1 - O juiz de julgamento encontra-se balizado e limitado pelo conteúdo da acusação, pelo thema decidendum (objecto do processo) e pelo thema probandum (extensão da cognição).
2 - Se a contestação acrescenta factos, aumenta, necessariamente, o objecto do processo e a extensão da cognição, desde que esses factos sejam normativamente relevantes, e o princípio da unidade ou indivisibilidade da vinculação temática do tribunal impõe que todos esses factos tenham um destino: ou se provam ou não se provam.
3 - Se o arguido vem, com eles, sustentar e defender a sua absolvição por inexistência de ilicitude e culpa, na medida em que é incontroverso que tais requisitos criminais, se expressos em factos, tornam estes normativamente relevantes.
4 – Omitindo o tribunal recorrido tais factos, ocorre o vício previsto no artigo 410º, nº 2, al. a) do Código de Processo Penal.
Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
A - Relatório:
Nos autos de processo comum perante tribunal colectivo do Tribunal da Comarca de Santarém, já identificado em epígrafe, acusado e condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de detenção ilegal de arma, p. e p. pelo artigo 86º, nº 1, al. c), da Lei nº 5/2006, de 23-02 na pena de 160 dias de multa à taxa diária de 5, 5 €, o que perfaz a quantia global de 880 €.
Mais foram declaradas perdidas a favor do Estado a arma e as munições apreendidas.
A) Os elementos fornecidos pelo processo impõem claramente decisão diversa daquela que foi proferida nos autos uma vez que em sede de audiência de julgamento não foi produzida prova bastante da prática de todos os factos de que o arguido vinha acusado.
B) A sentença recorrida padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto e erro notório na apreciação da prova, e a prova produzida em audiência impunha decisão diversa quanto a alguns factos .
C) Na verdade existem elementos de facto no processo que impõem decisão diversa da proferida na decisão quanto à matéria de facto.
D) Decidindo como decidiu, o douto tribunal a quo não fez uma correcta interpretação dos factos.
E) Antes de mais deveria ter sido dado como provado que:
F) A espingarda de calibre 12mm, de tiro a tiro, de marca “manufatare liegeoise d’armes a feu” nº 1999 originária da Bélgica, de dois canos e dois tiros, e constante do nº 1 dos factos provados, havia sido propriedade do já falecido pai do arguido.
G) Porquanto com a sua contestação arguido juntou aos autos prova documental de que a referida arma fora pertença do seu falecido pai (…), nomeadamente a autorização vitalícia de simples detenção de arma no domicilio com nº 20932 emitida pelo Serviço de Segurança do Ministério da Administração Interna , Comando de Santarém da PSP, junta como doc. nº 1 com a contestação do arguido .
H) Sendo que consequentemente, pela sua morte integrou a herança aberta por óbito de (...), pai do arguido.
I) Deveria ter sido também dado como provado que: o arguido, á data dos factos, vivia com a sua mãe na casa que era desta e do seu pai na Rua (…).
J) Tal é do conhecimento funcional do tribunal, uma vez que o presente processo (tal como consta da conclusão de 22-03-2019 - sob a epigrafe arquivamento prévio) teve início com uma comunicação dando conta que a Sra.(…) (mãe do arguido) era vítima de violência doméstica, exposição ao abandono e sequestro por parte do arguido.
K) Ora sendo a arma da herança era responsabilidade do cabeça de casal, mãe do arguido, dar um destino à mesma nos termos do artigo 37º do regime jurídico das armas e munições, pelo que sendo a mãe do arguido a cabeça de casal era a esta a quem competia dar um destino a arma, independentemente do arguido ter contacto ou não com a arma.
L) Porque a ser como o tribunal a quo pretende, qualquer um que residisse naquela morada e eventualmente mexe-se na arma era responsável pela prática do crime de detenção ilegal de arma.
M) Sem prescindir sempre se dirá que o arguido vinha acusado, como autor material, da prática de um crime de detenção ilegal de arma p.e p. pelo artigo 86º nº 1 da Lei nº 5 /2006 de 23 de fevereiro.
N) A lei 50/2019 de 24 de julho, procedeu à sexta alteração da lei 5/2006 de 23 de Fevereiro e estabeleceu no seu nº 1 do artigo 8º que os possuidores de armas de fogo não registadas ou manifestadas dispõem de um prazo de 6 meses após a entrada em vigor da lei para fazer a sua entrega voluntária ao Estado, não havendo nesse caso lugar a procedimento criminal .
O) Tal prazo terminava no dia 22 de Março de 2020.
P) Sendo em 27-01-2020, que quando deu entrada em juízo da sua contestação, o arguido requereu que fosse levantada a apreensão da arma e que a mesma lhe fosse entregue para este poder proceder à sua entrega voluntária no Posto da PSP e consequentemente poder juntar aos autos o respetivo comprovativo, extinguindo-se subsequentemente o procedimento criminal .
Q) E como não obteve qualquer despacho sobre o requerido, em 26-02-2020, o arguido dirigiu novo requerimento ao Tribunal, a que foi atribuída a ref. citius 6684219, tendo mais uma requerido o levantamento da apreensão da arma a fim de poder proceder à sua entrega voluntaria e beneficiar da Lei l50/2019 de 24 de julho.
