Tendo caducado as licenças de uso e porte de arma de que o arguido era titular, as quais permitiam o uso das armas na actividade da caça, sem as ter renovado junto da P.S.P., deixou o mesmo de ter cobertura legal para deter as armas na sua residência, mesmo que tenha deixado de lhes dar o referido uso, face à inexistência da licença de detenção a que se refere o nº 5 do artigo 27º do RJAM.
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Criminal de Loulé - Juiz 3, foi o arguido (...) submetido a julgamento em Processo Comum e Tribunal Singular.
Após realização de audiência de discussão e julgamento, o Tribunal, por sentença de 2 de dezembro de 2020, decidiu:
1. Alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, imputando ao arguido (...), a prática de crime p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, alínea c) da Lei n.º 5/2006, de 23.02, na redação introduzida pela Lei n.º 50/2019, de 24 de julho, em concurso aparente com o preceituado no art. 86.º, n.º 1 al. e) do mesmo diploma e com o disposto no tipo contraordenacional do art. 97.º, n.º 1 [por referência ao disposto no art. 2.º, als. f), h) e aac), art. 3.º, n. 8 e art. 10.º, n.º 1 e 2], todos da Lei n.º 5/2006, de 23.02, na redação introduzida pela Lei n.º 50/2019, de 24 de julho.
2. Condenar o arguido (...) pela prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. no art. 86.º, n.º 1, al. c) da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis) euros.
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Inconformado com a decisão, o arguido interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
I- O Tribunal a quo fez uma deficiente interpretação do estipulado no art.º 86, nºl, alínea c) do RJAM.
II- O art.º 27 do RJAM estabelece diferentes licenças em função do uso e utilização que se pretende dar às armas.
III- No caso concreto, não estando o arguido participar numa actividade de caça ou em outra actividade de cariz semelhante, não era necessário ser portador de licença válida de uso e porte de arma da classe C e D para deter as armas em sua casa.
IV- Para deter as referidas armas em sua casa, local da apreensão, bastava- lhe a licença de detenção das armas no domicílio.
V- Como tal licença, por força do art .º 7, nº4, da Lei nº50/2019, de 24 de Julho, foi prolongada até 31 de Dezembro de 2029 , a detenção das armas por parte do arguido em sua casa é legal .
VI- Por outro lado, caso assim não se entenda, sempre se dirá que resulta patente da prova produzida que a não renovação atempada das licenças de uso e porte de arma, de que era portador, resultaram de um comportamento negligente, o que por si só afasta o preenchimento do elemento subjectivo deste tipo de ilícito.
VI I- Caso ainda assim se não entenda, sempre se dirá que a douta decisão proferida violou o estipulado no art.º 109, nº1 do Código Penal.
VI I I- As circunstâncias do caso, o facto do arguido ser caçador desportivo, de tal actividade ser socialmente tolerada, de ter anteriormente obtido licença de uso e porte de arma , da classe C e D, a qual caducou por negligência do arguido, o facto de as armas se encontrarem em sua casa e de não terem sido utilizadas para a práctica de qualquer ilícito, impõe uma decisão diferente da tomada.
IX- A decisão sobre do destino a dar às armas, deveria ter aberto ao arguido a possibilidade de lhe serem devolvidas se, num determinado prazo, este fizesse prova de ser titular da respectiva licença de uso e porte de arma.
Termos em que deve o presente recurso ser recebido, considerado procedente e, em consequência, ser a Sentença recorrida revogada e substituída por outra que considere que foi violado o art.º 86, nº1, alínea c) do RJAM, porquanto o arguido não carecia de licença de uso e porte de arma da classe C e D para a detenção das armas no domicílio, sendo suficiente a licença de detenção de arma no domicílio, a qual viu o seu período de vigência, por força da publicação Da Lei nº50/2019, de 24 de Julho, prolongado até 31 de Dezembro de 2029 , absolvendo, consequentemente, o arguido ou, caso assim se não entenda, que considere que resulta da Sentença que a conduta do arguido foi praticada a título negligente e, consequentemente, absolva o arguido do Crime de Detenção de Arma Proibida, ou caso ainda assim não se entenda, deverá dar -se a possibilidade ao arguido de lhe serem devolvidas as armas se, num determinado prazo, este fizer prova de ser titular da respectiva licença de uso e porte de arma, com o que reporão V. Exas. a Vossa costumada
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O recurso foi admitido e fixado o respetivo regime de subida e efeito.
