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PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RESPONSABILIDADE PELAS CUSTAS
Sumário
I – A norma do artigo 304.º do CIRE não pode ser vista isoladamente, deve ser analisada e interpretada em conjugação com outras que dispõem sobre responsabilidade por custas, como fazendo parte de um sistema que se pretende coerente e harmonioso, sob pena de se criarem brechas, incongruências e contradições no sistema jurídico. II – Tendo o processo de insolvência sido encerrado por inexistência de quaisquer bens apreendidos para a massa insolvente, e uma vez que no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante, durante todo o período de cessão, apenas foi entregue a quantia de €74,30, cai-se na previsão do n.º 1 do artigo 248.º do CIRE, que concede ao devedor, apenas, um benefício temporário traduzido no diferimento do pagamento das custas até à decisão final do pedido de exoneração do passivo restante. III - Nesse contexto (findo o procedimento de exoneração do passivo restante, sendo a massa insolvente e o rendimento disponível cedido insuficientes para o pagamento integral das custas e reembolsos ao I.G.F.E.J. das remunerações e despesas de administrador e fiduciário) é o insolvente (que não beneficie de apoio judiciário) quem tem de suportar esse encargo.
Texto Integral
Processo n.º 931/14.0 TBPFR.P1
(Exoneração do passivo restante) Comarca do Porto Este Juízo de Comércio de Amarante (J1)
Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto
I – Relatório
Em 06.08.2014, B… apresentou-se à insolvência, alegando factos tendentes a demonstrar que estavam preenchidos os pressupostos da pretendida declaração (de insolvência).
Por sentença de 20.10.2014, transitada em julgado em 10.11.2014, foi declarada a insolvência da requerente, com custas a cargo da massa insolvente.
No mesmo requerimento inicial, a devedora formulou, ao abrigo do disposto no artigo 236.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), pedido de exoneração do passivo restante, alegando factos que, em seu critério, satisfazem todos os requisitos estabelecidos no artigo 238.º do mesmo Compêndio normativo.
Em 16.12.2014, realizou-se a assembleia de credores prevista nos artigos 36.º, n.º 1, al. n), e 156.º do CIRE e aí foi proferido o despacho inicial a que alude o artigo 239.º, com o seguinte conteúdo:
«A insolvente veio requerer a exoneração do passivo restante.
Para o efeito, invocou a insolvente que nunca prestou falsas declarações, que não beneficiou de tal exoneração nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência nem foi condenada por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227º a 229º do Código penal, sempre tendo um comportamento honesto, agindo com transparência e boa-fé para com os seus credores, cumprindo o dever de informação perante o Sr. Administrador de Insolvência, nunca tendo praticado actos que tenham contribuído ou agravado a sua situação económica.
Mais se comprometeu a observar todas as condições exigidas nos arts. 236º e segs. do CIRE.
O Sr. Administrador de Insolvência pronunciou-se no sentido de não se opor ao deferimento da concessão do passivo restante.
Referiu ainda desconhecer elementos que possam levar a concluir pela qualificação da insolvência como culposa.
Cumprirá, pois, admitir o pedido, ou não, liminarmente, cumprida que foi a possibilidade de se ouvirem os credores presentes em assembleia.
Não existem razões para o indeferimento liminar do pedido, uma vez que resultam confirmados todos os factos alegados pela insolvente tendo em conta o decidido em sede de sentença de insolvência e respetivo CRC juntos aos autos.
Com efeito, por um lado o recurso generalizado ao instituto de insolvência não é quanto a nós argumento válido para no caso em apreço ser indeferida a pretensão deduzida.
Acresce que o início do endividamento de alguém não justifica o recurso à insolvência, caso contrário o recurso a este instituto seria ainda mais generalizado.
Com efeito, o normal é numa primeira fase de dificuldades financeiras que naturalmente começam com o não cumprimento das obrigações assumidas se tenha a perspetiva de melhor as condições de vida e de retomar o cumprimento das obrigações assumidas.
Aliás não é qualquer incumprimento que justifica o recurso à insolvência, é necessário que ele seja de tal modo que se conclua por uma clara impossibilidade de cumprir as obrigações assumidas.