R) Tendo o tribunal por despacho de fls . datado de 05-03-2020 decidido que:
S) “As questões suscitadas pelo arguido (...), quer na contestação apresentada, quer no requerimento que antecede, serão apreciadas após a produção de prova a realizar em sede de audiência de discussão e julgamento, nada havendo, por ora, a determinar quanto ao requerido.”
T) Em sede de sentença decidiu o tribunal a quo que: [Transcrição de parte da fundamentação de direito da sentença recorrida].
U) Não podemos concordar com o Tribunal à quo uma vez que a apreensão de objetos é um dos meios legais de obtenção de prova (artigo 178º, nº 1 do CPP). A suscetibilidade de “servir a prova” é condição essencial da apreensão, quer no que diz respeito aos pressupostos para a sua efetuação, quer no que respeita à sua manutenção.
V) A finalidade probatória da apreensão não se confunde com outras finalidades do processo penal e também não se confunde com a finalidade preventiva (evitar a prática de actos ilícitos).
W) O acto de apreensão priva o proprietário, possuidor ou detentor dos direitos inerentes, designadamente uso, fruição, disposição, exercício do comércio, mas não o priva do direito de propriedade nem da posse e a suscetibilidade de um objecto ser declarado perdido a favor do Estado não constitui, por si só, fundamento para a apreensão.
X) Ao contrário do que refere a sentença o arguido não perde a posse da arma com a sua apreensão, tal só sucede quando a mesma é declarada perdida a favor do estado na sentença.
Y) Aliás o artigo 178º nº 6 do CPP confere aos titulares de bens ou direitos objecto de apreensão o direito de requerer a modificação ou revogação da medida.
Z) Assim não é pelo simples facto de a arma estar apreendida que o arguido perdeu a sua posse e como tal não pode beneficiar do artigo 8º da lei 50/2019.
AA) Esta lei é manifestamente mais favorável ao arguido do que aquela ao abrigo da qual foi acusado e da qual foi julgado pelo que deveria ser-lhe aplicada e o procedimento criminal deveria ter sido extinto.
BB) Estranho será que se alguém tiver uma arma ilegal em casa e não tiver sido “apanhado” pode entregar voluntariamente a mesma e não é sujeito a um processo crime e a uma condenação, contudo se já foi “apanhado” mas não foi ainda julgado , e pese embora o prazo de entrega voluntária esteja em curso e o arguido manifeste interesse na entrega voluntária da arma, não pode beneficiar da lei e é julgado e condenado.
CC) O art. 2º, n.º 4 do C. Penal impõe que, entre duas ou mais leis penais que se sucedam no tempo, aplicáveis (ou potencialmente aplicáveis) à mesma pessoa ou ao mesmo facto, prevalece a de conteúdo mais benévolo, isto é, aplica-se a que menos comprima direitos, liberdades e garantias. Que no caso era o artigo 8º da lei 50/2019.
DD) Deste modo o tribunal a quo” incorreu numa violação dos direitos constitucionalmente consagrados, mais precisamente, do disposto no n.º 4 do art. 29º da Constituição da República Portuguesa o qual dispor que “Ninguém pode sofrer pena ou medida de segurança mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta ou da verificação dos respetivos pressupostos, aplicando-se retroativamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido”
EE) É Ainda de salientar que a pena aplicada ao arguido é manifestamente excessiva atentas as suas capacidades económicas e quando se provou que o arguido vive com o RSI no valor de 186,66 € e se condena o mesmo numa pena de multa de 880 €, e quando o arguido nem tem antecedentes criminais e a sua culpa a existir, o que se concebe sem conceder, é diminuta.
Termos em que devem as presentes conclusões proceder e por via disso ser dado provimento ao presente recurso, sendo revogada a decisão recorrida, com as legais consequências.
I – Atenta toda a prova (documental, pericial, testemunhal e declarações do Arguido) produzida em audiência de discussão e julgamento, estão cabalmente demonstrados na decisão judicial, os factos e o “iter“ cognitivo que levou o Tribunal “a quo“ a considerar os factos provados e não provados.
II – Considerando os factos dados como provados, verifica-se que estão preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do crime pelo qual o Recorrente foi condenado.
III - O Tribunal “a quo“ efectuou uma correcta aplicação da lei na subsunção legal que efectuou e na respectiva condenação, não tendo violado qualquer dispositivo legal, pelo que o recurso não deverá merecer provimento, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
A Sentença judicial recorrida efectuou uma correcta interpretação e aplicação da lei, não tendo violado qualquer dispositivo legal, pelo que o recurso interposto pelo Recorrente não deverá merecer provimento, mantendo-se a decisão judicial recorrida nos seus exactos termos.
Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2 do C.P.P.
B.1.a) – Factos provados.
1. No dia 18 de agosto de 2017, na Rua (…), num terreno adjacente à residência onde reside, o arguido guardava uma espingarda de calibre 12 mm, de tiro a tiro, de marca «Manufacture Liegeoise d'Armes a Feu», nº. 1999, originária da Bélgica, de dois canos e dois tiros - no entanto sem um cão num dos canos e, desse modo, só estava apta a efetuar disparo num cano - com comprimento total de 115 cm, de municiamento posterior, de carregamento manual.
