ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DA PATERNIDADE
DIREITOS PESSOAIS
DIREITOS PATRIMONIAIS
ABUSO DE DIREITO
Sumário

I – Na reapreciação da prova, o Tribunal da Relação forma a sua própria convicção e, por isso, pode manter a factualidade apurada na primeira instância com fundamentos diferentes daqueles que haviam fundamentado a decisão impugnada.
II – O disposto no artigo 1817 do CC não padece de inconstitucionalidade.
III – O reconhecimento da paternidade envolve direitos pessoais e patrimoniais que a lei não cinde.
IV - Não há abuso do direito na pretensão de reconhecimento da paternidade, que inclui a vertente patrimonial, deduzida contra investigado ainda vivo, e quando dos autos não resulta qualquer indício de um comportamento contrário à boa-fé e ao fim social do direito (ao reconhecimento) invocado.

Texto Integral

Processo n.º 1078/18.6T8VCD.P1

Recorrente – B…
Recorrido – C…

Relator: José Eusébio Almeida; adjuntos: Carlos Gil e Mendes Coelho.

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório
1 – C…, instaurou a presente ação de impugnação de paternidade (com o cancelamento do respetivo assento de nascimento e da avoenga paterna) e ação de investigação de paternidade contra (1) D…, (2) E… e (3) B… e pediu que se julgue (a) procedente a impugnação da paternidade do autor, declarando-se que não é filho de D… e, em consequência, se ordenar a eliminação desta paternidade constante do seu assento de nascimento, bem como a respetiva avoenga paterna, na Conservatória de Registo Civil de Póvoa de Varzim, (b) procedente a investigação da paternidade do autor, reconhecendo e declarando este filho de B…, ordenar-se o averbamento no assento de nascimento do autor na Conservatória de Registo Civil de Póvoa de Varzim, passando no final a figurar o autor como filho daquele B…, averbando-se também a respetiva avoenga paterna.

2 – Fundamentando o pretendido, o autor alegou ter nascido no dia 19 de agosto de 1985, na freguesia ..., concelho de Póvoa de Varzim, tendo o seu nascimento sido registado na Conservatória do Registo Civil de Póvoa de Varzim, e ali se encontra registado como filho de D…, 1.º réu e de E…, 2.ª ré. Mais alega que o 1.º réu e a 2.ª réu haviam casado em primeiras e recíprocas núpcias de ambos em 15 de março de 1975, tendo-se mantido no estado de casados, entre si, até 18 de abril de 2002, data da sentença que decretou o divórcio, transitada em julgado em 29 de abril de 2002. Ou seja, o registo de nascimento do autor assentou na presunção de paternidade. Ora, atenta a data de nascimento do autor, a data legal da sua conceção ocorreu entre 23.10.84 e 20.02.85. Porém, aquela menção de paternidade, bem como a dita perfilhação, não correspondem à verdade biológica do autor. No início de 2018, por razões de saúde, o autor foi submetido a diversos exames médicos e confrontado com a necessidade de esclarecer se padecia de doenças familiares. Nunca conseguiu, porém, obter quaisquer esclarecimentos da parte do 1.º réu, pois que nunca tiveram laços afetivos, sendo patente que o 1.º réu sempre tratou o autor de forma diferente dos seus outros dois irmãos, nascidos do casamento entre o 1.º réu e a mãe do autor e tudo levou a que o autor percecionasse a falta de semelhanças físicas e de personalidade, entre si e o 1.º réu, motivos determinantes para que o autor quisesse saber a sua verdade genética e histórico de doenças familiares. Em face disso, confrontou a sua mãe, que lhe asseverou ter mantido uma relação amorosa de vários anos com o réu B…. Efetivamente, à data de nascimento do autor, o 1.º réu encontrava-se casado com a sua mãe, mas há mais de um ano que trabalhava no estrangeiro, não mantendo com a 2.ª ré qualquer relação afetiva ou amorosa. Por essa altura (data legal da conceção do autor), a 2.ª ré mantinha uma relação extraconjugal com o réu, B… e, nesse período, mantiveram relações sexuais de cópula, por via das quais nasceu o autor. A procriação do autor advém, pois, das relações sexuais havidas entre a sua mãe e o 3.º réu, sendo certo que o 1.º réu e a 2.ª ré não mantiveram entre si nenhum relacionamento sexual durante aqueles primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento do autor. Assim, o autor está convencido que não é filho biológico de D…, mas sim de B… e, com a presente ação, mais não pretende que defender um direito próprio à verdade biológica, determinante para a sua identidade pessoal, e como tal, ver estabelecida e devidamente registada a paternidade em relação ao seu verdadeiro pai, ainda que, dependendo, impreterivelmente, do afastamento de uma presunção legal que, uma vez removida, permitirá a fixação de outra, desta vez biológica.

3 – Citados os réus, apenas o réu B… apresentou contestação, excecionando e impugnando.

4 – Alegou que o autor nasceu em 19.8.1985, tendo atingido a maioridade em 19.8.2003 e o direito de investigação da paternidade que pretende exercer mostra-se irremediavelmente caducado, pois o decurso do prazo de dez anos previsto no artigo 1817 n.º 1 do CC, sem tenha sido, dentro dele, instaurada a competente ação, importa a irremediável extinção, ou perda, do direito à ação de investigação da paternidade. Tendo o autor atingido a maioridade em 19.8.2003, imediatamente se alcança que o direito que lhe assistia a propor ação destinada à investigação e ao estabelecimento da sua paternidade extinguiu-se em 19.8.2013, data em decorreu por completo o prazo de 10 anos contados da sua maioridade. Além disso, já durante a menoridade e ao longo dos períodos temporais alegados em 22.º, o autor chegou a deslocar-se à residência do contestante, afirmando ser seu filho, tendo inclusivamente promovido, por diversas formas e em múltiplas ocasiões, contactos com familiares do contestante, sempre atribuindo a sua paternidade ao contestante. Assim, ainda que pudesse entender-se que a alegação efetuada pelo autor, pudesse integrar a previsão da alínea b) do artigo 1817 n.º 3 do CC, o que não se concede, sempre se teria de concluir-se que, de facto, o autor já imputava a sua paternidade ao réu (quer durante a sua menoridade, quer nos 10 anos subsequentes à sua maioridade, quer daí em diante, entre agosto de 2013 e agosto de 2016, ou seja, muito mais de três anos antes da data em que intentou a ação). Assim, também por esta via sempre terá de julgar-se caduco e irremediavelmente perdido o direito de investigação da paternidade que o autor vem exercer.

5 – Após notificação, o autor veio responder à exceção invocada pelo réu contestante, e concluiu como na petição inicial.

6 – Teve lugar a audiência prévia e foi proferido despacho saneador que fixou o valor da causa (30.000,01€) e, no que releva, relegou para a sentença o conhecimento da exceção da caducidade.

7 – Na mesma ocasião, foi fixado o objeto do litígio [a) Saber se o D… não é pai do autor; b) Saber se o autor é filho de B…; c) Saber se o direito reclamado sob a alínea b) se encontra caducado] e os temas de prova [1) Saber se, quando o autor nasceu em 19 de agosto de 1985 este apenas foi registado como sendo filho de D… porque na data a mãe do autor era casada com aquele D…; 2) Saber se a mãe do autor manteve com B… um relacionamento amoroso na sequência do qual manteve relações sexuais de cópula completa, sem recurso a preservativo ou a outro meio de contraceção, o que sucedeu entre 24 de outubro de 1984 e 20 de fevereiro de 1985, tendo nessa sequência ficado grávida do B…; 3) Saber se o direito reclamado sob o ponto 2 se encontra caducado].

8 – Tendo sido indeferidos os depoimentos de parte requeridos, foram interpostos recursos pelo autor e pelo réu B…, respetivamente, e os mesmos foram julgados improcedentes (acórdão de 8.10.2019), sendo confirmado aquele indeferimento.

9 - Foi realizada perícia, cujo relatório foi junto a fls. 269/271 dos autos.

10 – Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, devidamente documentada nas respetivas atas e concluso o processo, foi proferida sentença final (ora em recurso).

11 – Conforme resulta do dispositivo da sentença: “Pelo exposto, julgando improcedente a exceção da caducidade alegada pelo réu B… e procedente a presente ação, decide-se: a) declarar que o réu, D…, não é pai do autor, C…, e que este não é seu filho biológico, ordenando-se o cancelamento no assento de nascimento do autor da paternidade estabelecida por perfilhação do réu D…, bem como da avoenga paterna, retirando-se ao autor o apelido “F…”, de origem do réu D…; b) declarar que o réu B… é pai do autor, C…, e que este é seu filho biológico, e consequentemente ordenar- se o averbamento ao assento de nascimento do réu menor da paternidade do réu B…, bem como da avoenga paterna alterando-se o nome do autor para “C…”. Após trânsito, cumpra o disposto no art. 78, n.º 1, do Código do Registo Civil”.

II – Do Recurso
12 – Inconformado com a sentença, veio o réu apelar. Pretende que sejam “julgadas verificadas as arguidas nulidades e impõe-se a revogação da sentença e a sua substituição por outra que em conformidade julgue nos termos peticionados pelo recorrente”, e formula as seguintes Conclusões:
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13 – O recorrido respondeu ao recurso e, além do mais, defendendo a sua improcedência, veio a concluir:
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14 – O recurso foi recebido nos termos legais [Por ser legalmente admissível, tempestivo e ter sido interposto por quem tem legitimidade e vir acompanhado da alegação e necessárias conclusões, admito o recurso e contra alegações em apreço (sem prejuízo do disposto no art. 641, n.º 5 do Código de Processo Civil). O recurso é apelação e subirá nos próprios autos, tendo efeito suspensivo (artigos 638, n.º 1, al. a), 644, n.º 1, al. b), 645, n.º 1, al. a) e 647, n.º 3, a), todos do Código de Processo Civil)] e, na mesma ocasião, o tribunal recorrido pronunciou-se sobre a nulidade da sentença, invocada pelo apelante [Considerando que o recorrente invoca a nulidade da sentença, tendo em conta o disposto no art. 670, n.º 5 do Código de Processo Civil cumpre desde já referir que entendemos, salvo melhor opinião, não se verificar qualquer nulidade porquanto o tribunal fundamentou em sede decisória as razões pelas quais valorizou o depoimento da testemunha cujo sigilo profissional foi agora invocado].

15 – Mantido, nesta relação, o sentido do despacho que admitiu o recurso, o processo correu Vistos e – sem embargo do que ainda se acrescentará – nada vemos que obste à apreciação do mérito da apelação.

16 – O objeto do recurso – sem prejuízo das questões prévias que se referirão – mas atendendo às conclusões apresentadas pelo apelante, consiste em saber se a sentença padece de nulidade; se a decisão relativa à matéria de facto deve ser alterada; se, atendendo a essa alteração ou independentemente dela, o direito a propor a ação (de investigação de paternidade) caducou e, ainda, mesmo assim não sendo, se o recorrido age em abuso do direito, não podendo, por isso, beneficiar dos efeitos patrimoniais do reconhecimento da paternidade.

III – Fundamentação
III.I – Questões prévias decorrentes da resposta ao recurso
17 – Entende o apelado que o recurso apresentado pelo réu padece de falta de conclusões, porquanto o que titula como tal “reproduz ipsis verbis e integralmente o antecedente corpo das suas alegações” e, por isso, nos termos do artigo 641, n.º2, alínea b) do Código de Processo Civil (CPC) devia ser rejeitado.

18 – Refere ainda que o apelante não cumpriu o ónus de quem impugna a decisão relativa à matéria de facto e, por isso, o recurso é uma apelação sem prova gravada e, atendendo à data da sua interposição, revela-se extemporâneo.

19 – Salvo o devido respeito, o apelado não tem razão em nenhum dos vícios que invoca padecer o recurso apresentado.

20 – Com efeito, se as conclusões apresentadas pelo apelante se revelam inequivocamente extensas e amiúde repetitivas, não se verifica que as mesmas sejam – como alega o apelado – a “repetição ipsis verbis” do corpo das alegações. Por outro lado, não vemos que apresentem complexidade, obscuridade ou deficiência, como se alude no n.º 3 do artigo 639 do CPC, circunstância esta que, a existir, justificaria um despacho de correção, que sempre antecederia a eventual rejeição do recurso e que, pelo que decorre, não teve lugar.