Afigura-se-nos que a insolvente decidiu apresentar-se a insolvência no momento em que percebeu que não podia de todo, face ao passivo conjugado com o activo, cumprir as obrigações assumidas, restando-lhes apenas recorrer a este instituto.
Não é pois o início de um endividamento que marca o prazo para alguém se apresentar à insolvência.
Finalmente a possibilidade da concessão da exoneração do passivo restante resulta da lei.
No título relativo às disposições específicas da insolvência de pessoas singulares, o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE) prevê um mecanismo, denominado exoneração do passivo restante, através do qual o devedor consegue obter a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados.
Concomitantemente, os credores vêm os respectivos créditos extintos na parte insatisfeita pela liquidação, em resultado de uma forma específica e inovadora de extinção das obrigações sem o seu cumprimento.
Trata-se, portanto, de um mecanismo que pode ter particular impacto na vida económica futura do devedor insolvente uma vez que findo o período de cinco anos este recupera a plena disponibilidade do seu rendimento e não é mais obrigado ao pagamento aos credores dos créditos destes que não foram pagos pelo produto da liquidação – estes créditos extinguem-se, nessa medida, sem terem sido cumpridos.
Tal como pode ter forte impacto na posição do credor que acabam por ver os seus créditos definitivamente insatisfeitos, na medida em que a massa insolvente e o rendimento disponível do insolvente cedido durante aquele período de 5 anos não haja sido suficiente para os satisfazer.
É, portanto, impossível não se verificar logo neste instituto uma tensão entre interesses contraditórios considerando as consequências económicas da sua concessão para devedor e credores.
Conforme se refere no ponto 45 do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, que aprovou o CIRE, e é comum repetir nestas situações, a exoneração do passivo restante inspira-se no chamado modelo de fresh startt amplamente difundido no Estados Unidos (discharge do Bankruptcy Code) e acolhido no código da insolvência alemão (Rechstschuldbrefeiung da Insolvenzordnung) que visa permitir ao devedor pessoa singular libertar-se do peso das dívidas que não podem ser satisfeitas através da liquidação do seu património e recomeçar de novo a sua vida.
Existe pois fundamento legal para o pedido formulado pelos requerentes.
Assim, nos termos do art. 239º do CIRE, o Tribunal determina que durante os 5 anos posteriores ao encerramento do processo, o rendimento disponível da insolvente B…, que venha a auferir, isto é todos os rendimentos que advenham à insolvente, com exclusão dos previstos nas al.s a) e b) do n.°3 do art. 239.°, se consideram cedidos ao Sr. Administrador de Insolvência destes autos, na qualidade de fiduciário, durante o período de cessão - os referidos cinco anos após o encerramento do processo -, ficando a insolvente obrigada a observar as imposições previstas no n.° 4 do art. 239.° do CIRE.
Fixa-se à insolvente o valor correspondente a um salário mínimo nacional, multiplicado por catorze meses, devendo a insolvente entregar ao fiduciário todo o rendimento excedente e a iniciar-se com o despacho de encerramento do processo.
A concessão de exoneração do passivo não abrange os créditos de natureza fiscal.
Fica a insolvente advertida para o facto de a exoneração do passivo ser revogada no caso de se verificarem as circunstâncias previstas nas als. b) e ss. do n.°1 do art. 238.° ou violarem dolosamente as suas obrigações durante o período de cessão, e por algum desses motivos tenham prejudicado de forma relevante a satisfação dos credores da insolvência.
Notifique os credores e o Sr. Administrador de Insolvência.»
Em 12.03.2015, foi proferido despacho em que, face à inexistência de quaisquer bens susceptíveis de serem apreendidos para a massa insolvente, ao abrigo do disposto no artigo 232.º, n.º 2, do CIRE, se determinou o encerramento do processo e se qualificou a insolvência de B… como fortuita.
Decorreu o período de cessão sem incidentes e em 20.05.2020 foi proferido o seguinte despacho:
«Tendo sido notificados a Devedora, o Sr. Fiduciário e os credores da insolvência, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 244.º, do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa, nenhum credor se veio pronunciar no sentido de não dever ser concedida a exoneração do passivo restante à Insolvente, enquanto o Sr. Administrador Fiduciário veio pronunciar-se em sentido favorável.