2. A par, guardava a referida espingarda devidamente carregada com 2 cartuchos de calibre 12, marca IPM Sacavém.
3. O arguido fê-lo sem que fosse titular de qualquer licença de uso e porte de arma, mormente para a Classe D.
4. Agiu de forma livre, consciente e deliberada, querendo guardar uma arma de fogo longa, fora das condições legais, o que conseguiu, não obstante saber que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
5. O arguido possui o 6.° ano de escolaridade.
6. Reside sozinho em casa própria.
7. Aufere a quantia de €186,66, a título de Rendimento Social de Inserção.
8. Possui um veículo automóvel da marca Renault (…).
9. Do certificado de registo criminal do arguido não constam condenações.
Não resultou provado que o arguido agiu querendo usar uma arma de fogo longa, fora das condições legais.
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa.
“A convicção do Tribunal, quanto aos factos provados e não provados, alicerçou-se na articulação de toda a prova disponibilizada nos autos e produzida em sede de audiência de julgamento, criticamente apreciada à luz das regras da experiência comum e da razoabilidade e assente nos princípios da livre apreciação (artigo 127.°, do CPP) e do in dubio pro reo, estribada na ausência de uma dúvida razoável.
O Tribunal teve em conta:
As declarações prestadas pelo arguido, em sede de audiência de julgamento;
Os depoimentos das testemunhas (…);
O Relatório Pericial de fls. 239 a 241;
O Relatório de diligência de busca de fls. 29 a 31 e aditamento de fls. 53; [1]
O Auto de apreensão de fls. 54;
A Informação quanto à inexistência de licença de uso e porte de arma, de fls. 189;
O CRC e Prints de fls. 250 a 253 (pesquisa de bens e rendimentos);
A autorização de detenção de arma no domicílio n.20932 titulada em nome de (…), junta com a contestação;
A notificação da renovação da Prestação respeitante ao rendimento social de inserção junta com a contestação.
Assim, a convicção do tribunal no que concerne à factualidade considerada provada nos pontos 1, 2 e 3 escorou-se no teor do Relatório Pericial de fls. 239 a 241, no aditamento ao Relatório de diligência de busca de fls. 53, do Auto de apreensão de fls. 54, na informação quanto à inexistência de licença de uso e porte de arma, de fls. 189, nas declarações do próprio arguido e, bem assim, nos depoimentos das testemunhas (…).
Com efeito, assistindo ao arguido o inequívoco direito a não contribuir para a sua própria incriminação, «quando o arguido opta por abandonar uma defesa baseada no exercício do direito ao silêncio, as suas declarações passam a integrar o conjunto das provas livremente valoráveis, de acordo com o princípio da aquisição processual». Neste sentido, vide o Acórdão do TRG, datado de 18- 01-2009, Relator: Cruz Bucho.
É certo que não incumbe ao arguido a prova da veracidade da sua versão e também é certo que recai sobre o Ministério Público, ainda que sempre subordinado ao Princípio da Legalidade, produzir a prova dos factos incriminadores de modo a afastar a presunção de inocência.
Todavia, quando decide apresentar a sua versão dos factos, o arguido coloca à disposição do tribunal a respetiva valoração.
Por conseguinte, o tribunal passa a conhecer, não só a versão da acusação, mas também a versão que o arguido lhe contrapõe.
As declarações do arguido, sendo o meio de defesa por excelência, são também um meio de prova, conclusão que desde logo se permite retirar da norma legal vertida no artigo 344.°, do Código de Processo Penal.
Nesta conformidade, revertendo à situação sub judice, considerando a factualidade que vem imputada ao arguido na acusação que contra o mesmo foi formulada, partindo das declarações prestadas em sede de audiência de julgamento pelo próprio arguido, pode dizer-se que foi ele mesmo - o arguido - quem admitiu que possuía a disponibilidade da arma identificada nos autos e que o fazia sem que para tanto dispusesse de qualquer título que a legitimasse.
Senão vejamos:
Refere o arguido que guardava uma arma com as características daquela que veio a ser apreendida à ordem dos presentes autos num compartimento (anexo) situado num terreno adjacente à sua residência.
Diz que a referida arma havia sido pertença do seu pai, cujo decesso ocorrera vários anos antes, e que a arma foi ficando arrumada naquele anexo, acrescentando que não tinha conhecimento da necessidade de obtenção de título de autorização para a sua detenção.
Refere também que sempre que se mostrava necessário efetuar limpezas no anexo em que se situava a arma, era ele próprio quem retirava e voltava a colocar a arma no lugar, com isto demonstrando inequivocamente que detinha a sua disponibilidade, facto que foi atestado pelo depoimento da testemunha (…), frequentador daquele espaço e conhecedor das respetivas rotinas.