21 – Em relação ao eventual incumprimento do ónus de quem impugna a decisão relativa à matéria de facto – incumprimento ou cumprimento que se apreciará mais adiante – entendemos que dele não resulta, automaticamente ou por si só, a alteração do prazo de recurso, apenas se refletindo na parte do recurso que impugna a decisão relativa à matéria de facto.

III.II – Das nulidades invocadas
22 – Nas suas longas conclusões, o apelante, sustenta uma anulação do julgamento, com base no disposto no n.º 2 do artigo 662 do CPC, que invoca genericamente ou com referência à sua alínea c) [12.22 - Deve o julgamento do ponto 3 da matéria de facto ser anulado, nos termos disposto no artigo 662, n.º 2, alínea c) do CPC; 12.45 - A decisão deverá e poderá ser anulada, nos termos do disposto no artigo 662, n.º 1 e 2 do CPC. 12.54 - A dúvida existente na prova produzida só poderá ser ultrapassada com a renovação da mesma nos termos do artigo 662, n.º 2, alínea a) do CPC. 12.80 - Deverá a douta sentença ser anulada por erro de julgamento, nos termos previstos nos artigos 662 n.º 2 do CPC] e também refere que considera violado o disposto nos artigos 607, n.º 4 e 5 e 466, n.º 3, ambos do CPC [12.82 - Não podiam as declarações de parte do recorrido serem valoradas como foram, atento o interesse do mesmo e a ausência de qualquer outra prova que sustentasse o declarado, violando nessa medida o disposto no artigo 607, n.º 4 e 5 e 466, n.º 3, ambos do CPC; 12.83 - A regra interpretativa aplicada não é admissível porque encerra silogismo judiciário contrário ao que todos sabemos da vida, à vida em sociedade, ao rito normal dos pequenos meios onde é comum que todos falem da vida de todos, importando manifesta violação do princípio da livre apreciação da prova estribado no n.º 4, do artigo 607 do CPC; 12.90 - O Julgador é livre na apreciação da prova mas esta liberdade é um poder/dever balizado pelas regras da lógica e da experiência comum como decorre do preceituado no artigo 607, n.º 4 e 5 do CPC; 12.92 - O Julgador ao desvalorizar na totalidade todos os depoimentos das referidas testemunhas, ora com base num alegado interesse no desfecho da causa (o caso das testemunhas G… e H…) ora com base em inexistentes contradições inexistentes entre depoimentos (no caso dos depoimentos das testemunhas I… e J…), extravasou os limites da apreciação da prova - as regras da lógica e experiência comum - nos termos previstos no artigo 607, números 4 e 5, do CPC; 12.148 - A regra interpretativa aplicada pelo Julgador não é admissível porque encerra silogismo judiciário contrário ao que todos sabemos da vida, à vida em sociedade, ao rito normal dos pequenos meios onde é comum que todos falem da vida de todos, importando manifesta violação do princípio da livre apreciação da prova estribado nos n.ºs 4 e 5, do artigo 607 e n.º 3, do artigo 466, ambos do CPC].

23 – Mas, além disso, invoca expressamente a nulidade da sentença ou do julgamento: “12.21 - O Julgador, para a prova do mesmo facto, valorou positivamente dois meios de prova que não se harmonizam e/ou complementam, mas estão antes em real e insanável contradição, contradição e fundamentação assente em ambiguidade/ contradição que configura a nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 615, n.º 1 alíneas c) e d) ambas do CPC; 12.46 - Uma situação de oposição da prova produzida nos autos com a fundamentação da decisão, configura para além de um erro de julgamento, uma nulidade (artigo 615, n.º 1, alínea c, do CPC). 12.104 - O depoimento da testemunha L… não podia ter sido valorado, uma vez que tal depoimento é nulo porque foi prestado em violação do sigilo profissional; 12.105 - É nulo todo o julgamento da matéria de facto baseado e fundamentado no testemunho de um solicitador que em violação do sigilo profissional foi ao mesmo tempo interveniente ao serviço do autor e sua própria testemunha para garantir o resultado da ação, nulidade que decorre do número 1 do artigo 195, do CPC, na justa medida em que a valoração desta prova nula efetuada pelo julgador a quo influiu decisivamente na decisão da lide; 12.106 - A sentença proferida é nula, nos termos da alínea d) in fine, do número 1, do artigo 615, do CPC, uma vez que o julgador conheceu de uma prova nula e valorou-a, o que jamais poderia ter ocorrido em razão de tudo quanto se alegou supra; 12.150 - Ao decidir como decidiu, valorando uma prova nula - depoimento da testemunha L… - incorreu a sentença em nulidade, por violação do sigilo profissional, ex vi do disposto n.º 7 do artigo 141 do EOSAE aprovado pela Lei n.º 154/2015, de 14 de setembro - que refere que não pode fazer prova em juízo, sendo nulo enquanto meio de prova, e devendo os efeitos dessa invalidade aferir-se relativamente a cada facto que o tribunal considere provado ou não provado; 12.152 - A sentença assim proferida é nula nos termos do disposto no número 1, do artigo 195 do CPC, na justa medida em que a valoração desta prova nula efetuada pelo Julgador influiu decisivamente na decisão da lide; 12.153 - Por mera cautela de patrocínio, também se dirá que a sentença proferida é nula, nos termos da alínea d) in fine, do número 1, do artigo 615 do CPC, uma vez que o Julgador conheceu de uma prova nula e valorou-a, o que jamais poderia ter ocorrido” (sublinhados nossos).

24 – A invocação do disposto no artigo 662, n.º 2, bem como a alegada violação do disposto nos artigos 607, n.ºs 4 e 5 e 466, n.º 3, todos eles do CPC (ponto 22), prendem-se com a fixação da matéria de facto, sendo certo que o apelante impugna a decisão a ela relativa. Por isso, nessa sede, apreciaremos o alegado pelo recorrente naquelas suas conclusões e, de seguida, as nulidades invocadas (ponto 23).

25 – Nos termos do disposto nas alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 615 do CPC, a sentença é nula se os fundamentos estiverem em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível – alínea c – e ainda quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça questões de que não podia tomar conhecimento.

26 – Na alínea c), antes citada, preveem-se os casos de um “vício lógico da sentença: o juiz elegeu deliberadamente determinada fundamentação e seguiu um determinado raciocínio para extrair uma dada conclusão; só que esses fundamentos conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a um resultado oposto a esse” e aqueles outros em que a sentença padece de obscuridade (“algum dos seus passos enferma de ambiguidade, equivocidade ou falta de inteligibilidade”) ou de ambiguidade (“quando alguma das suas passagens se presta a diferentes interpretações ou pode comportar mais que um sentido”), mas desde que estes vícios tornem “a decisão ininteligível” ou incompreensível”[2].

27 – Na alínea d) do mesmo normativo prevê-se a omissão de pronúncia, ou seja, a “omissão do conhecimento (total ou parcial) do pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão” e o excesso de pronúncia, que ocorre quando o tribunal “conhecer de causas de pedir não invocadas ou de exceções que não sejam de conhecimento oficioso”[3].

28 – Parece-nos evidente, da leitura da sentença e da coerência da decisão final com a fundamentação, de facto e de Direito, que a antecipa, que não ocorre a nulidade plasmada na alínea c) do n.º 1 do artigo 615 do CPC, nem, em rigor, o apelante identifica em que se traduziria um alegado vício lógico da sentença ou a ininteligibilidade da decisão, parecendo circunscrever este último vício a uma questão de valoração e compatibilização de meios de prova, o que não acarreta aquela nulidade.

29 – Relativamente à alínea d) do n.º 1 do artigo 615 do CPC, não se encontra, sequer no alegado, qualquer omissão ou excesso de pronúncia. No entanto, a apelante liga esta alínea, na sua parte final (excesso de pronúncia) à audição de uma testemunha e à valoração da respetiva prova que, no seu entender, é nula – e implicaria a nulidade da sentença – por violação do sigilo profissional.

30 – A tal propósito, invoca também o apelante o disposto no artigo 195, n.º 1 do CPC, com o que, ele mesmo, lhe atribui a qualificação de nulidade processual ou secundária.

31 – Efetivamente, e sem necessidade de cuidarmos se o segredo profissional, não obstante o interesse de ordem pública que lhe subjaz, “é relativamente disponível por vontade do cliente”, a eventual nulidade cometida com a audição da testemunha teria de “ser arguida pela parte logo que foi cometida”[4] e não em sede de recurso, como questão nova.

32 – Assim, também pela razão invocada, não ocorre qualquer nulidade da sentença ou outra que cumpra conhecer.

III.III – Fundamentação de facto
III.III.I – Impugnação da decisão de facto
33 - Como decorre do disposto no artigo 662, n.º 1 do CPC A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

34 - O preceito acabado de citar, na redação dada pelo novo CPC (em contraponto, desde logo, com o artigo 712 do CPC anterior[5]) clarifica e reforça os poderes da Relação[6], ou alarga e melhora esses poderes[7], impondo um dever de alteração da decisão sobre a matéria de facto, reunidos que estejam os respetivos pressupostos legais, e de acordo com a sua própria convicção[8], desde que o impugnante tenha cumprido o ónus imposto pelo artigo 640 do CPC[9].

35 - Efetivamente, com a atual redação do citado artigo 662 do CPC fica claro que “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência” e mantém-se, mas “agora com mais vigor e clareza, a possibilidade de sindicar a decisão assente em prova que foi oralmente produzida e que tenha ficado gravada, afastando-se definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para os casos de “erro manifesto” ou de que não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1.ª instância relativamente a meios de prova que foram objeto de livre apreciação.[10]

36 – A nova formulação do preceito não afasta, naturalmente, e ainda que se tenha deixado de especificamente prever “a modificação da decisão da matéria de facto quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa insuscetível de ser destruída por quaisquer provas”, a alteração que decorre, nomeadamente, do desrespeito da “força plena de certo meio de prova” ou de ter “sido desatendida determinada declaração confessória”: nestes casos, “a Relação, limitando-se a aplicar regras vinculativas extraídas do direito probatório material[11], deve integrar na decisão o facto que a 1.ª instância considerou não provado ou retirar dela o facto que ilegitimamente foi considerado provado (sem prejuízo, neste caso, da sua sustentação noutros meios de prova), alteração que nem sequer depende da iniciativa da parte”.[12]

37 - Como inicialmente se referiu, a modificabilidade da decisão de facto, desde logo se pretendida pelo recorrente, exige a este um determinado ónus. Efetivamente, o artigo 640 do CPC, como decorre das várias alíneas do seu n.º 1, impõe ao recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto que especifique “Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados” e “os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida” e ainda “A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”. Acrescenta a alínea a) do n.º 2 do mesmo preceito que “quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.

38 – Diga-se, a este propósito, e seguindo de perto António Santos Abrantes Geraldes[13], que temos vindo a citar, as exigências que recaem sobre o recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto são “a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação da motivação do recurso e síntese nas conclusões. b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam um decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos. (...) e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente”.

39 – Acresce que, como é sabido, é entendimento largamente maioritário que relativamente ao recurso da decisão sobre a matéria de facto não existe um possível despacho de aperfeiçoamento e, como referem António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa[14], tal situação, em lugar “de autorizar uma aplicação excessivamente rigorosa da lei, deve fazer pender para uma solução que se revele proporcionada relativamente à gravidade da falha verificada”. Dito de outro modo, as exigências impostas pelo artigo 640 ao recorrente que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto devem ser entendidas sem excessivo rigor, que de imediato e inúmeras vezes conduziria à imediata rejeição do recurso.

40 - O que a lei processual deixa transparecer e a jurisprudência do Supremo vinca é a opção por um verdadeiro duplo grau de jurisdição e a consequente prevalência da substância sobre a forma. Sem embargo – e naturalmente, até por respeito aos princípios da igualdade e da legalidade -, as imposições decorrentes do artigo 640 do CPC não podem ser letra morta e ultrapassadas ou ignoradas, como se não existissem. Aqui, como sempre deve suceder, imperará uma interpretação sensata e afastada dos extremos, sejam estes a de rejeição imediata ao primeiro e minúsculo incumprimento, seja, noutro sentido, a aceitação de toda e qualquer impugnação, independentemente do eventual lato incumprimento do ónus que impende sobre o impugnante.

