DECISÃO INSTRUTÓRIA
MINISTÉRIO PÚBLICO
RECURSO
INTERESSE EM AGIR
FORTES INDÍCIOS
INDÍCIOS SUFICIENTES
Sumário

I – No debate instrutório, o Ministério Público, pugnando oralmente pela insuficiência dos indícios, fica institucionalmente vinculado a essa posição, não tendo interesse em agir para a interposição de recurso da decisão de não pronúncia quanto a esse objeto do processo.
II – Os indícios no art.283º nº2 do CPP são os suficientemente fortes para uma provável futura condenação.
III – A “possibilidade razoável” não respeita a uma indiciação “suficiente”, apenas ao grau probabilístico de condenação, traduzindo o respeito devido pelo legislador às futuras possibilidades de defesa e do contraditório em audiência, o qual não poderia assumir uma nomenclatura que fosse ostensiva à presunção de inocência e à defesa.
IV – O termo legal “razoabilidade para ser aplicada uma pena” pressupõe a ideia de que existindo fortes indícios é razoável e suficiente supor que, mesmo perante o contraditório em audiência com novos meios de prova, provavelmente sobrevenha um juízo condenatório.
(redigido a partir do elaborado pelo relator)

Texto Integral

Proc. 130/18.2T9AGD.P1

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Acordam em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

Nos autos de processo de instrução criminal tendo sido proferido despacho de não pronúncia quanto ao arguido B… relativo à discutida responsabilidade pelo cometimento dos crimes de abuso de poderes; de recebimento indevido de vantagem, e dois crimes de peculato.
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Sustenta a defesa, como questão prévia, que o recurso do Ministério Público não deve ser admitido porque em sede de debate instrutório o MºPº sustentou que os factos não estavam indiciados.
Sobre a admissibilidade do recurso interposto pelo MºPª verifica-se que, pelo despacho judicial proferido a 26/11/2020 exarado pelo Mmº Juiz que presidiu ao debate instrutório, fez-se constar que a Digna Procuradora quando se lhe deu a palavra nos debates orais pronunciou-se pela não existência de indícios quanto aos factos respeitantes aos pontos 17, 18 e 29 da acusação, despacho este que não foi oportunamente impugnado pelo MP. Ora, assim sendo, a posição que o MºPº sustentou no debate instrutório afecta irremediavelmente as possibilidades do recurso posteriormente interposto, quando pretende suscitar a reapreciação da não pronúncia sobre a imputação feita na acusação ao arguido pela prática de um crime de abuso de poderes, p.p. pelo art.º 26º da Lei n.º 34/87 de 16/7, com referência aos artigos 1º, 2º, 3º, al.i), 5º e 29º, al.f) do mesmo diploma legal e artigos 66º, 67º, 68º e 386º, n.º 4 do Código Penal; de um crime de recebimento indevido de vantagem, p. e p. pelos art. 16° 1) da Lei n° 34/87 de 16.07, com referência aos arts.1o, 2o, 3o i), 5o e 29° f) do mesmo diploma legal e aos art.s 66°, 67°, 68° e 386° 4) do Cód. Penal; e quanto a um dos crimes de peculato p. e p. pelo art. 20° 1) da Lei n° 34/87 de 16.07, com referência aos art. Io, 2o, 3o i), 5o e 29° f) do mesmo diploma legal e aos art.s 66°, 67°, 68° e 386° 1) do Cód. Penal no que concerne ao uso do cartão de crédito.
Entre vária jurisprudência de destaque, deve sublinhar-se o Acórdão STJ n.º 2/2011, publicado no Diário da República, n.º 19, Série I, de 2011-01-27, que fixou a seguinte jurisprudência: «Em face das disposições conjugadas dos artigos 48.° a 53.º, e 401.º, do Código de Processo Penal o Ministério Público não tem interesse em agir para recorrer de decisões concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo”
No mesmo sentido, entre outros o AC.Rel.E de 26/07/2017 “Em face do disposto no art. 401.º, nº 2, do CPP e da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ nº 2/11 o interesse em agir, enquanto pressuposto negativo do direito de recorrer que acresce à legitimidade, é plenamente aplicável ao MP, diferentemente do que fora a doutrina consagrada no AFJ 5/94, e obsta à interposição de recurso pelo MP sempre que este manifestara no processo posição concordante com a decisão de que pretende recorrer”.
A questão suscitada pela defesa tem toda pertinência porque, quando a Exm Procuradora em pleno debate instrutório, representando o órgão do MP, publicamente toma posição pela não indiciação da matéria referente aos pontos 17, 18 (sendo estes factos nucleares aos delitos de recebimento indevido de vantagem e de abuso de poderes atinente à falta alegada falta de autorização ou de mandato) e ao ponto 29 da acusação (este facto nuclear a um dos delitos de peculato por uso de cartão de crédito), com uso da forma oral o MP (que é a forma legal para tomar posição no curso do debate instrutório) expressou no processo essa posição, a qual vincula esse órgão que está adstrito a critérios de legalidade, objectividade e lealdade (este último dever não menos importante, enquanto garantia estrutural do processo, neste sentido ver Paulo Pinto Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª ed., págs.1053, Lisboa, 2011). Por isso, não pode, depois, a mesma procuradora ou outro procurador interpor recurso, sustentando coisa contrária, pretendendo agora a pronúncia do arguido, dado que, a referida posição vinculou institucionalmente o MP, que não pode ser retirada, por isso, caindo, por falta de interesse em agir, a possibilidade de recorrer. O recurso nestes termos importa a quebra da lealdade devida nos autos pelo MºPº.
Segundo Pinto de Albuquerque um dos índices de falta de interesse em agir é precisamente quando “O sujeito ou interveniente processual promoveu a decisão proferida”, acrescentando o mesmo professor “Mas depois de tomada uma posição no processo, ela obriga todo o Ministério Público. Da natureza una e indivisível do Ministério Público resulta que a posição previamente assumida pelo magistrado do processo não o vincula apenas a ele pessoalmente, mas antes é todo o Ministério Público que assim fica vinculado no dito processo” (in “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª ed., págs.1051 e 1052, Lisboa, 2011).
