DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
INDEFERIMENTO LIMINAR
Sumário

1 – A insolvência traduz-se na insusceptibilidade de o devedor satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do cumprimento evidenciam a impotência para continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos.
2 – É incontroverso que a alegação e a prova dos factos cuja verificação faz presumir a situação de insolvência constitui ónus que impende sobre o credor que requeira a declaração de insolvência.
3 – O preenchimento dos conceitos contidos no artigo 20.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não pode ser concretizado apenas por uma indexação formal remissiva para as diversas alíneas em que são estabelecidos os factos-índice, antes é exigível que exista um mínimo de determinabilidade de um quadro caracterizador da impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas, sendo precisa alguma consistência descritiva e um suporte probatório mínimo que, sem indagações aprofundadas sobre a existência ou não do direito a que o requerente se arroga, permita fazer um juízo perfunctório simples que valide o prosseguimento dos autos, sob pena de, assim não sendo, o efeito prático desta ausência de controlo ser a eliminação do ónus de alegação imposto ao requerente legitimado e a transferência para o requerido da necessidade de comprovação da sua solvência.
4 – O despacho de aperfeiçoamento a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 27.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas apenas pressupõe que estejam em causa vícios sanáveis da petição, o que, conforme tem vindo a ser entendido na jurisprudência, não é o caso da ineptidão da petição resultante da falta de causa de pedir.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 291/20.0T8ORQ-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Beja – Juízo de Competência Genérica de Ourique – J1
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Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – Relatório:
“(…) – Recuperação de Crédito, Lda.” veio requerer a insolvência de “(…) – Segurança Privada, SA”. Proferido despacho de indeferimento liminar, a requerente veio interpor recurso.
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A requerente afirma que detém um crédito no valor de € 2.000.000,00 (dois milhões de euros) sobre a “(…) – Segurança Privada, SA” e que esta apenas procedeu ao pagamento de € 480.000,00 (quatrocentos e oitenta mil euros), estando em dívida a quantia remanescente.
Para além disso, invoca que a requerida tem dívidas relacionadas com contratos de trabalho e que são devidas verbas de montante não apurado à Autoridade Tributária e à Segurança Social. Mais adianta que o passivo é, aparentemente, superior ao activo e que desconhece se a requerida é proprietária de quaisquer bens.
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Na decisão recorrida o Tribunal «a quo» sublinha que a alegação factual constante da petição inicial é parca e que a factualidade alegada não permite preencher a previsão normativa contida no n.º 1 do artigo 20.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Termina, afirmando que o montante do crédito invocado pela requerente também não é, por si só, suficiente para revelar a impossibilidade de a devedora satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações. E, por isso, no seu juízo conclusivo, o julgador «a quo» indefere liminarmente a petição inicial.
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A requerida foi citada tanto para os termos do recurso como para os da causa, nos termos e ao abrigo do disposto no n.º 7 do artigo 641.º do Código de Processo Civil.

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A sociedade recorrente não se conformou com a referida decisão e o articulado de recurso continha as seguintes conclusões:

«1. O presente recurso incide sobre a douta decisão proferida nos presentes autos que considerou improcedente o pedido de declaração de insolvência da Requerida/ Devedora.
2. Foi decidido que no caso dos autos, a parca alegação factual constante da petição (embora abundante do ponto de vista argumentativo, conclusivo e de direito) não é suficiente para demonstrar a situação de insolvência da sociedade devedora, à luz do supra exposto”.
3. A ora recorrente só pode discordar,
4. A matéria remete-nos para o disposto no artigo 3.º, n.º 1, do CIRE e para o genérico conceito de insolvência – de que é considerado em tal situação “o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.
5. Esta prova, porém, mostra-se facilitada aos credores requerentes da insolvência, que poderão pedir a referida declaração com base em factos-índice ou presuntivos de insolvência, quais sejam os referenciados nas diversas alíneas do artigo 20.º, n.º 1, do CIRE.
6. É ao devedor que cabe trazer ao processo os factos e circunstâncias probatórias de que não está insolvente.
7. In casu não há dúvidas que o alegado em sede de petição inicial se enquadra no n.º 1 do artigo 20.º do CIRE.
8. Aliás assim demonstrativo no requerimento inicial nos seus artigos 1º a 7º.
9. A Requerente invocou e com concretos factos-índice dos quais pode resultar que o devedor se encontrava impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, designadamente que habilitassem à integração do disposto do n.º 1 do artigo 20.º CIRE.
