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DOCUMENTO
MULTA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
RELAÇÕES FAMILIARES
Sumário
1 - Princípios do processo penal como o da legalidade e da oficialidade implicam não poder ser aplicada uma multa pela apresentação tardia de documentos, se tal multa não estiver prevista na lei penal e processual penal, impondo-se ao julgador ordenar todos os atos necessários à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (cf. artigos 323.º, alíneas a) e b) e artigo 327.º, n.º 2, 340.º, n.ºs 1 e 2 do CPP). De acordo com o referido, a junção pela arguida de documentos por si entendidos como essenciais para a descoberta da verdade, em qualquer momento do processo, não constitui um ato anómalo ao desenrolar da investigação, que sempre procura a obtenção da verdade material.
2 - Sendo a arguida conhecedora da idade, debilidade e dependência económica dos ofendidos, tratando-os apesar disso com ofensa da sua dignidade, na forma como agiu e não obstante todos os outros fatores pretendidos demonstrar (alimentação, educação, saúde, vestuário, habitação), a sua atuação ultrapassou, claramente, os limites de autoridade conferidos no âmbito das relações familiares.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I. RELATÓRIO 1. Das decisões final e interlocutória 1.1. No Processo Comum Singular n.º 532/16.9GBTMR, do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Local Criminal de Tomar, Juiz 2, submetida a julgamento foi a arguida (...), :
- Condenada pela prática, em autoria material e na forma consumada, de quatro crimes de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2 do CP, na pena de dois anos de prisão, para cada um dos crimes.
- Condenada na pena única de quatro anos de prisão após a realização do cúmulo jurídico das penas parcelares, cuja execução foi suspensa pelo período de quatro anos;
- Condenada no pagamento da quantia de três mil euros, a título de danos não patrimoniais, cujo pedido cível havia sido deduzido por (...);
- Absolvida do restante pedido cível peticionado.
1.2. No decurso do julgamento por despacho interlocutório, datado de 26-3-2019, o Tribunal a quo indeferiu a junção de fotografias apresentadas pela arguida, condenando-a em multa.
2. Dos recursos do despacho interlocutório e da decisão final 2.1. Das conclusões da arguida
Inconformada com as decisões a arguida interpôs recurso extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
2.1.1. Quanto ao despacho interlocutório (transcrição) “A.- A recorrente interpôs recurso na ata, do douto despacho proferido na sessão da audiência de discussão e julgamento de 26 de março de 2019, que indeferiu a junção aos autos de 5 fotografias e condenou a arguida em 2 UC’s por junção extemporânea de elementos de prova. B.- A recorrente não se conforma com tal despacho, porquanto tal junção foi requerida no decurso das declarações da assistente, nas quais referiu que em casa da arguida era proibida de brincar e conviver com a restante família desta, assim como nunca passeava com a família. C.- Porque a defesa tinha em seu poder várias fotografias tiradas à assistente e aos netos da arguida em diferentes épocas, e em situações de lazer, convivo e brincadeiras, perante tais declarações e com vista à descoberta da verdade material, requereu a junção de 5 dessas fotografias, que contrariam frontalmente as mencionadas declarações da assistente; D.- Pretendendo com a junção de tais fotografias que o Tribunal “a quo” apurasse a verdade material, com os devidos esclarecimentos a prestar pela assistente sobre tais imagens, em que se vê a mesma a conviver com todos os elementos da família da arguida, em passeio e a brincar com os netos da arguida. Por isso, a defesa requereu a sua junção ao abrigo do disposto no artigo 340º, nº 1, o Cód. Proc. Penal, por se tratar de prova indispensável à descoberta da verdade e boa decisão, em especial na sequência das declarações da assistente que estavam a decorrer no momento em que foi requerida a junção daqueles documentos e que eram no sentido de que não brincava, nem convivia com os netos da arguida. E.- Tanto mais que a recorrente está a ser julgada pelo crime de violência doméstica na pessoa da assistente, pelo que a defesa pretende infirmar aquelas imputações feitas à arguida pela assistente, que a descreve nas suas declarações que uma pessoa que nunca a deixava conviver com a família, designadamente, brincar ou conviver com os netos da recorrente!. F.- Prova documental que urgia o Tribunal apreciar, especialmente porque as declarações da assistente, pelas vicissitudes constantes dos autos, só foram produzidas após a produção da prova testemunhal indicada pela defesa, pelo que tais declarações (e para evitar mais delongas processuais) só podiam ser infirmadas por via daqueles documentos. G.- Deve, assim, ser revogado o douto despacho proferido em 26 de março de 2019, que indeferiu a junção de tal prova documental por a mesma ser imprescindível para a descoberta da verdade, porquanto com aquela decisão, violou o Tribunal “a quo” o disposto no artigo 340º, nº 1 do C. Processo Penal, que consagra os princípios da investigação e da descoberta da verdade material. H.- Deve, ainda, ser revogado aquele douto despacho na parte condenou a arguida no pagamento de 2 UC’s a título de custas pela alegada junção intempestiva de documentos, porquanto tal decisão incorre em erro na interpretação e aplicação das normas constantes dos artigos 165º, 340º e 515º do Código Processo Penal bem como dos artigos 7º, 8º, 27º n.º 1 do RCP. I.- O artigo 165º do Código Proc. Penal respeitante à junção de documentos, não faz nenhuma referência à possibilidade de penalização pela apresentação tardia e não justificada do documento, pelo que, nessa medida, é inaplicável o consagrado no artigo 27.º, n.º 1 do RCP, cuja aplicação está dependente da previsibilidade da condenação em multa pela prática de determinado ato. J.- Além disso, a tributação do processo em matéria penal segue regras distintas das estabelecidas para os demais processos (não obstante a sua convergência num mesmo diploma, ou seja, no Regulamento das Custas Processuais), pelo que no caso de junção de documentos, não há lugar à aplicação subsidiária do artigo 423º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil - neste sentido ver Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal – II, p. 160, nota 1 e Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado e Comentado, 16ª ed., nota ao artigo 165º. L.- Na situação em apreciação, trata-se de uma junção de documentos no decurso da audiência de julgamento, e esta norma tem de ser vista em íntima articulação com os princípios gerais reguladores e estruturantes da produção de prova em audiência, designadamente, o princípio da verdade material consagrado pelo artigo 340º, do CPP. M.- Este artigo 340.º do Código Processo Penal, que faz referência na admissão posterior de outros documentos não prevê a condenação em multa no caso de formulação intempestiva de requerimento de prova. Por sua vez, o artigo 27.º do RCP estipula os valores e regula critérios para fixação da multa nas hipóteses em que a lei processual prevê a condenação em multa ou penalidade de algumas das partes ou outros intervenientes. Mas não existe na lei processual penal norma que comine com multa a apresentação tardia de documentos, à semelhança do que sucede no âmbito da lei processual civil, em que se prevê, no artigo 423.º, n.º 2, do Código Processo Civil, a admissão de documentos posterior ao momento próprio, com a expressa menção de que a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado. N. - Por outro lado, o despacho ora recorrido viola o princípio de igualdade de armas, porquanto o Ministério Público, em situação idêntica, está isento do pagamento da multa – artigo 522.º, n.º 1, do CPP. O.- Mas ainda que assim não se entenda — o que não se concede mas apenas se concebe por mero dever de patrocínio —, sempre se dirá que, o valor da multa aplicada é excessiva atenta a simplicidade da questão levantada e a da decisão proferida, designadamente, a não admissão de tal prova documental. Tanto mais que não foi exigido um grande trabalho de desenvolvimento e criação intelectual à Mª Juiz a quo na decisão por si proferida e aqui em recurso, além de que a apreciação de tal questão não prejudicou o regular andamento da sessão. P.- Pelo que tal multa no valor de 2 UC’S é desproporcional e injusta ! E como defende Germano Marques da Silva, o regime processual civil de admissão de documentos se não mostra harmonizável com o processo penal, mormente com os princípios fundamentais da verdade material e da investigação. Q.- Por conseguinte, no presente caso a requerida junção aos autos dos documentos apresentados pela arguida tem suporte legal, o que já não acontece com a condenação em multa ora recorrida, que não tem apoio legal, impondo-se a revogação do decidido. R.- Deve o douto despacho ser revogado e substituído por outro que ordene a junção aos autos das 5 fotografias cuja junção foi requerida em sede de audiência de julgamento e deve sempre ser revogado a decisão que condenou a recorrente em 2 UC’s de multa por junção extemporânea dos elementos de prova (…).”