A jurisprudência tem qualificado o vício que enferma o recurso do MP como de falta de interesse em agir, conceito que tem rigorosa demarcação na ciência processualista à qual o nº2 do art.401º do CPP não é alheio. Por outro lado, a figura do interesse em agir tem sido usada como conceito corretor de posições processuais anteriores abusivas ou até legítimas, mas sempre comprometedoras do interesse sério e tutelável em recorrer. Contudo, o certo é que, como já se referiu, a Digna Procuradora enquanto titular do órgão MP, toma posição pública no debate instrutório no sentido de considerar não indiciados os factos capitais nº17, 18 e 29 da acusação, o que equivale a pugnar pela respetiva não pronúncia, ou seja, tem essa equivalência e concordância jurídica. Aliás, a posição tomada em debate instrutório é inequívoca e está de acordo com o que se prevê no nº4 do art.302º do CPP, o qual dispõe que, antes de encerrado o debate é concedida ao Ministério Público a palavra para formular, em síntese, conclusões sobre a suficiência ou insuficiência dos indícios “de que depende o sentido da decisão instrutória”, ou seja, apenas exige a formulação dessas conclusões sobre indícios, não exigindo, sequer, que conclua expressamente pela pronúncia ou não pronúncia. Portanto, “in casu” o MP quanto aos referidos crimes pugnou pela sua não indiciação, vinculando-se institucionalmente a essa posição, precludindo o direito ao recurso por falta de interesse em agir, quanto a esse objeto do processo.
Como a posição tomada pelo MP em debate instrutório é vinculativa e é em si mesma inequívoca sobre a não indiciação dos delitos de abuso de poder, recebimento indevido de vantagem e de peculato, não pode, depois o mesmo MP interpor recurso, por não ter interesse em agir.
Deste modo, não se admite o recurso, por falta de interesse em agir do recorrente, quanto à decisão de não pronúncia referentes aos delitos de abuso de poderes; de recebimento indevido de vantagem, e quanto a um dos crimes de peculato no que concerne ao uso do cartão de crédito.
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Nada obsta ao conhecimento do mérito do recurso quanto à restante parte do objecto em que é admitido e que respeita ao crime de peculato relativo às ajudas de custo de que estava acusado.
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II. Objeto do recurso e sua apreciação.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.

É assim composto por matéria de Direito com diversa avaliação do mérito dos indícios com revogação da decisão e sua substituição por decisão de pronúncia.
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Do enquadramento dos factos.
Do despacho recorrido consta:
“Findo o inquérito o Ministério Público proferiu despacho de acusação contra o arguido B… a quem imputou a prática, como autor material, na forma consumada e em concurso real de:
- um crime de abuso de poderes, p.p. pelo art.º 26º da Lei n.º 34/87 de 16/7, com referência aos artigos 1º, 2º, 3º, al.i), 5º e 29º, al.f) do mesmo diploma legal e artigos 66º, 67º, 68º e 386º, n.º 4 do Código Penal;
- um crime de recebimento indevido de vantagem, p.p. pelos artigos 16º, n.º1 da Lei n.º 34/87 de 16/7, com referência aos artigos 1º, 2º, 3º, al.i), 5º e 29º, al.f) do mesmo diploma legal e artigos 66º, 67º, 68º e 386º, n.º 4 do Código Penal;
- dois crimes de peculato, p.p. pelo art.º 20º, n.º 1 da Lei n.º 34/87 de 16/7, com referência aos artigos 1º, 2º, 3º, al.i), 5º e 29º, al.f) do mesmo diploma legal e artigos 66º, 67º, 68º e 386º, n.º 4 do Código Penal.
Inconformado com o despacho de acusação veio o arguido requerer a abertura desta fase processual, com os fundamentos constantes de fls. 424 e ss. que aqui se dão por reproduzidos, aduzindo argumentos de facto e de direito que em seu entender devem conduzir a uma decisão de não pronúncia.
Por despacho de fls. 539 foi declarada aberta a instrução.
Procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas e realizou-se debate instrutório, com observância do devido formalismo legal, com formulação a final de conclusões pelo Ministério Público, assistente e arguido.
A decisão instrutória, no sentido da pronúncia, depende da existência de indícios suficientes, obtidos por via do inquérito e da instrução, que preencham os pressupostos de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena ou de uma medida de segurança (art. 308º, n.º. 1 do Cód. Proc. Penal).
Os indícios são suficientes, na perspectiva do normativo invocado, quando, em face dos mesmos, seja em termos de prognose, muito provável a futura condenação do arguido ou esta seja mais provável que a sua absolvição (cfr. art.º. 283º, n.º. 1 ex vi do art.º. 308º, n.º. 2, ambos do Cód. Proc. Penal)1.
1 Cfr. também José Mouraz Lopes, Garantia Judiciária no Processo Penal – Do Juiz e da Instrução, Coimbra, 2000, pág. 68 v. e ss..
2 Curso de Processo Penal, vol. II, pág. 237.
3 Do Processo Penal..., pág. 347.
4 João de Castro Mendes, Do Conceito de Prova em Processo Civil, citado por Germano Marques da Silva, op. e loc. cit.
5 Op. e loc. cit..
A concretização do que sejam “indícios suficientes” assume fulcral importância nos ulteriores desenvolvimentos e metodologia empregue na apreciação do processado. Assim, referia-se Cavaleiro Ferreira aos indícios, por aproximação às presunções naturais civis, nos seguintes termos: “A prova indiciária é prova indirecta. Os factos probatórios indiciários são os que permitem concluir pela verificação ou não verificação de outros factos por meio de raciocínio em regras da experiência comum, ou da ciência, ou da técnica”2.
