intervieram no Coletivo, que é interposto recurso de revista.

Conclui a recorrente, nos seguintes termos:

“I - Vem o presente recurso interposto da decisão, constante do Acórdão de fls. ... dos autos, proferido em …/09/2020, com a referência 13…48, que indeferiu o impedimento suscitado pela Recorrente dos Senhores Juízes Desembargadores que intervieram no colectivo que subscreveu o primeiro e nulo acórdão.

II - Entende a Recorrente que erraram os Senhores Juízes Desembargadores na decisão que proferiram acerca do suscitado impedimento para intervirem no novo acórdão proferido.

III - O impedimento suscitado pela Recorrente no seu requerimento e que foi indeferido pela decisão recorrida encontra-se expressamente previsto na parte final da al. c), do n° 1, do art. 115° do C.P.C., que reza o seguinte: “Nenhum juiz pode exercer as suas funções, em jurisdição contenciosa ou voluntária: (...) c) Quando tenha intervindo na causa como mandatário ou perito ou quando haja que decidir questão sobre que tenha dado parecer ou se tenha pronunciado, ainda que oralmente”, (sublinhado nosso).

IV - Os Senhores Juízes Desembargadores BB e CC intervieram no primeiro e anulado acórdão que decidiu o recurso interposto pela Requerida/Apelante, no qual se pronunciaram - i.e. decidiram - acerca da mesma e exacta questão para a decisão da qual foi suscitado o seu impedimento.

V - Desta feita, encontravam-se os referidos Senhores Juízes Desembargadores impedidos de intervir no Tribunal Colectivo que (re)apreciou o recurso interposto pela Requerida/Apelante, atento o que prescreve o referido art. 115°, n° 1, al. c), infine, do C.P.C., o que deveriam ter declarado e, em consequência, ordenar a redistribuição dos autos de recurso, com exclusão de todos os juízes intervenientes na prolação do primeiro e nulo acórdão.

POR OUTRO LADO,

VI - O regime dos impedimentos, como garantia da imparcialidade, está previsto e construído sobre o pressuposto e a premissa de que a situação de impedimento é detectada e a sua declaração proferida antes de prolatada a Sentença, como resulta do art. 116°, n° 1 do C.P.C..

VII - A situação de impedimento da Senhora Juiz Desembargadora AA apenas foi detectada e declarada já após a prolação do Acórdão que decidiu o recurso interposto pela Requerida/Apelante.

VIII - O recurso foi julgado por um Tribunal Colectivo que, naturalmente, antes de proferido o Acórdão reuniu e discutiu as questões sob decisão, tanto mais que o recurso preconizou a alteração da matéria de facto fixada em sede da primeira instância, o que implicou a audição da prova gravada por todos os Senhores Juízes que integraram o colectivo e a sua discussão.

IX - Nessa fase deliberativa, todas as opiniões e argumentos esgrimidos por cada um dos Senhores Juízes Desembargadores que integraram o colectivo influenciaram os restantes de forma recíproca.

X - Naturalmente, com esta asserção não se pretende, de forma alguma, insinuar que os restantes Senhores Desembargadores que subscreveram o Acórdão anulado são influenciáveis ou que não pensam pela sua própria cabeça.

XI - Contudo, o Acórdão proferido não deixará de ser a síntese dos argumentos e opiniões dialecticamente esgrimidos pelos Senhores Juízes Desembargadores na fase deliberativa: daí que todos se tenham influenciado reciprocamente.

XII - Na situação vertente, em que o Acórdão nulo foi proferido com a intervenção da Senhora Juiz Desembargadora impedida - situação que a Lei visou precisamente evitar quando refere que a declaração e a invocação do impedimento devem ser promovidos antes que seja proferida a Sentença, como decorre do art. 116°, n° 1 do C.P.C. -, a questão da discussão dialéctica entre os Senhores Juízes na fase deliberativa ganha especial acuidade para os termos ulteriores do processo, porquanto inquina inexoravelmente a sua convicção e formação da sua vontade na prolação de novo Acórdão em que intervenham.

XIII - Daí que, em situação como a vertente, a parte final do art. 115°, n° 1, al. c) do C.P.C., ganhe concreta dimensão de garantia de imparcialidade, ao ser aplicada como impedindo que um juiz intervenha numa causa em que haja de decidir questão acerca da qual se tenha pronunciado - i.e. decidido - como, aliás, resulta, inequivocamente, da sua letra e espírito.