2.1.2. Quanto à decisão final (transcrição) “1.- Por douto Acórdão desse Venerando Tribunal da Relação de Évora, a douta sentença proferida em 31/10/2019 foi declarada nula e determinado que fosse proferida nova sentença para que fossem colmatadas as deficiências apontadas e suprida a nulidade em causa; 2.- O Tribunal de Primeira Instância proferiu nova sentença, mantendo in totum a parte decisória, e por isso a arguida continua a não se conformar com a sentença que: a) a condenou pela prática, em autoria material e na forma consumada, de quatro crimes de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, para cada um dos crimes; b) procedendo ao cúmulo jurídico destas penas parcelares, condenou a arguida na pena única de 4 (quatro) anos de prisão; d) julgou parcialmente procedente o pedido civil deduzido por (...) e condenou a arguida no pagamento da quantia de 3.000€ (três mil euros), a título de danos não patrimoniais, absolvendo-se a arguida do restante peticionado. 3.- E não se conforma porquanto da prova carreada para os autos e produzida em sede de audiência de julgamento não resultou factualidade que permita tal condenação, que constitui uma injustiça clamorosa para a arguida. Da prova produzida resulta claramente que a arguida foi uma avó sempre presente, preocupada com os ofendidos, sempre procurou proporcionar-lhes tudo o que estava ao seu alcance para que nada lhes faltasse quer a nível patrimonial, a nível emocional e moral, e tornar estas crianças e em jovens e adolescente com valores e educação e prepará-los para o futuro de forma a serem pessoas felizes, apesar das suas más primeiras infâncias. 4.- A recorrente, recorre de facto e de direito, havendo erro notório na apreciação da prova e insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos e para os efeitos das alíneas a) e c) do n.º 2 do artigo 410º do C.P.P.. 5.- O Tribunal recorrido não apreciou, nem sequer mencionou os 7 documentos juntos com a contestação da arguida, juntos aos autos em 30/01/2019, com a referencia 5637526, a saber: Documento nº 1- Cópia de sentença proferida em 22/08/2012, no processo de alteração da regulação das responsabilidades parentais nº 1250/07.4TBTMR- que correu termos pelo 2º Juízo do extinto Tribunal Judicial de Tomar, que ordenou que o neto (…) fosse confiado à guarda da avó e aqui arguida na sequência do pedido de alteração formulado em Tribunal a pedido do pai do menor; Documentos nºs 2, 3 e 5 – Relatório de Observação / Avaliação Psicológica de 4 de Março de 2012; Relatório de Desenvolvimento de 6 de Maio de 2008 e Relatório Social da Segurança Social – Unidade de Desenvolvimento Social – Núcleo de Infância e Juventude de 7 de Maio de 2008, sobre o menor (...), nos quais sobressai o alegado na contestação nos artigos 6º, 7º, 12º, 17º, 18º e 19º da contestação, bem como demonstram inequivocamente que o (...) teve um acolhimento físico e psicológico no seio familiar da arguido que lhe permitiu um bom e saudável desenvolvimento. Documentos nºs 6 e 7- Bilhetes com dedicatórias da assistente (...) demonstrativas e grande afeto e carinho desta para com a arguida, um dos quais pouco tempo antes de deixar de residir em casa da recorrente. 6.- Além desta prova documental, foi requerido e junto aos autos documentação relativa à frequência e aproveitamento escolar da assistente (...) – cfr. oficio do Agrupamento de Escolas D. Nuno Alvares Pereira junto em 18/02/2019 com a referencia citius 5691670 – do qual resulta claramente que (...) não só era uma aluna assídua e que melhorou claramente o seu desempenho escolar quando passou a residir em casa da arguida a partir de 2007. Porém, tal documento nem sequer foi mencionado na douta sentença em crise. 7.- E tal documentação é fundamental para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, porquanto tais documentos demonstram as circunstâncias e as condições físicas e psicológicas em que foram recebidos os netos e aqui ofendidos pela arguida, o que é relevante até para aferir que a primeira infância dos ofendidos foi muito difícil e para avaliar a credibilidade das declarações dos ofendidos que prestaram depoimento. Também são importantes para o Tribunal aferir que a assistente (...) fez o seu percurso escolar normal de forma assídua e a melhorar o rendimento escolar, pelo que era impossível “fazer tudo naquela casa” como quis fazer crer ao Tribunal. 8.- Por outro lado, foi indeferida a junção de documentos – fotografias - em sede de audiência na sequencia das declarações da assistente, tendo sido interposto recurso pela recorrente, que mantém interesse em que seja apreciado. Nestas fotografias tiradas à assistente e aos netos da arguida em diferentes épocas da sua estadia em casa da recorrente, em situações de lazer, convívio e brincadeiras pelo que tais documentos contrariam frontalmente as declarações da assistente, que na versão apresentada em julgamento era descriminada em relação aos outros ofendidos, bem como não saía com a família, nem brincava só trabalhava na lide doméstica. 9.- Quanto aos factos dados como provados na sentença recorrida, existe contradição entre o ponto 4 e o ponto 15 dos factos provados (relativamente à assistente) e o ponto 42, já que, tendo sido dado como provado no ponto 4 que a (...) nasceu em 17/12/1993, esta atingiu a maioridade em 2011, e o ponto 42, já que tinha 19 anos quase a fazer 20 anos, ou seja, não era menor desde 2011. 10.-Existe também contradição entre o pontos 15 e os pontos 31, 34 e 35 da matéria dada como provada relativamente à assistente (...), já que esta de forma alguma era especialmente indefesa, como foi dado como provado no ponto 31, durante a estadia da assistente em casa da arguida, aquela passava um dia com a mãe, ao fim de semana, e era o pai que a ia levar à escola diariamente e como este confirmou, frequentava habitualmente a casa da arguida, lá tomando refeições com a filha – cfr. declarações do pai da assistente na audiência de julgamento de 18-03-2019, do minuto 12:16:00 ao minuto 12:46:49, registada no Ficheiro: 20190318121600_2813055_2871732, em concreto do minuto 00.05.18 ao minuto 00.05.32. 11. -A (...), também naquele período temporal, e durante dois anos frequentou consultas de psicologia, tinha uma relação de amizade com uma professora - a testemunha (…) – que a auxiliava nos estudos e até pessoalmente, ambas disseram trocavam emails e esta professora ajudava-a nos estudos. E também resultou das declarações da arguida, da assistente e dos depoimentos das testemunhas (…) (pai da assistente), (…) (professora e amiga da assistente), (…) ( visita da casa da arguida e a quem eram confiados os ofendidos na ausência da arguida) e foi agora dado como provado (cfr. ponto 37 dos factos provados) que a (...), enquanto esteve em casa da arguida fez 2 cursos profissionais, frequentou a escola até fazer o 12º ano, através do curso profissional de cozinha e concluiu mais um curso profissional de geriatria (só nos últimos meses do curso é que já estava em casa do pai). 12.- Além disso, a tia paterna da assistente era a empregada doméstica que fazia a lida da casa e cuidava da sogra da arguida, trabalhava diariamente de 2ª feira a sexta feira das 8.00 horas às 18.00 horas. A douta sentença recorrida omite este parenteso, facto que é fundamental e que foi alegado na contestação e que foi sobejamente provado em sede de julgamento, e é importante porquanto a presença diária da tia a trabalhar em casa da arguida permitiria àquela alertar para as agressões que estivesse a ser alvo! Também a sua amiga e professora (...) encontrava-se frequentemente no café com a assistente, trocavam emails e esta professora ajudava-a nos estudos. Por tudo isto, a assistente que é uma mulher, com 25 anos atualmente, não pode ser considerada especialmente indefesa, logo na douta sentença não podia ter sido dado como provado que aquela era menor e que por essa razão se encontravam especialmente indefesa foi indicado no ponto 15. 