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O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, pugnando pela respetiva improcedência e formulando as seguintes conclusões:
1. O recorrente recorre apenas de Direito, na medida em que entende que os factos dados como provados, que nem coloca em crise, não consubstancia, no seu douto entendimento crime de detenção de arma proibida, na medida em que propugna que se deve presumir que teria licença de detenção de armas da classe C e D, em virtude de ter sido caçador desportivo, titular de Licenças de Uso e Porte de Arma para esse efeito, actualmente e à data dos factos caducadas, conforme confessou em juízo.
2. E isto, porque no entendimento do recorrente, se era caçador desportivo e não faz uso das armas, desde que as respectivas licenças de uso e porte caducaram, ao abrigo do disposto no artigo 27º nº 5 do RJAM, presume-se que terá licença de detenção válidas até 31.12.2029, pelo que não terá cometido o crime de detenção de arma proibida, sendo, concomitantemente, ilegal a declaração de perda das armas a favor do Estado. Entende violados os artigos 86º nº 1 al. c) do RJAM e 109º nº 1 do Código Penal.
3. Examinada a douta sentença recorrida mostram-se inequivocamente provados todos os elementos constitutivos, objectivos e subjectivos, do crime de detenção de arma proibida, de que o recorrente foi declarado autor material, na medida em que, tendo-se provado que o arguido era caçador desportivo, a lei exige que seja titular de carta de caçador para lhe poder ser concedida pela PSP as licenças de uso e porte de arma das classes C e D, a fim de as deter no seu domicilio, em condições de segurança, as transportar e as usar no campo de tiro desportivo, não havendo necessidade de ter licença de detenção para as ter em sua casa, já que as licenças de uso e porte de arma permitem também a mera detenção no domicilio, desde que estejam válidas.
4. A licença de detenção a que se refere o nº 5 do artigo 27º do RJAM, são licenças, escritas emitidas pela PSP, que autoriza o titular das armas que as adquiriu, por compra, doação ou herança, as deter guardadas em casa, sem poder usa-las.
5. Se o recorrente antes da data dos factos, era caçador desportivo titular de licenças de uso e porte de arma válidas, podia detê-las no seu domicilio em segurança; após a caducidade de tais licenças, sem as ter renovado junto da PSP, o recorrente deixou de ter autorização legal para as deter em casa, não havendo, conforme comprovado documentalmente nos autos (vide oficio da PSP), qualquer licença de detenção ou de uso e porte de arma válido, emitido pela PSP, pelo que incorreu na prática do crime de detenção de arma proibida.
6. Não há, por isso, qualquer violação do disposto no artigo 86º nº 1 al. c) do RJAM, estando, portanto, preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo e, concomitante e logicamente, não se vislumbra qualquer violação do disposto no artigo 109º nº 1 do Código Penal, ao declarar-se perdidas a favor do Estado as armas e munições das classes C e D, constantes e descritas na acusação e que se deram como provada a sua detenção proibida.
7. Nesta conformidade, o douto enquadramento jurídico feito pela sentença recorrida aos factos dados como provados não merece qualquer censura.
Termos em que deve ser negado provimento ao presente recurso interposto, mantendo-se, na integra, a douta sentenca recorrida.
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No Tribunal da Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do CPP, não foi apresentada resposta ao Parecer emitido pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto.
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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Fundamentação
Delimitação do objeto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr.Ac. do Plenáriodas Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).
No caso sub judice as questões suscitadas pelo recorrente traduzem-se em saber:
- se se mostram, ou não, preenchidos os elementos constitutivos do tipo legal de crime p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, alínea c) da Lei n.º 5/2006, de 23.02, na redação introduzida pela Lei n.º 50/2019, de 24 de julho.