Na verdade, há que esclarecer que, no que tange com a credibilidade a atribuir ao depoimento da sobredita testemunha – (…)- ainda que, de algum modo se possa qualificar o seu discurso como relativamente tendencioso, posto que adota uma postura de adesão completa à versão do arguido, formulando, inclusivamente, juízos conclusivos e parcos de objetividade como quando referiu que achava que «ele (aqui se referindo à testemunha …) sabia que o arguido tinha a arma», ou quando afirma que «o Sr. (…) tinha uma chave escondida no telhado, que só três pessoas é que sabiam e que uma delas terá lá ido», todavia ele mesmo atesta, corroborando as declarações do arguido, a prova pericial, documental e demais prova testemunhal, que o arguido detinha a arma identificada nos autos, possuindo a disponibilidade sobre ela.
Outrossim, confirma que a arma era guardada pelo arguido no anexo situado em terreno adjacente à sua residência e que aquele a mobilizava sempre que era necessário proceder a limpezas no interior daquele espaço, tendo afirmado que nelas chegou mesmo a participar.
Por outro lado, é verdade que o arguido repudiou que a arma que detinha possuísse calibre 12 mm, conforme vem descrito no relatório pericial de fls. 239 a 241, mas sim 16 mm.
E também é verdade que consta da autorização n. 20932 titulada em nome de (...), junta com a contestação, a referência a uma arma com as mesmas características e o mesmo número de arma daquela que se encontra apreendida no âmbito destes autos, embora nela se encontre inscrita a menção «16mm» no campo respeitante ao calibre.
Pese embora a predita argumentação, urge realçar que o valor do juízo técnico ou científico, inerente à prova pericial, se presume subtraído à livre apreciação do julgador, só podendo ser refutado por prova da mesma natureza, quanto ao núcleo de cientificidade que lhe é inerente (artigo 163.° do Código Penal).
Facilmente se intui que assim seja, porquanto se trata da apreciação dos factos que exigem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, os quais, não se encontram diretamente acessíveis ao tribunal.
De tais considerações resulta que o exposto pelo arguido não é suscetível de colocar em crise o resultado pericial carreado para os autos.
Acresce que o arguido não rejeita que a arma apreendida ao abrigo destes autos seja aquela que possuía, apenas contrariando a aferição do correspondente calibre.
Na verdade, da conjugação das declarações do arguido como o depoimento da testemunha (…) decorre que ambos se terão apercebido da falta da arma por volta do dia 19 de setembro de 2017, isto é, em momento ulterior à sua apreensão o que é coincidente e compreensível à luz das explicações por aqueles fornecidas no sentido de que a arma só era mobilizada em face da necessidade de proceder à limpeza do chão do anexo, tendo ocorrido a dita necessidade por ocasião das vindimas do ano em referência.
Posto isto, dúvidas não se levantam no sentido de que a arma apreendida nestes autos era a arma que o arguido admitiu que detinha.
Por fim, refira-se que o arguido nega que a arma se encontrasse acompanhada das duas munições apreendidas, invocando que nem tão pouco possuía munições.
Quanto a este conspecto em particular, diga-se que a experiência ensina que quem tenta afastar a sua responsabilidade criminal procura de algum modo apresentar uma versão que se aproxime o mais possível do efetivamente ocorrido e que simultaneamente afaste ou atenue a sua responsabilidade criminal.
A este nível, esta versão do arguido não encontra arrimo em qualquer outro elemento de prova, contrariando de modo evidente aquilo que é um entendimento razoável e a normalidade das situações.
Ainda que não concretamente apurado o modo pelo qual a testemunha (…) acedeu à arma apreendida, considera-se ser destituída de qualquer sentido de plausibilidade que alguém se dispusesse a municiar a arma com intuito incriminatório, tanto mais que, à semelhança do estado de conservação da própria arma, os respetivos cartuchos se encontravam em « mau estado de conservação».
Relativamente ao depoimento da testemunha (…), militar da GNR, subscritor do auto de notícia que deu origem aos presentes autos, o mesmo revelou-se isento e objetivo, pese embora não tenha acrescentado motivação substancial face à factualidade que ali já vinha descrita.
Já no que tange ao depoimento da testemunha (…), o mesmo revelou-se confuso, incongruente, contraditório e marcado pela animosidade que caracteriza a sua relação com o arguido.
A perplexidade perante o seu relato é consideravelmente acentuada sobretudo no aspeto respeitante ao modo como refere ter achado a arma posteriormente apreendida.
Isto porque, após afirmar que encontrou aquela arma no exterior, encostada ao anexo da residência do arguido quando por lá estava de passagem, que não sabia a quem pertencia a arma e que, a essa altura, ainda não estava desavindo com o arguido, resolveu chamar as autoridades e denunciar o achado.
Um comportamento semelhante ao ora descrito, analisado à luz da normalidade das coisas, não merece plausibilidade nenhuma tal é a sua falta de razoabilidade.
Com efeito, não se compreende por que não procurou a testemunha, pelo menos, apurar a identidade do proprietário da arma, auscultar a versão do arguido acerca da presença daquela arma naquele local, escudando-se em alegados receios de retaliações que nunca concretiza nem denuncia.
Por todo o exposto, o depoimento da testemunha não é merecedor da credibilidade deste Tribunal o que, não obstante, não é suscetível de colocar em crise a assunção da responsabilidade pela detenção da arma que o arguido não enjeita e até vem corroborada pelo depoimento da testemunha (…).