10. Tudo como entendemos ter sido demonstrado junto do tribunal a quo, pelo que a decisão deveria ter sido outra, onde fosse admitido o pedido de declaração de insolvência da devedora e, a final, ser a Requerida declarada Insolvente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 28.º do CIRE.
11. Sempre que se trate de um credor, a lei não exige que ele produza prova da qualidade que alega, mas, tão só, que proceda à justificação do crédito, através da menção de origem, da natureza e do montante do crédito (artigo 25.º, n.º 1, do CIRE).
12. A lei admite que o processo conviva com alguma incerteza no momento inicial, sendo que a apreciação sobre a efetiva existência do alegado crédito é remetida para momento posterior, na fase da verificação de créditos, não relevando para a apreciação da legitimidade do credor para o poder de ação declarativa em que se substancia o pedido de declaração de insolvência.
13. A doutrina é consensual ao entender que embora a insolvência se possa manifestar através de uma multiplicidade de incumprimentos, pode haver insolvência quando há apenas um incumprimento ou mesmo quando não há incumprimento algum.
14. Igualmente pacífico é o entendimento de que, ao contrário do que sucede na ação executiva, o credor não necessita de se encontrar munido de um título executivo, nem para efeito do exercício do direito de requerer a declaração de insolvência do devedor, nem para a posterior verificação do seu crédito.
15. Exigindo o artigo 3.º, n.º 1, do CIRE que a impossibilidade de cumprir se reporte às obrigações vencidas e não sendo necessário que tenha havido algum incumprimento, necessário se torna a existência de, pelo menos, uma obrigação vencida.
16. Contudo, essa referência não significa que, para haver insolvência, deva estar vencida a obrigação que o devedor tem para com o credor requerente, bastando estarem vencidas algumas obrigações, podendo dessa forma evitar que a situação do devedor sofra um agravamento até à data de vencimento do seu crédito.
Tudo como sucede in casu.
17. Aqui chegados, à requerente não se suscitam quaisquer dúvidas.
18. A requerente é titular de um crédito reconhecido por sentença transitada em julgado (artigo 7º da p.i), proferida no âmbito do processo n.º 2024/19.5T8CSC, que correu termos no Juízo Central Cível de Cascais – Juiz 3, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, no valor de € 2.000.000,00 (dois milhões de euros), daquele crédito a Requerida só pagou a quantia de € 480.000,00 (quatrocentos e oitenta mil euros), sendo ainda devedora da quantia de € 1.520.000,00 (um milhão, quinhentos e vinte mil euros), de que a Requerente, ora recorrente é credora.
19. A qualidade de credora da requerente está reconhecida por sentença transitada em julgado sendo suficiente para lhe atribuir a qualidade de credora para efeitos do n.º 1 do artigo 20.º.
20. Quanto ao estado de insolvência, temos pelos menos um crédito, vencido e não cumprido (o da requerente), temos por verificado, desde logo, o fator índice da situação de insolvência previsto na alínea e) do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE.
21. O poder de requerer a declaração de insolvência é um poder de ação declarativa.
22. O que está em causa no n.º 1 do artigo 20.º do CIRE é a mera legitimidade processual, pelo que, caso se trate de credor, a lei não exige que ele produza prova da qualidade que alega, mas, tão só, que proceda à justificação do crédito, através da menção de origem, da natureza e do montante do crédito.
23. O único pressuposto da declaração de insolvência – requisito necessário e suficiente – é a situação de insolvência, enquanto estado patrimonial do devedor, definida por lei como a “impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas”.
24. Entendemos que foram, assim, violados os artigos 3.º, 20.º, 27.º e 30.º do CIRE.
25. Assim sendo, requer-se a V. Exªs Juízes Desembargadores que revoguem a decisão recorrida e considerem admitir o pedido de declaração de insolvência da devedora e a final ser a Requerida declarada Insolvente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 28.º do CIRE.
Nestes termos e nos melhores de Direito, com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve conceder-se integral provimento ao recurso, revogando-se a douta sentença recorrida e substituindo-a por outro nos termos da antecedente motivação e conclusões seguindo o processo os seus trâmites ate final admitindo-se o pedido de insolvência contra a devedora e, a final, esta ser declarada insolvente
Decidindo desta forma, V. Ex.ª farão como confiadamente se espera, efectiva e costumada Justiça!!!»