Não resulta dos autos[1], ao longo dos cinco anos após a decisão liminar a conceder a exoneração do passivo restante que a Insolvente apenas entregou a quantia global de 74,30 euros ao Sr. Administrador Fiduciário referente ao segundo e terceiro anos do período de cessão.
Foram entregues nos autos, pelo Sr. Administrador Fiduciário, Relatórios anuais, a que se refere o artigo 240.º, do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa, e nada resultando em desabono do comportamento da Insolvente.
Assim, damos por certo que inexistem nos autos quaisquer quantias a ratear pelos credores, produto da cessão de rendimento, atento o reduzido valor entregue que se mostra insuficiente para pagar sequer as custas do processo.
Dos relatórios anuais apresentados pelo Sr. Administrador Fiduciário e do teor do Relatório Final verifica-se a ausência de quaisquer quantias a ratear pelos credores, mas também que o Sr. Administrador Fiduciário não teve notícia de qualquer incumprimento por parte da Insolvente de qualquer das obrigações impostas pelo artigo 239.º, do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa ou qualquer outra circunstância de que pudesse resultar a cessação antecipada do procedimento de exoneração, por isso, não veio dar conhecimento ao tribunal.
Assim, não se verificando nenhuma das circunstâncias previstas no artigo 238.º e 243.º, ambos do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa, ao abrigo do disposto no artigo 244.º do mesmo diploma legal, concedo à devedora insolvente B…, a exoneração do passivo restante, ou seja, dos créditos sobre a insolvência e que não hajam sido pagos no âmbito destes autos.
Notifique, publicite e registe.
Notifique ainda o Sr. Administrador de Insolvência para depositar por DUC à ordem do processo o valor entregue à Fidúcia, o qual desde já se afeta ao IGFEJ para ressarcimento parcial das quantias por si adiantadas.»
Em 25.07.2020, foi elaborada a conta de custas do processo e, mediante expediente electrónico elaborado na mesma data, foi a insolvente notificada para pagar o montante apurado.
Veio, então, a insolvente apresentar requerimento do seguinte teor:
«B…, Insolvente melhor identificada nos autos à margem referenciados, tendo sido notificada para pagar a conta de custas, vem aos autos dizer o seguinte:
- o pagamento da referida conta é da responsabilidade da massa Insolvente, tal como consta da respetiva guia:
- Estabelece o n.º 1 do artigo 3.º do Regulamento das Custas Processuais, que a taxa de justiça esta compreendida nas custas do processo.
- Por sua vez, dita o artigo 304.º, que as custas do processo são um encargo da massa insolvente.
- Isto significa que as custas do processo de insolvência são um encargo da massa insolvente sendo uma divida da mesma.
Face ao exposto, entende a Insolvente que não é da sua responsabilidade o pagamento das custas em causa.»
Foi o processo com vista ao Ministério Público que se pronunciou nos seguintes termos:
«Requerimento de 10/08/20, ref 6483695:
As custas da massa insolvente, caso não exista produto da liquidação, nem receita da cessão no decurso do prazo da exoneração passam a ser da responsabilidade do devedor, dado que as custas não estão abrangidas pelos efeitos da exoneração do passivo restante – (neste sentido Ac RP de 11/05/20 proc 525/11.2TBMCN-E J 3 e demais jurisprudência nele citada).
Assim, não assistindo razão à requerente, que não goza do beneficio do apoio judiciário, promovo:
- Se indefira o requerido e se notifique para efetuar o pagamento das custas;
- Caso não seja efetuado o pagamento no prazo legal, se proceda nos termos previstos no artigo 35º, do RCP.»
Com data de 04.09.2020, foi proferido o seguinte despacho:
«Não existe fundamento legal para dispensar a Insolvente do pagamento das custas do processo já que não beneficia de apoio judiciário e as custas, sendo a cargo da massa insolvente, quando eta não existe e também não existiu produto da cessão para suportar tal encargo, então, a responsabilidade pelo seu pagamento é da devedora Insolvente, dado que as custas não estão abrangidas pelos efeitos da exoneração do passivo restante.