13.- Também os outros ofendidos, não eram especialmente indefesos, pois como resulta dos factos agora dados como provados, designadamente nos pontos 22, 26 a 30 dos factos provados, todos os ofendidos foram assistidos por psicólogos, a assistente e o (...) tinha o contacto estreito com os respectivos pais. Também a (…) e o (…) foram acompanhado pela CPCJ de Tomar e por médicos pediatras e psicólogos, além dos professores que lhe prestavam especial atenção como resultou das suas declarações. Contraria a experiencia normal, que 3 crianças e uma adolescente que estivesse a ser vitimas dos factos que são imputados à arguida, nunca tenham dado qualquer sinal ou sequer comentado com os pais, com os médicos ou com os psicólogos qualquer ato de violência física ou psíquica, nem apresentem qualquer sinal ou marca de agressão! 14.- Contrariamente ao que afirma a motivação da douta sentença recorrida, dos depoimentos da assistente e dos ofendidos (...) e (...), resulta que vieram referir factos contraditórios, completamente diferentes dos indicados na acusação, inventaram novas agressões, que não constam da pronúncia porque, obviamente, jamais foram referidos na fase de inquérito, nem nunca aconteceram. Aliás, só em sede de audiência de julgamento a (...) e a (...) (estranhamente as duas, no mesma altura!) referiram uma queimadura com uma travessa por parte da arguida em relação à assistente, apesar de jamais terem falado sobre tal agressão, que segundo elas deixou marcas, porém, marcas que ninguém viu, nem o pai, nem a tia da assistente viram ao longo de anos, apesar de estarem diariamente com ela ! 15.- Existe manifesta contradição dos depoimentos dos netos da arguida (...) e (...) e a assistente relativamente à factualidade constante dos pontos 7, 10 e 11 da matéria dada como provada, como resulta nos quadros infra: Ponto 11 dos factos dados como provados 11. A arguida obrigava a ofendida (…) a realizar tarefas domésticas naquela residência, discutindo com esta quando não as fazia corretamente (...) (...) (...) 00:03:13 (...) (…): Eu tinha que fazer tudo naquela casa. (…) 00:03:26 (...): Era eu que limpava o pó todos os dias, tinha que limpar o pó todos os dias, lavar o chão todos os dias, lavar a casa de banho todos os dias... limpar a loiça, lavar a loiça... fazer as 00:22:44 (...): Sim, sim, eu a (…), a minha avó sempre tentou que a gente soubesse fazer tudo em casa, então as tarefas domésticas, tirando a comida, quando a gente era mais pequenos, a partir de certa altura eu comecei a fazer muito mais vezes a comida, porque também já era mais crescida, as tarefas domésticas eram muitas, a maior parte delas todas divididas entre mim e a (...), nós tínhamos, por exemplo, de férias, 00:14:33 PROCURADOR ADJ.: Olhe, a sua avó obrigava esta menina, a (...)... pronto, a (...) estava lá a viver, como vocês estavam também a serem cuidados, ou a (...) estava lá tipo a viver como se fosse uma empregada? 00:14:48 (...) : Digamos que a minha avó, pessoalmente, ela sempre teve aquela opinião, mentalidade, digamos, um bocado antiquada. Ela camas, ir ao lixo, tinha que ter tudo feito quando ela chegasse a casa porque senão ouvia e era logo... claro que quando eu estava na escola tinha que fazer as tarefas todas quando chegava da escola e só depois podia fazer os trabalhos de casa quando já estava tudo, quando não estava na escola tinha que fazer tudo... na escola quando estava na escola o que é que eu digo? Fins de semana, férias, e quando acabou a escola. Tinha que fazer tudo. Tinha que fazer o que eu já disse, além de eu fazer isto tudo sempre ela chegava a casa eu tinha que ter batatas, cenouras, cebolas, alhos descascados, tinha que ter água numa panela, em garrafões, tinha que ter a lenha nas cestas, às vezes até tinha que ter o fogão aceso, tinha que ter bancadas limpas, tudo. Além disto tinha que tomar conta da sogra dela, era eu que a lavava, era eu que lhe mudava a fralda, era eu que a virava, era eu que... era eu que... havia coisas que a gente tinha que ter feitas antes que a minha avó chegasse, tipo batatas descascadas, alhos, a cozinha lavada, tudo arrumado na sala, não estou a dizer que isso fosse uma coisa má, não é, porque, graças a isso, eu sei agora tomar conta da minha casa, mas era muita coisa para mim e para a (...). Sendo nós duas crianças, o que a gente queria era brincar. Mas... a minha avó sempre cozinhou, sempre... 00:23:36 PROCURADOR ADJ.: Ela pedia-vos isso porque ela estava a trabalhar, não era? 00:23:39 (...: Sim, a maior parte das vezes, sim, ela estava no trabalho e a gente fazia essas coisas, tal como nos últimos tempos... 00:23:57 PROCURADOR ADJ.: Então não era só a (...) que era obrigada a fazer as tarefas de casa? 00:24:00 (...): Só a (...), não. Isso não... 00:24:32 PROCURADOR ADJ.: Por isso, não era só a (...) que fazia as tarefas domésticas? 00:24:34 (...): Não. 00:24:35 PROCURADOR ADJ.: As tarefas domésticas eram feitas pela sua avó? 00:24:38 (...) : Também, sim. 00:24:39 PROCURADOR ADJ.: E por vocês as duas, a pedido dela? 00:24:40 (...): Sim. bastantes vezes lá em casa referiu que a mulher é que devia trabalhar, a mulher é que... o homem metia o pão na mesa e a mulher é que devia cuidar da casa, e a (...), pronto, sendo mulher, na minha opinião, ela passava bastante tempo a fazer limpezas em casa, arrumando a casa... 00:15:20 PROCURADOR ADJ.: E a sua irmã (...) também? 00:15:24 (...) : Sim, a minha irmã... 00:15:26 PROCURADOR ADJ.: Ou seja, a sua avó queria que elas participassem nas tarefas, era isso? 00:15:30 (...) : Sim, muito mais do que eu e o meu primo. 00:15:34 PROCURADOR ADJ.: Muito mais? 00:15:35 (...): Do que eu e o meu primo. Tal factualidade foi confirmada também pelo ofendido (...), ao minuto 00:15:24 da gravação do depoimento deste, pois, referiu que a irmã também fazia tarefas domesticas e foi reforçado pela ofendida (...) no seu depoimento do minuto 00.30.12 ao minuto 00:31:31. 16.- Ora as declarações da assistente são, flagrantemente contrariadas pela sua tia paterna a testemunha (…), cujo depoimento se encontra devidamente transcrito no corpo destas alegações, referiu que era empregada domestica e cuidava da sogra da arguida e fazia a lide domestica, cfr. este depoimento do minuto 00:01:17 ao minuto 00:01:28 e do minuto 00:01:55 ao 00:09:02. E a prova de que a arguida tinha contratada a tempo inteiro uma empregada domestica para fazer a lide domestica e cuidar da sogra, resulta dos depoimentos dos ofendidos, cujos depoimentos se encontram transcritos no corpo destas alegações, (...) do minuto 00:32:08 ao minuto 00:38:26 do seu depoimento; o (...) do minuto 00:15:52 ao minuto 00:16:04; e a assistente do minuto 00:06:04 ao minuto 00:06:48. Assim, o ponto 11 da matéria de fato devia ter sido dado como não provada, 17.- Existem também discrepâncias profundas entre os depoimentos dos ofendidos (...), a (...) e a (...), conforme se salienta no quadro infra, quanto à matéria dos pontos 7 e 10 da matéria dada como provada: (...) (...) (...) 00:12:24 (...): Ela chamava-me nomes. 00:12:29 PROCURADORA ADJ.: Mas isso era uma coisa que acontecia, enfim, com frequência, era uma constante ou aconteceu uma vez ou outra? 00:12:38 (...): Não, aconteceu várias vezes. 00:12:40 PROCURADORA ADJ.: Várias vezes e então o que é que ela chamava? 00:12:42 (...) : Puta, vaca, chula, 00:28:20 MERITÍSSIMA JUÍZA: Só uns esclarecimentos, antes de passar a palavra. Diz então que em relação à (...) era mais por palavras. O que é que ela lhe dizia? 00:28:26 (...)QUE: Ao início, era mais o que dizia a todos nós, era “és burro, não sabes fazer nada, eu mostro-te as coisas, não fazes nada de jeito...”, mas depois, com o tempo, eu comecei a ver que o palavreado com a (...) começava a mudar, que chamava “puta, vaca”, que era uma “queixinhas, manipuladora”, 00:18:49 PROCURADOR ADJ.: Já disse que nunca a viu bater? 