II. Fundamentação
- Factos provados:
Após audiência final de discussão e julgamento, resultaram provados, com relevância para boa decisão da causa, os seguintes factos:
1. No dia 8 de setembro de 2019, pelas 02:00h, o arguido detinha consigo, na sua residência sita em (…):
a. Uma arma de fogo tiro a tiro de tipo espingarda, de acção simples, com dois canos de alma lisa com 70 cm de comprimento, calibre 12, com sistema de percussão central, marca Pietro Beretta, modelo Gardone V. T., com o número de série 29834;
b. Uma arma de ar comprimido de calibre 4,5 mm, com sistema de válvula CO2 de 12 g, com carregador amovível com capacidade para 22 tiros de chumbo 4,5 mm BBs, que constituiu uma réplica de uma arma de fogo Beretta 9000-F;
c. Uma arma de fogo tiro a tiro de tipo espingarda, de acção simples, com dois canos de alma lisa com 70 cm de comprimento, calibre 12, com sistema de percussão central, marca Browning, modelo Citori, com o número de série 43204;
d. Uma arma de fogo tiro a tiro de tipo espingarda, de acção simples, com dois canos de alma lisa com 70 cm de comprimento, calibre 12, com sistema de percussão central, marca Aya, com o número de série 217522;
e. Uma arma de fogo semiautomática de tipo espingarda, de acção simples, com um cano de alma lisa com 71 cm de comprimento, calibre 12, com sistema de percussão central, marca Fabarm, modelo EuroLioan, com o número de série 5005567;
f. Uma arma de fogo de repetição de tipo espingarda, de acção simples, com um cano de alma lisa com 55,4 cm de comprimento, calibre 12, com sistema de percussão central, marca Fabarm, modelo Shotgun, com o número de série 6020281;
g. Uma arma de fogo tiro a tiro de tipo espingarda, de acção simples, com dois canos de alma lisa com 70 cm de comprimento, calibre 12, com sistema de percussão central, marca Emilio Rizzini, com o número de série 84311;
h. 87 cartuchos para arma de fogo, calibre 12;
i. 26 munições para arma de fogo, calibre 6,35 mm;
j. 3 munições para arma de fogo, calibre 9 mm;
k. 1 munição para arma de fogo, calibre .45 ACP;
l. 1 munição para arma de fogo, calibre 7x64;
m. 1 munição para arma de fogo, calibre 30-06;
2. No dia 15 de Setembro de 2019, pelas 11:20h, o arguido detinha consigo, no mesmo local, uma arma de fogo tiro a tiro de tipo espingarda, de acção simples, com dois canos de alma lisa com 70 cm de comprimento, calibre 12, com sistema de percussão central, marca Pietro Beretta, modelo S680, com o número C27199B.
3. Contudo, o arguido não era à data titular de licença de uso e porte de arma, nem se encontrava por qualquer forma habilitado à detenção daquelas armas e munições.
4. O arguido agiu livre, voluntária, e conscientemente, com o propósito concretizado de deter as armas e munições em questão, ciente das suas características, bem sabendo que a sua detenção era proibida e punida por lei penal.
Mais se provou que:
5. O arguido desempenha a profissão de cozinheiro, auferindo o salário de €750,00.
6. O arguido vive em casa própria.
7. Reside com a companheira (a ex-mulher), após reconciliação.
8. Tem uma filha com 11 anos.
9. Amortiza mútuo bancário para aquisição da habitação própria no montante de 400eur mensais.
10. A sua atual companheira (ex-mulher), trabalha como cozinheira, auferindo €750,00.
11. Para o sustento do agregado familiar (despesas correntes) despende uma média de
€600,00 a €700,00.
12. O arguido não amortiza qualquer outro mútuo bancário ou despesas extraordinárias para além das despesas correntes descritas.
13. O arguido está habilitado com o 10.º ano de escolaridade,
14. Durante o processo de violência doméstica que deu origem aos presentes autos, viveu um período de depressão e fez medicação ansiolítica.
15. Atualmente abandonou o plano terapêutico seguido, por desnecessidade.
16. O arguido foi titular de licença de uso e porte armas antes da data dos factos descritos na acusação, pois praticava caça desportiva.
17. À data dos factos em apreço nestes autos o arguido não era titular de qualquer licença de uso e porte de arma, pois as suas anteriores licenças haviam caducado e o arguido não instruiu desde então o processo de renovação.
18. Atualmente o arguido não é não era titular de qualquer licença de uso e porte de arma.
19. O arguido não averba antecedentes criminais.
- Matéria de facto não provada.
- Inexistem com relevo para a decisão da causa.
– Motivação da matéria de facto.
O tribunal fundou a sua convicção com base na análise crítica das declarações do arguido que confessou integralmente e sem reservas a matéria que constava da acusação. Fê-lo com sinceridade e espontaneidade, revelando arrependimento e consciência do desvalor da sua conduta.
Explicou que à data dos factos, as suas licenças de uso e porte de armas estavam caducadas e preparava-se para instruir o processo de renovação das mesmas (o arguido exercia caça desportiva).
Narrou ainda o contexto das apreensões das armas de fogo: ocorreram no âmbito de uma denúncia por factos suscetíveis de integrar o crime de violência doméstica feita pela sua ex-mulher, que atualmente é sua companheira, após reconciliação.