Assim, notifique a Devedora para efetuar o pagamento das custas, ou para requerer o seu pagamento em prestações, seguindo-se depois os termos da douta promoção que antecede.»
Inconformada, a insolvente veio, em 28.09.2020, interpor recurso de apelação, com os fundamentos explanados na respectiva alegação, rematada com as seguintes “conclusões”:
«A)- A douta sentença recorrida deu como provado os factos os seguintes factos: 1-que as custas da massa insolvente, caso não exista produto da liquidação, nem receita da cessão no decurso do prazo de exoneração passa a ser da responsabilidade do devedor.
B)- Tal decisão não se baseia de todo em preceito legal designadamente no artigo 304º do CIRE.
C)- O Tribunal a quo decretou a sentença de insolvência de B…, em 20/10/2014.
D) Nessa sentença, o tribunal aquo decidiu pelas custas nos termos do artigo 304º CIRE, isto é a cargo da massa insolvente, pois a insolvência foi decertada e transitou em julgado.
E) o tribunal aquo vem agora enviar um guia, cuja responsabilidade é da massa insolvente, para a Recorrente pagar.
F) A Recorrente não é responsável pelo pagamento das custas do presente processo.»
Pretende, pois, que, no provimento do recurso, seja revogada a decisão recorrida e se considere que a responsabilidade do pagamento da conta de custas é unicamente da massa insolvente de B….
O Ministério Público contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
«I – Deve ser julgada procedente a questão prévia suscitada da inexistência de matéria de facto que possa ser objeto de impugnação e ordenar-se o cumprimento do estabelecido no artigo 139º, nº 6, do CPC e caso não seja paga a multa com os acréscimos, ser rejeitado o recurso por extemporaneidade, dado ter sido interposto depois de terminado o prazo para o efeito.
II - De qualquer modo e se assim não se entender:
1 - Do confronto e conjugação do estatuído nos artigos 245º, nº 1 e 2, 233º, nº 1, al d), 239º, nº 4, al c), 240º, nº 1, 241º, nº 1, e 248º, nº 1, do CIRE, resulta claro que cabe aos devedores pessoas singulares, depois de declarados insolventes e ainda que gozem do benefício da exoneração do passivo restante, a responsabilidade do pagamento das custas em que a massa insolvente foi condenada e das demais despesas da massa insolvente, remunerações incluídas, adiantadas pelo IGFEJ ao Sr Administrador de Insolvência e ao Sr Administrador Fiduciário, que não tenham sido pagas pelo produto da massa insolvente e da receita da cessão de rendimentos durante o período da exoneração por não estarem abrangidas, nem se extinguirem pela concessão do beneficio de tal instituto.
2 - Daí que, no despacho recorrido, ao indeferir a pretensão da recorrente e, em vez de a eximir do pagamento das custas, determinou a sua notificação para o pagamento das mesmas, foi efetuada correta e criteriosa interpretação e aplicação do disposto nos artigos 245º, nº 1 e 2, 233º, nº 1, al d), 239º, nº 4, al c), 240º, nº 1, 241º, nº 1, e 248º, nº 1, do CIRE, por se mostrar a mais consentânea com a letra de tais normativo e a vontade e o espirito do legislador.
3 - Nenhuma afronta foi efetuada no despacho questionado à recorrente, por nenhum normativo ou princípio geral de direito ter sido violado ou mesmo melindrado.
4 - Falecem e improcedem, assim, todas as conclusões das alegações do recurso apresentadas pela recorrente apelante B…, pelo que, em consequência, e, como tal, se impõe a improcedência do recurso na sua totalidade.»
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Objecto do recurso
São as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação, onde sintetiza os fundamentos do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e, portanto, definem o âmbito objectivo do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, naturalmente, sem prejuízo da apreciação de outras questões de conhecimento oficioso (uma vez cumprido o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do mesmo compêndio normativo).
A recorrente começa por afirmar que «impugna toda a decisão proferida», incluindo a matéria de facto.
Porém, em vão se procura saber qual é, ou quais são, os concretos pontos de facto que a recorrente considera terem sido «incorretamente julgados», melhor dizendo, que o tribunal seleccionou para fundamentar a decisão de direito.