00:18:51 (...) : Não, só... 00:18:53 PROCURADOR ADJ.: E palavras feias? Chamar nomes e isso, ouvia a chamar? 00:18:56 (...) : Sim, sim, como a nós, como a nós, era igual. 00:19:00 PROCURADOR ADJ.: Mas como a vocês era...cabra, porca , badalhoca... velhaca. 00:12:54 PROCURADORA ADJ.: E quando lhe chamava esses nomes quando a (...) fazia alguma coisa que não era do agrado dela, é isso? 00:12:59 (...): Sim. esse tipo de palavras um bocadinho mais fortes, começou mais para o fim, mais para os últimos 2 anos que ela lá esteve, acho. 00:28:51 MERITÍSSIMA JUÍZA: Isso era sistemático ou foi 2 ou 3 vezes que lhe disse? ora, volte a repetir o que é que a sua avó dizia para vocês? 00:19:03 (...) : Dizia “ah, vocês não merecem estar aqui, vocês não merecem aquilo que comem, tem que trabalhar mais, vocês... não servem para nada”, e várias vezes. 00:19:15 PROCURADOR ADJ.: “Vocês não servem para nada”, essas coisas todas. Eram essas palavras que a sua avó também dizia para a (...)? 00:19:21 (...) : Sim. 18.- Mais uma vez, resulta que a ofendida (...) e a assistente (...) (que têm um discurso estranhamente similar) são contrariadas pelo depoimentos do ofendido (...) , como se assinala no quadro acima e se ouve no depoimento deste ofendido do minuto 00:18:53 ao minuto 00:19:21, que se encontra transcrito no corpo destas alegações e que aqui se dão por reproduzidos. Nenhuma das expressões constantes da acusação foi reproduzida pelo ofendido (...) e além de negadas pela arguida, a testemunha tia da assistente (...) também negou tal tipo de comportamento por parte da arguida, (…) como se ouve no minuto 00:09:25 ao minuto 00:10:06, que também se transcreveu no corpo desta motivação e que se dá aqui por reproduzida. 19.- Devia ter sido dado como não provada a matéria constante daquele ponto 10 dos factos provados, já que tal materialidade não foi provada, antes temos o ofendido (...), a arguida e testemunha (…) a demonstrarem precisamente o contrário. 20.- Quanto ao ponto 12, além das declarações da ofendida (...), nenhuma prova foi feita quanto à estalada e do depoimento da neta da arguida resulta claramente que não houve qualquer tentativa para lhe bater com a vassoura, pois a (...) refere: 00:16:40 (...): Sim. E a minha avó começou a dizer que eu tinha faltado ao respeito e esse tipo de coisas, então, e na altura eu disse-lhe que, por causa disso, ela tinha-me mandado uma chapada, que ela fazia isso muitas vezes, que... se tinha sido por isso que ela me tinha levado lá para casa, se era porque gostava de me bater, e ela exaltou-se, tentou tirar-me a vassoura na mão, eu nessa altura impus-me um bocado, não deixei que ela tirasse a vassoura da minha mão, e ela magoou o dedo nesse dia, eu tinha um anel, e ela magoou o dedo nesse anel, e estivemos para aí umas 2 semanas sem nos falarmos. – o sublinhado é nosso. 21.- Por falta de prova credível, o Tribunal a quo devia ter dado como não provado o ponto 12 dos factos provados. 22.- Também não foi produzida qualquer prova quanto ao ponto 13 dos factos provados, já que ninguém referiu qualquer episódio da arguida para o neto (...), designadamente que no ano de 2016, no interior da residência, a arguida agarrou os cabelos do ofendido (...) e sacudiu-o. Aliás, o próprio ofendido (...) referiu que antes do ano 2017 já não se recordava, como resulta da transcrição efetuada no corpo desta motivação e que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os legais efeitos. 23.- O Tribunal recorrido não atentou que as declarações dos ofendidos são todas interessadas e parciais, sendo notória a conjugação de esforços entre a assistente e a neta da arguida, que acabaram por arrastar o neto (...), dai que este a determinada altura do seu depoimento em julgamento sobressaiu através da sua linguagem corporal - o tremor intenso e esticar-se - que mentia claramente, quando disse que a avó lhe batia, conforme resulta da transcrição acima efetuada e que aqui se dá por reproduzida para todos os legais efeitos. 24.- Devia assim o Tribunal recorrido ter dado como não provado os pontos 7 a 18 da matéria dada como provada. Os pontos 7 a 11 dos factos provados já foram anteriormente escalpelizados e já se demonstrou as contradições entre as declarações dos ofendidos (...), (...) e (...), com versões completamente dispares, incongruentes e que contrariam a logica e a experiencia comum! E todos depoimentos acima transcritos, inclusive o depoimento do pai e da tia da assistente, contrariam frontalmente as declarações daqueles ofendidos. 25.- Também os pontos 14 a 18 dos factos provados estão em contradição com os pontos 19 a 40 dos factos provados, pois, dos pontos 19 e 40 ressalta claramente que a arguida procurou proporcionar uma vida melhor aos netos e depois à assistente, mormente veja-se os pontos 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 32, 34, 35,36,37,38,39 e 40 dos factos provados. 26.- Pois, uma pessoa que tem tamanhos cuidados com a saúde física e psíquica dos ofendidos e também da assistente, que consegue que todos tenham sucesso escolar e que a assistente frequente e faça dois cursos profissionais dadas as suas dificuldades de aprendizagem, não é uma pessoa que tem como propósito provocar nos ofendidos e na assistente (...) as dores e lesões físicas, nem maltratá-los psiquicamente, nem ofende-los na sua dignidade pessoal, nem humilha-los, nem diminui-los e muito menos provocar-lhe sofrimento físico ou psicológico, 27.- Ao contrário, desde que chegaram a sua casa sempre procurou equilibra-los física e psicologicamente, pois quando chegaram a sua casa vinham TODOS completamente debilitados física e psicologicamente. O que foi amplamente corroborado pela prova testemunhal produzida em julgamento e pela prova documental junta aos autos. 28.- Também não foi feita qualquer prova que a assistente se sentiu dores, humilhação, angustia e medo, tanto mais que não foi provada qualquer agressão à assistente, como o ofendido (...) acaba por reconhecer e os documentos 6 e 7 juntos com a contestação revelam. 29.- Na douta sentença recorrida existe erro na apreciação da prova, pelos motivos atrás elencados, e, ainda, se atentarmos aos depoimentos do monitor dos escuteiros, dos professores e diretores de turma dos netos da arguida e ainda da psicóloga que acompanha o (...) . Nomeadamente, resulta do depoimento da testemunha (...), que é vizinho da casa ao lado á da arguida, desde 2001 e foi chefe de escuteiro dos netos da arguida e que, por vezes os transportava para os encontros de escuteiros, que foi ouvido na audiência 18-03-2019, das 10:04:22 às 10:23:53 e cujo depoimento foi gravado no sistema citius no ficheiro: 20190318100422_2813055_2871732, do minuto 00:00:00 ao minuto 00:19:29, e que foi transcrito no corpo desta motivação e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos; Do depoimento da testemunha (…), inquirida no dia 18-03-2019, das 10:24:53 às 10:32:53, gravada no sistema citius no ficheiro 20190318102452_2813055_2871732, do minuto 00:00:00 ao minuto 00:07:59, que passou a fazer limpeza em casa da arguida, e em 2014, numa situação desesperada de divorcio, foi acolhida pela recorrente, tendo vivido cerca de um ano e meio em casa da arguida com a filha e por isso conviveu vários meses com os ofendidos (...) e (...) e o tempo todo com o ofendido (...), que continua a viver com a avó e aqui arguida - e que foi transcrito no corpo desta motivação e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos; Do depoimento da testemunha professora e diretora de turma durante 3 anos da ofendida (...), (…), ouvida na audiência de 18-03-2019, das 10:33:47 às 10:45:30, gravado no sistema citius no Ficheiro: 20190318103347_2813055_2871732, do minuto 00:00:00 ao minuto 00:11:42 - e que foi transcrito