XIV - Basta atentar que, em sede do Código de Processo Penal, no seu art. 40° estão previstas várias causas de impedimento precisamente alicerçadas em participação num mesmo processo.

XV - Sendo o Código de Processo Civil de aplicação subsidiária ao Código de Processo Penal, não poderá deixar de conter em si a regra enformadora da previsão do referido art. 40° do C.P.P., que é precisamente a previsão contida no final da al. c), do n° 1, do art. 115° do C.P.C..

XVI - Solução idêntica à preconizada pela Recorrente quanto ao impedimento por ela suscitado foi adoptada recentemente pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

XVII - A arguição pela Recorrente do impedimento dos restantes Senhores Juízes Desembargadores que subscreveram o Acórdão não visou o lançamento de qualquer “nuvem” de suspeição sobre a sua integridade, mas tão só o cumprimento e aplicação das garantias de imparcialidade previstas na Lei.

XVIII - As causas de impedimento são objectivas e operam automaticamente ocorrendo a sua verificação, já que funcionam como garantia da imparcialidade da jurisdição, sendo, pois, pilares fundamentais da Administração da Justiça e do Estado de Direito.

XIX - Daí que, nos termos da Lei, nas situações de impedimento, não se verifique uma mera obrigação de não exercer o poder jurisdicional, mas sim uma condição impeditiva do exercício da função judicial; o legislador não se limita a impor ao magistrado o dever de se abster; impede-o, literalmente, de exercer funções.

XX - A lei adjectiva civil, no seu art. 115°, ao estipular as causas de impedimento tem em vista, por um lado, a obtenção das máximas garantias de objectiva imparcialidade da jurisdição e, por outro lado, assegurar a confiança da comunidade relativamente à administração da justiça.

XXI - Conquanto o nosso ordenamento jurídico não defina explicitamente o que se deve entender por imparcialidade do tribunal, o art. 6° da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, sob a epígrafe “Direito a um processo equitativo”, contém, no seu n° 1, uma referência a esse conceito.

XXII - O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, em extensa jurisprudência, tem vindo a densificar o conceito de “tribunal imparcial’, entendendo que a imparcialidade do tribunal deve ser apreciada segundo uma dupla perspetiva: a sua dimensão subjectiva e a sua apreciação objectiva.

XXIII - As referidas vertentes do conceito de imparcialidade foram já acolhidas pela Jurisprudência Nacional, designadamente pelo Supremo Tribunal de Justiça que a vem referindo em diversos Acórdãos.

XXIV - A disposição legal que tem vindo a invocar-se para sustentar o impedimento dos restantes Senhores Juízes Desembargadores que subscreveram o primeiro Acórdão declarado nulo - art. 115°, n° 1, al. c), in fine, do C.P.C. - tem em vista garantir a imparcialidade do Juiz enquanto elemento fundamental da função jurisdicional, face a intervenções processuais anteriores que, pelo seu conteúdo e âmbito, considera como razão impeditiva de futura intervenção.

XXV - A causa de impedimento em apreço prende-se e funda-se em motivos que têm a ver com a supra referida dimensão objectiva da imparcialidade, estando em causa as aparências que podem afectar, não rigorosamente a boa justiça, mas sim a compreensão externa sobre a garantia da boa justiça, que terá não só de o ser, mas também de o parecer.

XXVI - O envolvimento do Juiz no processo, através da sua directa intervenção enquanto julgador, através da tomada de decisões, o que sempre implica a formação de juízos e convicções, sendo susceptível de o condicionar em futuras decisões, assim afectando a sua imparcialidade objectiva, tem necessariamente de constituir um impedimento à sua intervenção nas situações em que a cumulação de funções processuais pode fazer suscitar no interessado, bem como na comunidade, apreensões e receios, objectivamente fundados.

XXVII - No caso vertente, a intervenção de dois dos Senhores Juízes Desembargadores no colectivo que prolatou o primeiro e nulo Acórdão compromete, por completo, a sua imparcialidade, impedindo-os de integrarem o novo Tribunal Colectivo que vai julgar o recurso interposto pela Requerida/Apelante, exactamente porque os mesmos já têm a sua convicção e formação da vontade pré-determinada.