A instrução não é, contudo, constituída apenas por prova indiciária. Como refere Germano Marques da Silva3, o indício é um meio de prova e todas as provas são indícios “enquanto são causas, ou consequências morais ou materiais, recordações e sinais do crime”. É neste sentido e segundo este autor que se deve interpretar o disposto no art. 308º do Cód. Proc. Penal.
Chama-se também a atenção para o facto de, nesta fase preliminar do processo, não se visar “alcançar a demonstração da realidade dos factos”4, mas apenas sinais de que o crime se verificou, praticado por determinado arguido. Como conclui Germano Marques da Silva5, “As provas recolhidas nas fases preliminares do processo não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas de mera decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase de julgamento”.
Nesta fase preliminar, não se pretende uma espécie de “julgamento antecipado” nem um juízo de certeza moral e de verdade que são pressupostos da condenação, mas tão só a verificação de existência de indícios de que determinado crime se verificou e que existe uma probabilidade séria, aferida pela positiva e objectivamente, de que o mesmo foi praticado por um ou mais arguidos, e assim se apreciando a decisão do Ministério Público/assistente de acusar. Nessa verificação deverá no entanto o julgador interpretar criticamente e no seu prudente arbítrio os indícios recolhidos em sede de inquérito e instrução.
Em qualquer dos casos essa verificação da suficiência de indícios não implica a apreciação do mérito da acusação, no mesmo sentido em que tal ocorre na audiência de julgamento, mas apenas se julga da verificação dos pressupostos de que depende a abertura da fase de julgamento.
À data dos factos o arguido era vereador da Câmara Municipal C….
Quanto às funções do arguido, a testemunha D…s – fls. 333/334 - referiu que o mesmo era vereador com os pelouros da área financeira e turismo, conforme delegação de competências que à data foi efectuada. Também a testemunha E… – fls. 344/345 – afirmou que à data dos factos o arguido era vereador e tinha os pelouros da área financeira, do turismo, do desporto e do associativismo desportivo.
Corroborando o depoimento das testemunhas, consta a fls. 467 e ss. o despacho n.º 26/2013 que contém a delegação de competências na pessoa do aqui arguido e que inclui – vide fls. 471, ponto 4, alínea ff) – promover e apoiar o desenvolvimento de actividades e a realização de eventos relacionados com a actividade económica de interesse municipal.
Podemos então concluir que, considerando as funções exercidas pelo arguido enquanto vereador da Câmara Municipal C…, a realização no Japão de um evento desportivo com transmissão televisa para toda a Ásia e com destaque para a região de C…, constituía motivo suficiente para o envolvimento da autarquia no projecto. Parece-nos, por isso, que a viagem do arguido ao Japão em Outubro de 2017, ainda que contemplando uma vertente lúdica proporcionada por quem fez o convite e suportou todos os custos, não pode ser havida como uma actividade do foro privado.
Aliás, não deixa de ser relevante para esta análise e para apuramento da intenção que presidiu à decisão do arguido se deslocar ao Japão, o facto de o mesmo ter sido acompanhado na viagem do responsável da empresa F…, que detém os direitos sobre os guarda-chuvas «de C…» e de uma colaboradora da autarquia, G…, a qual, no final da viagem, elaborou, para a autarquia, o relatório da viagem realizada ao Japão em Outubro de 2017, datado de 26/10/2017, e que consta de fls. 17 do Anexo I.
O relatório, elaborado por G…, colaboradora da Câmara, em papel com o cabeçalho da autarquia, dirigida ao aqui arguido na sua qualidade de Vice-Presidente e tendo como assunto a «visita e reunião de trabalho a Hiroshima, Japão | Outubro de 2017» faz um relato da viagem sendo de destacar a referência – vide fls. 17 verso – ao facto de os contactos terem servido para promover o município de C… e falar das suas potencialidades turísticas. Ali se faz referência à duração prevista para a instalação dos guarda-chuvas no estádio – 6 dias – e ao facto de o estádio ter uma lotação de 30.000 adeptos por jogo e estes sere, transmitidos em directo com um alcance de mais de um milhão de espactadores.
A tudo isto acresce o facto de, além da instalação dos guarda-chuvas, o evento que ocorreu em Maio de 2018 ter contado com um stand/exposição sobre C… que atraiu inúmeros visitantes e contribuiu objectivamente para a divulgação da cidade e da região.
Aliás, o mesmo aconteceu com o Município de H… que, também em Outubro de 2017, enviou uma delegação ao Japão, nas mesmas condições da delegação de C…, a fim de discutir a possibilidade de criar uma instalação no estádio com as flores de H…, assim divulgando as festas da cidade e o município. Neste ponto a testemunha I…, funcionário da Câmara de H…, foi muito claro ao afirmar a importância que para H… teve a participação do evento porquanto, tal como aconteceu com C…, não se limitaram a ter uma instalação no estádio com as flores de H… e, além disso, tiveram um stand/exposição para divulgação da sua cidade e região.
E a verdade é que a viagem incluiu reuniões de trabalho nas quais também participaram o arguido e G… e onde o arguido tratou de fazer a ligação entre Hiroshima e C… com fotografias e imagens de C… que foram exibidas – cfr. depoimento de J….
Podemos, naturalmente, discutir se tais iniciativas produziram ou não resultados palpáveis em termos de aumento do número de visitantes oriundos da Ásia. Mas não podemos duvidar que, no plano estratégico, o envolvimento de C… naquela actividade seria, num juízo de prognose, uma iniciativa importante para divulgar C…no Japão e na Ásia em geral e, dessa forma atrair turistas para a região. Aliás, a testemunha G… referiu que posteriormente, em Maio de 2018, aquando da comemoração do décimo aniversário do estádio, a embaixada Portuguesa no Japão e o Turismo do Centro foram contactados a fim de colaborar na divulgação da cidade, da região centro e do país.