41 – Tendo em conta as considerações anteriores, importa agora saber se o apelante recorre efetivamente da decisão relativa à matéria de facto, de que pontos (provados ou não provados) recorre e, além disso, se a apreciação da sua impugnação se justifica, uma vez que, como se sumaria no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.01.2020[15], “Quando a apreciação da impugnação deduzida contra a decisão de facto da 1.ª instância seja, de todo, irrelevante para a solução jurídica do pleito, ainda que tal impugnação satisfaça os requisitos formais prescritos no artigo 640.º, n.º 1 do CPC, não se justifica que a Relação tome conhecimento dela, face ao disposto no artigo 608.º, n.º 2, do CPC”.

42 – Antes ainda, e porque o apelante invoca o disposto no artigo 662, n.º 2 do CPC como razão de anulação da decisão recorrida, diremos que o disposto neste preceito, nomeadamente na sua alínea c) [“Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”] imporia, desde logo que não constassem do processo todos os elementos que permitam alterar ou manter a decisão relativa à matéria de facto.

43 – Com efeito, e como refere António Santos Abrantes Geraldes, mesmo que a decisão impugnada se tenha por obscura, deficiente ou contraditória, a relação pode suprir estes vícios “a partir dos elementos que constem do processo ou da gravação”. E não sendo caso de ampliação da matéria de facto – nem o apelante o solicita – podemos acrescentar, com o autor referido[16] que a anulação do julgamento “deve ser sempre uma medida de último recurso, apenas legítima quando de outro modo não for possível superar a situação, por forma a fixar com segurança a matéria de facto provada e não provada, tendo em conta, além do mais, os efeitos negativos que isso determina nos vetores da celeridade e da eficácia”.

41 - Percorrendo as conclusões apresentadas pelo apelante podemos constatar que o mesmo entende – e afirma-o repetidamente – que a decisão relativa à matéria de facto não está correta quando deu como provados os “factos vertidos nos números 3 [O A. no início do ano de 2018, por razões de saúde, foi submetido a diversos exames médicos e confrontado com a necessidade de esclarecer se padecia de doenças familiares], 4 [O A. nunca conseguiu obter quaisquer esclarecimentos da parte do 1.º R., levou a que o A. percecionasse a falta de semelhanças físicas e de personalidade, entre o próprio e o 1.º R.], 5 na parte “tais motivos determinaram que”[Tais motivos determinaram que o A. a quisesse saber a sua verdade genética e histórico de doenças familiares], 6 na parte “em face disso o autor confrontou a sua mãe” [Em face disso, o A. confrontou a sua mãe com perguntas acerca do seu progenitor] e 7 a 14 [7. Ao que a 2.ª R., ao ver-se agora, diretamente, confrontada com as perguntas feitas pelo A., por motivos de consciência e por se tratar de assunto que reveste grande relevo para a saúde do A., asseverou-lhe que manteve uma relação amorosa, de vários anos, com o 3.º R., B… entre o dia 23 de outubro de 1984 e 20 de fevereiro de 1985. 8. No entanto, há já mais de um ano antes do nascimento do A., que o 1.º R. se encontrava a trabalhar no estrangeiro, não mantendo o 1.º R. e a 2.ª R. qualquer relação afetiva ou amorosa. 9. Por essa altura a sua mãe, aqui 2.ª R., mantinha uma relação extraconjugal com o 3.º R., B…. 10. O 3.º R. e a 2.ª R. travaram conhecimento em virtude de o 1.º R. ter trabalhado em tempos para o 3.º R. 11. E como o 3.º R. teve de tratar de assuntos referentes a pagamentos devidos ao 1.º R. e este não se encontrava em Portugal, foi através da 2.ª R. que tratou daquelas questões. 12. Essa circunstância fez aumentar a aproximação e a confiança entre a 2.ª R. e o 3.º R., que começaram a privar. 13. No referido período legal da conceção do A., a mãe do A. (2.ª R.) e o referido B…, aqui 3.º R., mantiveram relações sexuais de cópula completa, via das quais nasceu o A. 14. O 1.º R. e a 2.ª R. não mantiveram entre si nenhum relacionamento sexual durante aqueles primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento do A. considerando que os mesmo deviam ter sido dados como não provados.

42 – Por outro lado, entende que os factos dados como não provados e constantes dos “pontos b), c), d), e) e g) [b) O Autor, já durante a sua menoridade, afirmava publicamente ser filho do réu B…. c) Afirmações que manteve e foi proferindo, ininterruptamente, quer depois de atingir a maioridade e até agosto de 2013, quer desde esta data até, pelo menos, agosto de 2016. d) Para além disso, também já durante a menoridade do Autor e ao longo dos períodos temporais alegados supra o Autor chegou a deslocar-se à residência do contestante, afirmando ser seu filho, tendo inclusivamente promovido, por diversas formas e em múltiplas ocasiões, contactos com familiares do réu B…, sempre atribuindo a sua paternidade ao réu B…. e) O que também ocorreu com familiares do Autor. g) O Autor já imputava a sua paternidade ao réu B…, quer durante a sua menoridade, quer nos 10 anos subsequentes à sua maioridade, quer daí em diante, entre agosto de 2013 e agosto de 2016].

43 – Porquanto - alega o apelante - num e noutro caso “ocorreu erro na apreciação da matéria de facto e que teve origem, por um lado, na incompleta e/ou incorreta análise da prova produzida, mormente, dos documentos clínicos juntos aos autos bem como das declarações de parte do recorrido e, por outro, na total desvalorização dos depoimentos das testemunhas G…, M…, I…, N… e J…, que no conjunto e em harmonia, conduzem a decisão diversa da proferida nos presentes autos”.

44 – A propósito da decisão relativa à matéria de facto que foi proferida pelo tribunal recorrido, deixou-se escrita a motivação que se transcreve e sublinha: “(...) Quanto à factualidade vertida nos pontos 3) a 14), desde logo na análise da documentação junta a fls. 83 (documento atinente à identificação do filho do Autor, nascido a 08/01/2019), fls. 88 (relatório de ecografia realizada ao filho do Autor e que da conta de uma “agenesia parcial do musculo grande peitoral direito), fls. 106 a 113 e 302 a 317 (relatório clínico que dá conta que o filho do autor é portado de “síndrome de Polland” tendo sido aconselhado estudo familiar no sentido de esclarecer causa genética ou hereditária e poder prevenir casos futuros), bem como nas declarações de parte do Autor sobre tal matéria que, não obstante ser interessado no desfecho da lide em virtude de ser parte na ação, depôs de forma que se nos afigurou sincera e coerente sobre a forma como tomou conhecimento da verdadeira paternidade do Réu B…, esclarecendo o tribunal que foi na sequência de estudos genéticos que eram necessários realizar após se ter constatado que o filho nasceu com um síndrome, confrontou a progenitora, ré nestes autos, a qual acabou por lhe contar a realidade contida nos pontos 3) a 4) da factualidade provada.
No que respeita às declarações de parte e à sua valoração, sabido que é que o seu valor probatório avaliado sempre pelo tribunal está sempre dependente do confronto com os demais elementos de prova nos termos previstos no art. 466, n.º 3 do Código de Processo Civil, na situação em apreço tais declarações permitiram-nos formar uma convicção séria e segura sobre o momento em que o Autor tomou conhecimento de que o réu B… era o seu pai biológico ao contrário do que sabia até aí, ou seja, foi quando se deparou com a doença do seu filho e com o problema genético que estaria na origem da mesma que acabou por descobrir através da sua mãe, ora ré, que o seu pai biológico era o réu B… e não o réu D…. Acresce dizer que, a documentação acima elencada não foi impugnada quanto ao seu teor.
Quanto à realidade vertida no ponto 15) da factualidade provada teve o tribunal em conta a análise dos relatórios periciais (investigação de parentesco biológico) de exames realizados no Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, IP, entretanto juntos de fls. 263 a 265 e de fls. 270 e 271.
Relativamente à factualidade não provada sob a alínea a) na total ausência de prova. Quanto à demais factualidade não provada tal resultou da circunstância de o réu B…, a quem incumbia o ónus de provar o facto impeditivo alegado de acordo com o disposto no art. 342, n.º 2 do Código Civil – exceção da caducidade que é por si alegada - não ter logrado produzir qualquer prova cabal em audiência de julgamento, sendo que as testemunhas ouvidas e arroladas pelo autor não revelaram qualquer conhecimento sobre tal factualidade não nos permitindo, mesmo com recurso às regras da experiência, firmar um juízo de certeza sobre tal matéria. Concretizando:
G…, filho do réu B…, depôs de forma que nos afigurou totalmente parcial, não isenta e claramente interessado no desfecho da lide. Esta testemunha começou por dizer que em 1984/1985 ouviu dizer que a ré E… estaria grávida do seu pai, que em 1991 comentou-se que o pai deu uma bicicleta ao C…, que entre 1990 a 1997 havia telefonemas anónimos para a sua casa e mais tarde para o seu escritório, em 2010 passaram-lhe uma chamada e conheceu a voz do autor sendo que a partir de então proibiu que lhe passassem qualquer chamada do mesmo. Mais referiu que em 2013 foi contactado por uma solicitadora, que referiu chamar-se ao que se lembra “L… ou O…”, que vinha a mando do autor e o questionou se o seu pai não queria reconhecer o autor como seu filho. Referiu ainda que em 2013/2014 o autor pediu-lhe amizade na rede social Facebook e ficou seu amigo. Ora, este depoimento não se afigurou de todo coerente com a demais prova produzida e contraditada pois que, na sequência do mesmo, foi determinada a audição como testemunha, L… que, de forma sincera, desinteressada e muito espontânea, revelou que no início de 2018 foi contactada pelo autor, filho de uma ex-cliente, a ré E…, que lhe disse que esta lhe contou que era filho de um senhor de … que tinha um filho advogado, a testemunha G…, e que queria ver a sua paternidade estabelecida. Nessa altura recordou-se que tinha o contacto telefónico da testemunha G… em virtude de em 2012/2013 terem tido uma reunião a propósito de uma questão jurídica relacionada com uma expropriação, sendo que nessa altura nem conhecia o Autor. Mais explicou que ao ligar à testemunha G… dando-lhe conta da pretensão do Autor de ver estabelecida a verdade biológica de imediato a testemunha G… proferiu palavrões pelo facto o seu pai se ter relacionado com a ré e terminou referindo “o que esse gajo quer não vai ter”. Passados uns dias a testemunha G… ter-lhe-á ligado a pedir desculpas pelo estado exaltado em que se encontrava e dizendo-lhe que o C… já e tempos ligava para casa do seu pai, situação que não lhe havia relatado no primeiro telefonema estabelecido e o autor C… lhe negou que tenha ocorrido e que apenas lhe tinha enviado via Facebook um convite para ser seu amigo. Realizada a acareação entre estas duas testemunhas, cujo resultado se encontra junto aos autos a fls. 323 e 324, foi notório que o depoimento da testemunha G… não pode ser valorado ao contrário do que sucede com o depoimento da testemunha L…. Desde logo, e ao contrário do referido pela testemunha G… que inicialmente referiu não saber se a solicitadora de execução se chamava L… ou O…, quando foi confrontado em sede de acareação chamou-a de L…, tratou-a por tu e referiu serem amigos há 40 anos. Ora, não é plausível à luz das regras da experiência e do cidadão normal e razoável que alguém que é amigo de longa data de outrem (segundo G… há 40 anos) e a trate por tu não saiba que a mesma se chama L…, tenha dúvidas acerca do seu nome. Em contrapartida, a testemunha L… de forma espontânea e coerente referiu que apenas tinha tido um único contacto com G… em 2012/2013, soube circunstanciar tal contacto quer no tempo quer no espaço. Acresce dizer que, ao contrário do referido pela testemunha G…, também não é credível que antes do contacto estabelecido pela testemunha L… no início de 2018 soubesse ou tivesse contactado sequer com o autor. Na verdade, foram juntos os documentos de fls. 330 e ss. que dão conta que o primeiro contacto entre autor e a testemunha G… ocorreu em 25/01/2018, e não em 2013/2014 como referido pela testemunha G…, na qual o autor pediu amizade a testemunha e esta referiu “não sei quem o sr. É. Tenho muitos amigos virtuais e ao que percebo é mais. De …”. Só em 2/10/2018 é que a testemunha enviou a mensagem de fls. 331 via Facebook onde refere que reitera a mensagem que lhe diz há anos e refere insistentes chamadas do passado. Logo, e numa primeira abordagem a testemunha G…, nunca referiu conhecer o Autor antes de 2018, tal sucede quer via Facebook, quer perante a testemunha L… quando esta o contactou pela primeira vez. Só mais tarde refere conhecer o autor há muitos anos e tenta carrear tal versão para os presentes autos por forma a fazer vingar a tese da exceção da caducidade do direito à ação defendida pelo réu, B…, seu pai. Acresce dizer que, também não é plausível que a testemunha e a sua família soubessem da existência do autor como sendo filho do seu pai, que este lhe teria dado uma bicicleta quando o autor era criança ou que este ao longo dos anos fizesse telefonemas anónimos para a casa do réu B…. Refere a testemunha G… que quando o autor lhe ligava lhe conhecia a voz, tratando-o por C…. Não obstante, mais adiante refere que nunca privou com o autor. Não é credível que alguém reconheça a voz de alguém com quem nunca privou ou que nunca viu...E se dúvidas existissem, o que não se concebe, sempre se diria que as mesmas se dissiparam com a junção do documento de fls. 330 e que dá conta que (numa primeira abordagem ocorrida em 26/01/2018) a testemunha G… nunca tinha ouvido falar ou nunca tinha falado com o autor, bem como com os esclarecimentos sinceros e coerentes prestados pela testemunha L…. A este propósito sempre se poderia dizer que é incoerente à luz das regras da experiência a tese vertida pelo depoimento de G… quando a dado passo refere que após um telefonema com o autor C…, pois passaram-lhe a chamada em 2010, proibisse as pessoas do seu escritório de lhe passarem quaisquer chamadas do autor, e posteriormente o aceitasse como seu amigo no Facebook... Quem não quer contactar com alguém não o faz por qualquer via. O mesmo se diga da testemunha H…, filha do réu B… e irmão da testemunha G…, que, igualmente de forma que se nos afigurou parcial e não sincera referiu os inúmeros telefonemas recebidos por parte do autor ao longo dos anos, em 2015 ter recebido pedido de amizade do autor que aceitou e o seu irmão lhe ter ligado a questioná-la sobre a razão pela qual aceitou tal pedido de amizade. Ora, além de não ser coerente que a testemunha G… ficasse indignado com tal situação (porquanto a mesma aceitou pela mesma via o pedido de amizade do autor), também não é plausível que tais contactos telefónicos tenham existido ao longo dos anos pois que apesar de admitir o ponto de saturação a que a família chegou também não soube explicar porque razão a família ou a própria nunca participou criminalmente contra o autor e acabando por referir a dado passo que achava que era o autor quem lhe endereçou em 2015 o pedido de amizade. Ora, perante tal depoimento e sem qualquer outra prova (v.g. documental) junta tal depoimento não pode ser valorizado. Também os depoimentos de J…, advogada no escritório da testemunha G…, e de I…, funcionária administrativa no mesmo escritório, nada revelaram saber. Na verdade, ambas referem telefonemas de uma pessoa que dizia ser irmão do advogado G…, sendo que a primeira testemunha situa tal telefonema em 2009 e a segunda testemunha em 2003 sendo que esta referiu existir outro irmão da testemunha G…, fruto de um relacionamento extraconjugal, que também ligava e acabando por referir se era ele ou não por não lhe conhecer a voz apesar de admitir conhecer pessoalmente. Tais depoimentos, como é bom de ver, não poderão ser tidos em conta porquanto além de se revelarem duvidosos, não provam que era o autor quem estabelecia tais contactos telefónicos.
Já a testemunha M…, tia do autor e irmã da ré, apesar de referir que o povo comentava que ele era filho do B…, de forma segura e clara referiu que da sua irmã ou sobrinho, ora autor, nunca ouviu os mesmos referir que o B… era o pai do C…, o mesmo sucedendo com o seu ex-cunhado que lhe referiu nunca saber de tal situação.
Por último, o depoimento de N…, que revelou conhecer o réu B… e ser amigo da família, de forma descontextualizada referiu que abordava o autor perguntando-lhe se já tinha ido ter com o pai e o chamava de B1…, cognome pelo qual era conhecido o réu B…, chegando a ter uma conversa com ele aos 17/18 anos e que ele lhe dizia que o pai não o aceitava e que lhe ligava. Ora, este depoimento na nossa perspetiva além de pouco credível pela forma aligeirada e “descontraída” como foi prestado, não conseguiu situar no tempo as conversas alegadamente tidas entre Autor e testemunha ou sequer revelar que entre os mesmos existia uma relação de confiança a ponto de a testemunha em causa abordar com o Autor a sua vida privada, sendo certo que segundo a própria a relação de amizade é com o réu B… e com o filho deste G…, testemunha acima identificada.
Todos estes depoimentos das testemunhas arroladas pelo réu foram prestados quanto à factualidade em causa de forma que se nos afigurou parcial e interessada no desfecho da lide, pelo que nessa medida não foram valorizados”.