XXVIII - Contribuiu para essa sua convicção e formação da vontade pré-determinada a intervenção no Tribunal Colectivo que decidiu o recurso no primeiro Acórdão proferido da Senhora Juiz Desembargadora impedida.

XXIX - Isto é dizer que a intervenção na discussão da questão sub judice da Senhora Juiz Desembargadora impedida inquinou per se a própria constituição do Tribunal Colectivo que integrou, devendo, pois, serem declarados impedidos os outros dois Senhores Juízes Desembargadores que dele fizeram parte para apreciarem o recurso interposto pela Requerida/Apelante.

XXX - A declaração do impedimento suscitado pela Recorrente - e que foi recusada na decisão sob recurso - impõe-se como garantia da imparcialidade da jurisdição, da Administração da Justiça e da conservação do Estado de Direito, por apelo da máxima “justice must not only be done; it must also be seen to be done".

XXXI - De facto, a recusa da declaração do suscitado impedimento viola o disposto no art. 20°, n° 4 da CRP que procura precisamente garantir num Estado de Direito Democrático - como o é a República Portuguesa -, a todos os seus cidadãos, o direito de acesso aos tribunais integrados por juízes independentes e imparciais e o de obter uma decisão motivada sobre o caso concreto submetido à sua apreciação, através de um processo que respeite os direitos e liberdades fundamentais e as estipulações legais.

XXXII - In casu, a declaração de impedimento da Senhora Juiz Desembargadora impedida ocorreu em momento posterior ao da prolação do Acórdão, ao arrepio do que estipula a Lei no art. 116°, n° 1 do C.P.C. que impõe que essa declaração deva ser proferida antes que seja prolatada Sentença.

XXXIII - Em consequência, no caso vertente, a omissão da declaração do impedimento assume maior gravidade, já que a Senhora Juiz Desembargadora impedida tomou parte na decisão ínsita no primeiro e nulo Acórdão.

XXXIV - Desta feita, as consequências da nulidade cometida não podem quedar-se pela mera anulação do processado posterior, inquinando e fulminando indelevelmente a própria constituição do Tribunal Colectivo.

EM CONSEQUÊNCIA,

XXXV - Deverá a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que conhecendo do suscitado impedimento decida no sentido do seu deferimento, mais ordenando a redistribuição dos autos de recurso, excluindo dela todos os Senhores Juízes que já participaram nos Acórdãos proferidos nos autos de recurso

XXXVI - Entretanto, foi já proferido (segundo e novo) Acórdão que julgou o recurso interposto pela Recorrida no qual intervieram os Senhores Juízes Desembargadores impedidos.

XXXVII - Como tal, foi praticado acto que a Lei não admite, irregularidade que influi no exame e decisão da causa, o que se consubstancia numa nulidade, (cfr. art. 195°, n° 1 do C.P.C.).

XXXVIII - Em consequência, é o novo e segundo Acórdão proferido nulo, porquanto é dependência directa e absoluta do acto nulo e proibido, (cfr. art. 195°, n° 2 do C.P.C.), o que expressamente se arguiu e se requer seja declarado.

XXXIX - Atendendo a que este segundo Acórdão foi subscrito pelo Senhor Juiz Desembargador substituto, encontra-se este também impedido de participar no Tribunal Colectivo que se constitua na sequência da redistribuição dos autos, porquanto lhe é aplicável o impedimento invocado e ora sob decisão, devendo, assim, ser excluído de tal acto.

XL - A decisão sob recurso violou e fez uma errada interpretação do art. 115°, n° 1, al. c), in fine, do C.P.C., dos arts. 1°, 2°, 8°, 16°, 20°, n° 4 e 203° da Constituição da República Portuguesa (CRP) e do art. 6°, n° 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que releva na ordem jurídica interna por força do que dispõe o art. 8° da CRP.

Nestes termos, e nos melhores de Direito aplicáveis, jugando V. Exas. procedente o presente recurso e, em consequência, revogando a decisão recorrida substituindo-a por outra que declare o suscitado impedimento e, em consequência, determine a redistribuição dos autos de recurso, dela excluindo todos os Senhores Juízes Desembargadores que subscreveram os Acórdãos e que declare nulo o segundo Acórdão proferido”.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Cumpre conhecer e decidir.