Disse ainda que durante o evento foi feita a divulgação/promoção de C… com filmagens da cidade, textos sobre a sua história e fotografias. E confirmou que as duas viagens, de Outubro de 2017 e Maio de 2018, tiveram carácter institucional na medida em que se destinaram a preparar a promoção de C… no estrangeiro, como contrapartida da ajuda concedida aos organizadores do evento na sua realização. Finalmente, relatou que em Junho de 2018 foi contactada por uma agência de turismo que pretendia, em 2020, trazer a C… 200 pessoas, factos que vê como prova de que a divulgação do município de C… no Japão deu frutos.
Além do interesse evidente que a viagem representava na promoção de C… e da sua conexão directa com a área de actuação do arguido enquanto vereador e com as competências que lhe estavam distribuídas, permitindo concluir que tal viagem não foi de natureza privada mas antes no interesse e em representação do município, importa também realçar que não existe qualquer norma – nem o Ministério Público a invoca na acusação – que impusesse autorização e/ou deliberação prévia do executivo camarário para a sua realização.
Com efeito, a testemunha K…, à data secretária do Vice-Presidente, disse que os vereadores tinham autorização para, no respectivo pelouro, fazerem viagens dentro e fora do país e, ainda, que não havia deliberação para cada viagem. Afirmou, ainda, que a viagem foi do conhecimento do presidente D….
A testemunha D… afirmou que tomou conhecimento da viagem através da sua chefe de gabinete. Referiu que, no que concerne às formalidades adoptadas pelo município relativamente a viagens realizadas em representação do mesmo, cada vereador, dentro da sua área de competência, tinha autonomia para avaliar os benefícios que podem advir ao representar-se o município fora do país e, tendo isso em consideração, realizá-la ou não. Disse ainda que estas matérias nunca estiveram dependentes de qualquer tipo de deliberação especial ficando a decisão dentro do leque de competências de cada Vereador. Esclareceu ainda que, apesar de considerar normal que o Presidente da Câmara tivesse conhecimento da viagem, seu objectivo e da mais-valia da mesma para o município, admitiu que no caso a falta de informação completa se terá ficado a dever à circunstância de se estar em período de transição para um novo executivo. De qualquer forma, tinha ouvido falar da viagem apesar de desconhecer de quem partiu o convite, a que título foi realizada e com que propósito. Aliás, por causa da viagem tiveram que acertar a data para a tomada de posse. E confirmou que a falta do arguido à reunião de 17/10/2017 foi justificada precisamente porque sabiam da razão da ausência.
Também a testemunha E… referiu que a viagem não foi discutida em qualquer reunião formal da Câmara, tendo no entanto sido debatida a questão em reunião dos membros do executivo em permanência, e na qual esteve presente o então presidente D…. Disse que o assunto das viagens ao estrangeiro nunca foram objecto de qualquer deliberação formal, o que só acontecia se fossem entidades a solicitar à Câmara esse tipo de apoio. E, ainda, que o arguido tinha autonomia, por causa da delegação de competências, para ir ao estrangeiro sem necessidade de autorização prévia. Relatou que quando o arguido apresentou a questão da viagem ao Japão os membros permanentes da Câmara não vislumbraram qualquer ilícito. Referiu que nessa altura o arguido disse que a viagem seria paga pela empresa japonesa mas não falou em qualquer contrapartida ou pagamento por parte da Câmara de qualquer apoio à instalação dos chapéus em Hiroschima, nem falou da contrapartida do pagamento das viagens, hospedagem e deslocações por parte da empresa japonesa à dispensa do pagamento de copyrights da colocação dos guarda chuvas na rua. Entendeu, desde o primeiro momento, o convite como uma oportunidade para divulgar C…, tal como H… fez com as flores. E narrou que a última reunião do executivo de D… ocorreu em 17/10/2017 – vide documento de fls. 622 – e que a falta do arguido foi justificada porque estava no Japão, facto que era do conhecimento dos presentes. Além disso, a tomada de posse do novo executivo foi marcada para o último dia – 24/10/2017 – precisamente para permitir a presença do arguido.
Perante isto temos que dar como não indiciada a factualidade vertida no artigo 12 da acusação.
Tal como temos que considerar como não indiciada toda a factualidade vertida nos artigos 13 a 16 da acusação na parte em que se conclui que a viagem carecia de autorização/deliberação prévia, bem como na parte em que se afirma que a viagem não foi do conhecimento do então presidente D… ou dos restantes vereadores da autarquia.
Ainda quanto a este aspecto, porque entendemos que a viagem se revestiu de manifesto interesse para o município de C… e foi realizada pelo arguido no exercício e por causa das suas funções, concluímos que a mesma não se traduziu numa vantagem patrimonial indevida e, nessa medida, temos que dar por não indiciada a factualidade vertida nos artigos 18 a 20 da acusação.
Finalmente, analisada criticamente toda a prova carreada para os autos, concluímos com absoluta segurança que nenhuma prova permite chegar à conclusão vertida no artigo 5 da acusação, ou seja, que o arguido ou alguém cumprindo ordens/instruções suas, convenção a comitiva japonesa que o município de C… detinha quaisquer direitos sobre a decoração urbana de guarda-chuva para, fruto de tal engano, beneficiar da viagem gratuita ao Japão.
Quanto às ajudas de custo que foram pagas ao arguido, por referência à viagem de Outubro de 2017 ao Japão, a testemunha D… referiu que soube, através de uma acta de uma reunião da realizada, que o arguido foi intransigente na exigência do seu pagamento, certamente por estar convicto ser credor das mencionadas ajudas. O assistente L… disse que, apesar de a viagem ao Japão, em Outubro de 2017, ter sido realizada a expensas da empresa japonesa e, à partida, sem quaisquer custos para a Câmara Municipal, o arguido recebeu ajudas de custo internacionais.
