QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
DIREITO À PROVA
Sumário

I - Por força do princípio geral do contraditório a nível de prova, estabelecido no art. 415º, do Código de Processo Civil, e concretizado em subsequentes artigos, designadamente, com relação à junção de documentos aos autos, no art. 427º, afloramentos do contraditório consagrado no art. 3º, todos daquele diploma legal, elevado à categoria de princípio constitucional, corolário de um processo justo e equitativo, nenhuma prova pode ser admitida e nenhuma decisão pode ser proferida sem a sua, prévia, observância, nunca podendo ser preterido em processo algum, mesmo que por razões de celeridade, que dominam procedimentos regulados pelo CIRE, designadamente o incidente de qualificação da insolvência;
II - É admissível, no incidente de qualificação da insolvência, apresentação de prova documental até momento anterior a 20 dias antes da data em que se realize a audiência de discussão e julgamento/audiência final, nos termos do nº2, do art. 423º (preceito, aplicável ex vi art. nº1, do art. 17º, do CIRE, por em nada contrariar as disposições do CIRE);
III - E, sendo ela admissível, nenhuma razão existe para se não permitir o aditamento ao rol de testemunhas requerido até àquele mesmo momento, nos termos do nº2, do art. 598º, do CPC, preceito aplicável ex vi art. nº1, do art. 17º, do CIRE, por, naquela conformidade, também em nada o contrariar.

Texto Integral

Apelação 2381/19.3T8VNG-H.P1
Processo do Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 5

Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2º Adjunto: António Eleutério

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (elaborado pela relatora - cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO

Recorrente: o Requerido B…

B…, Requerido no Incidente de Qualificação de Insolvência de C…, Lda, a correr por apenso aos autos em que esta foi declarada insolvente, notificado dos despachos proferidos:
- em 18/7/2020 (cfr. fls 133 e segs), com o seguinte teor
“Ilegitimidade do terceiro articulado.
O requerido B… veio responder às oposições apresentadas pelos requeridos D… e E….
Contudo, afigura-se-nos que tal articulado não é legalmente admissível.
É certo que o art. 188º, n.º 7, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas prevê a possibilidade de ser apresentada resposta à oposição deduzida nos termos do n.º 6 da mesma disposição legal.
De facto, prevê-se na referida norma legal que o administrador da insolvência, o Ministério Público e qualquer interessado que assuma posição contrária à das oposições pode responder.
No entanto, daí não resulta, cremos, que os requeridos, deduzindo oposições autónomas, ainda que assumindo posições antagónicas (como sucede no caso em apreço, pelo menos no que diz respeito à gerência de facto), possam responder à oposição deduzida por cada um deles.
A expressão “qualquer interessado que assuma posição contrária à das oposições” não abrange os demais requeridos (tendo ou não deduzido oposição).
Pelo exposto, por não serem legalmente admissíveis, determino o desentranhamento das respostas apresentadas pelo requerido B…, através dos articulados de 7 e de 24 de Fevereiro 2020.
Custas do incidente a cargo do requerido B…, fixando-se no mínimo a taxa de justiça.
Notifique.
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- em 2/9/2020 (cfr. fls 136, verso -137), na sequência de pedido de retificação, com o seguinte teor:
“Requerimento, com a referência 26460649, de 4 de Agosto de 2020
O Tribunal não admitiu a apresentação das respostas à oposição apresentadas pelo Requerido B… pelas razões constantes do despacho de 18 de Julho de 2020.
Ora, não se nos afigura que tal despacho padeça de qualquer inexactidão ou lapso que cumpra retificar. De facto, a resposta não é, no caso, admissível, incluindo no que diz respeito à pronúncia sobre os documentos juntos com a oposição, sendo certo que o tribunal, no momento próprio, não poderá deixar de apreciar a sua relevância probatória sem esquecer a posição que cada um dos requeridos assumiu no âmbito do presente incidente.
Por outro lado, no que diz respeito à junção de documentos, a verdade é que a pretensão do requerido não foi expressa e unicamente a junção de novos documentos, para além de que o momento processual próprio para o oferecimento de todos os meios de prova sempre seria, cremos, em princípio, o da apresentação da oposição (cfr. arts. 188º, n.º 8, 134º, n.º 1, e 25º, n.º 2, do CIRE).
Nesse sentido, indefiro o requerido.”