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A recorrida contra-alegou, defendendo a manutenção do despacho recorrido.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. *
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito a apurar se existe motivo para indeferir liminarmente o pedido de declaração de insolvência.
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III – Fundamentação:
Na óptica da recorrente o único pressuposto da declaração de insolvência – requisito necessário e suficiente – é a situação de insolvência, enquanto estado patrimonial do devedor, definida por lei como a “impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas”.
Em contraponto, a sociedade recorrida afirma que a recorrente não coligiu para o processo qualquer circunstância cabal, da qual fosse possível deduzir qualquer um dos vários factos-índice referidos nas alíneas do artigo 20.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
O Juízo de Competência Genérica de Ourique manifesta o entendimento que os factos alegados na petição não preenchem a hipótese de nenhuma das alíneas do n.º 1 do artigo 20.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e, como tal, não pode vir a ser decretada a insolvência da requerida. Como base nesse enquadramento, o Tribunal «a quo» entende que é manifesto que o pedido de declaração de insolvência não pode proceder.
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O processo de insolvência é uma execução colectiva ou universal. Nesta execução universal intervêm todos os credores do insolvente e na mesma é atingido, em princípio, todo o património deste devedor, tal como se retira da interpretação integrada dos artigos 1.º[1], 47.º[2], n,ºs 1 a 3, 128.º[3], n.ºs 1 e 3 e 149.º[4], n.ºs 1 e 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Em função disto, tal como decorre do estabelecido no n.º 1 do artigo 3.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, perante a impossibilidade de assumir o cumprimento de todas as suas obrigações vencidas, todos os credores podem reclamar os seus créditos e todo o património do devedor responde pelas suas dívidas.
A avaliação de uma situação de insolvência deve ser balizada de acordo com o recorte normativo presente no artigo 20.º[5] do referido diploma. E assim impõe-se perguntar se os factos arrolados na petição inicial revelam (i) um quadro de suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas (ii) de falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações ou representa (iii) um incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas abrangidas pela esfera de protecção da alínea g) do n.º 1 do artigo 20.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (iv) ou se se verifica outra situação que se inscreva no conceito em discussão?
Os factos enunciados na norma do n.º 1 do artigo 20.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas são indícios ou sintomas da situação de falência (factos-índice). É através deles que, normalmente a situação de insolvência se manifesta ou se exterioriza. Por isso, a verificação de qualquer deles permite presumir a situação de insolvência do devedor mas este pode sempre ilidir esta presunção, provando que, não obstante a ocorrência de um ou mais factos do tipo enunciado, a situação de insolvência não se verifica[6].
Carvalho Fernandes e João Labareda sublinham que aquilo que verdadeiramente releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos. Nesta linha de raciocínio «pode até suceder que a não satisfação de um pequeno número de obrigações ou até de uma única indicie, só por si, a penúria do devedor, característica da sua insolvência actual»[7].
Na visão de Menezes Leitão a insolvência corresponde à impossibilidade de cumprimento pontual das obrigações, e não à mera insuficiência patrimonial, correspondente a uma situação líquida negativa, uma vez que o recurso ao crédito pode permitir ao devedor suprir a carência de liquidez para cumprir as suas obrigações[8].
Nesta ordem de ideias, à verificação do estado de insolvência está subjacente o conceito de solvabilidade, podendo acontecer que:
- o passivo é superior ao activo, mas não se verificar a situação de insolvência por existir facilidade de recurso ao crédito para satisfazer as dívidas excedentárias;
- o activo é superior ao passivo vencido, mas o devedor encontra-se em situação de insolvência por falta de liquidez do seu activo[9].
Assim, o que releva para a insolvência é a insusceptibilidade de o devedor satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do cumprimento evidenciam a impotência para continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos.