Desde a apreensão das armas nestes autos, o arguido procurou renovar as suas licenças, mas tal revelou-se impossível devido à permanência da apreensão das armas.
O arguido frisou ainda que a arma de marca Fabarm, modelo Shotgun não é da sua propriedade (ao contrário das restantes). Apenas a detinha a pedido de (…), seu amigo que emigrou para o estrangeiro e solicitou ao arguido o depósito da arma conjuntamente com as restantes armas do arguido [vide declaração subscrita por terceiro junta em audiência] e também o teor do auto de avaliação de fls. 67 [vide livrete de manifesto de armas titulado por (...)].
O Tribunal coligiu ainda o teor das declarações do arguido com o conjunto de prova documental carreada nos autos, que se afigurou fidedigna, credível e liminarmente verosímil quanto ao seu teor, a saber: auto de notícia de fls. 3 e ss., aditamento de fls. 25 e ss., ofício da PSP de fls. 36, autos de exame direto e avaliação de fls. 37-116, termo de entrega de fls. 115, declaração de (...), junta em audiência pelo arguido.
A prova das condições pessoais do arguido fundou-se nas suas declarações, não havendo razões para infirmar a sua verosimilhança, ante a espontaneidade e sinceridade da sua postura em juízo.
A ausência de antecedentes criminais do arguido resulta do certificado de registo criminal junto aos autos.”
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Apreciando
Estabelece o art. 86.º, n.º1, al. c), ) da Lei n.º 5/2006, de 23.02, na redação introduzida pela Lei n.º 50/2019, de 24 de julho, que pratica um crime de detenção de arma proibida:
“1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou exportação, usar ou trouxer consigo:
(…);
c) Arma das classes B, B1, C e D, espingarda ou carabina facilmente desmontável em componentes de reduzida dimensão com vista à sua dissimulação, espingarda não modificada de cano de alma lisa inferior a 46 cm, arma de fogo dissimulada sob a forma de outro objeto, arma de fogo fabricada sem autorização ou arma de fogo transformada ou modificada, bem como as armas previstas nas alíneas ae) a ai) do n.º 2 do artigo 3.º, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias;
d) (…) munições de armas de fogo constantes nas alíneas q) e r) do n.º 2 do artigo 3.º, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias.
Relativamente ao conceito de arma de fogo, diz o art. 2.º, n.º 1, al. p) da referida Lei que “Para efeitos do disposto na presente lei e sua regulamentação e com vista a uma uniformização conceptual, entende-se por: p) «arma de fogo» todo o engenho ou mecanismo portátil destinado a provocar a deflagração de uma carga propulsora geradora de uma massa de gases cuja expansão impele um ou mais projécteis”.
Nos termos do art. 3.º, n.º 6 da mesma Lei- São armas da classe D: a) As armas de fogo longas semiautomáticas ou de repetição, de cano de alma lisa com um comprimento superior a 60 cm; b) As armas de fogo longas semiautomáticas, de repetição ou de tiro a tiro de cano de alma estriada com um comprimento superior a 60 cm, unicamente aptas a disparar munições próprias do cano de alma lisa; c) As armas de fogo longas de tiro a tiro de cano de alma lisa; d) As armas de fogo longas semiautomáticas não incluídas nos n.os 2 a 5; e) Qualquer arma de fogo prevista no presente número, convertida para disparar munições sem projétil, substâncias irritantes, outras substâncias ativas ou cartuchos de pirotecnia, ou após ter sido convertida numa arma de alarme ou salva.
Neste tipo de incriminação, o bem jurídico em causa é a segurança da comunidade face aos riscos (em última instância para bens jurídicos individuais, para a vida e integridade física), da livre circulação de armas não manifestadas nem registadas, visando o legislador evitar toda a actividade idónea a perturbar a convivência social e pacífica e garantir através da punição deste comportamento potencialmente perigoso, a defesa da ordem e segurança públicas contra o cometimento de crimes, em particular contra a vida e integridade física.
Ora, o legislador, tendo em conta os bens jurídicos em causa, sujeitou à observância de determinadas condições e procedimentos administrativos a atribuição da licença de uso e porte de arma.
Diz-se relativa a proibição quando a lei admite que a actividade proibida seja exercida nos casos ou pelas pessoas que a Administração permita. Aqui, portanto, o administrado não tem direitos, visto que em princípio a actividade é proibida: mas a administração pode conferir o poder de exercê-la, mediante licença (neste sentido, Marcello Caetano, in Manual de Direito Administrativo, 10.ª Edição (2.ª reimpressão), Almedina, 1982, Vol. I, p. 459 e seguintes).