Relativamente ao elemento subjetivo do tipo, é por demais consabido que, pertencendo aquele ao foro interno, psíquico, emocional e afetivo do agente, insuscetível, portanto, de imediata apreensão, esta terá necessariamente de decorrer de forma indireta.
A sobredita aferição procederá, nomeadamente, da análise de factos materiais que permitam inferir, num raciocínio lógico de plausibilidade, normalidade e experiência comum, a existência dos factos integrantes dos elementos subjetivos da infração.
Tais factos não se comprovam em si próprios, mas mediante ilações, retiradas face ao facto e ás circunstâncias concretas do seu cometimento.
ln casu, o tipo de ilícito sob apreciação corresponde a um delito doloso, exigindo-se a verificação do dolo, conforme previsto no artigo 14.°, do CP.
Sendo assim, partindo da globalidade da matéria factual considerada provada e do conjunto das regras da experiência comum, é inegável que o arguido quis e conseguiu deter a arma e as munições, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei e, mesmo assim, não se abstendo de nela incorrer, sendo ainda possível asseverar que o arguido não poderia ter deixado de atuar de modo deliberado e conscientemente, sabendo que a sua conduta era punida por lei.
"Quanto à prova das condições socioeconómicas, o Tribunal valorou as declarações do arguido que se revelaram credíveis e não são contrariadas por nenhum elemento presente nos autos e, bem assim, o teor da notificação atinente à renovação da prestação correspondente ao rendimento social de inserção junta com a contestação”.
Para a prova dos antecedentes criminais, o Tribunal valorou o certificado de registo criminal atualizado do arguido junto aos autos.
A decisão quanto à matéria de facto considerada como não provada decorre da ausência de elementos de prova credíveis e concludentes que permitam afirmar, para além da dúvida razoável, a sua ocorrência.”
É sabido que o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso. São, assim, questões suscitadas pelo recorrente, que desde já alinhamos pela aconselhável ordem metodológica:
a) – A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) - O erro notório na apreciação da prova;
c) – A previsão da Lei nº 50/2019 e do prazo, então vigente, do seu artigo 8º.
d) - A pena.
Analisada essa contestação confirma-se que ali o recorrente indicara os seguintes factos:
9 - A arma encontrada no terreno adjacente à residência do arguido não era sua.
10 - Na data dos factos o arguido residia com a sua mãe na casa que era desta e do seu falecido pai.
11 - A arma encontrada no barracão anexo à residência era do falecido pai do arguido e não do arguido, cfr documento nº 1 e 2 que aqui se junta.
12 - Desconhecendo inclusive o arguido que a arma ali se encontrava.
13 - O arguido não detinha assim a arma constante da acusação.
Admitindo que o último “facto” alegado é mera conclusão e que os factos 9) e 11) se repetem, os restantes têm algum relevo na economia do processo, isto é, podem ter relevo para a absolvição ou condenação do arguido.
Vista a decisão recorrida esta é completamente omissa a tal respeito. Assim o que é determinante é saber se os factos em falta fazem parte do objecto do processo. E aqui vamos repetir-nos.
Como se sabe, o processo penal português perfila-se como um processo de “máxima acusatoriedade … compatível com a manutenção, na instrução e em julgamento, de um princípio de investigação judicial”, daqui resultando que o juiz de julgamento se encontra balizado e limitado pelo conteúdo da acusação, pelo thema decidendum (objecto do processo) e pelo thema probandum (extensão da cognição).
Ou seja, “os factos descritos na acusação (normativamente entendidos, isto é, em articulação com as normas consideradas infringidas pela sua prática e também obrigatoriamente indicadas na peça acusatória), definem e fixam o objecto do processo que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado”. [2]
É o que “se chama vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade (segundo o qual o objecto do processo, os factos devem manter-se os mesmos, da acusação ao trânsito em julgado da sentença), da unidade ou indivisibilidade (os factos devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade, unitária e indivisivelmente) e da consunção do objecto do processo penal (mesmo quando o objecto não tenha sido conhecido na sua totalidade deve considerar-se irrepetivelmente decidido, e, portanto, não pode renascer noutro processo)”. [3]
Mas também se deve entender que o “objecto do processo” - tendo em vista a obtenção de decisões que regulem o “pedaço de vida” que o processo espelha – “fixa-se deduzida que seja a acusação, com as variáveis que podem ser introduzidas pelos demandantes cíveis, pela defesa e pelo poder de investigação do tribunal, balizado pelos arts. 358º e 359º do Código de Processo Penal” (como já afirmámos em acórdão desta Relação de 19-12-2013, proc. 894/11.4TAPTM.E1)
Se a contestação acrescenta factos, aumenta, necessariamente, esse objecto e a extensão da cognição, desde que esses factos sejam normativamente relevantes e o princípio da unidade ou indivisibilidade da vinculação temática do tribunal impõe que todos esses factos tenham um destino: ou se provam ou não se provam.
Ocorrerá essa insuficiência se o arguido vem, com eles, sustentar e defender a sua absolvição por inexistência de ilicitude e culpa, na medida em que é incontroverso que tais requisitos criminais se expressos em factos tornam estes normativamente relevantes.