- e em 17/9/2020 (cfr fls 176), com o seguinte teor:
“Requerimento de 31 de Agosto de 2020
O requerido B… veio requerer a junção de documentos e aditar uma testemunha.
Ora, no incidente de qualificação de insolvência (tal como sucede no incidente de reclamação de créditos) o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas impõe aos requeridos o ónus de apresentação do requerimento probatório com o articulado de oposição, ficando, assim, precludida a possibilidade de o apresentar posteriormente, nomeadamente, após despacho saneador que eventualmente venha a ser proferido, não sendo aplicáveis as disposições legais invocadas pelo requerido (cfr. arts. 188º, n.º 8, 134º, n.º 1, e 25º, n.º 2, do CIRE).
Pelo exposto, indefiro o requerido.”
veio recorrer dos referidos despachos pedindo que:
i) - o despacho recorrido de 02.09.2020 seja parcialmente revogado e substituído por outro que retifique o despacho de 18.07.2020 no sentido de, ao invés do desentranhamento dos articulados de 07 e 24 de fevereiro, se determine que sejam apenas tidos por não escritos os artigos 1 a 59.º do requerimento de 7 de fevereiro e os artigos 1.º a 4.º do requerimento de 24 de fevereiro, sendo, desta forma, tida em consideração a impugnação de documentos do Recorrente constante dos artigos 60.º a 70.º do requerimento de 07 de fevereiro e o artigo 5.º do requerimento de 24 de fevereiro;
ii) - os despachos recorridos de 02 e 17 de setembro sejam parcialmente revogados e substituídos por outro que admita a junção dos documentos apresentados pelo Recorrente com o articulado de 07.02.2020 e, por outro lado, a prova documental apresentada e a testemunha aditada pelo Recorrente no requerimento de 31.08.2020,
formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
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Não foram apresentadas contra alegações.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTOS
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Assim, as questões a decidir são as seguintes:
1º- Da admissibilidade de pronúncia sobre documentos apresentados nas oposições de Requeridos e da violação do contraditório;
2º- Da admissibilidade de oferecimento de prova documental e de aditamento de testemunha ao rol de testemunhas, por requerimentos apresentados mais de 20 dias antes da data designada para a audiência de julgamento.
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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos provados, com relevância, para a decisão constam já do relatório que antecede.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Insurge-se o Apelante contra referidas decisões, na parte que não admitiram:
i)- as pronúncias sobre documentos juntos aos autos;
ii)- a apresentação de documentos, oferecidos, por duas vezes, mas sempre, mais de vinte dias antes da data designada para a audiência de discussão e julgamento;
iii)- o aditamento do rol de testemunhas, oferecido mais de vinte dias antes da data designada para a audiência de discussão e julgamento, com base no entendimento de que:
- a resposta pronúncia sobre os documentos juntos com a oposição não é admissível (sendo que o tribunal, no momento próprio, não poderá deixar de apreciar a sua relevância probatória sem esquecer a posição que cada um dos requeridos assumiu no âmbito do presente incidente);
- no incidente de qualificação de insolvência, o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, abreviadamente CIRE, impõe o ónus de apresentação do requerimento probatório com o articulado de oposição, com preclusão de ulterior apresentação (convocando, para fundamentar o indeferimento da pretensão do requerente, ora apelante, os arts. 188º, n.º 8, 134º, n.º 1, e 25º, n.º 2, do CIRE, que considerou afastarem as normas adjetivas constantes do Código de Processo Civil por ele invocadas).
Analisemos as questões objeto do recurso.

1º- Da violação do contraditório: admissibilidade de pronúncia sobre documentos
Consagra o referido artigo 188º, que regula a “Tramitação” do “Incidente pleno de qualificação da insolvência”, no nº 8, que “É aplicável às oposições e às respostas, bem como à tramitação ulterior do incidente da qualificação da insolvência, o disposto nos artigos 132º a 139º, com as devidas adaptações”, estatuindo o nº1, do art. 134º, que “Às impugnações e às respostas é aplicável o disposto no nº2 do artigo 25º” e este preceito que “O requerente deve ainda oferecer todos os meios de prova de que disponha, ficando obrigado a apresentar as testemunhas arroladas, com os limites do artigo 511º do Código de Processo Civil”.