Assim, enquanto que a autorização se configura como a verificação de um exercício de um direito ou de uma actividade lícita, a licença permite o exercício de uma actividade relativamente proibida, sendo obrigatória se a autoridade está vinculada por lei e tem de passar a licença a todo aquele que a requeira e mostre reunir as condições exigidas na mesma lei (assim, Freitas do Amaral, in Curso de Direito Administrativo, Vol. II, pág. 257).
O efeito mais importante da concessão de licença consiste em colocar aquele que dela beneficia sob a vigilância especial de autoridade policial, dado que se atende às qualidades ou requisitos individuais do beneficiário.
São, assim, elementos do tipo de ilícito, a) a conduta que materializa a posse ou mera detenção; b) a existência de uma arma de fogo ou arma branca com determinadas características e ou transformada; c) a falta da respectiva autorização/licença de uso e porte de arma; e d) o dolo.
Uma vez aqui chegados, vejamos o que resulta dos autos.
Como bem referido na sentença sob recurso ” De acordo com o auto de avaliação de exame direto e avaliação, dúvidas não restam de que as armas descritas a fls. 40, 50, 55, 62, 72, 79, são armas de fogo longas, de tiro a tiro, integráveis na CLASSE D.
A arma descrita a Fls. 68 –espingarda “shotgun” – é integrável na classe C).
As munições descritas a fls. 86, 93, 110, 114, integram-se nas categorias de munições C e D.
Por sua vez as munições de fls. 98, 102 e 106, são integráveis na categoria B e B1.
Já a arma de ar comprimido de calibre 4,5 mm, com sistema de válvula CO2 de 12 g, com carregador amovível com capacidade para 22 tiros de chumbo 4,5 mm BBs, que constituiu uma réplica de uma arma de fogo Beretta 9000-F, deve ser integrada na CLASSE F, ao abrigo do disposto no art. 2.º, als. f), h) e aac), art. 3.º, n. 8 e art. 10.º, n.º 1 e 2 do Regime Jurídico de Armas e Munições.
Por sua vez, de acordo com o ofício da PSP de fls. 36, à data dos factos o arguido não estava habilitado à detenção e uso e porte de todas as armas, bem como de todas as munições, apreendidas.
Ficaram cabalmente demonstradas pelos autos de exame as características dos objetos apreendidos que devem, pois, ter-se como armas de fogo e réplica de arma de fogo, e respetivas munições para efeitos de aplicação da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.
Ante a matéria assente, o arguido não era nem é titular de licença ou autorização para uso e porte das armas e munições em causa da categoria que detinha.
O arguido agiu livre, voluntária, e conscientemente, com o propósito concretizado de deter as armas e munições em questão, ciente das suas características, bem sabendo que a sua detenção era proibida e punida por lei penal.
Inexistem quaisquer causas de justificação ou de desculpação”.
E, como bem refere o Ministério Público na resposta ao recurso:
“De facto, e em síntese, e volvendo aos presentes autos, importa salientar, que resulta provado que o arguido era, antes da data dos factos, titular de licenças de uso e porte de arma das Classes C e D para exercício da sua actividade venatória desportiva, pelo que o arguido teria carta de caçador e era possuidor de tais licenças; não era necessário ter licenças de detenção dessas armas no domicilio, nem tal faria sentido, posto que as licenças de uso e porte de arma para fins venatórios, permite para além do uso nessa actividade e o transporte, a sua detenção no domicilio; ora, caducando as licenças de uso e porte de arma para o exercício de actividade de caça desportiva, que não foram renovadas, conforme se provou, também logicamente, a detenção dessas armas no domicilio que as próprias licenças de uso e porte permitiam, caducou igualmente.
Não se diga que tais licenças teriam validade de 10 anos, porque para accionar a norma do artigo 27º nº 5, seria pressuposto legal e necessário que o arguido/recorrente tivesse documentos escritos, emitidos pela PSP, que consubstanciassem essa mera licença de detenção, o que face à prova documental produzida em juízo não existe.
O que se provou, conjugando-se as declarações confessórias do recorrente e a prova documental, designadamente o oficio da PSP, que o arguido foi titular de licenças de uso e porte de arma das classes C e D e que à data dos factos caducaram, não sendo actualmente e à data dos factos, titular de qualquer licença de uso e porte de arma, pelo que mantendo a detenção de tais armas no seu domicilio, sem qualquer licença para o efeito, incorreu na prática do crime de detenção de arma proibida, conforme e bem foi condenado pela douta sentença.”