É certo então que uma simples leitura da contestação e da decisão recorrida demonstram de forma indubitável que os factos omitidos pelo tribunal recorrido seriam relevantes para a decisão, ocorrendo, portanto, o vício previsto no artigo 410º, nº 2, al. a) do Código de Processo Penal.
O que implicaria o reenvio dos autos ao tribunal recorrido para os apreciar e sobre eles decidir, não fora a circunstância de ocorrer outro vício de facto que poderá implicar diverso destino dos autos.
Tal no entanto não é necessário pois que o tribunal deve dele conhecer se o mesmo for notório no sentido de resultar da simples leitura da decisão recorrida. E ele é patente.
Naturalmente que não iremos perder tempo a falar da invocação do Código da Estada nem do Prof. Vaz Serra e o seu estudo de direito civil para sustentar a “fé em juízo” de um auto de notícia crime, que contrariam a presunção de inocência constitucionalmente garantida, mas impõe-se abordar perfunctoriamente as perícias criminais.
Afirma o tribunal recorrido na sua fundamentação de facto que teve em conta:
- «O Relatório Pericial de fls. 239 a 241;»
e
«Outrossim, confirma que a arma era guardada pelo arguido no anexo situado em terreno adjacente à sua residência e que aquele a mobilizava sempre que era necessário proceder a limpezas no interior daquele espaço, tendo afirmado que nelas chegou mesmo a participar.
Por outro lado, é verdade que o arguido repudiou que a arma que detinha possuísse calibre 12 mm, conforme vem descrito no relatório pericial de fls. 239 a 241, mas sim 16 mm.
E também é verdade que consta da autorização n. 20932 titulada em nome de (...), junta com a contestação, a referência a uma arma com as mesmas características e o mesmo número de arma daquela que se encontra apreendida no âmbito destes autos, embora nela se encontre inscrita a menção «16mm» no campo respeitante ao calibre.
Pese embora a predita argumentação, urge realçar que o valor do juízo técnico ou científico, inerente à prova pericial, se presume subtraído à livre apreciação do julgador, só podendo ser refutado por prova da mesma natureza, quanto ao núcleo de cientificidade que lhe é inerente (artigo 163.° do Código Penal).
Facilmente se intui que assim seja, porquanto se trata da apreciação dos factos que exigem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, os quais, não se encontram diretamente acessíveis ao tribunal.
De tais considerações resulta que o exposto pelo arguido não é suscetível de colocar em crise o resultado pericial carreado para os autos.
Acresce que o arguido não rejeita que a arma apreendida ao abrigo destes autos seja aquela que possuía, apenas contrariando a aferição do correspondente calibre.»
Esta argumentação estaria correcta se, de facto, estivéssemos perante uma perícia. Mas não é isso o que ocorre. Estamos perante um simples exame de uma coisa - «exames das pessoas, dos lugares, dos animais e das coisas» - previsto e regulado no artigo 171º do Código de Processo Penal enquanto meio de obtenção de prova (e não como meio de prova) e ao qual não é aplicado o regime excepcional do artigo 163º do mesmo diploma mas sim o geral critério da livre apreciação da prova.
Esse exame, desde logo, tem a vantagem de ter identificado correctamente a marca da arma, a muito conhecida e histórica “Manufacture Liegeoise D'Armes a Feu”, de Liege (Herstal), Bélgica, contrariamente ao que constava da acusação e da sentença recorrida como “manufatare liegoise” (facto nº 1) que, a nada correspondendo e incluindo vocábulo inexistente (“manufatare” ??), vai devidamente corrigido.
Para além disso a grande vantagem do exame está na identificação das características da arma, que assumem relevo, e confirmou o seu calibre (12 mm). Estamos, pois, perante uma arma longa de alma lisa, uma espingarda, portanto, vulgo caçadeira de dois canos laterais e com o nº 1999.
Ora, atribuir a um simples exame o valor probatório de uma perícia constitui um claro erro notório na apreciação da prova, o que se declara.
Daqui resulta, naturalmente, que a apreciação de facto do tribunal recorrido peca por inexistência de razões que possam conduzir à condenação do arguido na medida em que a prova por este apresentada quanto à propriedade da arma é clara e irrefutável e não é afastada pela existência de um exame que, quanto a isso, é completamente inócuo.
A autorização de detenção domiciliária da arma nº (…) do Comando da PSP de Santarém, apresentada pelo arguido é clara na afirmação das características desta. Marca Liegoise, espingarda, alma lisa e com o número de arma 1999.
E é igualmente clara na titularidade da mesma, a de (...), residente na Rua (…).
Ora, resulta da acusação e da sentença recorrida que o arguido é filho de (...) e que reside na Rua (…). E foi nessa morada que foi encontrada a arma, como se extrai do auto de notícia e seu aditamento. A diferença de calibre – sabido que historicamente as caçadeiras podem ter calibre 12, 16 ou 20 mm implica a aceitação de ter havido erro na sua indicação na autorização de detenção de 2001. Erro que não ocorreria com os muito mais relevantes elementos de identificação, a marca e o número da arma.