no corpo desta motivação e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos; Da testemunha (…), que foi professora e directora de turma do ofendido (...) durante 3 anos, ouvida na audiência 18-03-2019, das 10:45:31 às 10:57:02, cujo depoimento foi registado no sistema citius no ficheiro: 201903181 04531_2813055_2871732, do minuto 00:00:00 ao minuto 00:11:29 - e que foi transcrito no corpo desta motivação e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos; Também do depoimento do professor e diretor de turma do ofendido (...), durante 2 anos, (...), ouvido na audiência 18-03-2019, das 10:57:03 ás 11:06:48, e cujo depoimento ficou documentado no ficheiro: 20190318105703_2813055_2871732, do minuto 00:00:00 ao minuto 00:09:44 - e que foi transcrito no corpo desta motivação e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos; Também a professora de educação especial que acompanhou durante vários anos o ofendido (...), a testemunha (…), inquirida na audiência de 18-03-2019,das 11:06:49 horas às 11:23:02, gravado no sistema citius no Ficheiro: 20190318110649_2813055_2871732, do minuto 00:00:00 ao minuto 00:16:11, e que foi transcrito no corpo desta motivação e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos; O depoimento Psicóloga que tem acompanhado o (...), a testemunha (…), ouvida na audiência de 18-03-2019 das 15:19:25 ás 15:41:15, gravado no Ficheiro: 20190318151925_2813055_2871732 do sistema citius, do minuto 00:00:00 ao minuto 00:21:49, e que foi transcrito no corpo desta motivação e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos. 30.- Todos estes depoimentos de professores, diretores de turma e de ensino especial, da psicóloga e do chefe dos escuteiros, que acompanharam durante vários anos os netos da arguida e a assistente, foram unânimes em afirmar que durante aqueles anos nenhum dos ofendidos apresentava comportamentos ou sinais físicos de qualquer mau trato ou violência física ou psicológica e que a arguida era uma pessoa muito presente e preocupada com os netos. São 5 professores que lidaram vários anos com os ofendidos, professores muitos experiente e com especial atenção a situações de violência, como todos referiram, e no caso em apreço foram unanimes em afirmar que não houve o menor indício de violência física ou psicológica, em todos os anos que trabalharam com aqueles alunos. 31.- Depois a empregada doméstica e tia da assistente, que trabalhou 5 anos em casa da arguida, que nunca viu qualquer tipo de agressão física ou verbal para com a sobrinha ou para com os netos da arguida. Tendo esta testemunha referido que, tal como o pai da assistente (...), algumas vezes perguntava à sobrinha (...) se estava tudo bem e esta disse-lhe sempre que sim! Então mente agora ou mentia ao pai e à tia?! E porque razão?! E a tia da assistente desmentiu categoricamente a assistente e o pai deste, que jamais disse ao irmão para tirar a sobrinha de casa da arguida, senão ela morria. O próprio pai da assistente, que estava com a filha diariamente, e que frequentava assiduamente a casa da arguida, declarou que nunca notou qualquer atitude ou comportamento da arguida ou da filha que indiciasse sequer qualquer violência ou mau trato, antes disse que eram como uma família. 32.- A douta sentença recorrida padece dos vícios indicados no nº 2 do artigo 410º do Cód. Proc. Penal, designadamente, erro na apreciação da prova, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, e também … 33.- Porque não se pronunciou sobre toda a prova documental junta aos autos pela arguida e requerida pela defesa, bem como a prova produzida testemunhal dos professores de todos os ofendidos, que mantiveram contato com eles vários anos lectivos, da tia da assistente e da (…) que faziam limpeza em casa da arguida ( primeiro aquela e depois esta), da madrinha do (...) que frequenta assiduamente a casa da arguida há mais de 20 anos. 34.- Há, ainda, factos que deviam ter sido dado como provados, por todo o acima referido e como ressalta da prova por declarações e testemunhal produzida em julgamento, como a seguir se indica, a saber: - (A arguida) sempre procurou proporcionar-lhes o melhor e maior bem-estar quer a nível material, quer a nível emocional, bem como lhes dedicou todo o amor e carinho. - 3º da contestação – cfr. depoimento da testemunha (…) no minuto 00.04.53; do minuto 00.20.27 ao minuto 00.23.33; depoimento da testemunha (...) do minuto 00.04.30 ao minuto 00.06.54; depoimento da professora da assistente (…) do minuto 00.02.59 ao minuto 00.06.01 -E ao longo de 11 anos, a arguida sempre tratou os netos com todo o amor e carinho e dedicou-se aos ofendidos de corpo e alma, com grande sacrifício da sua vida pessoal e financeira, 8º da contestação – como resulta do depoimento da testemunha (…) ao minuto 00.22.36; depoimento da testemunha (...) do minuto 00.04.30 ao minuto 00.06.54; dos depoimentos dos professores (…) do minuto 00.02.32 ao minuto 00.07.02; depoimento da tia da assistente, a testemunha (…) do minuto 00.06.10 a 00.06.47. - o (...) foi confiado à guarda da arguida em 2006, porém, só foi proferida decisão em 17 de Outubro de 2012, tendo o processo corrido termos em Tribunal desde 26/10/2007 até Outubro de 2012 – doc. nº 1. - 17º da contestação – resultou demonstrado do documento nº 1 junto com a contestação. - Foram elaborados relatórios e avaliações psicológicas dos menores (docs. nºs 3 a 5).- 19º da contestação – esta factualidade ficou provado através dos documentos nº 3 a 5 juntos com a contestação e do depoimento da testemunha que é a psicóloga do (...), (…), do minuto 00.05.18 a 00.10.36. -Por sua vez, o pai da (...) estava com ela diariamente, designadamente, ia busca-la a casa da arguida para a levar á escola e também muitas vezes ia busca-la à escola e entregava-a em casa da arguida, - 22º da contestação – resulta do depoimento da testemunha (…) do minuto 00.06.10 a 00.06.47; e do depoimento da assistente (...), bem como do depoimento do pai desta, a testemunha (…) do minuto 00.05.18 a 00.05.42. -E grande parte dos dias, jantava casa da arguida com a filha e com o restante agregado familiar da (…) – 23º da contestação – cfr. depoimento do (…) do minuto 00.05.18 a 00.05.42 e da testemunha (…) do minuto 00.14.59 ao minuto 00.15.19. Os netos e a (...) apenas faziam pequenas tarefas como: fazer a sua cama e, por vezes, pôr ou levantar a mesa, pôr ou tirar a loiça da máquina. – 27º da contestação Pelo que entendia, como continua a entender que aquelas pequenas tarefas que pedia para os netos e a (...) realizarem também fazem parte da educação e eram uma pequena ajuda para arguida. – 29º da contestação Todos estes fatos resultaram provados através dos depoimentos da empregada e tia da assistente (…) do minuto 00.08.01 a 00.09.02 e 0018.19 a 00.18.55 ao minuto; da testemunha (…) do minuto 00.12.21 ao minuto 00.12.36 e do minuto 00.15.48 ao minuto 00.17.25; das próprias declarações da ofendida (...), transcritos no corpo desta motivação e que se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos. 35.- Se o Tribunal recorrido tivesse atentado em toda a prova produzida e não apenas aos depoimentos interessados e parciais dos ofendidos, teria absolvido a arguida dos crimes que lhe são assacados, pois, como ressalta claramente de toda a prova, a arguida tudo fez pelo bem estar de todos os ofendidos. O Tribunal recorrido descurou tudo isto e até a matéria que deu como provada e que constava da contestação e do relatório social. 36.- Nomeadamente, a forma como é reconhecida socialmente e nem foram atendidas as qualidades da arguida, que infelizmente rareiam na nossa sociedade actual, mormente ser uma pessoa solidária, caridosa, bondosa não só para com os ofendidos mas também para com outras pessoas, designadamente, com o pai da assistente (...) e até com a testemunha (…). 37.