Segue-se, pois, o regime estabelecido para as reclamações de créditos, “o que implica para além da obrigação de indicar os meios de prova (arts. 134º e 25º, nº2, a emissão de parecer pela comissão de credores (art. 135º), o saneamento do processo (art. 136º), a realização de diligências instrutórias (art. 137º) a audiência de julgamento (arts. 138º e 139º)”[1].
Nos termos do artigo 136º, “o juiz profere despacho saneador, nos termos do artigo 595º, do CPC, cabendo-lhe ainda, caso o processo haja de prosseguir, proferir despacho a identificar o objeto do litígio e designar os temas de prova, nos termos do art. 596º, do CPC”[2], sendo que, nos termos do nº1, do art. 17º, do CIRE, “Os processos regulados no presente diploma regem-se pelo Código de Processo Civil, em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código”.
Assim, não pode ser deixada de dar razão ao apelante, por, na matéria em causa, o Código de Processo Civil, diploma a que pertencem todos os preceitos citados sem outra referência, em nada contrariar as disposições do CIRE.
E, na verdade, quanto à pronúncia sobre documentos, mesmo cabendo ao Tribunal, no momento de apreciar da sua “relevância probatória”, levar em consideração a posição das partes assumidas nos articulados da causa, o certo é que, não obstante isso, nunca pode ser negado ao Requerido o direito de pronúncia quanto aos mesmos.
Uma vez juntos aos autos documentos, seja a requerimento de parte seja mesmo por determinação do Tribunal, sempre tem a parte contrária o direito de sobre eles se pronunciar, trazendo para o processo a sua posição sobre os mesmos para, desse modo, influenciar a decisão do julgador, para que esta surja, sempre, e a todos os níveis (inclusive ao da prova de factos), como fruto do contributo de todas as partes.
Com efeito, o nº 3, do referido artigo 3º, que veio ampliar o âmbito da regra do contraditório, já tradicionalmente entendido como garantia de uma discussão dialética entre as partes ao longo do desenvolvimento do processo, trazendo para o nosso direito processual uma conceção mais alargada, visando-se prevenir as “decisões surpresa”, sempre impõe a observância de tal princípio, até elevado à categoria de princípio constitucional, nunca podendo ser preterido, mesmo em situações de urgência (embora em casos, excecionais, se imponha o seu exercício, apenas, a posteriori).
O sentido amplo atribuído ao princípio do contraditório - que impõe que seja concedida às partes a possibilidade de, antes de ser proferida a decisão, se pronunciarem sobre questões suscitadas oficiosamente pelo juiz em termos inovatórios, mesmo que apenas de direito - já há muito vinha sendo afirmado pela jurisprudência constitucional, especialmente no processo penal, devido às garantias de defesa do arguido.
A referida conceção ampla do princípio do contraditório, também já há muito defendida pelo Professor Lebre de Freitas[3] para o processo civil, traduz um direito à fiscalização recíproca ao longo do processo visto como uma “garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”[4].
E, na medida em que garante a igualdade das partes - pela possibilidade de pronúncia e resposta - leva a que, mais fácil e frequentemente, se obtenha a verdade material e que a solução do litígio seja a mais adequada e justa, logrando-se atingir num maior número de casos a realização dos verdadeiros objetivos finais de que o processo é um mero instrumento para alcançar.
Como vimos, e como refere o Ilustre Professor, em lição que vimos seguindo, o princípio do contraditório materializa-se, pois, em todas as fases do processo - quer ao nível dos factos, quer ao da prova, quer ao do direito propriamente dito - tendo as partes, em todos estes níveis, direito a, de modo participante e ativo, influenciar a decisão, tentando convencer, em cada momento e ao longo de todo o processo, o julgador do acerto da sua posição.
Ao nível da prova, o princípio do contraditório impõe que às partes seja concedida, em condições de igualdade, a possibilidade de proposição dos meios de prova e que a sua admissão e produção tenham lugar com audiência contraditória das partes, sendo estas, a final, chamadas a pronunciarem-se sobre as provas produzidas (por si, pelo adversário ou determinadas oficiosamente pelo próprio tribunal).
Tal princípio, consagrado no art. 3º, encontra-se desenvolvido noutras disposições legais, nomeadamente nas que, em processo civil, regulam a produção de prova, constando do art. 415º o “princípio da audiência contraditória” das provas, consagrando, no seu nº1 que “Salvo disposição em contrário, não são admitidas nem produzidas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas”.