45 – Dos depoimentos (declarações de parte e depoimentos testemunhais) prestados em audiência retirámos os apontamentos que se seguem.

46 – O autor C…, ouvido em declarações de parte (Ficheiro 201911231111553) referiu que, tendo-se caso em 2013 e pretendendo que a mulher engravidasse e tendo-o tentado e não o estando a conseguir teve de verificar se havia alguma doença sua ou da mulher que o impedisse. No início de 2018 foi procurar se havia algum problema genético e tentou saber a verdade da sua família, pois os seus pais tinham-se separado ainda antes de 2002, data do divórcio deles, e a relação que tinha com o pai era quase inexistente, pois “cada um seguiu a sua vida”. Nesse tempo, era muito pequeno e notava algumas diferenças de tratamento com os seus irmãos, mas pensava que eram devidas à diferença de idades, pois só “em 2018 é que associou as coisas”. Quando confrontou a mãe com a necessidade de contactar o pai (do registo) por não estar a poder ter filhos, foi nessa altura que a mãe lhe disse que “seria filho do senhor B…”” (min. 8,00). O que mãe lhe contou é que o pai do registo estava emigrado, quando o depoente nasceu. Embora o depoente saiba muito pouco e nem tenha vontade de saber, o que a mãe lhe contou [a propósito do relacionamento] foi que teve a ver com uns pagamentos que o senhor B… foi fazer lá a casa, porque o seu pai de registo tinha feito uns trabalhos para este. É por isso que agora está convencido ser filho do terceiro réu” (11,00). A ideia que tem é que o seu pai de registo se separou da sua mãe, e saiu de casa, anos antes de 2002 e numa altura em que o depoente era muito pequeno, com cinco ou seis anos, mas de certeza menos de dez (14,00). Sentia que o pai o tratava diferente [dos irmãos] e chegou a dizer-lhe “eu não te conheço”, e o depoente cresceu sem a figura do pai, e cada um fez a sua vida (15,30). Um dos irmãos saiu de casa com ele e emigrou com o pai. Não se lembra de então ter questionado a mãe, ou não, sobre o tratamento do pai. Durante a infância e juventude não contactou com o terceiro réu, não o conhece, não privou com ele e não o procurou, só agora sabe quem é ao vê-lo no tribunal (18,50). Não é verdade que tenha recebido uma bicicleta do B… e é falso que o tenha contactado, a primeira tentativa de contacto foi em 2017 ou princípios de 2018, quando foi confrontado com a verdade, pela mãe, e não teve qualquer resposta (22,00).

47 – G…. Advogado. Filho do recorrente. Ficheiro 20191121114535. Conhece o autor “ainda antes de nascer” e os demais réus. Referiu que o seu pai, tal como o pai deste (da “estirpe dos Q…), sempre foram muito falados. O avô teve mais de quarenta filhos e já aquando da gravidez da E… [2.ª ré] havia um “diz que diz”, no sentido de o pai ser o seu pai e não o marido D…. Passaram-se anos e em 90/91 diz-se que o seu pai deu uma bicicleta ao C… ... dizia-se na comunidade. Confrontado o pai, este diz-lhe que é tudo mentira, e para que não ligasse a isso. A testemunha cursou Direito entre 1990/1997 e, por essa altura há chamadas telefónicas anónimas lá para casa, mas só querem falar consigo ou com a sua mãe. Era uma voz infantil, diziam que era de … e “eu queria falar com o meu pai” e “a mãe dava instruções ao miúdo”, voz que presumia ser da E…, que se ria. Entre os 12 a 15 do C… disse-lhe ao telefone, “deixa-nos em paz”. Foi a testemunha quem somou as coisas e disse “C…” e que, se és do nosso sangue, “usa a cabeça, entende-te com o teu pai e deixa-nos em paz”. O C… estaria a ser instrumentalizado pela mãe e teria então 12 a 15 anos (min. 11,30). O depoente começou por ter escritório em casa do seu pai, mas quando mudou de número, as “chamadas continuaram a cair”, o “C… continuou a ligar para o escritório” na mesma casa e proibiu que lhe passassem as chamadas. Em 2010 ou 2011 passaram-lhe uma chamada (“é o seu irmão”) e “além do C… tem outro irmão”, viu pela voz que era o C… e desligou logo, repreendendo a funcionária e avisando para que nunca mais lhe passasse chamadas do “C… ou irmão”. Em 2013 teve um contacto com a solicitadora e o C… nunca mais ligou ou não lhe passaram as chamadas. Esse contacto foi no sentido de o seu pai reconhecer o filho, e disse-lhe “dirijam-se ao senhor meu pai”. Em 2016 ou 2017 voltou a ter contacto da mesma solicitadora (17,30). Em 2013 ou 2014 o C… pediu-lhe amizade no Facebook, perguntando se sabiam quem ele era, que era o senhor de …. Há quatro ou cinco anos, a irmã fez cinquenta anos e [o C…] também lhe pediu amizade. Começaram a aparecer “gostos” do C… no Facebook e disse à sua irmã: é o teu irmão de … (19,00). O C… chegou a ir com a bicicleta oferecida [pelo seu pai] e com outros para “a frente da nossa casa”. Mas não viu, foi-lhe contado pela avó. As conversas foram sempre ao telefone e viu-o a primeira vez há meio ano, num restaurante, mas não lhe dirigiu a palavra. Tem conhecimento que a solicitadora, em 2016 ou 2017 enviou uma carta ao pai, mas não sabe precisar. Tem a ideia que o pai respondeu. Conhece a voz [do C…] ao telefone e a “voz off” da mãe. Não tem conhecimento de existirem outros filhos do seu pai; não viu o C… na bicicleta, foi a avó que lhe contou (29,30).

48 – M…. Reformada. Ficheiro 20191121122101. Conhece o terceiro réu por trabalhar numa fábrica perto e ser cliente do seu café, mas há muito que o não vê. É irmã da ré E… e ex-cunhada do primeiro réu. Ouviu dizer, pelo povo, e antes dos 18 anos do C…, que o B… era o pai, mas o sobrinho ou a mãe dele nunca lhe disseram nada, nem nunca fez perguntas à sua irmã nem falaram a esse respeito. Com o cunhado também não; aliás esteve [nesta ocasião] a falar com o cunhado e ele disse-lhe que só agora soube (min. 6,00).

49 – J…. Advogada. Conhece o réu B…, por ser o pai do Dr. G…, e também ir ao escritório, onde a testemunha também trabalha. Não conhece o autor nem os restantes réus. Ficheiro 20191121145048. Sabe quem é o autor, apenas porque lhe disseram “lá fora” e sabe que vem a tribunal invocar uma questão de paternidade (min. 3,30). Em 2009 atendeu uma chamada (nem sempre a funcionária administrativa está presente) de um senhor que dizia ser irmão do Dr. G…, mas não passou a chamada porque o Dr. G… não estava. Ao todo atendeu cerca de três chamadas, mas não se identificaram. Em 2010 ou 2011, ainda no escritório antigo, a funcionária administrativa passou uma chamada ao Dr. G… e este deu-lhe um sermão, dizendo-lhe que nunca mais passasse alguma chamada de alguém que se intitulasse seu irmão. Conhece uma irmã do Dr. G… e [um outro] irmão (7,40).