- Ao contrário do que refere a douta sentença recorrida As restantes testemunhas – (…), vizinhos e amigas da arguida, professores dos ofendidos, psicóloga do ofendido (...) e o próprio pai da assistente – que vieram dizer que nada viram e/ou que de nada suspeitaram, em nada abalaram a versão dos factos supra enunciada, na ausência de qualquer outra prova física que demonstre a existência de qualquer agressão, obviamente que o Tribunal devia ter atendido à experiencia e conhecimento destes profissionais que conviveram vários anos ( não foram dias, nem meses) com os ofendidos, e nunca houve qualquer queixa, sinal, marca ou comportamento de maus tratos, de agressão física ou psicologica nestes jovens! 38.- Não é normal, nem credível que agressões como as descritas pela assistente, pela (...) e pelo (...) – agressões com um pau pelo corpo todo, com a fivela de um cinto, partir um pau de vassoura, o arrastamento pelos cabelos, uma travessa quente – não tenha deixado uma única marca ou sinal de tão violentas agressões e de tal forma que nem o pai da (...), nem a tia da (...) que conviviam diariamente com os ofendidos, verificassem ou sequer se apercebessem do que quer que fosse ou marca no corpo! Nem a madrinha, nem os professores, em especial a diretora da (...) e a professora do ensino especial do (...), que lidavam diariamente e com grande proximidade com eles por motivos de saúde e de dificuldades de aprendizagem, desde o jardim de infância até ao 5º ano, não se tivessem apercebido de qualquer marca ou sinal de violência fisica! 39- Não é aceitável que o Tribunal recorrido não tenha atentado neste aspecto, pois, ficou sobejamente demonstrado que os menores iam para a escola, tinham atividades extracurrilares onde mostravam várias zonas do corpo, e a casa da arguida era frequentada por familiares e pessoas da sua confiança, com quem falavam de outros assuntos íntimos e sobre as agressões não falavam! Aliás, a assistente (...), que mesmo que não quisesse falar do assunto, pelo menos, podia dizer à mãe e ao pai que não queria permanecer em casa da arguida! Mas não! Da prova produzida, resulta até ao contrário, o pai da (...), reconheceu que mesmo depois de ter a casa nova feita, a filha não quis ir e até lhe disse que só lá iria aos fins-de-semana! 40.- Devia a Mª Juiz a quo ter recorrido às regras atendendo às regras da experiência comum e mediante presunções naturais e concluir que os depoimentos dos ofendidos foram incoerentes e até contraditórios e que contrariam a mais elementar lógica. 41.- Questionou a Mª Juiz, porque é que estes jovens a quem a arguida proporcionou tudo, de repente inventam tamanha mentira? Da prova produzida resulta que a ofendida (...) pretendia ir viver para a Suiça, ao que a avó se opôs porque entendia que aquela devia continuar os seus estudo cá em Portugal, por isso esta neta inventou esta história e a (...) foi induzida a inventar esta história, bem como a história do abuso sexual, como resulta da decisão de não pronuncia contra o marido da aqui arguida, onde é claro que é inverosímil a versão da (...). Sendo sintomático o relatório psicológico junto aos autos após a requisição do tribunal, pois, do mesmo resulta que a (...), que se diz abusada e vitima de violência doméstica, apresentou resultados nos testes psicológicos que demonstram que a assistente não apresenta sinais psicológicos de quem foi abusada ou agredida física ou psicologicamente, pois, não apresenta sinais de depressão, apresenta-se descontraída, bem disposta – cfr. relatório de exame psicológico de fls. – o que não é compatível com a personalidade de uma pessoa agredida e abusada durante tantos anos como a assistente quis fazer crer ao Tribunal. Porém, desta perícia o Tribunal não retirou as respectivas ilações, pois devia ter concluído que as declarações da assistente não foram verdadeiras e não merecem qualquer credibilidade. 42.- Aliás, e quanto a esta questão do porque é que estes jovens fizeram isto á arguida, não podemos deixar de referir o recente caso daquele jovem casal Diana Fialho e Iuri Mata, que assassinaram a mãe adotiva daquela jovem que lhe deu tudo! Pese embora o excesso da comparação, também no caso em apreço não temos dúvida que tudo não passou de uma invenção da (...) que foi coadjuvada pela (...) e pelo (...). 43.- Quanto ao elemento subjetivo dos crimes imputados à arguida, o mesmo como reconhece expressamente a sentença recorrida não ficou provado. E ao contrário do que se diz, inexiste no processo qualquer elemento factual que permita o Tribunal, recorrendo à experiencia comum, concluir que a arguida pretendia com todas as condutas provocar nos ofendidos, os seus netos e a ofendida (...), que tinha ao cuidado e com quem coabitava, dores e lesões física, e maltratá-los psiquicamente, ofendendo-os na sua dignidade pessoal, humilhando-os e diminuindo-os, provocando-lhes sofrimento físico e perturbações psicológicas, que afetaram o seu equilíbrio emocional, 44.- Ao contrário da prova testemunhal e documental produzida resulta que a arguida sempre cuidou de todos os ofendidos sem excepção, levando-os ao médico, ao psicólogo, ao dentista para lhe evitar ou diminuir qualquer sofrimento físico ou psicológico, pelo que jamais o tribunal podia concluir que a recorrente quis provocar dor e sofrimento psíquico ou perturbações psicológicas. Por todo o exposto e também porque não se provou o elemento subjetivo dos crimes assacados, devia a acusação publica ter sido julgada improcedente por não provada e a arguida absolvida dos crimes que lhe eram imputados. 45.- Porque assim não decidiu violou a sentença recorrida os artigos 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2 do Código Penal. 46.- E consequentemente devia igualmente ter sido julgado improcedente por não provado o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente (...). 47.- Sem prescindir e por mera cautela de patrocínio, ainda, se diz que as penas aplicadas na sentença recorrida são exageradas e terrivelmente injustas, porquanto mesmo que não se tivesse provado a matéria acima referida, sempre ficou demonstrado que arguida teve uma infância, juventude e primeiro casamento muito difícil, pautados por dificuldades e violência, não obstante a arguida tornou-se numa boa profissional que trabalha há várias décadas no mesmo Hospital, e 48.- Numa pessoa que no relatório social é avaliada, quer na comunidade de residência quer no contexto laboral como uma pessoa responsável, empenhada, de fácil trato, educada, apaziguadora, sempre disponível para ajudar, solidária, que evidencia interiorização de valores e conceitos de acordo com os preceituados socialmente e praticante da religião católica.; O filho mais velho faleceu prematuramente com 20 anos de idade o que veio a desencadear mais tarde o acolhimento no seu agregado familiar dos dois netos, menores de idade (ofendidos (...) e (...)). No mesmo ano civil o descendente da sua filha, emigrada na Suíça, veio igualmente integrar a sua família devido a problemas de saúde mental da mãe (ofendido (...)) e ainda a filha de um trabalhador da arguida (assistente (...)). 49.- Ao não atender a estes factos e à personalidade da arguida, a sentença recorrida violou, o disposto nos artigos 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2 e os artigo 71º, nº 1 e 2 als. a) e b) e 73, nº 1 do Código Penal. 50.- E ao julgar procedente o pedido de indemnização civil violou o disposto nos artigos 483º, nº 1, 487º, nºs 1 e 2, 563º, 496º do Código Civil. 51.- Além de uma vida de sofrimento e desgosto a arguida foi agora confrontada com mais esta provação, consubstanciada numa grande mentira! Tem um registo criminal impoluto aos 55 anos, pelo que e por tudo isto a pena devia ser sempre especialmente atenuada, porque não o fez violou a douta sentença recorrida o disposto nos artigos 71º, nºs 1 e 2 e 82º, nº do Cod. Penal. (…).”.