Assim, as provas não são admitidas ou produzidas sem audiência contraditória dos litigantes a quem hajam de ser opostas. E este preceito, que consagra o princípio geral do contraditório relativamente à admissão e produção de qualquer dos meios de prova, onde a contraditoriedade se impõe com grande relevo, dado que a demonstração dos factos assume primordial importância para a decisão da causa, encontra-se, concretizado em artigos subsequentes, designadamente, e com relação à junção de documentos aos autos, no arts 427º (notificação à parte contrária) e no 439º (notificação às partes de documentos requisitados), impondo a sua notificação, obviamente para poder ser exercido o contraditório, com o facultar do direito de pronúncia às partes.
O art. 427º, sob a epígrafe “notificação à parte contrária”, consagra que “Quando o documento seja oferecido com o último articulado ou depois dele, a sua apresentação é notificada à parte contrária, salvo se esta estiver presente ou o documento for oferecido com alegações que admitam resposta” e o art. 439º, com a epígrafe “Notificação às partes”, que “A obtenção dos documentos requisitados é notificada às partes”, ambos sendo afloramentos daquele princípio geral.
Na verdade, quando no último articulado admissível, como foi o caso, é apresentada prova documental não deixa de ser notificada a parte contrária (cfr. artigo 427.º), com vista ao exercício do direito ao contraditório, que sempre poderá ser exercido, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias (parte final, do nº1, do art. 149º).
Deste modo, como decorrência do direito à prova, encontra-se consagrado que, oferecida prova documental, à parte que assuma posição contrária tem de ser facultado impugnar a sua admissibilidade e força probatória antes da admissão do documento em causa, estando a regra consagrada no art 415º - de que as provas não são admitidas ou produzidas sem audiência contraditória - desenvolvida posteriormente em cada um dos meios de prova, sendo na prova documental, nos arts. 427º, 439º e 444º.
E para que seja respeitado o princípio do contraditório não é necessário que a parte tome posição, mas essencial é que à parte seja dada possibilidade de se pronunciar, querendo. Pronunciando-se, não pode deixar de ficar nos autos a posição que assumiu, para que possa ser levada em consideração. “A notificação da junção de qualquer documento, como pressuposto do exercício do contraditório, é inerente à notificação de qualquer articulado ou de qualquer requerimento que admita resposta (…) visa facultar-lhe a pronúncia sobre a proveniência e integridade do documento na sua materialidade de continente/significante (eficácia formal do documento) e sobre a veracidade e vinculação ao seu conteúdo/significado (eficácia material do documento)”[5].
E ocorrendo pronúncia sobre documento legitimamente tem a parte o direito de reclamar que dos autos não saia, para que possa servir para os seus fins, de influenciar a decisão, acrescendo, até, que, mesmo a nível da prova, e como corolário do princípio do contraditório, é, ainda, concedido às partes o direito de, no final da sua produção e antes da decisão sobre a matéria de facto, se pronunciarem de acordo com o art. 604º, nº 3, al. e) e 5 sobre os termos da mesma, discutindo as provas e tomando posição sobre a matéria de facto que consideram provada e não provada.
Caso o juiz não faculte à parte a possibilidade de se pronunciar quanto a provas oferecidas pela contraparte (v.g. admitindo a junção de documentos por uma das partes sem ouvir a outra), a prova é invalidamente constituída, podendo tal situação gerar uma nulidade nos termos do art. 195º, nº1 e se o resultado estiver coberto por decisão judicial (v.g. afirmando explicita ou implicitamente a recusa do contraditório), justificar-se-á a impugnação da decisão por via da interposição do recurso[6], como sucede no caso em que determinado foi o desentranhamento das respostas apresentadas e, assim, também, a parte referente a pronúncia sobre os documentos.
Ora, impondo-se, plenamente, o contraditório, como até da própria Lei Fundamental decorre, em nada se justificando o seu afastamento e em nada a sua observância contrariando o CIRE, por força do nº1, do art. 17º, do referido diploma, o presente processo rege-se pelo Código de Processo Civil, como bem sustenta a apelante. É, pois, admissível a pronúncia sobre os documentos juntos pelos demais Requeridos nas suas Oposições, impondo-o o princípio do contraditório, corolário de um processo equitativo, consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, materializado no artigo 3.º e concretizado em diversas disposições legais, entre elas no artigo 415.º, não podendo o Tribunal admitir meios de prova, nem decidir, sem a prévia observância do contraditório.