Complementarmente, a lei equipara ainda a situação de insolvência iminente à situação de insolvência actual como fundamento de apresentação à insolvência, como ressalta da leitura do n.º 4 do artigo 3.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
A iminência da insolvência caracteriza-se pela ocorrência de circunstâncias que, não tendo ainda conduzido ao incumprimento em condições de poder considerar-se situação de insolvência já actual, com toda a probabilidade a vão determinar a curto prazo, exactamente pela insuficiência do activo líquido e disponível para satisfazer o passivo exigível[10]. Ou, na formulação de Catarina Serra, a insolvência iminente é a situação em que o devedor antevê que estará impossibilitado de cumprir as suas obrigações quando elas se vencerem, no futuro próximo[11].
Neste contexto, está consolidada a ideia que não interessa que o devedor ainda possa cumprir num momento futuro qualquer e eventualmente num contexto de remodelação da dívida, verificando-se a entrada em situação de insolvência a partir do momento em que comprovadamente não pode cumprir as obrigações vencidas, nem poderá fazê-lo num futuro próximo. Deste modo, se os meros atrasos no pagamento não justificam a declaração de insolvência, também não se exige que a impossibilidade seja duradoura, só obstando à declaração de insolvência a falta transitória de liquidez recuperável a curto prazo[12] [13].
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É ao credor que requeira a declaração de insolvência do devedor incumbe alegar e provar algum ou alguns dos factos-índice enumerados no n.º 1 do artigo 20.º, cuja verificação faz presumir a situação de insolvência, tal como a caracteriza o artigo 3.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Tal como este colectivo já defendeu em acórdão anterior é incontroverso que a alegação e a prova dos factos cuja verificação faz presumir a situação de insolvência constitui ónus que impende sobre o credor que requeira a declaração de insolvência, como decorre da interacção processual entre a previsão contida no n.º 1 do artigo 23.º[14] do diploma em análise[15] e o conceito de insolvência. E este entendimento está completamente estabilizado na interpretação que os Tribunais superiores fazem da norma sub judice[16] [17] [18].
Efectivamente, a mera alegação de que o devedor não pagou ao credor e se desconhece património do devedor é insuficiente para preencher os factos-índice do artigo 20.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[19].
Lida a petição inicial torna-se visível que a requerente da insolvência não carreou para os autos os elementos de facto suficientes para preencher a causa de pedir e comprovar indiciariamente a existência de uma situação de insolvência.
A causa de pedir desdobra-se, analiticamente, em duas vertentes: a) uma factualidade alegada, que constitui o respectivo substrato factual, também designada pela doutrina por causa de pedir remota; b) uma vertente normativa significante na perspectiva do pedido formulado, designada por causa de pedir próxima, não necessariamente adstrita à qualificação dada pelo autor, mas delineada no quadro das soluções de direito plausíveis em função do pedido formulado, aliás nos latos termos permitidos ao tribunal, em sede de enquadramento jurídico, ao abrigo do preceituado na 1.ª parte do artigo 664.º do CPC [a que corresponde o actual artigo 5.º do NCPC]; é o que alguma doutrina designa por princípio da causa de pedir aberta[20].
A petição inicial não congregava assim todos os elementos necessários à procedência da insolvência. A interrogação radica em apurar quais são as consequências dessa omissão: se ocorre motivo relevante para o indeferimento liminar, se o julgador deve ordenar o aperfeiçoamento dos autos ou se deve relegar para momento posterior a apreciação sobre a existência de fundamento para decretar a providência requerida.
Só em momento posterior à prolação do despacho liminar é que se torna operativa a máxima de que, provados os factos-índice alegados pelo requerente, a insolvência só não será declarada se o requerido ilidir a presunção deles decorrente, demonstrando que, apesar da sua verificação, não se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, isto é, provando a sua solvência[21].
Dito de outra forma, alegados e provados estes factos-índice ou presuntivos da insolvência, e que em face das regras da experiência, constituem manifestações da impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações, este será consequentemente, considerado em situação de insolvência, salvo se demonstrar a sua solvência nos termos dos nºs 3 e 4 do artigo 30.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Na realidade, o preenchimento dos conceitos contidos no artigo 20.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas não pode ser concretizado apenas por uma indexação formal remissiva para as diversas alíneas em que são estabelecidos os factos-índice, antes é exigível que exista um mínimo de determinabilidade de um quadro caracterizador da impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas, sendo precisa alguma consistência descritiva e um suporte probatório mínimo que, sem indagações aprofundadas sobre a existência ou não do direito a que o requerente se arroga, permita fazer um juízo perfunctório simples que valide o prosseguimento dos autos, sob pena de, assim não sendo, o efeito prático desta ausência de controlo ser a eliminação do ónus de alegação imposto ao requerente legitimado e a transferência para o requerido da necessidade de comprovação da sua solvência.