2.2. Das contra-alegações do Ministério Público
Motivou o Ministério Público, embora em relação ao recurso interlocutório o tenha feito extemporaneamente, tendo no concernente ao recurso da decisão principal concluído nos seguintes termos (transcrição): “1- A douta sentença recorrida fez correta apreciação da prova produzida e do seu texto não resulta, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, erro notório na apreciação da prova ou insuficiência desta para a decisão – art. 410, nº 2, a) e c) do Código de Processo Penal; 2- Com efeito, na decisão recorrida inexiste contradição entre os factos provados, tal como inexiste contradição entre as declarações prestadas pela a assistente (...) e os depoimentos prestados pelos ofendidos (...) e (...), conforme acima demonstrámos na motivação do presente recurso 3- Todos os factos considerados provados encontram-se devidamente fundamentados de facto, conforme consta da motivação da douta sentença; 4- A douta sentença pronunciou-se sobre toda a prova apresentada pela defesa, inexistindo qualquer omissão de pronúncia; 5- Os factos dados como provados integram a prática pela ora recorrente dos crimes de violência doméstica, p. e p. no art. 152, nº 1, d) e nº 2 do Código Penal, pelos quais foi condenada; 6- As penas aplicadas- situadas nos limites mínimos- mostram-se adequadas e não resultou demonstrada a verificação de qualquer das circunstâncias enumeradas no art. 72, nº 2 do Código Penal ou de outras, que justificassem atenuações especiais. 7- Por todo o exposto, deve ser negado provimento ao recurso e mantida a douta sentença recorrida nos seus precisos termos. Nestes termos, e pelos fundamentos suprarreferidos, deve ser o recurso da arguida ser julgado totalmente improcedente. (…)”.
2.3. Do parecer do MP em 2.ª instância
Na Relação o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser julgada a improcedência total dos recursos interpostos pela arguida, onde refere (transcrição): 2.3.1.Quanto ao recurso do despacho interlocutório: “(…) III – Quanto ao despacho interlocutório recorrido datado de 26-3-2019 nada temos a apontar ao mesmo porque se mostra devida e suficientemente fundamentado invocando as razões do indeferimento da junção de fotografias, sem quaisquer obscuridades, erros ou contradições, não padecendo de quaisquer vícios ou violação de preceitos legais. Cremos não existir qualquer factualidade ou elemento que possa, ainda que de forma ténue, apontar para uma alteração de tal decisão. Nesta conformidade somos de parecer que o recurso interposto pela arguida deve ser julgado improcedente, confirmando-se integralmente o despacho interlocutório.”.
2.3.2.Quanto ao recurso da decisão final:
“(…) Entendemos que a recorrente mais não faz do que questionar a valoração da prova realizada pelo Tribunal a quo nos termos do disposto no art.º 127º do CPP. Como se alcança da fundamentação da sentença, o Tribunal recorrido efectuou a análise crítica da prova produzida, demonstrando a lógica que presidiu à convicção que firmou e que culminou com a condenação da recorrente. E relativamente à medida da pena única aplicada em concreto, bem como às penas parcelares que o integraram, somos do parecer que se mostram adequadas, necessárias e proporcionais, satisfazendo as necessidades de prevenção geral e especial e de ressocialização. Pelo exposto, entendemos que o recurso interposto deve ser jugado improcedente.”.
2.4. Da tramitação subsequente
Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO 1. Objeto do recurso
De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.
2. Questões a examinar
Analisadas as conclusões de recurso as questões a conhecer são: 2.1. Quanto ao recurso do despacho interlocutório 2.1.1. Saber se eram fundamentais para a descoberta da verdade os documentos apresentados pela arguida, no decurso da audiência de julgamento, devendo ser admitida a sua junção; 2.1.2. Apurar se a apresentação de documentos no decurso do julgamento é suscetível de ser sancionada com multa. 2.2. Quanto ao recurso da decisão final 2.2.1. Insuficiência para a matéria de facto (410.º, n.º 2, alínea a) do CPP); 2.2.2. Erro notório na apreciação da prova (410.º, n.º 2, al. c) do CPP); 2.2.3. Incorreta valoração da prova produzida em julgamento (artigo 127.º do CPP); 2.2.4. Omissão de pronúncia sobre a prova documental e testemunhal apresentada; 2.2.5. Erro de julgamento quanto ao direito aplicável:
a) Por incorreta dosimetria da pena aplicada com violação dos artigos 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2 e os artigo 71.º, n.ºs 1 e 2 alíneas a) e b) e 73.º, n.º 1 e 82.º do CP.
b) Por violação do disposto nos artigos 483.º, n.º 1, 487.º, n.ºs 1 e 2, 563.º, 496.º do CC.
3. Apreciação 3.1. Da decisão recorrida
Definidas as questões a tratar, importa considerar o que se mostra decidido pela instância recorrida. 3.1.1.Do despacho interlocutório “Acto imediato, pela Mmª Srª Juiz foi proferido DESPACHO no sentido de indeferimento da junção aos autos dos documentos ora apresentados pela arguida, por serem extemporâneos e irrelevantes para a decisão da causa, sendo que os momentos captados nas fotografias cuja junção se requer nada importam para a prova ou não prova dos factos em apreciação, condenando a arguida em multa correspondente a 2 UC por junção extemporânea de elementos de prova. Foram, ainda, admitidos no presente despacho a junção dos originais dos documentos 6 e 7 juntos com a contestação, uma vez que as cópias já se encontram nos autos.”.
3.1.2.Da decisão final A. Factos provados na 1.ª instância
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição): “1. A ofendida (...) , nasceu em 10/9/1999 e é neta da arguida. 2. O ofendido (...) , nasceu em 13/4/2001 e é neto da arguida. 3. O ofendido (...), nasceu em 11/5/2003 e é neto do arguido. 4. A ofendida (...), nasceu em 17/12/1993. 5. Os ofendidos (...), (...) e (...), foram residir com a ofendida, sua avó, na casa desta, sita na Rua (…), no ano de 2006. 6. A ofendida (...) foi residir com a ofendida, que a acolheu na sua casa, sita na Rua (…), no ano de 2007. 7. Durante o período em que coabitaram, era habitual a arguida desferir bofetadas nos corpos de todos ofendidos e puxar-lhes os cabelos. 8. A arguida, pelo menos por duas, em datas não apuradas, agrediu o ofendido (...) e ofendido (...) com um pau e com um cinto, com que lhes desferiu pancadas em todo o corpo. 9. A arguida dizia, em diversas ocasiões, ao ofendido (...): “és mau, devias beijar o chão onde o teu primo passa, nunca vais ser ninguém, és um burro.” 10. A arguida dizia, em diversas ocasiões, à ofendida (...) que era uma “puta, vaca, cabra, chula, ladra, bruxa.” 11. A arguida obrigava a ofendida (...) a realizar tarefas domésticas naquela residência, discutindo com esta quando não as fazia corretamente. 12. Em Agosto de 2015, no interior da residência, enquanto a ofendida (...) pintava as unhas à arguida, esta desferiu-lhe uma estalada na face e tentou bater-lhe com uma vassoura. 13. No ano de 2016, no interior da residência, a arguida agarrou os cabelos do ofendido (...) e sacudiu-o. 14. Ao atuar do modo acima descrito, a arguida agiu, em todas as condutas e situações, livre, voluntária e conscientemente, no propósito de provocar nos ofendidos, os seus netos e a ofendida (...), menores que tinha ao cuidado e com quem coabitava, as dores e lesões físicas que efetivamente lhes provocou, e maltratá-los psiquicamente, ofendendo-os na sua dignidade pessoal, humilhando-os e diminuindo-os, bem sabendo que tais comportamentos eram idóneos a provocar nos mesmos, como provocaram, tanto sofrimento físico, como perturbações psicológicas, que afetaram o seu equilíbrio emocional. 15. A arguida sabia que os ofendidos eram menores e que por essa razão se encontravam especialmente indefesos. 16. A arguida não se inibiu de atuar no interior da residência. 17. A arguida sabia que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. Do pedido cível provou-se que: 18. Por força da conduta da arguida, a assistente (...) sentiu dores, vergonha, humilhação, angústia e medo. Da contestação provou-se que: 19. A arguida cuidou da neta (...) desde os 6 anos de idade, sendo-lhe entregue com vários problemas: desnutrida, sem hábitos de higiene, entre outros. 20. O neto (...) foi entregue aos cuidados da avó, com 5 anos de idade, com os mesmos problemas de desnutrição e falta de higiene. 