*


Refere o art. 116, nº 5 do CPC que “é sempre admissível recurso da decisão de indeferimento [do requerimento a alegar o impedimento] para o tribunal imediatamente superior”.

Foi admitido o recurso.

Dispensados os vistos cumpre apreciar e decidir.


*


Conhecendo:

São as questões suscitadas pelo recorrente e constantes das respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar – artigos 608, 635, nº 3 a 5 e 639, nº 1, do C.P.C. No caso em análise, e como já referido, questiona-se:

- Indeferimento do pretendido impedimento dos demais Senhores Juízes Desembargadores que intervieram no Coletivo.

- Violação do direito ao processo equitativo – art. 6 da CEDH e art. 20, nº 4 da CRP.

Impedimento do juiz:

A recorrente alega como fundamento do, alegado, impedimento do Desembargador relator e do Desembargador 1º adjunto (a Desembargadora 2ª adjunta declarou-se impedida e foi substituída pelo Desembargador imediato), o constante da parte final da al. c) do nº 1 do art. 115 do CPC: Nenhum juiz pode exercer as suas funções, em jurisdição contenciosa ou voluntária, quando “se tenha pronunciado” na causa.

Resumindo, a questão centra-se nas seguintes ocorrências:

- O recurso de apelação foi decidido com a intervenção no coletivo, como 2ª adjunta, de Desembargadora que é mãe do juiz que proferiu a decisão recorrida;

- Esta Desembargadora declarou-se impedida e foi substituída pelo Desembargador imediato, mantendo-se o relator e o 1º adjunto;

- O novo coletivo formado, anulou o acórdão do anterior coletivo e proferiu novo acórdão;

- Entende a recorrente que estavam impedidos todos os Desembargadores que foram intervenientes no primeiro coletivo e que proferiram o acórdão, que veio a ser anulado, e não apenas a 2ª adjunta (mãe do juiz que proferiu a decisão recorrida).

As causas de impedimento do juiz funcionam ope legis, consistindo em circunstâncias cuja relevância é abstratamente reconhecida pelo legislador atenta a nitidez dos factos e a sua autossuficiência, do ponto de vista do seu potencial negativo sobre a imparcialidade (relação de parentesco ou afinidade, conjugalidade ou equivalente ou intervenção anterior no processo na prática de atos certos e determinados), que não depende de matizes ou particularidades a verificar em cada caso.

O impedimento constitui uma proibição absoluta de o juiz praticar a função em determinado processo, porque o legislador entende que só assim se garante a imparcialidade dos juízes, na medida em que as causas de impedimento constituem influências suscetíveis de afetar essa imparcialidade ou pelo menos a sua aparência aos olhos da comunidade.

As causas de impedimento reafirmam a necessidade de confiança da comunidade nos juízes, sendo também relevante salvaguardar a tutela da aparência.

Como refere Salvador da Costa in “Os Incidentes da Instância”, Almedina, 7ª edição, pág. 322, “A exigência de imparcialidade é mais premente em relação ao juiz, certo que é a sua convicção, em cada caso que tem de resolver e decidir, que não pode deixar de ser formada com isenção e objetividade. Ele tem de estar acima e alheio aos interesses em causa no litígio, sob pena, por inidóneo, de ficar incapacitado de julgar com independência e imparcialidade”.

E o art. 203 da CRP consagra o princípio da independência dos tribunais, para tal contribuindo a imparcialidade que deve ter o julgador, pelo que é uma exigência específica em qualquer decisão judicial, devendo destacar-se a lei processual civil como garante dessa mesma exigência, para o que contribuem as situações de impedimentos, as suspeições, as escusas e as incompatibilidades (incluídas no capítulo com a epígrafe “das garantias da imparcialidade”.

O Prof. A. Reis in “Comentário ao Código de Processo Civil”, 1º vol. 2ª ed., 1960, referia a pág. 388 que, “Não basta que o magistrado tenha a cultura jurídica e a capacidade intelectual necessárias para interpretar e aplicar corretamente a lei; é indispensável, além disso, que a sua pessoa se encontre colocada fora e acima das paixões e interesses que no pelito se agitam e podem perturbar a retidão do seu juízo.