Tais normas em nada contrariam as consagradas no CIRE, sequer a tramitação prevista para o incidente de qualificação da insolvência, a que, embora marcado pela celeridade processual, por força do n.º 1 do artigo 17.º do CIRE, se aplicam as normas e princípios gerais acima citadas, que com ela não contendem, nunca, a celeridade processual pode prevalecer, menos ainda em termos definitivos, sobre o contraditório, pois que o fim último do processo é a descoberta da verdade e a realização da justiça, só alcançáveis num processo equitativo, que, para verdadeiramente o ser, tem de ser fruto da participação colaborante e ativa de ambas as partes em todas as fases do processo, mormente na da proposição e produção da prova.
Violados se mostram, efetivamente com os primeiros despachos acima referidos o disposto nos artigos 3.º, n.º 3, 415.º e 427.º do CPC (aplicáveis ex vi artigo 17.º do CIRE) e, ainda, o artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, cabendo admitir a pronúncia apresentada sobre os documentos em causa.
Assim, sempre a pronúncia sobre os documentos tem de ser admitida, para ulterior consideração.
Contudo, sendo exercício do direito de pronúncia sobre documentos, “não é suposto a parte ir além daquele objeto, pelo que não lhe deve ser permitido aproveitar o ensejo para produzir verdadeiros articulados ou alegações sobre a matéria da ação (…) Seria contrário à disciplina processual que a parte pudesse reabrir a fase dos articulados pelo simples facto de serem apresentados novos documentos (cf. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, vol. III, 3ª ed, pp. 89-90)[7].
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2º- Da admissibilidade de oferecimento de prova documental, posteriormente ao articulado, e de aditamento de uma testemunha ao rol de testemunhas apresentado

Insurge-se o apelante contra os despachos que rejeitaram meios de prova (documental e aditamento de testemunha ao rol), com o fundamento de a prova ter de ser oferecida com a oposição, não o podendo ser em momento posterior, entendendo, aquele, ser subsidiariamente aplicável o Código de Processo Civil, que, embora imponha o oferecimento da prova com o articulado onde são alegados os factos (que fundamentam a ação ou a defesa), permite a junção de documentos e o aditamento de testemunhas ao rol até 20 dias antes da data designada para a audiência de discussão e julgamento.
A questão a resolver é, pois, a de saber se no incidente de qualificação da insolvência pode ser oferecida prova documental e aditado o rol de testemunhas após a oposição e até momento anterior a 20 dias antes da data em que se realize a audiência de discussão e julgamento/audiência final, nos termos do nº2, do art. 423º e do nº2, do art. 598º, sendo estes preceitos aplicáveis ex vi art. nº1, do art. 17º, do CIRE.
Ora, como vimos, ao “Incidente pleno de qualificação da insolvência” são, desde logo, de aplicar as suas regras próprias, regulamentação especial, específica que prevalece, determinando o artigo 188º, do CIRE, que regula a “Tramitação” do “Incidente pleno de qualificação da insolvência”, no nº 8, que “É aplicável às oposições e às respostas, bem como à tramitação ulterior do incidente da qualificação da insolvência, o disposto nos artigos 132º a 139º, com as devidas adaptações”, estatuindo o nº1, do art. 134º, que “Às impugnações e às respostas é aplicável o disposto no nº2 do artigo 25º” e este preceito que “O requerente deve ainda oferecer todos os meios de prova de que disponha, ficando obrigado a apresentar as testemunhas arroladas, com os limites do artigo 511º do Código de Processo Civil” (não pode exceder dez testemunhas).
E a este processo são, também, aplicáveis, subsidiariamente, as disposições do CPC, por força do nº1, do art. 17º, do CIRE, e dentro dele, subsidiariamente, as do processo declarativo comum, por extensão da norma do nº1, do art. 549º, do CPC [9].
Como acima já referimos, nenhuma razão, também aqui, se verifica a obstar à aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, assistindo, por isso, razão ao apelante.
Quanto à junção de documentos, em 1ª instância, este diploma permite a junção em três momentos distintos (cfr art. 423º):
i) com o articulado (nº1);
ii) até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas com a cominação de multa, exceto se a parte alegar e demonstrar que os não pode oferecer antes (nº2);
iii) até ao encerramento da discussão em 1ª instância, somente daqueles cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento ou cuja apresentação ou se tornem necessários por virtude de ocorrência posterior (nº3)[10].