A testemunha M… explicou que as ajudas de custo da viagem de Outubro de 2017 foram processadas tendo por referências as horas de partida e de chegada indicadas pelo arguido. Além disso, o arguido comunicou os pagamentos com o cartão de crédito para aqueles valores serem deduzidos no montante a pagar. Esclareceu que preencheu o documento de fls. 146 com base na informação fornecida pelo arguido e anexou ao mesmo o convite que este na origem da viagem – vide fls. 147 -. Finalmente, disse que, na sequência de dúvidas levantadas por vereadores da oposição, o arguido pediu um parecer ao Advogado da Câmara – vide fls. 25/26 -, Dr. N…, o qual concluiu – vide e-mail de 15/12/2017 – ser devido o pagamento das ajudas de custo.
Por fim, quer a testemunha G…, quer a testemunha J… confirmaram que, apesar da viagem e respectivas despesas ter sido suportada pela empresa japonesa, o arguido e demais participantes fizeram algumas despesas, nomeadamente com comida.
Não existe prova que infirme as declarações destas testemunhas e do próprio arguido pelo que, tratando-se de viagem no interesse e em representação do município e existindo despesas do arguido não suportadas pela entidade que fez o convite, entendemos que o arguido não cometeu qualquer acto ilícito ao reclamar o pagamento de ajudas de custo.
Mas, ainda que dúvidas existissem quanto à legalidade de tal actuação, a verdade é que o arguido, quando a questão foi colocada, o arguido pediu um parecer ao jurista da Câmara, Dr. N…. Com efeito, a testemunha M… explicou que as ajudas de custo da viagem de Outubro de 2017 foram processadas tendo por referências as horas de partida e de chegada indicadas pelo arguido. Além disso, o arguido comunicou os pagamentos com o cartão de crédito para aqueles valores serem deduzidos no montante a pagar. Explicou que preencheu o documento de fls. 146 com base na informação fornecida pelo arguido e anexou ao mesmo o convite que este na origem da viagem – vide fls. 147 -. Finalmente, disse que, na sequência de dúvidas levantadas por vereadores da oposição, o arguido pediu um parecer ao Advogado da Câmara – vide fls. 25/26 -, Dr. N…, o qual concluiu – vide e-mail de 15/12/2017 – ser devido o pagamento das ajudas de custo.
Temos, por isso, que dar como não indiciada a factualidade vertida nos artigos 23 e 24 da acusação.
Quanto à utilização do cartão de crédito, regista-se que não foi indicada qualquer norma ou regulamento que regulasse a utilização, pelos vereadores ou presidente da autarquia, dos cartões de crédito que estavam distribuídos.
A testemunha D… afirmou que a utilização do cartão de crédito concedido aos vereadores é para as finalidades que tenham relevância para o município e ser utilizado para pagamento de outras despesas com esse interesse. Referiu que a despesas de fls. 481 – refeição para três pessoas – foi no interesse ca Câmara até porque a viagem visava tratar da promoção do município no Japão. O mesmo aconteceu, aliás, com a despesas a que alude o documento de fls. 438 – despesas em C… com a comitiva do Japão -, que a testemunha conhecia e validou por entender ter sido feita no interesse do município. O assistente L… disse ter tido conhecimento que o arguido, na viagem ao Japão em Outubro de 2017 utilizou o cartão de crédito para pagamento de despesas de transporte e refeições que classificou como sendo de «valores insignificantes».
A testemunha E… afirmou que o cartão de crédito só pode ser usado em situações de interesse e representação do município e não em despesas de carácter pessoal ou de terceiros. Disse ainda, na fase de instrução, que o cartão de crédito pode ser usado no pagamento de despesas de terceiros desde que estejam ao serviço/interesse do município.
A testemunha J… confirmou que na viagem para o Japão, na escala na Alemanha, o arguido lhe pagou, bem como a G… uma refeição ligeira.
A testemunha K… disse que quando recebiam comitivas de fora as despesas do Presidente ou vereadores eram pagas pela Câmara. Deu como exemplo a despesas a que alude o documento de fls. 489, da sua autoria.
A testemunha M… referiu que antes da viagem de Outubro de 2017 uma comitiva japonesa deslocou-se a C… tendo sido recebida na sala de reuniões da Câmara.
Depois da reunião deslocaram-se a um hostel, tendo a despesas sido paga pelo arguido e depois reembolsada com autorização de D…, conforme documentos de fls. 438 e 439.
A testemunha O…, vereadora da Câmara Municipal C…, disse que a utilização de cartão de crédito destina-se ao pagamento de despesas ao serviço do município.
Finalmente, a testemunha G… confirmou a refeição paga na escala na Alemanha esclarecendo que estava, tal como o arguido, em trabalho para a Câmara.
Ora, já concluímos que o arguido realizou a viagem ao Japão, em Outubro de 2017, em representação e no interesse do município, no exercício de competências que lhe estavam delegadas e, ainda, que o arguido tinha autonomia para decidir acerca da realização daquela viagem.
Neste circunstancialismo parece-nos que ninguém terá dúvidas em concluir pela legitimidade do arguido em pagar as despesas em causa e referentes à sua refeição e à refeição da colaboradora do município e respectiva viagem de autocarro. Aliás, conforme referimos, não foi indicada qualquer regra que impusesse ao arguido comportamento diferente e, conforme referiu a testemunha D…, o que se exigia dos utilizadores dos cartões de crédito era bom sendo e prudência na sua utilização.
E a utilização, pelo arguido, do cartão de crédito para pagar, também, a viagem de autocarro e a refeição do terceiro membro da comitiva, constituiu um acto de cortesia igual a tantos outros que eram comuns e que estão bem retratados nos documentos juntos, e que se mostra perfeitamente justificado porquanto J…, apesar de participar na viagem no interesse da sua empresa, não deixava por isso de ser a pedra angular nesta iniciativa que servia para projectar a cidade de C… no Japão na medida em que lhe caberia a instalação dos guarda-chuvas e a resolução de todos os problemas técnicos conexos.