O juiz tem de exercer a sua atividade segundo os ditames da justiça, portanto é condição essencial da sua função a imparcialidade. É absolutamente necessário que a convicção do juiz se forme com inteira isenção e objetividade, na apreciação serena e imperturbável dos factos da causa.

É princípio axiomático que ninguém pode ser juiz em causa própria (nemo judex in causa própria)”.

Conforme art. 115, nº 1 al. c) do CPC, “Nenhum juiz pode exercer as suas funções, em jurisdição contenciosa ou voluntária: Quando tenha intervindo na causa como mandatário ou perito ou quando haja que decidir questão sobre que tenha dado parecer ou se tenha pronunciado, ainda que oralmente”.

A al. c), do nº 1, do art. 115 do CPC, abarca circunstâncias de intervenção ou de pronunciamento (total ou parcial) sobre o objeto do processo, mas não na qualidade de juiz.

A situação em análise não se enquadra nesta alínea, quer no segmento “se tenha pronunciado”, quer nas situações previstas na primeira parte da alínea em que atuou/interveio como, mandatário, ou perito, ou jurisconsulto.

O Prof. A. Reis in ob. cit., referia a pág. 398 que, “as palavras finais do nº 3 do art. 122 «ou se tenha pronunciado» visam o caso de o juiz ter intervindo no processo como agente do Ministério Público”.

E como refere o Ac. da Rel. de Lisboa de 24-01-2008, proferido no processo nº 9948/2007-8, “– A 2ª parte da alínea c) do nº 1 do artº 122º [atual art. 115] do CPC reporta-se a situações em que o juiz dá o seu parecer ou se pronuncia, mesmo que oralmente, sobre determinada questão, fazendo-o fora do âmbito das suas funções. – Isto pois que, caso o faça no âmbito das suas funções quanto juiz, estará obrigado ao dever de isenção e imparcialidade”.

E o Ac. da mesma Relação, de 9-03-1999, in BMJ, 485, pág. 478 referia que “a previsão da última parte da al. c) do nº 1 do art. 122 do CPC [com correspondência no art 115 atual] não contempla a hipótese de o juiz, nessa mesma qualidade, já se ter pronunciado sobre a questão que haja de decidir, designadamente em prévio procedimento cautelar e à luz do nº 4 do art. 383 do CPC [atual 364, nº 4]”

E no mesmo sentido, o Ac. da Rel. de Évora de 25-02-2992, in Col. Jurisp. Tomo I, pág. 299, onde é referido que, “a necessidade da doutrina contida na al. e) só se compreende na ótica de a expressão «questões sobre que tenha dado parecer ou se tenha pronunciado» constantes da al. c) cobrir somente as hipóteses em que o juiz tenha emitido qualquer juízo de facto ou de direito na sua qualidade de mero particular”.

Da mesma forma se pronunciou o Ac. da Rel. de Guimarães, de 20-09-2004, in Col. Juris. Tomo I, pág. 274, que cita Lebre de Freitas in Código de Processo Civil – anotado, vol. I, pág. 222 dizendo que o que se visa com esse impedimento é “… vedar a intervenção do juiz que já comprometeu a sua opinião com os factos subjacentes à lide ou com a posição de um dos lados em conflito”, acrescenta o aresto que, “a questão não se coloca quando o juiz tenha dado parecer ou se tenha pronunciado no exercício da sua função uma vez que, nessa situação, não comprometeu a sua opinião com os factos subjacentes à lide ou com a posição de um dos lados em conflito, antes o fez de acordo com os ditames da justiça, portanto com imparcialidade, inteira isenção e objetividade na apreciação dos factos”.

A entender-se que a referida al. c) do nº 1 do art. 115 do CPC se reportava também aos casos em que o juiz se pronunciou ou deu parecer, no exercício das suas funções (enquanto juiz), tal situação não se compaginaria, por antagónica, com o estatuído no art. 683 do CPC, relativo a novo julgamento no tribunal a quo, que compete aos “mesmos juízes que intervieram no primeiro julgamento, sempre que possível”, o mesmo se passando com os juízes que decidem providências cautelares e a seguir decidem a ação.

O capítulo VI do CPC, com a epígrafe “das garantias da imparcialidade”, que se inicia no art. 115, visa garantir que o juiz não esteja motivado por interesses próprios, mesmo que reflexos, ou se tenha comprometido por prévias tomadas de posição sobre assuntos que se irão revelar objeto da causa que ele irá julgar.