De outro modo, caso não fosse prosseguido esse grau de exigência, existiria o risco de que o recurso ao processo de insolvência servisse somente para pressionar qualquer requerido ao pagamento de dívidas, independentemente da verificação dos pressupostos típicos de um quadro de insolvência, com a susceptibilidade de deturpar até regras de preferência no cumprimento de obrigações, face a essa necessidade imediata de regularizar o débito do credor peticionante da medida.
Sendo um ónus que impende sobre o credor que requeira a declaração de insolvência aquilo que se pergunta é se existe em concreto a possibilidade do Meritíssimo Juiz de Direito, com base no recurso aos poderes de gestão cometidos ao julgador, ao invés de decidir pelo indeferimento liminar da petição, estar vinculado a ordenar o aperfeiçoamento dos autos.
Em abstracto e na lógica dos princípios estruturantes do actual processo civil, o Juiz «a quo» tinha o poder de convidar ao aperfeiçoamento por forma a serem corrigidos vícios de alegação fáctica, com o intuito de assim se alcançar a verdade material e a justa composição do litígio como pilares do conceito de boa administração da justiça e do efectivo acesso à Justiça.
De harmonia com o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 27.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o indeferimento liminar do pedido de declaração de insolvência está reservado às hipóteses de manifesta improcedência do pedido ou da verificação de excepções dilatórias insupríveis, de que o Tribunal deva conhecer oficiosamente[22] [23].
Todavia, não é viável o convite ao aperfeiçoamento do articulado quando «dos próprios factos alegados decorra a manifesta improcedência do pedido formulado, atenta a inviabilidade da pretensão e o princípio da autorresponsabilização das partes (não podendo o Tribunal ex officio, convidar a parte a “fabricar” factos, transmutar um articulado inepto num articulado viável)»[24].
Neste particular é de atender ao raciocínio que o despacho de aperfeiçoamento a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 27.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas apenas pressupõe que estejam em causa vícios sanáveis da petição, o que, conforme tem vindo a ser entendido na jurisprudência, não é o caso da ineptidão da petição resultante da falta de causa de pedir[25].
Na hipótese vertente, a sociedade requerente não alegou factos concretos suficientes subsumíveis a qualquer um dos fundamentos tidos como legalmente relevantes para a declaração de insolvência e não se está assim perante uma hipótese jurisdicional em que caiba ao devedor trazer ao processo factos e circunstâncias probatórias de que não está insolvente, por não ter sido devidamente preenchida factualmente qualquer presunção emergente do facto-índice.
Em remate final, face ao montante reclamado e à existência de conjunto de acções laborais que impressiona pelo número, ainda que, em tese se pudesse perspectivar um cenário de insolvência ou de insolvência iminente, no plano casuístico, a petição inicial incorreu numa manifesta deficiência ou incompletude da descrição dos factos essenciais que seriam necessários para conduzir à procedência da pretensão, não estando retratados na pretensão formulada os acontecimentos que, segundo o parâmetro da experiência de vida, possam traduzir a insusceptibilidade prática de o devedor cumprir as suas obrigações.
E, assim, com toda a propriedade, andou bem o Meritíssimo Juiz de Direito ao indeferir liminarmente a petição. E, destarte, ao decidir nos termos em que o fez, o Tribunal «a quo» aplicou correctamente a lei, mantendo-se assim o veredicto decisório recorrido.
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IV – Sumário:
(…)
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V – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar improcedente o recurso interposto, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente, tendo em atenção o disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
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Processei e revi.
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Évora, 25/03/2021
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel Matos Peixoto Imaginário
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[1] Artigo 1º (Finalidade):
1 - O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.
2 - Estando em situação económica difícil, ou em situação de insolvência meramente iminente, a empresa pode requerer ao tribunal a instauração de processo especial de revitalização, de acordo com o previsto nos artigos 17.º-A a 17.º-I.
3 - Tratando-se de devedor de qualquer outra natureza em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, este pode requerer ao tribunal processo especial para acordo de pagamento, previsto nos artigos 222.º-A a 222.º-I.
[2] Artigo 47.º (Conceito de credores da insolvência e classes de créditos sobre a insolvência):
1 - Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio.