Refere a recorrente como “facto” impugnado o seguinte (conclusão A)):
«1-que as custas da massa insolvente, caso não exista produto da liquidação, nem receita da cessão no decurso do prazo de exoneração passa a ser da responsabilidade do devedor».
Porém, é de primeira evidência que não se trata de um facto, mas de uma conclusão de direito.
Aliás, é essa a questão a apreciar e decidir neste recurso:
Sendo as custas encargo da massa insolvente, quem é responsável pelo seu pagamento quando a massa, bem como o rendimento disponível cedido, ou são inexistentes ou são insuficientes para as satisfazer.
II – Fundamentação 1. Fundamentos de facto
Os factos e vicissitudes processuais relevantes para a decisão são os enunciados no relatório antecedente e decorrem todos da sequência processual que desembocou na decisão recorrida.
2. Fundamentos de direito
Por regra, as custas do processo de insolvência constituem encargo da massa insolvente, desde que a insolvência seja decretada, conforme dispõe o artigo 304.º do CIRE, norma a que se agarra a recorrente para defender que não são da sua responsabilidade as custas deste processo.
A razão de ser dessa regra está na circunstância de se ficcionar, com base na realidade, que é o insolvente (para efeitos patrimoniais “convertido” em massa insolvente) que lhes dá causa, num raciocínio sobre causalidade que entronca, ainda, na regra geral contida no artigo 527.º do CPC.
Mas, como se tem feito notar[2], a norma citada não pode ser vista isoladamente, deve ser analisada e interpretada em conjugação com outras que dispõem sobre responsabilidade por custas, como fazendo parte de um sistema que se pretende coerente e harmonioso, sob pena de se criarem brechas, incongruências e contradições no sistema jurídico.
Desde logo, o artigo 303.º do CIRE que define a base de tributação do processo de insolvência: além do processo principal, abrange a verificação do passivo, a apreensão dos bens, os embargos, a liquidação do activo, a verificação do passivo, os incidentes do plano de pagamentos, da exoneração do passivo restante, da qualificação da insolvência e quaisquer outros incidentes, ou seja, todo o processado autónomo nele mencionado, cujas custas hajam de ficar a cargo da massa, ainda que processados em separado, o que inculca logo a ideia de que nem todas as custas são encargo da massa insolvente.
Importa, também, não perder de vista a já referida regra geral que rege a condenação em custas decorrente do disposto no artigo 527.º do CPC, segundo a qual será condenada em custas a parte que a elas der causa, ou, não havendo vencimento na acção, quem da mesma tirou proveito.
Mas a norma que mais directa atinência tem com o caso é a contida no artigo 248.º, n.º 1, do CIRE, que estatui:
«O devedor que apresente um pedido de exoneração do passivo restante beneficia do diferimento do pagamento das custas até à decisão final desse pedido, na parte em que a massa insolvente e o seu rendimento disponível durante o período da cessão sejam insuficientes para o respetivo pagamento integral, o mesmo se aplicando à obrigação de reembolsar o organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do fiduciário que o organismo tenha suportado.»
Declarada a insolvência, o juiz decreta a apreensão, para entrega imediata ao administrador da insolvência (AI), além do mais, todos os bens patrimoniais do devedor, mesmo que estejam arrestados, penhorados ou, por qualquer forma, apreendidos ou detidos.
Essa é uma das consequências automáticas da sentença de declaração da insolvência, prevista no artigo 36.º, n.º 1, al. g), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
O carácter universal do processo de insolvência (artigo 1.º, n.º 1, do CIRE) explica que revertam para a massa insolvente, de forma automática, sem necessidade de qualquer iniciativa do AI, os bens que constituem o património do insolvente à data da declaração de insolvência, mas também os bens e direitos que o insolvente for adquirindo na pendência do processo de insolvência (artigo 46.º, n.º 1, do CIRE).