E à luz de tudo o exposto, é manifesto que a descrita atuação do arguido preenche a tipicidade do ilícito previsto no art.86.º, n.º1, al. c), ) da Lei n.º 5/2006, de 23.02, na redação introduzida pela Lei n.º 50/2019, de 24 de julho.
Por conseguinte, o recurso improcede neste particular.
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- Da perda das armas e munições
O art. 109º, n.º 1, do Código Penal, regula a perda de instrumentos do crime.
Resulta desse preceito que para a perda de objetos a favor do Estado é necessária a verificação dos seguintes elementos:
- que exista um facto ilícito típico;
- que os objetos sejam instrumentos desse facto ilícito típico, ou seja, que tenham servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática;
- e que, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, ponham em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas ou que, em alternativa, ofereçam sério risco de serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
Exige-se, pois, a demonstração da perigosidade do objeto, cumulativamente com a sua utilização na prática do crime, quer aquela perigosidade se traduza na colocação em risco da segurança das pessoas, da moral ou da ordem públicas ou em sério risco de ser utilizado para o cometimento de novos ilícitos típicos, quer derive da própria natureza do objeto ou das circunstâncias do caso. Perigosidade que tem de assentar em factos e juízos concretamente apurados e formulados pelo tribunal, não se presumindo.
A perda dos instrumentos do crime tem, assim, caráter preventivo, pois o que está em causa é a prevenção dos riscos decorrentes da disponibilidade de objetos que, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, são perigosos, e não a aplicação de uma qualquer sanção em resposta à prática de crime, o que explica que a medida deva ser tomada mesmo que o agente não seja condenado nem possa vir a sê-lo.
“IV - A “perigosidade” dos objectos, exigida no art. 109º do CP, não é um requisito autónomo para a perda, mas um requisito cumulativo: a perigosidade respeita sempre a um objecto-instrumento - “que tiver(em) servido ou se destinasse(m) a servir para a prática” do crime -, ou a um objecto-produto/vantagem - que pelo crime “tiver(em) sido produzido(s)”.
V - Assim, o decretamento da perda pressupõe, designadamente, a demonstração/comprovação de que as armas apreendidas no processo foram utilizadas ou destinavam-se a ser utilizadas na prática do crime, conclusão a retirar dos factos provados da sentença.
VI - Não decorrendo dos factos provados que as armas “foram utilizadas” na prática do crime, mas se, embora não expressamente, deles for ainda possível retirar que se configura o pressuposto legal da perda na segunda modalidade, esta deve ser decretada.
(…)
VIII - A “providência sancionatória” da perda de objectos tem natureza de medida de segurança, visa prevenir a perigosidade e acautelar a possibilidade de concretização de uma futura utilização das armas na prática do crime.” (cfr.Ac. da RE, de 3-12-2019, in www.dgsi.pt).
Ora, no caso sub judice, não obstante nada resultar da matéria de facto provada quanto à utilização das armas apreendidas pelo arguido ou à intenção expressa por ele no sentido dessa utilização, certo é que da mesma matéria de facto provada resulta que os presentes autos tiveram origem num processo de violência doméstica (Facto 14), sendo certo que da motivação da sentença consta que “O tribunal fundou a sua convicção com base na análise crítica das declarações do arguido que confessou integralmente e sem reservas a matéria que constava da acusação. Fê-lo com sinceridade e espontaneidade, revelando arrependimento e consciência do desvalor da sua conduta.
(…)
Narrou ainda o contexto das apreensões das armas de fogo: ocorreram no âmbito de uma denúncia por factos suscetíveis de integrar o crime de violência doméstica feita pela sua ex-mulher, que atualmente é sua companheira, após reconciliação.”
Neste contexto, tendo a “providência sancionatória” da perda de objetos natureza de medida de segurança que visa prevenir a perigosidade e acautelar a possibilidade de concretização de uma futura utilização das armas na prática do crime, está plenamente justificada a decisão de declarar perdidas a favor do Estado as armas e munições apreendidas.
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Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, mantendo-se a sentença recorrida;
- condenar o recorrente em custas, fixando-se em 3 UC’s a taxa de justiça.
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Elaborado e revisto pela primeira signatária
Évora, 23 de março de 2021
Laura Goulart Maurício
Maria Filomena Soares