Logo, a arma é a mesma e encontrava-se no local autorizado, na residência indicada na autorização nº 20932, de 6 de Abril de 2001 emitida pela PSP.
É claro que a situação se altera no lado subjectivo, com a morte do autorizado detentor, (...) e da própria cônjuge que seria cabeça-de-casal, esta conforme ofício 1125/18/SI da GNR de Tomar de 02-10-2018, entrado nos autos a 16-10-2018 (assento a fls. 231-232 dos autos, pedido a 23-10-2018, tendo a morte ocorrido a 28-09-2018).
É então e por demais evidente que o arguido era detentor da arma à data da sua apreensão mas apenas por via da morte de seu pai e sua mãe.
Em virtude do que se expôs e revelando-se inútil o reenvio dos autos para correcção dos dois indicados vícios, – e porque os autos dispõem para tanto de prova suficiente – dão-se como provados os seguintes factos:
4-a) - A arma encontrada no barracão anexo à residência era do falecido pai do arguido e não do arguido;
4-b) – O pai do arguido, (...), era titular da autorização de detenção domiciliária da arma nº (…) do Comando da PSP de Santarém;
4-c) – Tal arma consta nessa autorização como sendo da marca Liegoise (“Manufacture Liegeoise D'Armes a Feu”) espingarda de alma lisa e com o número de arma 1999;
4-d) – O pai do arguido, (...), era residente na Rua (…).
4-e) - Na data dos factos o arguido residia com a sua mãe na casa que era desta e do seu falecido pai.
Mas haverá que acrescentar outro a que o tribunal recorrido não deu a devida importância e que é igualmente normativamente relevante, mais não seja para a sucessão legal no objecto apreendido e, por isso, também determinante da sorte da acção.
Assim:
4-f) – A mãe do arguido, (…), faleceu em (…).
Ora, resulta da acusação e da sentença recorrida que o arguido é filho de (...) e que reside na Rua (…). E foi nessa morada que foi encontrada a arma, como se extrai do auto de notícia e seu aditamento. A diferença de calibre – sabido que as caçadeiras podem ter calibre 12, 16 ou 20 mm implica a aceitação de ter havido erro na sua indicação na autorização de detenção de 2001. Erro que não ocorreria com os muito mais relevantes elementos de identificação, a marca e o número da arma.
Sendo a arma a mesma e encontrando-se no local autorizado, na residência indicada na autorização nº (…), de 6 de Abril de 2001 emitida pela PSP, o arguido à data em que foi efectuada a apreensão não tinha qualquer obrigação sucessória relativamente à legalização da situação subjectiva quanto à arma, é agora e após o falecimento de sua mãe o potencial cabeça de casal da herança aberta por sua morte.
E como o arguido vivia com a sua mãe na mesma residência para a qual a detenção da arma estava licenciada, não tinha quanto à arma qualquer vínculo jurídico de entrega da arma, pois que essa obrigação incumbia a sua mãe, a potencial cabeça-de-casal. O problema só se coloca após o falecimento de sua mãe.
Acresce que o próprio auto de apreensão não é muito claro quanto à legitimidade da testemunha que acompanhou a GNR nessa apreensão sem, aparentemente, a presença de alguém dessa habitação em dia posterior ao cumprimento dos mandados de busca.
Assim, não havendo prova de posse ou detenção da arma pelo arguido, mas apenas que a arma estava num barracão da residência – para a qual havia título - a apreensão da arma foi ilícita e precipitada.
Nestes autos a questão não ganha relevo, mas um outro aspecto não teve o tratamento adequado.
A Lei n.º 50/2019, de 24 de julho, nos termos do seu artigo 11º entrava em vigor 60 dias após a sua publicação, isto é, em 24 de Setembro de 2019.
Tal diploma alterou substancialmente a Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, sendo certo que esta no seu Artigo 114.º, sob a epígrafe “Detenção vitalícia de armas no domicílio” claramente estabelece no seu nº 1 que «Os possuidores de armas detidas ao abrigo de licenças de detenção domiciliária emitidas nos termos do disposto no artigo 46.º do regulamento aprovado pelo Decreto-Lei n.º 37 313, de 21 de fevereiro de 1949, mantêm o direito a deter essas armas nos termos anteriormente estabelecidos».
E a autorização de detenção residencial referida no facto 4-b) é expressa na afirmação de que é concedida «nos termos do disposto no artigo 46.º do regulamento aprovado pelo Decreto-Lei n.º 37 313, de 21 de fevereiro de 1949».
Ora, essa mesma Lei n.º 50/2019, de 24 de julho, previa no seu artigo 8.º um procedimento de “Entrega voluntária de armas e ausência de procedimento sancionatório” afirmando no seu nº 1 que «Todos os possuidores de armas de fogo não manifestadas ou registadas devem, no prazo de seis meses após a entrada em vigor da presente lei, fazer a sua entrega voluntária a favor do Estado, não havendo nesse caso lugar a procedimento criminal».
Os factos dos correntes autos ocorreram em Agosto de 2017 e a apreensão da arma aconteceu em 18 de Agosto de 2017 – auto de apreensão dessa data e nos autos a fls. 143.