Relativamente a esses bens, que são separados do património geral do devedor e passam a constituir um património autónomo (legalmente designado de “massa insolvente”), o insolvente fica proibido de praticar quaisquer actos de disposição e/ou de administração, cabendo ao administrador da insolvência os poderes de disposição e de administração sobre esses bens (artigo 81.º, n.os 1 e 4, do CIRE) e ao fiduciário, se for deduzido incidente de exoneração do passivo restante, compete, entre outras funções, afectar os montantes recebidos, nomeadamente, ao pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida (artigo 241.º, n.º 1, al. a), do CIRE).
Acontece que não foram apreendidos quaisquer bens para a massa insolvente, que deixou de existir com o encerramento do processo de insolvência nos termos do artigo 232.º do CIRE, razão por que não foi pago qualquer montante a título de custas do processo (e muito menos de reembolso de remunerações e de despesas).
Por outro lado, no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante, durante todo o período de cessão, apenas foi entregue a quantia irrisória de €74,30.
Nestas circunstâncias, cai-se na previsão do citado n.º 1 do artigo 248.º que concede ao devedor, apenas, um benefício temporário traduzido no diferimento do pagamento das custas até à decisão final do pedido de exoneração do passivo restante.
Como se assinalou no Acórdão n.º 489/2020 do Tribunal Constitucional[3]:
«Sucede, todavia, e ao contrário do que acontece com os casos de isenção, que o benefício concedido ao devedor insolvente que deduziu pedido de exoneração do passivo restante é apenas temporário, comportando não mais do que um diferimento; projeta, desse modo, o legislador, a exigibilidade e o cumprimento de tais obrigações de cariz pecuniário para momento posterior, uma vez concedida a exoneração do passivo restante e retomada a sua habilitação legal para a prática de atos que atinjam o seu património (o seu património é gerido em primeira linha pelo administrados de insolvência e, subsequentemente, pelo fiduciário, cabendo a cada um deles, na fase respetiva, efetuar o pagamento de dívida, mormente de dívidas resultantes de custas judiciais, nos termos do artigos 55.º, n.º 1, alínea a), e 241.º, n.º 1, alínea a), ambos do CIRE), mas fá-lo sem margem de aferição da suficiência da situação económica do devedor nessa fase da sua vida patrimonial para fazer face ao remanescente das custas judiciais.».
Nesse contexto (findo o procedimento de exoneração do passivo restante, sendo a massa insolvente e o rendimento disponível cedido insuficientes para o pagamento integral das custas e reembolsos ao I.G.F.E.J. das remunerações e despesas de administrador e fiduciário) é o insolvente (que não beneficie de apoio judiciário) quem tem de suportar esse encargo[4] e, sendo-lhe concedido a exoneração do passivo restante, é-lhe aplicável o artigo 33.º do RCP, que faculta o pagamento em prestações (n.º 2 do mesmo artigo 248.º do CIRE).
Cabe, por último, assinalar que a insolvente requereu, e foi-lhe concedido, apoio judiciário, mas já depois de liquidadas as custas e demais encargos e da notificação para efectuar o pagamento da conta.
III - Dispositivo
Pelas razões vindas de expor, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso de apelação interposto por B… e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Tendo decaído, a recorrente suportará as custas do recurso, sem prejuízo do apoio judiciário, entretanto, concedido.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário).
Porto, 22.02.2021
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
______________________ [1] É manifesto lapso e o que, certamente, se quis dizer foi que “mais resulta dos autos”. [2] Por exemplo, no acórdão do STJ de 29 de Abril de 2014, acessível em www.dgsi.pt [3] E, mais recentemente, no Acórdão n.º 10/2021, de 06.01.2021, que julgou inconstitucional, «por violação dos artigos 20.º, n.º 1, e 13.º, n.º 2, da Constituição, a norma do artigo 248.º, n.º 4, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, na parte em que impede a obtenção do apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, aos devedores que tendo obtido a exoneração do passivo restante e cuja massa insolvente e o rendimento disponível foram suficientes para o pagamento integral das custas e encargos do processo de insolvência e do incidente de exoneração, sem consideração pela sua concreta situação económica». [4] Assim, além do acórdão invocado pelo Ministério Público, o acórdão da Relação de Guimarães de 17.09.2020 (proc. n.º 1262/12.6TBESP.G1)