2 - Os créditos referidos no número anterior, bem como os que lhes sejam equiparados, e as dívidas que lhes correspondem, são neste Código denominados, respectivamente, créditos sobre a insolvência e dívidas da insolvência.
3 - São equiparados aos titulares de créditos sobre a insolvência à data da declaração da insolvência aqueles que mostrem tê-los adquirido no decorrer do processo.
4 - Para efeitos deste Código, os créditos sobre a insolvência são:
a) ‘Garantidos’ e ‘privilegiados’ os créditos que beneficiem, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao valor dos bens objecto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta as eventuais onerações prevalecentes;
b) ‘Subordinados’ os créditos enumerados no artigo seguinte, excepto quando beneficiem de privilégios creditórios, gerais ou especiais, ou de hipotecas legais, que não se extingam por efeito da declaração de insolvência;
c) ‘Comuns’ os demais créditos.
[3] Artigo 128.º (Reclamação de créditos):
1 - Dentro do prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, devem os credores da insolvência, incluindo o Ministério Público na defesa dos interesses das entidades que represente, reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, acompanhado de todos os documentos probatórios de que disponham, no qual indiquem:
a) A sua proveniência, data de vencimento, montante de capital e de juros;
b) As condições a que estejam subordinados, tanto suspensivas como resolutivas;
c) A sua natureza comum, subordinada, privilegiada ou garantida, e, neste último caso, os bens ou direitos objecto da garantia e respectivos dados de identificação registral, se aplicável;
d) A existência de eventuais garantias pessoais, com identificação dos garantes;
e) A taxa de juros moratórios aplicável.
2 - O requerimento é endereçado ao administrador da insolvência e apresentado por transmissão electrónica de dados, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 17.º.
3 - Sempre que os credores da insolvência não estejam patrocinados, o requerimento de reclamação de créditos é apresentado no domicílio profissional do administrador da insolvência ou para aí remetido por correio electrónico ou por via postal registada, devendo o administrador, respectivamente, assinar no ato de entrega, ou enviar ao credor no prazo de três dias da recepção, comprovativo do recebimento, sendo o envio efectuado pela forma utilizada na reclamação.
4 - A reclamação de créditos prevista no n.º 1 pode efectuar-se através do formulário disponibilizado para o efeito no portal a definir por portaria do membro do governo responsável pela área da justiça ou através do formulário-tipo de reclamação de créditos previsto nos artigos 54.º e 55.º do Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, nos casos em que aquele regulamento seja aplicável.
5 - A verificação tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento.
[4] Artigo 149.º (Apreensão dos bens):
1 - Proferida a sentença declaratória da insolvência, procede-se à imediata apreensão dos elementos da contabilidade e de todos os bens integrantes da massa insolvente, ainda que estes tenham sido:
a) Arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, seja em que processo for, com ressalva apenas dos que hajam sido apreendidos por virtude de infracção, quer de carácter criminal, quer de mera ordenação social;
b) Objecto de cessão aos credores, nos termos dos artigos 831.º e seguintes do Código Civil.
2 - Se os bens já tiverem sido vendidos, a apreensão tem por objecto o produto da venda, caso este ainda não tenha sido pago aos credores ou entre eles repartido.
[5] Artigo 20.º (Outros legitimados):
1 - A declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados, verificando-se algum dos seguintes factos:
a) Suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas;
b) Falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações;
c) Fuga do titular da empresa ou dos administradores do devedor ou abandono do local em que a empresa tem a sede ou exerce a sua principal actividade, relacionados com a falta de solvabilidade do devedor e sem designação de substituto idóneo;
d) Dissipação, abandono, liquidação apressada ou ruinosa de bens e constituição fictícia de créditos;
e) Insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor;
f) Incumprimento de obrigações previstas em plano de insolvência ou em plano de pagamentos, nas condições previstas na alínea a) do n.º 1 e no n.º 2 do artigo 218.º;
g) Incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas de algum dos seguintes tipos:
i) Tributárias;
ii) De contribuições e quotizações para a segurança social;
iii) Dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato;
iv) Rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respectiva hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua actividade ou tenha a sua sede ou residência;
h) Sendo o devedor uma das entidades referidas no n.º 2 do artigo 3.º, manifesta superioridade do passivo sobre o activo segundo o último balanço aprovado, ou atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas, se a tanto estiver legalmente obrigado.