Pelo que, considerando o interesse que a viagem revestia para o município, tendo presente o relevantíssimo papel que J… tinha, sem esquecer a prática instituída no executivo quanto ao uso de cartão de crédito pelo Presidente e pelos vereadores e, finalmente, ponderando o valor manifestamente reduzido que está em causa, parece-nos que a utilização que o arguido fez do cartão de crédito – e que foi deduzida no valor das ajudas de custos – não só não violou qualquer preceito legal ou regulamento interno da autarquia como se situa dentro dos limites de bom senso que o então Presidente D… referiu no seu depoimento. É importante lembrar que, de acordo com a acusação, estamos a falar de três bilhetes de transporte no valor de €18 cada e uma refeição para as três pessoas no valor global de €39,40, o que, parece-nos, traduz uma utilização conscienciosa (e não miserabilista) dos dinheiros públicos. Aliás, se considerarmos apenas a despesa havida com J… estamos a discutir um valor total de €31,30!!!
Temos, por isso, que dar por não indiciada a factualidade vertida nos artigos 28, 29 e 30 da acusação.
Por tudo o exposto, considerando a factualidade vertida na acusação e que consideramos não indiciada, somos levados a concluir não estarem minimamente indiciados os factos integradores dos tipos legais de abuso de poderes, p.p. pelo art.º 26º da Lei n.º 34/87 de 16/7, com referência aos artigos 1º, 2º, 3º, al.i), 5º e 29º, al.f) do mesmo diploma legal e artigos 66º, 67º, 68º e 386º, n.º 4 do Código Penal; recebimento indevido de vantagem, p.p. pelos artigos 16º, n.º1 da Lei n.º 34/87 de 16/7, com referência aos artigos 1º, 2º, 3º, al.i), 5º e 29º, al.f) do mesmo diploma legal e artigos 66º, 67º, 68º e 386º, n.º 4 do Código Penal; e peculato, p.p. pelo art.º 20º, n.º 1 da Lei n.º 34/87 de 16/7, com referência aos artigos 1º, 2º, 3º, al.i), 5º e 29º, al.f) do mesmo diploma legal e artigos 66º, 67º, 68º e 386º, n.º 4 do Código Penal.
Decisão
Pelo exposto, decido não pronunciar o arguido B… pela prática dos crimes de abuso de poderes, p.p. pelo art.º 26º da Lei n.º 34/87 de 16/7, com referência aos artigos 1º, 2º, 3º, al.i), 5º e 29º, al.f) do mesmo diploma legal e artigos 66º, 67º, 68º e 386º, n.º 4 do Código Penal; recebimento indevido de vantagem, p.p. pelos artigos 16º, n.º1 da Lei n.º 34/87 de 16/7, com referência aos artigos 1º, 2º, 3º, al.i), 5º e 29º, al.f) do mesmo diploma legal e artigos 66º, 67º, 68º e 386º, n.º 4 do Código Penal; e peculato, p.p. pelo art.º 20º, n.º 1 da Lei n.º 34/87 de 16/7, com referência aos artigos 1º, 2º, 3º, al.i), 5º e 29º, al.f) do mesmo diploma legal e artigos 66º, 67º, 68º e 386º, n.º 4 do Código Penal.
Custas pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça em 3 Ucs.
Notifique.
*
Cumpre apreciar.
Importando apreciar o mérito dos indícios e da sua relevância jurídica quanto ao ponto 24 da acusação face ao subsistente delito de peculato previsto e punido pelo art.20º nº1 da Lei nº34/87 sobre o recebimento das ajudas de custo, cabe primeiramente aferir os requisitos legais de aferição dos indícios.
Conforme disposto no art. 286º, nº 1 do C. P. Penal, a instrução “visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
Constitui uma atividade de averiguação processual complementar daquela que foi levada a cabo durante o inquérito, destinando-se, tendencialmente, a uma investigação mais aprofundada dos factos constitutivos de um crime e sua imputação a determinada pessoa.
Nos termos do art.308º, n.º 1 do C. P. Penal, se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
A suficiência dos indícios têm que ver não só com a densidade indiciária, mas pela capacidade probatória dos mesmos em audiência. E é a suficiência dessa capacidade que deve ser aferida.
Na interpretação do que sejam indícios suficientes a jurisprudência tem percorrido um entendimento que nos parece muito discutível e que carece de reponderação, entre muitos ver o aresto Ac.RelC de 28/06/2017 no qual se sustenta que o “juízo de probabilidade razoável de condenação enunciado no n.º 2 do art. 283.º do CPP, aplicável à pronúncia ou não pronúncia, não equivale ao juízo de certeza exigido ao Juiz na condenação. Quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo aquela «possibilidade razoável» de condenação como uma possibilidade mais positiva que negativa: o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou, os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.”
O acervo de indícios que possam sustentar uma “aposta ou projeto de prova” significa a gestão das probabilidades de condenação, constituindo um eminente juízo relativo, porque provisório.
Com efeito, o conceito e o processo de prova com essa dignidade (por contraponto aos juízos indiciários) só ocorre quando se discutem os meios de prova com pleno contraditório, imediação, oralidade em audiência de julgamento. É aí, nesse cenário, onde todos os princípios do processo penal são honrados e cumpridos, que operam os juízos de prova, com sujeição à imediação e oralidade de todos os depoimentos das testemunhas, declarações das partes e esclarecimento dos peritos (com o contraditório das instâncias), com o contraditório e confronto das partes e das testemunhas aos resultados periciais e teor dos documentos, podendo o exercício do contraditório implicar a adição de nova prova testemunhal e documental nos prazos da contestação.
Antes da audiência de julgamento, nas fases anteriores de inquérito e instrução, as ilações e os juízos de valor que se retiram dos meios de prova até aí existentes, porque ocorrem em ambiente diverso, com quebra de vários princípios, só podem ser qualificados de juízos indiciários, sem valor probatório. Repete-se que o conceito e o processo de prova só pode operar em audiência de julgamento.