50 – I…. Funcionária administrativa, desde há 16 anos, no escritório do Dr. G…. Conhece apenas o terceiro réu, e de ele ir ao escritório do filho, sabendo também que mora ao lado do escritório. Ficheiro 20191121145895. Desde que lá trabalha, espaçadamente, recebia chamadas “para falarem com o irmão”, Dr. G…, e desligavam as chamadas, pois sempre aconteceu, por acaso, o Dr. G… não estar. O irmão que conhece é o P…, de ele ir lá [ao escritório] de vez em quando, mas não lhe reconhece a voz. Num dos telefonemas, em 2010 ou 2011, o Dr. G… estava e passou a chamada. O Dr. G… saiu todo exaltado e zangado e disse-lhe que nunca mais queria chamadas daquele senhor, porque o irmão que tinha era o P… e aquela pessoa era outra, e andava a incomodá-lo. Depois houve ainda mais (chamadas), mas eu perguntava o nome e a pessoa desligava. No novo escritório, a partir de 2012, as chamadas foram mais espaçadas e depois pararam (min. 7,30). Os irmãos do Dr. G… que conhece são o P… e a D. H…. Aquando do sermão, acha que estava presente a Dra. J… (8,50).

51 – H…. Professora. Filha do terceiro réu e não conhece pessoalmente o autor nem os restantes réus. Ficheiro 201911211150857. Quando ouviu falar do C… a primeira vez foi quanto nasceu o seu filho (C…) em 1991. Na altura, convidou os pais para padrinhos e depois [da cerimónia] a mãe perguntou-lhe porque escolheu exatamente aquele nome, “porque telefona para aqui um rapaz que diz ser filho do teu pai”. Ao longo da década de 1990, a mãe manteve telefonemas consigo do mesmo teor, contando telefonemas com que era confrontada, às vezes com risos e charlas ou então desligavam o telefone, e se fosse a testemunha a atender não havia palavras (min. 5,10). Nunca viu nenhuma criança ir a casa dos seus pais, mas a avó contou-lhes que um menino ia lá de bicicleta e dizia que queria falar com o pai. Em 2015, quando fez 50 anos, recebeu um pedido de amizade no Facebook e viu que era um C… de …. Aceitou sem associar e no dia seguinte tinhas “gostos” em todas as fotos de família e, de seguida, o irmão G… disse-lhe que era a pessoa que andava a incomodar a mãe e a avó. Bloqueou-o e passou a ouvir telefonemas em sua casa... ouvia risos, mas não se identificavam. Pararam logo que disse que ia fazer uma denúncia à Polícia, isto no verão de 2016 (9,50). Se teve outro pedido de amizade, idêntico, em 2018, não faz ideia, que já não liga “a essas coisas” (13,20).

52 – N…. Amigo do terceiro réu, mas especialmente dos filhos deste, cujas casas frequenta. Conhece por ser vizinho (viveu em … até 1992 e depois de ir para … vem quase todos os domingos a …) e ainda ser parente em quarto ou quinto grau. Ficheiro 20191121152256. Dizia-se lá que ele, o autor, era filho do B…, “do B1…”. Comenta-se. Na presença da mãe do autor, não se lembra [de comentarem]. Era um registo de brincadeira, metiam-se com ele [autor] e ele ria-se. Chegou a ter uma conversa com ele, teria ele 17 ou 18 anos, no sentido, “se és filho avança” e ele disse que chegou a ir lá, em novo, mas não o [terceiro réu] não o aceitava. Não lhe contou da bicicleta. Ouviu falar que o pai lhe deu uma, mas não sabe. Chegou a falar com o Dr. G…, em tom de brincadeira, dizendo-lhe que havia mais um para herdar, mas já não sabe explicar o porquê da conversa (min. 13,00).

53 – L…. Solicitadora, a exercer na Póvoa do varzim. Conheceu o autor em 2018, quando o mesmo, a conselho da mãe – que já conhecia – foi falar consigo. Ficheiro 20191219102813. Em 2018, o autor esteve lá [no seu escritório] porque a mãe o aconselhou. Disse-lhe que ele e a mulher queriam ter filhos e questionou a mãe para saber os seus antecedentes familiares, e se havia algum problema. A mãe disse-lhe que ele não era filho do pai, e sabia quem era [o pai]: o pai de um senhor que era advogado. O autor relatou isso, identificando o filho advogado e disse que queria falar com o pai, pois queria a paternidade correta. A testemunha lembrou-se que, em tempos, teve um processo no qual falou com o Dr. G… e deu-lhe o contacto. Isto foi no início de 2018 (min. 7,30) e o contacto anterior com o Dr. G… tinha sido em 2012 ou 2013, a propósito do registo de um prédio, numa altura em que nem conhecia o C… e, embora talvez já conhecesse a mãe do C…, nunca tinha ouvido a questão que o autor lhe trouxe em 2018 (10,00). Não contactou o Dr. G… enquanto o C… lá estava, mas sim no final do dia, até por cortesia e para evitar qualquer mal entendido. O Dr. G… atendeu, a testemunha identificou-se e disse-lhe [a causa do telefonema], mas logo o Dr. G… “entrou a dizer palavrões e a chamar uma data de nomes ao seu pai e à senhora... tenho um filho da puta de um pai que é um adúltero e a mulher era irmã da “M1…”... sei o que esse gajo quer, mas não vai ter”. Mais tarde o Dr. G… ligou-lhe a pedir desculpa, mas dizendo que o C… ligava constantemente e estava cheio daquele assunto (16,00). Entretanto, falou com o C… e disse-lhe que o assunto não se resolvia extrajudicialmente e teria que instaurar uma ação, que a testemunha não podia patrocinar. A primeira conversa [com o C…] foi no início de 2018, em janeiro. O C… contou-lhe a conversa que tinha tido com a mãe. Não precisou quando, mas referiu ter sido há pouco tempo. A testemunha já conhecia a mãe do C… por causa do registo de um prédio, pensa que em 2017, e conhecia-a de pequena, quando ia à missa na mesma localidade, mas a testemunha saiu de lá há 32 anos, não sabe a idade do C… e, de todo, não o conhecia (20,00). Aquando do telefonema, em janeiro de 2018, a reação do Dr. G… foi imediata e só na segunda vez, quando ele lhe telefonou, é que falou que o autor já o tinha contactado. A sua convicção é que ele sabia que tinha um pai infiel, mas não sabe precisar se o nome de C… era um nome que ele já tinha ouvido, nem sobre isso confrontou o C…, inicialmente, e o que lhe contou foi “da histeria” e que ele teria de avançar com uma ação. Quando, depois, relatou ao C… a queixa do Dr. G…, o C… disse que não era verdade: falou-lhe de um convite no Facebook, mas que falar não (30,00). Com o pai do registo, o C… disse-lhe que não falava, que o pai os abandonou. Só relacionou E… e M1… quando falou com o Dr. G… (32,00).

54 – Acareação entre as testemunhas G… e L… e continuação do depoimento desta. Ficheiros 20191219110811 e 2019121911140. A testemunha G… reafirmou ter sido contactado pela testemunha L…, em 2013, a propósito da paternidade. A testemunha L… reafirmou que tal só sucedeu em 2018. Mais acrescentou, esta última, que quando recebeu o C… e o aconselhou não lhe levou dinheiro, pois era amiga da mãe dele, depois do serviço que a esta prestou e que cobrou (min. 11,00 do ficheiro “11140”).

55 – Além dos depoimentos antes referidos, tivemos em conta os documentos juntos aos autos, e aos quais, mais adiante, nos referiremos.

56 – Importa agora fazer uma análise crítica e global de toda a prova produzida, mas, antes disso, impõe-se um esclarecimento relativo ao ónus da prova, desde logo porque o apelante, repetidamente nas suas conclusões – e quando as mesmas ainda versam sobre a matéria de facto que impugna – atribui ao tribunal uma errada interpretação desse ónus, com reflexo na matéria – provada e não provada, mas especialmente esta última – que veio a ser fixada.

57 – É verdade que, ainda em sede de motivação da decisão relativa à matéria de facto, o tribunal recorrido deixou escrito (e sublinhamos) “Relativamente à factualidade não provada sob a alínea a) na total ausência de prova. Quanto à demais factualidade não provada tal resultou da circunstância de o réu B…, a quem incumbia o ónus de provar o facto impeditivo alegado de acordo com o disposto no art. 342, n.º 2 do Código Civil”. Mas, não obstante tal referência, o tribunal recorrido não deixou de analisar as provas, e concretamente os depoimentos prestados, firmando a sua convicção com base nelas e não com base em qualquer ónus.

58 – O que queremos dizer é que a questão do ónus da prova, em processo civil, não tem qualquer relevo na fixação da matéria de facto, mas apenas na aplicação do Direito e daí também não o terem as considerações feitas pelo apelante a esse propósito.

59 – Citamos, para cabal esclarecimento da questão, Alberto Augusto Vicente Ruço, quando escreve[17]: “Verifica-se, com alguma frequência, a invocação das regras do ónus da prova na argumentação relativa à fundamentação da decisão sobre a matéria de facto. Não se afigura correto este procedimento. O artigo 414.º (...) A questão que se coloca é esta: o juiz aplica esta norma no momento em que está a decidir a matéria de facto ou utiliza-a, mais tarde, quando subsume os factos à lei? (...) Por conseguinte, o juiz não forma a sua convicção tendo em consideração esse ónus, mas sim segundo a valoração que fez das provas no respetivo contexto probatório do processo. (...) Pedindo a aplicação da lei um certo facto, mas não se encontrando o mesmo provado no processo, como decidir? É aqui que o artigo 414.º do Código de processo Civil revela a sua utilidade: o juiz decide como se o facto não existisse, portanto contra a parte a quem ele aproveitaria se estivesse provado”.

60 – Em sede de análise crítica da prova, comecemos por dizer, relativamente aos factos dados como provados, que as declarações de parte do autor se nos revelaram coerentes, plausíveis e não contrariadas por qualquer outra contraprova concreta e capaz de as infirmar, sendo certo que, como resulta do disposto no artigo 466, n.º 3 do CPC, “o tribunal aprecia livremente as declarações das partes”. É certo que, atendendo à “natureza essencialmente supletiva”[18] das declarações de parte, vários autores, direta ou indiretamente, apontam a sua “previsível insuficiência probatória” ou fraca fiabilidade”[19]. Paulo Ramos de Faria/Ana Luísa Loureiro, distinguindo a validade do meio de prova da sua suficiência, referem que “A experiência sugere que a fiabilidade das declarações em benefício próprio é reduzida. Por esta razão, compreende-se que se recuse ao depoimento não confessório força para, desacompanhado de qualquer outra prova, permitir a demonstração do facto favorável ao depoente”.[20] Paulo Pimenta realça a natureza supletiva da prova por declarações de parte, dizendo que será um meio a que as partes recorrerão “nos casos em que, face à natureza pessoal dos factos a averiguar, pressintam que os outros meios probatórios usados não terão sido bastantes para assegurar o convencimento do juiz”.[21] Luís Filipe Pires de Sousa[22], abordando a valoração das declarações prestadas pelas partes, quando não constituam confissão, remete para considerações aplicáveis ao próprio depoimento testemunhal (necessidade de valorar primeiramente a declaração da parte e só depois a pessoa da parte; ponderação da expectável coerência das declarações e da afirmação do detalhe) e prossegue: “Um segundo parâmetro particularmente relevante é o da existência de corroborações periféricas que confirmem o teor das declarações de parte”, corroborações que “consistem no facto das declarações de parte serem confirmadas por outros dados que, indiretamente, demonstrem a veracidade da declaração.”[23] No caso presente, no entanto, as declarações de parte mostram-se suportadas no depoimento da testemunha L…, que se revelou consistente e adequado a demonstrar, na sua coerência, a coincidência entre o que o autor relatou ao tribunal e o que àquela testemunha havia relatado, cerca de dois anos antes. Diga-se ainda, mais concretamente, que os factos provados 10,11,12, resultando, ainda assim, das declarações de parte do autor, nenhum relevo têm para a decisão da causa e os factos provados 13 e 14 resultam necessariamente, por presunção natural e causalidade cientificamente adquirida, de a perícia de investigação biológica ter afirmado o terceiro réu, ora recorrente, como sendo o pai do recorrido, ao mesmo tempo que afirmou a impossibilidade de o réu, registado como pai do recorrido, o poder ser. Acresce, por fim, que o ponto 3 dos factos provados melhor se compreende se conjugarmos as declarações do autor com o complemento ao artigo 8.º da petição, requerido em sede de audiência prévia e admitido pelo tribunal recorrido, de onde resulta, tal como nas declarações que os exames médicos se prendiam com problemas de infertilidade.