2 - O disposto no número anterior não prejudica a possibilidade de representação das entidades públicas nos termos do artigo 13.º.
[6] Catarina Serra, «O Novo Regime Português da Insolvência», Uma Introdução, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, pág. 25.
[7] Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2015, pág. 71.
[8] Menezes Leitão, Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2009, pág. 76.
[9] Neste sentido, vide Maria do Rosário Epifânio, Manual do Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2016, págs. 19-30.
[10] Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2015, pág. 87.
[11] Catarina Serra, Revitalização – a designação e o misterioso objecto designado. O Processo Homónimo (PER) e as suas ligações com a Insolvência (situação e processo) e com o SIREVE, in I Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra 2013, pág. 91.
[12] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/05/2013, in www.dgsi.pt.
[13] Este acórdão apela ao contributo de Manuel Requicha Ferreira, “Estado de Insolvência”, in “Direito da Insolvência. Estudos”, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, págs. 262-268, que apoiado na jurisprudência alemã remete para a regra dos 10% e das 3 semanas, segundo a qual o devedor não se presume insolvente se a sua incapacidade de cumprir for inferior a 10% do conjunto das suas responsabilidades durante um período de 3 semanas, tido por suficiente para que um credor, gozando de um mínimo de credibilidade creditícia, obtenha financiamento de terceiros para fazer face à sua situação de iliquidez.
[14] Artigo 23.º (Forma e conteúdo da petição):
1 - A apresentação à insolvência ou o pedido de declaração desta faz-se por meio de petição escrita, na qual são expostos os factos que integram os pressupostos da declaração requerida e se conclui pela formulação do correspondente pedido.
2 - Na petição, o requerente:
a) Sendo o próprio devedor, indica se a situação de insolvência é actual ou apenas iminente, e, quando seja pessoa singular, se pretende a exoneração do passivo restante, nos termos das disposições do capítulo I do título XII;
b) Identifica os administradores, de direito e de facto, do devedor e os seus cinco maiores credores, com exclusão do próprio requerente;
c) Sendo o devedor casado, identifica o respectivo cônjuge e indica o regime de bens do casamento;
d) Junta certidão do registo civil, do registo comercial ou de outro registo público a que o devedor esteja eventualmente sujeito.
3 - Não sendo possível ao requerente fazer as indicações e junções referidas no número anterior, solicita que sejam prestadas pelo próprio devedor.
[15] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora 04/06/2020, disponível em www.dgsi.pt.
[16] Com a mesma compreensão também se pode ler no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 03/06/2008, que assume que constitui «ónus do requerente da insolvência a alegação e prova dos factos índices ou presuntivos da insolvência. Tais factos, enunciados nas diversas alíneas do artigo 20.º do CIRE, têm em conta a circunstância de, pela experiência, manifestarem a insusceptibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações».
[17] Em idêntico sentido pode ser consultado o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26/10/2010, pesquisável em www.dgsi.pt, que adianta que «o pressuposto objectivo para a declaração de insolvência radica na verificação da insolvência, tal como a define o n.º 1 do artigo 3.º do CIRE, e quando a mesma é requerida por alguém que não o próprio devedor, designadamente um seu credor, terá este de fundamentar a pretensão deduzida com a alegação de factos mencionados no artigo 20.º do citado diploma, factos-índice ou presuntivos da situação de insolvência ou circunstancialismo que exteriorize esse mesmo estado».
[18] No acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães 02/05/2019, consultável em www.dgsi.pt, ficou exarado que «é sobre o credor que requeira a declaração de insolvência que recai o ónus de alegação e prova de algum ou alguns dos factos-índice previstos nas alíneas do n.º 1 do artigo 20.º do Código da Insolvência e da Recuperação de empresas».
[19] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20/07/2019, disponível na plataforma www.dgsi.pt.
[20] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01/06/2010, in www.dgsi.pt.
[21] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08/05/2012, publicado em www.dgsi.pt
[22] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 13/03/2012, visitável em www.dgsi.pt.
[23] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21/09/2017, disponibilizado em www.dgsi.pt.
[24] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 21/09/2017, também pesquisável em www.dgsi.pt.
[25] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23/06/2010, partilhado igualmente em www.dgsi.pt.