A lei quando usa a expressão de indícios suficientes, isso não significa a graduação quantitativa dos indícios entre insuficiente, suficiente, médio ou alto, e por isso não se trata de uma carga suficiente/mínima de indícios. Antes, a expressão gramatical traduz-se em indícios suficientes para uma condenação, onde a densidade destes é necessariamente qualificada, exigindo uma “alta probabilidade de futura condenação”, tal como se refere no AC.STJ de 28/06/2006 (pese embora este aresto admita pelo menos uma probabilidade superior de condenação perante as probabilidades de absolvição [o que a nosso ver não preenche o juízo de suficiência]), sob pena do suporte indiciário não resistir aos limites da dúvida “in dúbio pro reo”. Não é concebível acusar ou pronunciar com um plano de “suficiência” de indícios, antes são necessários indícios qualificados de muito fortes.
A expressão legal prevista no art.283º nº2 do CPP “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena”, impõe uma adequada exegese. Com efeito, o conceito probabilístico de “possibilidade razoável” apenas traduz o respeito do legislador pela futura produção de prova em audiência de julgamento, assim como o respeito pelas possibilidades de defesa e pelo contraditório. Não poderia o legislador assumir uma nomenclatura que fosse ostensiva à presunção de inocência do arguido e ao respeito pelas possibilidades de defesa e do princípio de igualdade de armas. O termo legal “razoabilidade” (da possibilidade de condenação) fixa-se apenas no juízo antecipatório, pressupondo a ideia de que existindo fortes indícios é razoável supor que mesmo perante o contraditório em audiência com novos meios de prova, sobrevenha um juízo condenatório. Ou seja, o conceito de “razoabilidade” não se refere ao grau de indícios nem respeita a “uma indiciação menor”.
O grau de exigência dos indícios quer na acusação, quer na pronúncia, continua muito elevado, basta pensar que a probabilidade de condenação meramente superior a uma probabilidade de absolvição, nunca em fase do julgamento pode conduzir a uma condenação, pois nesse caso, impunha-se uma absolvição. Com efeito, verificando-se uma probabilidade de absolvição (portanto com indícios nesse sentido), se essa probabilidade for de 30% ou até de 20%, pese embora seja claramente minoritária, encontra-se instalada uma dúvida que tem expressão, podendo comprometer um juízo condenatório.
Cabe esclarecer que os indícios suficientes para a verificação do crime nos termos do art.283º do CPP tem a mesma exigibilidade da suficiência dos indícios do despacho de pronúncia prevista no art.308º do CPP, embora aqui com a especialidade e necessidade de aferir a matéria indiciária respeitante aos termos do art.74º do CP. Pois, se estiverem reunidos os requisitos da dispensa de pena, não deve ser proferida uma decisão de pronúncia, com movimentação desnecessária de toda a máquina da Justiça e convocação de todos os intervenientes, para depois o resultado do julgamento não ultrapassar uma dispensa de pena, com ofensa do princípio da dignidade da pessoa humana, resultados que o Legislador não quis, e bem (pese embora hajam indícios do cometimento do delito suficientes para a condenação).
A expressão legal “indícios suficientes de se terem verificados os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena”, tem um significado normativo e gramatical que deve ser bem demarcado, a suficiência em causa não é dos indícios em si mesmos, mas a suficiência para um juízo futuro de condenação.
A questão deverá ser vista não no conceito isolado de “indícios suficientes”, portanto, a categoria gramatical da palavra suficiência não pode ser um adjectivo dos indícios (o qual é gerador de equívocos centrados na expressão de suficiência, porque colide com as futuras exigências de prova numa condenação); mas no conceito que implique todo o silogismo, ou seja, “suficientes para uma condenação e aplicação de uma pena”, onde a classificação de suficiência não é adjectivo, mas substantivo porque significa aquilo que é necessário para uma condenação.
Portanto, a suficiência de indícios para aplicação de uma pena nos termos do art.308º do CPP, supõe um projecto de prova para condenação, exigindo, por definição, indícios muito fortes. Repete-se que a lei quando exprime a probabilidade razoável ou superior da condenação face às hipóteses de absolvição, apenas quis respeitar a importância do contraditório e da defesa. Existindo em inquérito e instrução indícios conflituantes ou divergentes face aos indícios que conduzem à imputação do crime, se aqueles conviverem como possibilidades de verificação plausível, ainda que inferiores aos indícios de cometimento do crime, a mera probabilidade superior de condenação não pode conduzir a um despacho de pronúncia ou de acusação, mesmo que o peso da probabilidade de absolvição se situe em 30%, aqui uma dúvida expressiva estará instalada. Só pode sobrevir um despacho de pronúncia se os fortes indícios existentes nos autos constituírem de forma suficiente um projecto de prova com aptidão para uma condenação, e este silogismo exige com suficiência (aqui como substantivo) a existência de indícios muito fortes (mais do que indícios fortes).
Como é óbvio a exigência de indícios muito fortes não se confunde com o juízo de prova a final, porque o juízo indiciário por definição é provisório e o possível naquela fase do processo (com depoimentos de testemunhas em suporte de auto de inquirição pelas OPCs, sem valor autónomo ou intrínseco em audiência de julgamento), onde ainda não existe pleno contraditório assim como todos os elementos e meios de prova e de aferição. Contudo, não pode deixar de ser alta a exigência dos indícios, similar ao juízo condenatório. O juízo condenatório tanto existe para os indícios como para a prova, simplesmente o plano indiciário tem natureza provisória e está assente num juízo de prognose, onde ainda falta o contraditório e os possíveis e restantes meios de prova.
Deve ainda referir-se que a necessária exigência indiciária qualificada para a acusação ou para a decisão de pronúncia, nessas fases processuais, pese embora a sua antecipação e limitações, por regra já contém meios de prova estruturados (com um valor autónomo e intrínseco em audiência de julgamento), uns ainda a sujeitar a contraditório, outros produzidos já com contraditório, como sejam as declarações dos arguidos em 1º interrogatório, que poderão contar e valer como prova em audiência; as declarações para memória futura das vítimas, relatórios periciais, autos de reconhecimento do arguido, inquirições de testemunhas por autoridade judiciária.