61 – Entendemos, assim, que nada justifica a alteração da factualidade dada como provada, ainda que tenhamos de concordar com a apelante quando põe em causa o contributo dos documentos juntos aos autos (descrição da doença “Poland sequence” e relatório ecográfico de fls. 88) para a afirmação positiva dessa factualidade, como considerou a decisão recorrida na motivação da matéria de facto. Efetivamente, como resulta das declarações de parte (e transparece do alegado no complemento do inicial artigo 8.º da petição) as dúvidas do autor e os exames que as pretendiam dissipar eram sobre a fertilidade do casal (o autor tinha casado há mais de quatro anos) e aqueles documentos referem-se a uma ecografia, mas não pré-natal, e à descrição de uma doença de que padecerá o filho do autor que, no entanto, só nasceu em janeiro de 2019, e a presente ação havia sido instaurada em agosto de 2018.

62 – Mas se a motivação da decisão de facto, nessa parte, está errada, nada obsta a que este tribunal da Relação, com a sua própria convicção, mantenha como provada a matéria de facto que assim foi considerada.

63 – Relativamente aos factos dados como não provados, entendemos que a prova produzida, e nomeadamente as declarações das testemunhas referidas pelo apelante, em especial a filha e o filho do recorrente, não permitem que se dê como provada tal matéria, parecendo-nos claro que é totalmente insustentada a afirmação de o autor ter afirmado publicamente a sua paternidade relativamente ao recorrente, nomeadamente durante a sua infância, mas igualmente nos anos posteriores, e anteriores a 2018. Os depoimentos no sentido de terem existido telefonemas do autor para a casa do réu, logo no início dos anos de 1990, para mais acompanhados de risos de alguém, hipoteticamente a sua mãe, são completamente irrelevantes, na medida em que pretendam provar a afirmação da paternidade feita por uma criança que teria então cinco anos de idade. Mas também os telefonemas alegadamente feitos em momentos posteriores nos parecem duvidosos e nunca com o sentido daquela mesma afirmação. A este propósito regista-se a coincidência de, relativamente a um telefonema alegadamente dirigido à testemunha Dr. G… e para o seu escritório, que a funcionária administrativa encaminhou indevidamente, três testemunhas referem, oito ou nove anos depois, a sua ocorrência pela mesma expressão: “em 2010 ou 2011”. Importa dizer que as testemunhas desligavam o telefone ou, pelo menos, nenhuma delas conhecia o autor, no tempo em que os alegados telefonemas teriam ocorrido. Acresce que os elementos documentais que revelam o contacto pelo Facebook, bem como a resposta do recorrente a uma missiva da advogada do autor, são ambos datados do ano de 2018. Relativamente ao contacto entre a testemunha L… (solicitadora) e a testemunha G… (advogado e filho do recorrente), a propósito da questão da paternidade, terá ocorrido já em 2018 e não tem consistência que haja ocorrido um outro, no mesmo sentido, no ano de 2013 – que só a segunda das testemunhas afirma – e o autor tenha permanecido sem qualquer reação, desde logo de natureza judicial, como a primeira daquelas testemunhas, já em 2018, o aconselhou a ter. Finalmente, o depoimento das testemunhas M… e N… não afirmam qualquer facto concreto de onde se retire que o autor, perante o mesmo, tenha passado a ter uma razão concreta ou circunstanciada que justificasse a investigação da sua paternidade. As testemunhas referem que se comentava essa paternidade (a segunda das testemunhas refere até um tom jocoso no comentário perante o autor), mas não transmitiram que o recorrido o afirmasse, nem a mãe deste ou o pai constante do registo, primeiro réu na ação.

64 – Em suma, entendemos que a prova produzida não impõe nem justifica a alteração dos factos provados e não provados, sendo certo que, quanto aos primeiros, fundados essencialmente nas declarações de parte do autor, divergimos, na nossa convicção, da fundamentação da primeira instância, quando também os sustenta nos documentos relativos à pessoa do filho do autor.

65 – O que para nós é especialmente de realçar é que os factos provados e não provados se sustentam numas declarações de parte coerentes, afirmando que o demandante tomou certeza – a sua certeza – da paternidade na sequência de, por razões médicas atinentes às tentativas de ter um filho, e na ausência de qualquer resposta do pai que constava do registo, ter insistido com a sua mãe para que lhe contasse a verdade biológica, o que veio a suceder e, por outro lado, na inexistência de outra prova capaz de revelar que aquela certeza, mesmo que mínima, já existia em anos anteriores, quer na sua menoridade, quer imediatamente depois.

66 – Pelo que se deixa dito, julgamos de manter a matéria de facto, provada e não provada, fixada na primeira instância, improcedendo a apelação no que à impugnação da mesma se refere.

III.III.II - Factos provados e não provados
67 – Em conformidade, considera-se provada a seguinte matéria de facto:
67.1 - No dia 19 de agosto de 1985, na freguesia de …, concelho de Póvoa de Varzim, nasceu o autor, C…, tendo o seu nascimento sido registado na Conservatória do Registo Civil de Póvoa de Varzim, como sendo filho de D…, o 1.º réu, e de E…, a 2.ª ré.
67.2 - O 1.º réu e a 2.ª ré haviam casado em primeiras e recíprocas núpcias de ambos em 15 de março de 1975, e nesse estado se mantiveram, entre si, até 18 de abril de 2002, data esta da sentença que decretou o divórcio, transitada em julgado em 29 de abril de 2002.
67.3 – O autor no início do ano de 2018, por razões de saúde, foi submetido a diversos exames médicos e confrontado com a necessidade de esclarecer se padecia de doenças familiares.
67.4 - O autor nunca conseguiu obter quaisquer esclarecimentos da parte do 1.º réu, levando-o a que percecionasse a falta de semelhanças físicas e de personalidade, entre si e o 1.º réu.
67.5. Tais motivos determinaram que o autor quisesse saber a sua verdade genética e histórico de doenças familiares.
67.6 - Em face disso, o autor confrontou a sua mãe com perguntas acerca do seu progenitor.
67.7 - Ao que a 2.ª ré, ao ver-se agora, diretamente, confrontada pelo autor, por motivos de consciência e por se tratar de assunto que reveste grande relevo para a saúde do autor, asseverou-lhe que manteve uma relação amorosa, de vários anos, com o 3.º réu, B… entre o dia 23 de outubro de 1984 e 20 de fevereiro de 1985.
67.8 - Há já mais de um ano antes do nascimento do autor que o 1.º réu se encontrava a trabalhar no estrangeiro, não mantendo o 1.º réu e a 2.ª ré qualquer relação afetiva ou amorosa.
67.9 - Por essa altura a mãe do autor, aqui 2.ª ré, mantinha uma relação extraconjugal com o 3.º réu, B….
67.10 - O 3.º réu e a 2.ª ré travaram conhecimento em virtude de o 1.º réu ter trabalhado em tempos para o 3.º réu.
67.11 - E como o 3.º réu teve de tratar de assuntos referentes a pagamentos devidos ao 1.º réu e este não se encontrava em Portugal, foi através da 2.ª ré que tratou daquelas questões.
67.12 - Essa circunstância fez aumentar a aproximação e a confiança entre a 2.ªré e o 3.º réu, que começaram a privar.
67.13 - No referido período legal da conceção do autor, a mãe do autor e o referido B… mantiveram relações sexuais de cópula completa, via das quais nasceu o autor.
67.14 - O 1.º réu e a 2.º ré não mantiveram entre si nenhum relacionamento sexual durante aqueles primeiros 120 dias dos 300 que precederam o nascimento do autor.
67.15 - Foi efetuada perícia de investigação biológica de paternidade com colheitas biológicas ao réu D…, ao réu B… e ao autor C…, tendo-se concluído, de acordo com os resultados obtidos, que D… é excluído da paternidade de C… e relativamente ao réu B… o grau de probabilidade de paternidade do réu relativamente ao autor é de =99,9999999998%, considerada uma probabilidade a priori de 0,5 – relatório pericial de fls. 263 a 265 e de fls. 270 e 271.
67.16 - A presente ação foi instaurada em 24 de agosto de 2018.

68 – E como matéria de facto não provada:
68.a - o autor e o 1.º réu nunca tiveram laços afetivos, sendo patente que o 1.º réu sempre tratou o autor de forma diferente dos seus outros dois irmãos, nascidos do casamento entre o 1.º réu e a mãe do autor, a 2.ª ré.
68.b - O Autor, já durante a sua menoridade, afirmava publicamente ser filho do réu B….
68.c - Afirmações que manteve e foi proferindo, ininterruptamente, quer depois de atingir a maioridade e até agosto de 2013, quer desde esta data até, pelo menos, agosto de 2016.
68.d - Para além disso, também já durante a menoridade do autor e ao longo dos períodos temporais alegados supra, o autor chegou a deslocar-se à residência do contestante, afirmando ser seu filho, tendo inclusivamente promovido, por diversas formas e em múltiplas ocasiões, contactos com familiares do réu B…, sempre atribuindo a sua paternidade ao réu B….
68.e - O que também ocorreu com familiares do autor.
68.f - Afirmações e imputação da paternidade que, no entanto, quer o réu B…, quer os seus familiares, sempre negaram e repudiaram.
68.g - O Autor já imputava a sua paternidade ao réu B…, quer durante a sua menoridade, quer nos 10 anos subsequentes à sua maioridade, quer daí em diante, entre agosto de 2013 e agosto de 2016.

III.IV – Fundamentação de Direito
69 – Tendo sido mantida a matéria de facto fixada na primeira instância, parece resolvida a questão da caducidade da ação, invocada pelo recorrente. Importa, no entanto, esclarecer melhor essa mesma questão, como tentaremos fazer mais adiante.

70 – A sentença recorrida, abordando a questão da caducidade, escreveu o que ora se transcreve, muito resumidamente: “Dispõe o art. 1817 do Código Civil, na redação atual introduzida pela Lei n.º 82/2014, de 20/12 (aplicável à paternidade por via do art. 1872) que (...) Do mesmo modo, o art. 1842 do Código Civil refere que (...) a questão em discussão encontra-se subtraída à disponibilidade das partes, cumpre apreciar da eventual caducidade do direito de ação como decorre do disposto no art. 333, n.º 1, do Código Civil. E esta questão tem sido objeto de tratamento diverso na jurisprudência dos tribunais superiores. Aqui salientamos o Acórdão do STJ de 29/11/2012, in dgsi, em que é relator o Sr. Conselheiro Tavares de Paiva, que traça, de uma forma sucinta e elucidativa, os aspetos mais relevantes dessa controvérsia e as duas posições que a seu respeito têm sido desenvolvidas pela doutrina e jurisprudência. Uma no sentido de estamos perante interesses inalienáveis da pessoa, como seja o direito à identidade pessoal, nele incluindo o direito de conhecer e ver reconhecida a sua ascendência biológica, configurando, por isso, um direito de índole pessoalíssimo e como tal imprescritível (...) outra no sentido do estabelecimento de prazos, se estribar em princípios de certeza e segurança jurídicas, argumentando que a possibilidade de instauração da ação a todo tempo implicaria uma situação de incerteza prolongada por muito tempo sobre o pretenso pai e herdeiros, as dificuldades, perdas ou envelhecimentos das provas e a instrumentalização da ação (...) a posição que defende que o direito a investigar a paternidade é imprescritível (...) não é a posição que perfilhamos (...) Não obstante, o regime de prazos instituídos pela Lei n.º 14/2009 prevê ainda prazos especiais, que apenas começam a contar a partir da data do conhecimento dos factos que possam constituir o fundamento da ação de investigação. Esses prazos de três anos, contam-se a partir da ocorrência de um dos seguintes eventos, previstos nas várias alíneas do n.º 3 do art. 1817 (...) através da conciliação do prazo geral de dez anos com estes prazos especiais, o atual regime de prazos para a investigação da filiação mostra-se suficientemente alargado para conceder ao investigante uma real possibilidade de exercício do seu direito”.