A Lei n.º 50/2019, de 24 de julho, entrando em vigor em 24 de Setembro de 2019, não havendo desde o início e até ao fim do prazo de seis meses previsto no seu artigo 8º qualquer decisão transitada em julgado sobre a situação do arguido e da arma, manteve a situação de arguido e destino da arma sem carácter definitivo, o que ainda hoje ocorre por ainda não existir decisão definitiva.
E o arguido veio, antes da realização do julgamento, solicitar a devolução da arma para proceder à sua entrega no Comando da PSP no âmbito do indicado regime.
O despacho que recaiu sobre esse requerimento, a atrasar a decisão para a sentença, concretizou-se no manter uma situação de indefinição e de negação de um direito do arguido, sendo certo que lavrada a decisão em Setembro de 2020, estava já findo desde Março de 2020 o prazo do diploma e a apreensão quase ganha foros de definitividade com a declaração de perda a favor do Estado.
Este procedimento e este estado de coisas é inaceitável porquanto se concretiza no retirar ao arguido o exercício de um direito que a lei lhe concedia.
O arguido, repete-se, não tinha à data da apreensão – Agosto de 2017 – qualquer dever de comunicação às autoridades quanto à posse da arma por não ser o cabeça-de-casal da herança pois que sua mãe só viria a falecer em Setembro de 2018.
Assim a manifestação de vontade do arguido, manifestada nos autos e que agora se repristina, para a entrega voluntária à PSP da referida arma para aproveitar o regime provisório de não punibilidade concedido pela Lei nº 50/2019 deveria ter sido satisfeito. Mesmo que não fosse à data dos requerimentos cabeça-de-casal, hoje é-o! Acresce que em 19 de Fevereiro do corrente ano foi publicada a Lei nº 5/2021 que estabelece um novo “Período extraordinário de entrega voluntária de armas de fogo não manifestadas ou registadas” de 120 dias desde a sua data de entrada em vigor – a geral vacatio – não havendo lugar a procedimento criminal nem contra-ordenacional – artigo 2º, nº 1 do diploma.
Isto é, deve o arguido ser absolvido pelo que é, assim, procedente o recurso.
Quanto à arma e dada a manifestação de vontade do arguido de proceder à sua entrega à PSP, deve a mesma manter-se na posse da PSP declarando-se a mesma perdida a favor do Estado, sem que daí possa resultar qualquer procedimento criminal ou contra-ordenacional contra o arguido.
Assim, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste tribunal em declarar procedente o recurso interposto pelo arguido e, em consequência:
- Declaram a existência de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a integrar na al. a) do nº 2 do artigo 410º do Código Penal;
- Declaram a existência de erro notório na apreciação da prova, a integrar na al. c) do nº 2 do artigo 410º do Código Penal;
- Dão como provados os seguintes factos:
4-a) - A arma encontrada no barracão anexo à residência na Rua (…), era do falecido pai do arguido e não do arguido;
4-b) – O pai do arguido, (...), era titular da autorização de detenção domiciliária da arma nº (…) do Comando da PSP de Santarém;
4-c) – Tal arma consta nessa autorização como sendo da marca Liegoise (“Manufacture Liegeoise D'Armes a Feu”) espingarda de alma lisa e com o número de arma 1999;
4-d) – O pai do arguido, (...), era residente na Rua (…).
4-e) - Na data dos factos o arguido residia com a sua mãe na casa que era desta e do seu falecido pai.
4-f) – A mãe do arguido, (…), faleceu em (…).
- Absolvem o arguido da acusação contra ele deduzida.
- Decretam a arma perdida a favor do Estado, solicitando-se a sua destruição à PSP se a mesma não apresentar valor museológico ou formativo.
Notifique. Sem tributação.
Évora, 23 de Março de 2021
(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).
João Gomes de Sousa
Nuno Garcia
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[1] - O auto de noticia faz fé sobre os factos presenciados pelo autuante, até prova em contrário [artigo 170º, do Código da Estrada]. Enquanto documento autêntico, faz prova plena dos factos que refere como praticados, in casu, pela autoridade policial, assim como dos factos que nele são atestados com base nas perceções da entidade documentadora (vide artigo 371°, n. 1, do Código Civil). Como aduz VAZ SERRA, este documento é um documento testemunhal, na medida em que o documentador (agente da GNR) se limita a atestar um facto, a informar acerca de um acontecimento que ocorreu (vide BMJ, 111°-123).
[2] - José Manuel Saporiti Machado da Cruz Bucho in “Alteração substancial dos factos em processo penal”, pags. 1 e 2, comunicação apresentada no Colóquio “Questões Práticas na Reforma do Código Penal”, organizado pelo Centro de Estudos Judiciários e realizado em Lisboa no dia 13 de Março de 2009 no Fórum Lisboa, e no Tribunal da Relação de Guimarães, no dia 2 de Abril de 2009, no 7º aniversário deste Tribunal. Disponível no site do Tribunal da Relação de Guimarães: http://www.trg.pt/info/estudos/200-alteracao-substancial-dos-factos-em-processo-penal.html.
[3] - Aut. e ob. cit..