Ora, in casu, e com relação à junção de documentos, desde logo por aplicação subsidiária do artigo 423º, não podem deixar de ser admitidos os documentos oferecidos posteriormente ao articulado e mais de 20 dias antes da data designada para o início da audiência de discussão e julgamento[11].
Com efeito, permite tal artigo, no seu nº2 -, não obstante o momento próprio para a sua junção ser o da apresentação do articulado em que se aleguem os factos, como estabelecem as disposições conjugadas do CIRE acima referidas, mencionadas pelo Tribunal a quo, (regulamentação específica, que está em sintonia com o que estabelece o nº1, do artigo 423º), - que o possam ser posteriormente, embora com sujeição da parte em multa (a menos que demonstre não os ter podido oferecer com a articulado).
Sendo a lei “omissa, devem considerar-se aplicáveis todas as regras subsequentes ao proferimento de despacho saneador em processo comum ordinário e até à realização da audiência de julgamento, com as especificidades dos arts 137º e 138º (cfr. art. 17º do CIRE e art. 549º”[12]).
E bem sustenta o Recorrente ter manifestado intenção de juntar os documentos em dois momentos, estando em ambos eles em tempo de o fazer, pelo que sempre deveria o Tribunal a quo ter atendido a esse requerimento como uma intenção autónoma de junção dos documentos, sob pena de se violar o princípio da prevalência da substância sobre a forma, esta meramente instrumental.
Na verdade, sempre podiam documentos ser apresentados, nos termos do nº2, do art. 423º, até 20 dias antes da data em que se realize a audiência, com condenação em multa, e o rol de testemunhas ser aditado nº2, do art. 598º, até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, sendo a parte contrária notificada para usar, querendo, de igual faculdade, no prazo de cinco dias, prazos estes (até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final) compatibilizados.
Estas duas possibilidades existem em todas as acções[13] e a “teleologia do preceituado no nº2 (do art. 598º), que visa estabilizar o rol de testemunhas, leva a considerar que o limite temporal para a sua alteração (e também para a apresentação de documentos, nos termos da norma equivalente do art. 423º, nº2) deve reportar-se à data designada para a audiência final”[14].
Ora, o apelante alterou o requerimento probatório em dois momentos distintos, ambos eles, sempre, antes dos 20 dias anteriores ao início da audiência de discussão e julgamento: (i) juntou documentos com o requerimento apresentado em 07 de fevereiro de 2020 na sequência da Oposição de D...; e (ii) juntou documentos e aditou uma testemunha após a prolação do despacho saneador (cfr. fls 140 a 175).
Entendeu o Tribunal a quo que, no incidente de qualificação da insolvência, sobre os requeridos recai o ónus de apresentar o requerimento probatório com a oposição, com preclusão da possibilidade de o apresentar posteriormente.
Porém, como afirma o apelado, questão diversa é a de a tal requerimento probatório poder ser aditada testemunha, em observância do princípio da igualdade das partes previsto no artigo 4.º, aplicável por força do artigo 17.º do CIRE, e em satisfação do direito constitucionalmente protegido a um processo justo e equitativo (cfr. artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa), não tendo a exclusão da aplicação do nº2, do artigo 598.º sustentação na tramitação legal prevista para o incidente de qualificação da insolvência, designadamente nos artigos 188.º, n.º 8, 134.º e 25.º, n.º 2, do CIRE, convocados para a decisão. A redação do n.º 2 do artigo 25.º do CIRE, com o verbo “dever” é a mesma que se encontra na 1ª parte, do n.º 6, do artigo 552.º, para o processo declarativo comum, ónus que se impõe, tendo em vista forçar a juntar ou requerer, desde logo, todos os meios de prova, designadamente por razões de celeridade processual, mas que não significa que a parte do incidente aqui em causa, que se quer célere, não possa juntar documentos e aditar testemunha, dentro dos condicionalismos legais previstos no artigo 423.º e 598º e com as consequências aí consagradas.