No caso dos autos não se vislumbra que o Desembargador relator, bem como o 1º adjunto tivessem, previamente, tomado posição sobre a causa ali em litígio e quando se pronunciaram foi na qualidade de juízes a quem competia julgar, nos termos da lei, com independência e imparcialidade e seguindo o princípio do juiz natural, não se verificando, quanto a eles, qualquer impedimento ou incompatibilidade.

Até da parte da Desembargadora 2ª adjunta inexistia qualquer comprometimento com a causa e tal era o distanciamento que nem se apercebeu que a decisão recorrida tinha sido proferida pelo seu filho (juiz em regime de estágio).

E quando um juiz (no exercício da função) se pronuncia sobre determinada questão processual, nada impede (não é fundamento de impedimento) que, nessa qualidade, se pronuncie sobre essa mesma questão no mesmo ou noutros processos porque tal circunstância não afeta as garantias de imparcialidade.

Não vigorando o princípio da precedência, o CPC prevê a uniformização de jurisprudência, tentando que para causas idênticas sejam idênticas as decisões.

A intervenção dos Desembargadores, relator e 1º adjunto, na repetição do julgamento que eles próprios, e o desembargador substituto da impedida, anularam, não compromete a exigência de imparcialidade pois que, não são parte no conflito nem no desfecho do mesmo têm um interesse pessoal, nem têm vínculo de ligação a alguma das “partes” nele envolvidas (nemo iudex in causa sua). A sua intervenção é uma intervenção judicial equidistante, desprendida e descomprometida em relação ao objeto da causa e a todos os demais sujeitos processuais.

As causas de impedimento não envolvem qualquer juízo de desconfiança concreta sobre um juiz, relacionado com a causa que lhe foi atribuída ou com as respetivas partes, por isso, apenas têm uma função preventiva e, no caso concreto nada havia a prevenir em relação aos juízes desembargadores em causa, não se verifica alguma razão legítima que faça temer uma falta de imparcialidade.

Assim que não se verifica o fundamento de impedimento invocado.

E este entendimento não viola o princípio do processo equitativo consagrado no art. 6 da CEDH, que visa proteger os indivíduos contra procedimentos arbitrários. Consagra esse preceito legal que, “1. Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei…”

E como suprarreferido a intervenção dos Senhores Desembargadores, com a anulação do julgamento e sua repetição atuaram de acordo com a lei e observância dos princípios da independência e da imparcialidade.

Assim como, pelos fundamentos expostos, foi respeitado o princípio constitucional, que conforme art. 20 nº 4 da CRP consagra o direito a que a causa seja decidida “mediante processo equitativo”.

Mantendo-se, na medida do possível, o princípio do juiz natural.

Face ao exposto, há-de julgar-se improcedente o recurso.


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Sumário elaborado nos termos do art. 663 nº 7 do CPC:

I - O impedimento constitui uma proibição absoluta de o juiz praticar a função em determinado processo, porque o legislador entende que só assim se garante a imparcialidade dos juízes, na medida em que as causas de impedimento constituem influências suscetíveis de afetar essa imparcialidade ou pelo menos a sua aparência aos olhos da comunidade.

II - A al. c), do nº 1, do art. 115 do CPC, abarca circunstâncias de intervenção ou de pronunciamento (total ou parcial) sobre o objeto do processo, mas não na qualidade de juiz.

III - Quando um juiz (no exercício da função) se pronuncia sobre determinada questão processual, nada impede (não é fundamento de impedimento) que, nessa qualidade, se pronuncie sobre essa mesma questão no mesmo ou noutros processos porque tal circunstância não afeta as garantias de imparcialidade.

Decisão:

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso, negar a revista e, confirmar o acórdão no segmento recorrido.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 09-02-2021

Fernando Jorge Dias – Juiz Conselheiro relator

Nos termos do art. 15-A, do Dl. nº 10-A/2020 de 13-03, aditado pelo art. 3 do Dl. nº 20/2020 atesto o voto de conformidade dos srs. Juízes Conselheiros adjuntos.

Maria Clara Sottomayor – Juíza Conselheira 1ª adjunta

António Alexandre Reis – Juiz Conselheiro 2º adjunto