Portanto, o juízo legal de suficiência referido no art.308º do CPP é sempre estabelecido por referência à prova que se propõe para condenação, e, por isso, a proposta de indícios tem de ser suficiente para com essa aptidão probatória, em audiência de julgamento, sobrevir uma condenação e se aplicar uma pena ao arguido. E todos sabemos que suficiência para aplicar uma pena implica sempre um parâmetro de prova seguro e exigente que arrede panoramas de dúvida. O “projecto de prova” que se propõe numa acusação ou em decisão de pronúncia, tem as exigências de prova do julgamento. A diferença é que esse projecto se estabelece por antecipação e apenas com os elementos que existem nos autos. Esse juízo indiciário da acusação e da pronúncia formula a prognose de uma aptidão probatória que se projeta manter quando sujeita à oralidade, imediação e contraditório, assim como ao confronto de nova prova testemunhal e documental (surgida na fase do julgamento).

Estabelecida que está a densidade do art.308º do CPP, cumpre reapreciar a base de indiciação das ajudas de custo que foram peticionadas pelo arguido, à luz da imputação do crime de peculato de que estava acusado. A este respeito consta da fundamentação do Mmº Juiz de instrução que “Quanto às ajudas de custo que foram pagas ao arguido, por referência à viagem de Outubro de 2017 ao Japão, a testemunha D… referiu que soube, através de uma acta de uma reunião da realizada, que o arguido foi intransigente na exigência do seu pagamento, certamente por estar convicto ser credor das mencionadas ajudas. O assistente L… disse que, apesar de a viagem ao Japão, em Outubro de 2017, ter sido realizada a expensas da empresa japonesa e, à partida, sem quaisquer custos para a Câmara Municipal, o arguido recebeu ajudas de custo internacionais.
A testemunha M… explicou que as ajudas de custo da viagem de Outubro de 2017 foram processadas tendo por referências as horas de partida e de chegada indicadas pelo arguido. Além disso, o arguido comunicou os pagamentos com o cartão de crédito para aqueles valores serem deduzidos no montante a pagar. Esclareceu que preencheu o documento de fls. 146 com base na informação fornecida pelo arguido e anexou ao mesmo o convite que este na origem da viagem – vide fls. 147 -. Finalmente, disse que, na sequência de dúvidas levantadas por vereadores da oposição, o arguido pediu um parecer ao Advogado da Câmara – vide fls. 25/26 -, Dr. N…, o qual concluiu – vide e-mail de 15/12/2017 – ser devido o pagamento das ajudas de custo.
Por fim, quer a testemunha G…, quer a testemunha J… confirmaram que, apesar da viagem e respectivas despesas ter sido suportada pela empresa japonesa, o arguido e demais participantes fizeram algumas despesas, nomeadamente com comida.
Não existe prova que infirme as declarações destas testemunhas e do próprio arguido pelo que, tratando-se de viagem no interesse e em representação do município e existindo despesas do arguido não suportadas pela entidade que fez o convite, entendemos que o arguido não cometeu qualquer acto ilícito ao reclamar o pagamento de ajudas de custo.
Mas, ainda que dúvidas existissem quanto à legalidade de tal actuação, a verdade é que o arguido, quando a questão foi colocada, o arguido pediu um parecer ao jurista da Câmara, Dr. N…. Com efeito, a testemunha M… explicou que as ajudas de custo da viagem de Outubro de 2017 foram processadas tendo por referências as horas de partida e de chegada indicadas pelo arguido. Além disso, o arguido comunicou os pagamentos com o cartão de crédito para aqueles valores serem deduzidos no montante a pagar. Explicou que preencheu o documento de fls. 146 com base na informação fornecida pelo arguido e anexou ao mesmo o convite que este na origem da viagem – vide fls. 147 -. Finalmente, disse que, na sequência de dúvidas levantadas por vereadores da oposição, o arguido pediu um parecer ao Advogado da Câmara – vide fls. 25/26 -, Dr. N…, o qual concluiu – vide e-mail de 15/12/2017 – ser devido o pagamento das ajudas de custo. Temos, por isso, que dar como não indiciada a factualidade vertida nos artigos 23 e 24 da acusação.
Verifica-se que, não só a análise a que procede o Tribunal “A Quo” é certeira quanto à falta de dolo indiciado em todos os trâmites em discussão, designadamente nos delitos de peculatos de que estava acusado, como, no caso das ajudas de custas, é o arguido quem requer o seu pagamento aos serviços camarários, e fá-lo, sem encobrir ou defraudar o quer que seja (pedindo que se descontem a essas ajudas de custo, os montantes usados pelo cartão de crédito), tendo até desencadeado uma prévia análise com um parecer do jurista da Câmara. Isto significa, que o arguido não tem o domínio do facto sobre o recebimento das ajudas de custas, dado que, pese embora peça o seu pagamento, sujeita à apreciação da câmara a sua concessão, preenchendo os formulários, sendo essa entidade quem delibera a concessão dessas ajudas de custo. Como não existe o domínio do facto numa eventual apropriação (a par da falta de dolo de peculato, que não se indicia), estão associados todos os problemas de causalidade e de autoria que assim não se fixam na verificação típica.
Portanto, a par de toda a envolvente, correctamente analisada pelo Tribunal “A Quo”, igualmente se entende que tendo havido outras despesas realizadas (e não suportadas por terceiros ou pela câmara), subsistiu, por isso, materialidade que justificava o fundamento das ajudas de custo, assim, soçobrando a tese da acusação.
Como resulta dos fundamentos expostos, o recurso não merece provimento no segmento em que foi admitido.
DISPOSITIVO.
Pelo exposto, acordam os juízes na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar o recurso não provido, nos termos e fundamentos expostos mantendo-se a decisão do Tribunal a quo.

Notifique.
Sumário.
(falta de interesse em agir no recurso do MP; indícios fortes na acusação e decisão instrutória):
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Porto, 24 de Março 2021.
(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)
Nuno Pires Salpico
Paula Natércia Rocha