Bem conclui o apelante que no incidente aqui em causa, com regulamentação específica, é admissível o aditamento de testemunha, ao abrigo do nº2, do artigo 598.º e o disposto no n.º 6 do artigo 136.º do CIRE não é motivo suficiente para se considerar afastada a aplicação daquele preceito aos processos aos quais esta disposição seja aplicável, como é o caso do incidente de qualificação da insolvência, pois que não se pode concluir, da circunstância de o n.º 6 do artigo 136.º do CIRE remeter expressamente para o artigo 595.º e 596.º, que o legislador pretendeu excluir a aplicação dos números seguintes, designadamente o referido preceito, sendo, por força do disposto no artigo 17.º do CIRE, aplicáveis todas as normas do Código de Processo Civil, nomeadamente do processo declarativo comum, que se não mostrem incompatíveis com as normas do CIRE, inclusive o disposto no nº2, do artigo 598.º.
Os motivos, excecionais, que justificam a possibilidade de alteração do requerimento probatório no processo declarativo comum verificam-se, na mesma medida, nos autos, em que foi proferido despacho saneador, com indicação do objeto do litígio e enunciação dos temas de prova (22), pelo que negar a possibilidade de alteração do requerimento probatório é suscetível de atentar contra o princípio da igualdade das partes e a garantia de um processo equitativo e justo.
Destarte, estando os prazos estatuídos nos referidos nº2, do art. 423º e do art. 598º compatibilizados, na falta de previsão (omissão) na regulamentação específica do incidente e na ausência de razões que, válida e justificadamente, afastem a aplicação do referido diploma em tal matéria, é aquele, ante o requerido, bem como todo o regime do processo declarativo comum, que regula a fase posterior ao despacho saneador e até à audiência de julgamento, aplicável, por extensão do nº1, do art. 549º, do CPC, com as especificidades dos arts 137º e 138º (cfr. art. 17º do CIRE).
Assim, admissível é a apresentação de documentos e o aditamento de testemunha ao rol, procedendo, por conseguinte, as conclusões da apelação e devendo as decisões recorridas ser revogadas como solicitado.
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogando as decisões recorridas, admitem as respostas apresentadas, na parte pretendida pelo apelante, relativamente a pronúncia sobre documentos, admitem a apresentação dos documentos, indo, contudo o apresentante condenado na multa de 2 (1+1) Ucs, pelas requeridas junções, e admitem o aditamento ao rol de testemunhas da testemunha oferecida, determinando a notificação da parte contrária nos termos da parte final do nº2, do art. 598º, do CPC, aplicável ex vi nº1, do art. 17º, do CIRE.
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Sem custas.

Porto, 22 de fevereiro de 2021
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
António Eleutério
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[1] Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, 2017, 9ª Edição, Almedina, pág. 228
[2] Ibidem, pág.207
[3] Freitas, Lebre de (1992). “Inconstitucionalidades do Código de Processo Civil”, em Revista da Ordem dos Advogados, 1992, I, pp. 35 a 38.
[4] Freitas, José Lebre de; Redinha, João; Pinto, Rui (1999). Código de Processo Civil (anotado), vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, pág 8.
[5] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2ª Edição, Almedina, pág. 524
[6] Ibidem, pág. 508
[7] Ibidem, pág. 524
[8] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, vol. I, 3ª ed., Coimbra Editora, p. 581, onde se esclarece que havendo regulamentação específica ocorre não cabimento na previsão dos artigos 293º a 295º (v. art. 292º), à especifica regulamentação se recorrendo, e, subsidiariamente, às disposições reguladoras do processo comum de declaração, por extensão da norma do art. 549º-1, referindo os mencionados autores, in Código de Processo Civil anotado, 2º vol, 3ª Edição, Almedina, pág 475 “Embora não constituam processos especiais (…) os incidentes (…) também levam à aplicação das regras do processo comum nos casos omissos, na medida em que a analogia das situações o impuser”.
[9] Cfr. ainda António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Idem, pág. 359, onde se refere “as hipóteses não reguladas diretamente em cada concreto incidente e não contidas na previsão dos arts. 293º a 295º deverão ser resolvidas pelas disposições gerais e comuns e, subsidiariamente, pelas disposições que regulam o processo declarativo comum, por extensão da norma do art. 549º, nº1 (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anot., vol.I, 4ª ed., p. 597).
[10] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Idem, pág. 521
[11] V. Maria José Esteves e Sandra Alves Amorim, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Vida Económica, pág. 86
[12] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª Edição, Quid Juris, pág. 540.
[13] Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Idem, pág. 729
[14] Ibidem, pág 730