71 – A sentença recorrida, revertendo ao caso concreto, veio a acrescentar: “resulta apurado sob os pontos 3) a 7) que o autor no início do ano de 2018, por razões de saúde, foi submetido a diversos exames médicos e confrontado com a necessidade de esclarecer se padecia de doenças familiares, nunca conseguiu obter quaisquer esclarecimentos da parte do 1.º réu, levou a que percecionasse a falta de semelhanças físicas e de personalidade, entre o próprio e o 1.º réu e tais motivos determinaram que quisesse saber a sua verdade genética. Em face disso, confrontou a sua mãe com perguntas acerca do seu progenitor ao que a 2.ª ré, asseverou-lhe que manteve uma relação amorosa, de vários anos, com o 3.º réu (...) E o réu B… não logrou fazer prova da exceção da caducidade que invocou em sede de contestação (...) e sem necessidade de mais considerandos, impõe o artigo 1817, n.º 1, e n.º 3, do Código Civil que se não se irá considerar caducado o direito do autor a intentar a presente ação de impugnação e de investigação de paternidade”.

72 – Uma vez apreciada a questão da caducidade e afirmada a possibilidade de cumulação da ação de impugnação de paternidade contra o presumido pai com a de investigação de paternidade [“Não se vislumbrando razões no nosso sistema jurídico vigente que obstaculizem a presente coligação de réus, com a formulação de pedidos em simultâneo, sem necessidade de duas ações sucessivas: uma, para impugnar a paternidade e cancelar o registo no atinente à menção da paternidade e da respetiva avoenga e outra, procedendo aquela, para investigar a paternidade [pois] tal coligação está conforme com as modernas exigências do processo civil, que procuram agilizar este de forma a, desde logo, se alcançar a desejada justa composição do litígio em tempo útil, com observância, da maior economia de meios”] a sentença recorrida prossegue: “Face ao pedido formulado impõe-se saber se o perfilhante, réu, D…, que perfilhou o autor, não é o pai biológico do autor, a fim de concluir se a perfilhação não corresponde à verdade, uma vez que a impugnação da perfilhação decorre unicamente da sua não correspondência com a verdade biológica (...) Como resulta da matéria de facto provada sob os n.ºs 13 e 14 (...) e como se mostra provado no ponto 15), realizados exames sanguíneos para investigação biológica de filiação (...) resulta provado que D… é excluído da paternidade de C… (...) Sendo assim, é impugnável tal perfilhação nos termos do art. 1859, n.º 1, do Código Civil. A ação de impugnação pode ser intentada a todo o tempo, nomeadamente pelo Ministério Público (art. 1859, n.º 2, do C.C.). Pelo que, o autor está em tempo e tem legitimidade para impugnar a perfilhação em questão. Conclui-se, portanto, pela procedência da impugnação da perfilhação”.

73 – E, a final, prossegue a sentença, agora em relação ao recorrente: “E da factualidade provada (...) também não ocorre qualquer dúvida séria sobre a paternidade do réu B… (desde logo, atenta a exclusividade das relações sexuais consigo por parte da mãe do autor). Face ao exposto, é de concluir que a filiação paterna que consta do assento de nascimento do autor não corresponde, assim, à filiação biológica, não sendo o autor filho do réu D…, mas sim do réu B…, com as legais consequências (...)”.

74 – Como anteriormente se adiantou, a questão da caducidade da ação instaurada pelo autor parece resolvida, uma vez mantida a decisão relativa à matéria de facto, mas importa esclarecê-lo melhor.

75 – Na sua petição inicial, o autor, cumulando a impugnação da paternidade registada com a investigação da paternidade, não invocou – compreensivelmente, diga-se – qualquer normativo atinente à tempestividade da (ou das) suas pretensões.

76 - Excecionada a caducidade pelo réu, ora recorrente (quer por força do disposto no artigo 1817, n.º 1 do CC, quer pelo n.º 3 do mesmo normativo), veio então o autor defender, no que aqui importa “que as normas dos arts. 1817.º, 1842.º, e 1873.º do Código Civil são inconstitucionais”, e ainda acrescentou que “à luz do quadro vigente, a pretensão do Autor cabe perfeitamente no disposto na al. b) do n.º 3 do artigo 1817.º, ex vi, art. 1842, n.º 1, al. c), ambos do Código Civil”.

77 – Por seu turno, a sentença apelada, depois de afastar a inconstitucionalidade do disposto no artigo 1817 do CC, admitindo, assim, que o prazo normal de propositura da ação (previsto no n.º 1 do preceito) é de dez anos, posteriores à maioridade (ou emancipação) do autor, ou seja, até aos 26 ou, no máximo 28 anos deste, enquadra o direito do recorrido no n.º 3 do mesmo artigo 1817 do CC, embora não cuide em esclarecer qual das alínea desse n.º 3 que tem por mais adequadamente aplicável ao caso concreto, e as razões da interpretação que faz.

78 – Concordamos que o preceito que estabelece o prazo para a propositura da acção[24] de investigação de maternidade (artigo 1817 do CC), e igualmente para a ação de investigação de paternidade (1873 do CC), o que aqui está em causa, não padece de inconstitucionalidade, assim acompanhando o decidido na primeira instância.

79 – Com efeito, não desconhecendo os vários fundamentos que militam a favor da tese da inconstitucionalidade material da existência de prazos para a propositura da acção[25], entendemos que as pronúncias repetidas, em sentido contrário, do Tribunal Constitucional, e a argumentação que delas decorre[26], são de atender e respeitar.
80 – Questão diversa já será a do enquadramento da situação em apreço nas diversas hipóteses previstas no n.º 3 daquele artigo 1817 do CC.

81 – Questão essa que, com todo o respeito, não apresenta a simplificação que parece transparecer da sentença apelada, porquanto, e aqui citamos Guilherme de Oliveira, “O art. 1817.º, n.º 3, alterou bastante a redação da norma anterior e tornou o regime difícil, ou impossível de entender”[27].

82 – Efetivamente, da leitura das diversas alíneas no n.º 3 do artigo 1817 do CC parece resultar que a previsão da alínea c) só será aplicável se a maternidade (leia-se, atenta a remissão legal feita pelo artigo 1873 do mesmo diploma legal, se a paternidade) estiver omissa, porquanto, por um lado, só assim faz sentido a hipótese prevista na alínea a) do mesmo número e, por outro lado, a hipótese prevista na alínea b), parece contemplar apenas o caso nela exemplificado (não obstante o advérbio “designadamente”), considerando também o regime especifica e complementarmente previsto no n.º 4, ainda do mesmo preceito do CC.

82 – Sem embargo, entendemos que a referida alínea c) permite uma interpretação lógica – que não meramente declarativa – ponderando o efeito retroativo da decisão que afaste a paternidade presumida registada e, assim, permite considerar que o começo do prazo de caducidade ocorre com o conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que justificam a impugnação da paternidade e também a investigação de paternidade.

83 – No caso presente, uma vez admitida a cumulação da ação de impugnação de paternidade com a de investigação de paternidade (o que tem tido apoio nalguma jurisprudência[28] e doutrina[29]), a atento o caso julgado formal daí decorrente, o efeito retroativo da impugnação permite que se considere, por identidade de razão, preenchida a previsão da alínea c) do n.º 3 do artigo 1817 do CC.

84 – Em suma, mas com os esclarecimentos que antecedem, entendemos que o direito do autor não caducou.

85 – É certo que a decisão sob recurso, depois de apreciar a (não) caducidade da ação de impugnação de paternidade, passa a considerar que a ação de impugnação da perfilhação é imprescritível, o que sendo verdade, não está em causa nestes autos, pois o autor está registado como como filho de pai casado, e o lapso[30] não altera as nossas conclusões e o antes decidido.

86 – Resolvida a questão anterior, resta saber se o autor, na pretensão formulada contra o apelante, e que teve vencimento na primeira instância, agiu em abuso do direito, instituto este que, ainda que não invocado naquela instância, é de conhecimento oficioso, naturalmente se os factos a tal bastarem.

87 – O apelante, com efeito, entende que o autor, por ter abusado do seu direito ao reconhecimento da paternidade, na medida em que apenas o move o efeito patrimonial desse reconhecimento, não é merecedor desse efeito, defendendo o apelante que o efeito pessoal é separável do efeito patrimonial da paternidade reconhecida.

88 – O entendimento que sustenta a limitação da ação de reconhecimento judicial da paternidade aos efeitos pessoais, excluindo, por isso, os efeitos patrimoniais ou sucessórios é defendida por alguns autores que, em simultâneo, sustentam a imprescritibilidade dessa ação, atingindo-se esse fim com uma alteração legislativa[31], semelhante ao que foi consagrado no Código Civil de Macau[32] ou através do instituto do abuso do direito.[33]

89 – Ainda que vejamos com alguma dificuldade uma alteração legislativa capaz de cindir os efeitos pessoais dos efeitos patrimoniais decorrentes do reconhecimento da paternidade, alterando os próprios fundamentos do Direito sucessório português, nesta sede jurisdicional só a questão do eventual abuso do direito se coloca.

90 – E nessa sede não podemos deixar de repetir as palavras de Luís Menezes Leitão, subscritas por Maria Margarida da Silva Pereira: “A isto acresce que o direito de suceder é um mero efeito legal inerente à qualidade de filho, cuja aquisição não depende de qualquer comportamento do próprio, pelo que não se vê como poderia ser objeto de abuso”.[34]

91 – Mas se assim é, em princípio, já o caso presente é revelador de estarmos muito longe de qualquer abuso do direito.

92 – Com efeito, e desde logo, o recorrente, reconhecido como pai do recorrido, está vivo, sendo manifestamente adivinhatório, não apenas indagar do caráter ou das intenções do recorrido, como da situação real que existirá no momento em que o Direito sucessório possa produzir efeitos.

93 – Não é irrelevante, por outro lado – e refletindo novamente no caso concreto – que o recorrido “deixou de ter” um pai, cuja capacidade económica, os bens ou os rendimentos, se desconhecem totalmente.

94 – Em suma, nenhum facto permite dizer que o recorrido não é merecedor do reconhecimento patrimonial que lhe advém da procedência da ação.

95 - Em rigor, não sabemos – nem podemos adivinhar – se o futuro dirá se o filho vai “ficar rico” com a herança do investigado, mesmo perdendo a do pai impugnado, ou se, por hipótese, ainda terá de prestar alimentos ao recorrente.

96 – Em suma, entendemos que o abuso do direito se mostra claramente afastado no caso presente.

97 – Por tudo, o presente recurso revela-se totalmente improcedente, devendo confirmar-se a sentença apelada, ainda que com as razões acrescidas e os esclarecimentos que ficaram ditos.

98 – As custas do recurso são a cargo do apelante, atento o seu decaimento.

IV - Dispositivo
Pelas razões que deixámos ditas, acorda-se na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a presente apelação e, em conformidade, confirma-se a decisão proferida em primeira instância.

Custas pelo apelante.

Porto, 22.02.2021
José Eusébio Almeida
Carlos Gil
Mendes Coelho
_________________
[1] Segue-se, de perto, o relatório constante da sentença apelada.
[2] Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 2.ª Edição, Almedina, 2019, págs. 436/437.
[3] Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, cit. pág. 437.
[4] Luís Filipe Pires de Sousa, Prova Testemunhal, Almedina, 2013, págs. 257 e 266/267.
[5] Sobre o artigo 712 da anterior versão do CPC e a evolução história, desde 1939, que nele culminou, Heráclito Albino Pedro, “A renovação da prova no processo civil português”, in Temas de Direito Civil, AAFDL Editora, Lisboa, 2020, págs. 175 e ss., a págs. 201/212.
[6] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3.ª Edição, Almedina, 2016, pág. 241. [7] Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2015, pág. 162.
[8] Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 2.ª Edição, Almedina, 2019, pág. 538.
[9] António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, pág. 796, anotação 4.
[10] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6.ª Edição Atualizada, Almedina, 2020, pág. 331.
[11] V. Luís Filipe Pires de Sousa, Direito Probatório Material Comentado, Almedina, 2020, em especial págs. 84 e ss. e 111 e ss.
[12] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos..., 6.ª Edição, cit., pág. 333.
[13] António Santos Abrantes Geraldes, Recursos..., 6.ª Edição, cit., pág. 196/197.
[14] Ob. cit., pág. 770, anotação 2.
[15] Relator, Conselheiro Manuel Tomé Soares Gomes, Processo n.º 4172/16.4TFNC.L1.S1, in Coletânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano XXVII, Tomo I/2020, págs. 13/16.
[16] Recursos... 6.ª Edição, cit., págs. 352/354.
[17] Prova e Formação da Convicção do Juiz, Almedina/CJ, 2016, págs. 289/290.
[18] João Correia/Paulo Pimenta/Sérgio Castanheira, Introdução ao Estudo e à Aplicação do Código de Processo Civil de 2013, Almedina, 2013, pág. 57.
[19] Estrela Chaby, O Depoimento de Parte em Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 50, nota 124.
[20] Primeiras Notas ao Código de Processo Civil – Os Artigos da Reforma, Volume I, 2.ª Edição, Almedina, 2014, pág. 395.
[21] Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 357. O mesmo refere o autor na 3.ª Edição, Almedina, 2020, na pág. 404.
[22] Prova Testemunhal, Almedina, 2013, págs. 362 e ss.
[23] Ob. Cit., pág. 365.
[24] O artigo 133 do Código de Seabra permitia, com exceções, a investigação da paternidade durante a vida do pretenso pai. O artigo 37 do Decreto n.º 2, de 25.12.1910, aumentou esse limite para um ano após a morte do pretenso pai. O Código Civil de 1966 (artigo1854) estabeleceu, com exceções, o prazo de dois anos após a maioridade ou a emancipação, situação que se manteve com a Reforma de 77 (artigo 1817). Em 2006, o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade deste preceito (Ac. nº 23/2006) e, pela Lei n.º 14/2009, as ações voltaram a ter novo prazo, ou seja, nos termos da atual redação do artigo 1879 do CC, dez anos depois da maioridade ou emancipação do investigante.
[25] e.g., Maria Margarida da Silva Pereira, Direito da Família, 3.ª Edição, Reimpressão, AAFDL Editora, Lisboa, 2020, págs. 714/719 e Guilherme de Oliveira, Estabelecimento da Filiação, Petrony, 2019, págs. 204/211.
[26] Citamos, a este propósito, o que ficou escrito no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 417/2017 (Relator, Conselheiro João Caupers): “Os direitos que o legislador pretende assegurar, em primeira linha, são, assim, os direitos fundamentais pessoais do próprio filho (...) Por outro lado, a atempada constituição da relação jurídica de filiação, viabilizando a consolidação no tempo de uma relação juridicamente pautada pela observância de deveres recíprocos de respeito, auxílio e assistência (artigo 1874.º, n.º 1, do CC), acabará a seu tempo por beneficiar também o próprio pai e, mais uma vez, toda a sociedade, que poderá igualmente contar com a insubstituível ação cuidadora dos filhos em relação aos pais que dela careçam, por razões de doença ou idade avançada, o que, por sua vez, contribuirá para diminuir o risco de «isolamento» ou «marginalização social» a que a «terceira idade» está sujeita por força da sua maior fragilidade (cfr. artigo 72.º da Constituição). Ora, comparando os benefícios, individuais e sociais, acima descritos, assegurados pelo prazo de caducidade, com os custos, essencialmente patrimoniais, sofridos pelo investigante por causa da sua inobservância, parece claro que não estamos perante uma medida legal desproporcional, e, muito menos, manifestamente desproporcional, como se sustenta no acórdão recorrido. Indispensável é que esteja assegurado o exercício efetivo do direito de ação de investigação da paternidade dentro do prazo de caducidade legalmente previsto e em termos compatíveis com a natureza especialmente pessoal do direito fundamental a tutelar. E afigura-se que está, considerando a função essencialmente corretiva que os n.ºs 2 e 3 do artigo 1817.º do CC exercem na economia global do preceito. Como o Acórdão n.º 401/2011 sublinhou (...) A extinção do direito ao conhecimento da paternidade biológica e ao estabelecimento do respetivo vínculo jurídico só operará depois de esgotados todos os prazos de caducidade previstos no artigo 1817.º do CC – o que constitui uma importante válvula de segurança do sistema. Acresce que, de modo a adequar o funcionamento do prazo de caducidade à natureza pessoalíssima do direito que lhe está subordinado, o legislador optou pela utilização de conceitos abertos e indeterminados na fixação do termo inicial de alguns dos prazos de caducidade acrescidos previstos no artigo 1817.º do CC. Com efeito, de acordo com o n.º 3 deste preceito legal, aplicável ex vi do artigo 1873.º, a ação pode ainda ser proposta nos três anos posteriores ao conhecimento, pelo investigante, após o decurso do prazo previsto no n.º 1, de «factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação», designadamente quando cesse o tratamento como filho pelo pretenso pai [alínea b)], e, em caso de inexistência de paternidade determinada, nos três anos seguintes ao conhecimento superveniente de «factos ou circunstâncias que possibilitem ou justifiquem a investigação» [alínea c)]. Desse modo, garante-se ao titular do direito fundamental virtualmente afetado pelo prazo de caducidade a possibilidade de instaurar a ação quando, uma vez decorrido o prazo previsto no n.º 1 do artigo 1817.º do CC, surjam factos ou circunstâncias que tornem razoável o exercício tardio do direito de ação. A ausência de uma tipificação fechada dos factos ou circunstâncias justificativos da instauração da ação após o transcurso desse prazo permite ao aplicador do direito, em especial ao juiz, a formulação de juízos de ponderação suscetíveis de cobrir a especificidade de cada caso concreto sujeito à sua apreciação e integrar no conceito legal todos os factos e circunstâncias concretas, de natureza objetiva e/ou subjetiva, que possam justificar, à luz desse padrão de razoabilidade, o exercício do direito de ação após os 28 (ou 26) anos de idade do investigante. O que a lei não consente – e a Constituição manifestamente não tutela – é o exercício arbitrário do direito de ação de investigação da paternidade a qualquer tempo (...) Por tudo quanto se disse, não se afigura que a norma do n.º 1 do artigo 1817.º do CC, ao estabelecer o prazo de caducidade para o exercício do direito de ação de investigação da paternidade, seja inconstitucional, conclusão que sai reforçada pelo facto de o efeito extintivo que lhe está associado apenas se produzir quando se esgotar, não apenas o prazo aí previsto, mas todos os outros que o mesmo preceito legal prevê, com grande amplitude, nos seus números 2 e 3”.
[27] Estabelecimento da Filiação, cit., pág. 203. O autor usa precisamente as mesmas palavras no Manual de Direito da Família (Com a colaboração de Rui Moura Ramos), Almedina, 2020, pág. 438.
[28] Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.07.2012 (Relator, Desembargador, José Manuel Araújo de Barros, dgsi), que segue de perto o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.03.2010 (Relator, Conselheiro Salazar Casanova, dgsi), onde se escreveu: “Afigura-se, assim, que é aceitável uma interpretação do preceito no sentido de que apenas não é admitido o reconhecimento judicial em contrário da filiação que consta do registo do nascimento quando este não seja cumulado com o pedido de impugnação com cancelamento do registo de nascimento efetuado. Ou, se quisermos, numa formulação positiva, é admissível o reconhecimento judicial em contrário da filiação desde que este seja cumulado com pedido de impugnação e de cancelamento do registo de nascimento efetuado. Esta interpretação justifica-se, como se disse, por várias razões: - Porque a razão de ser que levou à formulação dos mencionados artigos constantes do Decreto n.º2 cessou com a distinção entre filhos legítimos e ilegítimos. - Porque, formulado tal pedido numa acção de estado, o registo civil admite que a prova quanto aos factos que a ele estão obrigatoriamente sujeitos e ao estado civil possa ser ilidida. - Porque a lei admite a cumulação de pedidos, não existindo obstáculo de ordem processual. - Porque a regra constante do artigo 3./2º do atual Código do Registo Civil não é atingida, ou seja, o cancelamento decorre sempre de uma decisão que é lógica e necessariamente prévia à decisão que importa o reconhecimento da paternidade contrária à que consta do registo de nascimento. Concluindo: O artigo 1848.º/1 do Código Civil não obsta à admissibilidade do pedido de reconhecimento judicial em contrário da filiação que consta do registo de nascimento desde que seja simultaneamente deduzido o pedido de impugnação de paternidade e de cancelamento do respetivo registo”.
[29] Não abordando diretamente a questão, Guilherme de Oliveira não deixa de referir (Manual de Direito... cit., pág. 414) que “O estabelecimento da paternidade verdadeira poderia sobrevir imediatamente depois da impugnação precedente (art. 36.º CProcCiv) ou decorrer mais tarde” (sublinhado nosso). J.P. Remédio Marques (Código Civil Anotado – Livro IV, Direito de Família, Clara Sottomayor, pág. 766), comentando o disposto no artigo 1848, n.º 1 do CC, refere que o mesmo “não obsta ainda à admissibilidade do pedido de reconhecimento judicial em contrário da filiação que consta do registo de nascimento (art. 3.º/2 do CRegCiv), contanto que seja simultaneamente deduzido o pedido de impugnação de paternidade e de cancelamento do respetivo registo”.
[30] Admitimos – ainda que fique por entender todo o labor argumentativo que, inicialmente, aprecia a ação de impugnação de paternidade – que o lapso surge por duas razões: o autor, na sua petição, mistura paternidade e perfilhação; por outro lado, o assento de nascimento do autor, fazia referência à situação de “divorciado” do pai, mas foi retificado “no sentido de que o pai do registado era casado” (fls. 998 e 999 do processo eletrónico), não havendo que confundir retificação com – inexistente – perfilhação.
[31] V. Jorge Duarte Pinheiro, O Direito da Família Contemporâneo, 6.ª Edição, AAFDL Editora, Lisboa, 2018, págs. 132/135.
[32] “Artigo 1656.º (Ineficácia patrimonial): 1. A declaração de maternidade, a perfilhação e o estabelecimento da filiação em acção de investigação de maternidade ou de paternidade são ineficazes no que aproveite patrimonialmente ao declarante ou proponente, nomeadamente para efeitos sucessórios e de alimentos, quando: a) Sejam efetuadas ou intentadas decorridos mais de 15 anos após o conhecimento dos factos dos quais se poderia concluir a relação de filiação; e b) As circunstâncias tornem patente que o propósito principal que moveu a declaração ou proposição da acção foi o da obtenção de benefícios patrimoniais. 2. O prazo fixado na alínea a) do número anterior, para além de estar sujeito às restantes regras da prescrição, não começa nem corre enquanto: a) O declarante ou proponente não for maior ou emancipado; b) O declarante ou proponente se encontrar interdito por anomalia psíquica ou sofrer de demência notória; c) Entre o filho e a pretensa mãe ou pai existir posse de estado; ou d) Para efeitos das ações de investigação de maternidade ou paternidade propostas pelo filho, este e a pretensa mãe ou pai forem reputados e se tratarem entre eles respetivamente como filho e mãe ou filho e pai. 3. Existe posse de estado quando se verifiquem, cumulativamente, os seguintes requisitos: a) Serem o filho e a pretensa mãe ou pai reputados e tratados entre eles respetivamente como filho e mãe ou filho e pai; b) Serem reputados como tais nas relações sociais, especialmente nas respetivas famílias”.
[33] Guilherme de Oliveira, “Caducidade das ações de investigação”, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Volume I – Direito da Família e das Sucessões, Coimbra Editora, 2004, págs. 12/13.
[34] “Anotação ao Acórdão de 9 de Abril de 2013 do Supremo Tribunal de Justiça”, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 73, Volume I, 2013, pág. 397, citado por Maria Margarida da Silva Pereira, Direito da Família..., cit., pág. 717.