21. Por sua vez o (...), foi entregue com 3 anos de idade, não falava, ainda, usava fralda e vinha igualmente desnutrido. 22. Dado que quando os netos lhe foram todos entregues à sua guarda, no mesmo ano, e vinham debilitados física e psicologicamente, foram assiduamente assistidos e acompanhados em consultas de pedopsiquiatria, psicologia e pediatria, 23. A (...) terminou o 12.º ano. 24. O (...) com 16 anos frequentava o 10.º ano, com aproveitamento. 25. E o (...) com 15 anos, apesar da hiperatividade e défice de atenção, frequenta o 9.º ano de escolaridade. 26. Todos foram escuteiros, 27. O (...) e o (...) frequentaram as aulas de Judo. 28. Tendo o (...) sido sempre observado e acompanhado por pedopsiquiatra e psicólogo, bem como pelo pediatra, dado que sofre de défice de atenção e hiperatividade. 29. Por sua vez, quando a (...) fez 13 anos, foi-lhe diagnosticada diabetes, pelo que passou a ser obrigada a usar diariamente insulina e passou a ser seguida, periodicamente, na consulta da diabetes bem como passou a seu acompanhada por psicólogo. 30. O pai do (...) sempre passou férias em Portugal, uma a duas vezes por ano, e sempre ficou alojado em casa da arguida, 31. A (...), habitualmente, passava um dia com a progenitora, ao fim de semana. 32. Dado que tinha a seu cargo, os 3 netos menores e a (...), e, ainda, tinha a sua sogra a residir em sua casa, a arguida contratou a mulher a dias que tinha há vários anos, que cuidava da sogra, fazia limpeza e trabalhos domésticos, em casa da arguida. 33. Pois, na altura, em casa da arguida estavam a residir 2 crianças e 2 adolescentes e três adultos, a arguida trabalhava e continua a trabalhar e o seu horário era das 8.00 horas às 16.00 horas, 34. Quando a assistente passou a frequentar a casa da arguida (na altura da separação dos progenitores), não tinha qualquer hábito de higiene, era gozada pelos colegas na escola devido à falta de higiene, e apresentava-se psicologicamente abalada, 35. por isso, a arguida conseguiu arranjar consultas de psicologia durante cerca de 2 anos para a (...) e que aquela frequentou, 36. A arguida, levou-a ao dentista, mandou tratar-lhe os dentes que estavam todos cariados e corria o risco de perder parte da dentição definitiva e convenceu o pai da (...) a mandar pôr-lhe um aparelho nos dentes. 37. Mais, dado que a (...) apresentava algumas dificuldades de aprendizagem, a arguida sempre a incentivou a frequentar um curso profissional de cozinha, que aquela completou e depois dada a dificuldade, na altura, em arranjar trabalho incentivou-a a frequentar um curso de geriatria que aquela também fez, 38. Ora a assistente sempre foi apoiada e incentivada pela arguida nos estudos, com vista a fazer formação profissional para que arranjar emprego mais facilmente. 39. A assistente tratava a arguida por “avozinha" e escrevia dedicatórias em fotografias que oferecia à arguida como a que se junta doc. 6, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos, 40. Bem como, cerca de um mês antes de deixar de residir em casa da arguida, entregou a esta uma folha com várias quadras e expressões de carinho e amizade, como se alcança do documento n.º 7, que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os legais efeitos. Mais se provou que: 41. Os ofendidos (...) e (...) viveram na casada arguida até 2017. 42. A assistente (...) viveu na casa da arguida até 20.12.2013. 43. (…), de 56 anos de idade, casada, detentora do 9.º ano de escolaridade, trabalha como assistente operacional na área da gestão hoteleira, na (…). 44. Reside com o cônjuge, de 75 anos de idade, reformado e com um neto, de 15 anos de idade (o ofendido (...)), estudante, em casa própria, ladeada por uma parcela de terreno, com árvores frutícolas, com jardim e com aves para consumo doméstico. 45. O meio social é de caraterísticas suburbanas e rurais, calmo, mantendo um relacionamento ajustado com a comunidade envolvente e em particular com os circunvizinhos. 46. As condições materiais estão consubstanciadas no vencimento da arguida no valor de sensivelmente €600 e da reforma de invalidez do marido no valor de €800. 47. A arguida mantém um relacionamento distante com os dois filhos (fruto do seu 1.º casamento), adultos e residentes na Suíça. 48. A arguida é avaliada, quer na comunidade de residência quer no contexto laboral como uma pessoa responsável, empenhada, de fácil trato, educada, apaziguadora, sempre disponível para ajudar, solidária, que evidencia interiorização de valores e conceitos de acordo com os preceituados socialmente e praticante da religião católica. 49. Demonstra capacidades para afirmar e identificar consequências dos seus comportamentos. 50. (…) é a filha mais nova de um conjunto de 4 elementos fruto do casamento dos progenitores, já falecidos, cujo desenvolvimento integrado ocorreu num ambiente familiar convencional e economicamente organizados, mas com alguns indicadores de conflituosidade e desarmonia devido aos hábitos etílicos da figura paterna. 51. Os avós e tios paternos que residiam na contiguidade apresentam-se ao nível das suas memórias como um suporte afetivo e de proteção significantes. 52. Iniciou percurso escolar em idade regular tendo reprovado no 4.º ano de escolaridade. 53. Após concluir o 1.º ciclo do ensino básico foi trabalhar para o campo, tendo terminado os estudos (3.º ciclo) já em idade adulta. Com 16 anos de idade foi admitida como assistente operacional numa clínica de saúde e após interregno da atividade profissional por motivos de casamento que ocorreu em idade precoce retomou ocupação laboral com cerca de 26 anos de idade no (…) onde ainda permanece. 54. O primeiro casamento durou cerca de 9 anos (dos 16 aos 25 anos de idade) e terminou devido aos maus tratos infligidos pelo cônjuge, tendo deixado o seio conjugal com os três filhos e regressado a casa da progenitora. Com 26 anos de idade iniciou relacionamento amoroso com o atual marido que perdura há sensivelmente 30 anos. 55. O filho mais velho faleceu prematuramente com 20 anos de idade o que veio a desencadear mais tarde o acolhimento no seu agregado familiar dos dois netos, menores de idade (ofendidos (...) e (...)). 56. No mesmo ano civil o descendente da sua filha, emigrada na Suíça, veio igualmente integrar a sua família devido a problemas de saúde mental da mãe (ofendido (...)) e ainda a filha de um trabalhador da arguida (assistente (...)). 57. A sogra também fez parte do agregado no mesmo espaço temporal devido à idade avançada bem como o filho mais novo. 58. A arguida não tem antecedentes criminais.
B. Factos não provados na 1.ª instância
O Tribunal a quo considerou não se terem provado quaisquer outros factos com interesse para a presente causa nomeadamente que (transcrição): “3.2 Factos não provados Nada mais se provou com interesse para a boa decisão da causa, nomeadamente que: I. O descrito em 7 ocorria com periodicidade semanal. II. O descrito em 7 ocorria habitualmente. III. O descrito em 11 refere-se a todas as tarefas domésticas. IV. No ano de 2012, no interior da residência, a arguida, munida de um utensilio de cozinha, desferiu diversas pancadas no ombro direito da ofendida (...). Da contestação, não se provou que: V. O pai da (...) estava com ela diariamente, designadamente, ia buscá-la a casa da arguida para a levar à escola e também muitas vezes ia buscá-la à escola e entregava-a em casa da arguida. VI. A arguida contratou a mulher a dias a tempo inteiro, que fazia todas os trabalhos domésticos, em casa da arguida. VII. É falso que a assistente realizasse as tarefas domésticas na residência da arguida. VIII. Os netos e a (...) apenas faziam pequenas tarefas como: fazer a sua cama e, por vezes, pôr ou levantar a mesa, pôr ou tirar a loiça da máquina. “.
C. Factos conclusivos “Não se consideraram provados nem não provados os seguintes factos indicados na contestação, por se entender que se tratam de factos conclusivos: - A arguida sempre procurou proporcionar-lhes o melhor e maior bem-estar quer a nível material, quer a nível emocional, bem como lhes dedicou todo o amor e carinho. - E ao longo de 11 anos, a arguida sempre tratou os netos com todo o amor e carinho e dedicou-se aos ofendidos de corpo e alma, com grande sacrifício da sua vida pessoal e financeira. - Sacrificou-se a vários níveis para que os netos tivessem uma infância o mais normal possível, o que até ao ano 2017 conseguiu, pois, todos tiveram sucesso escolar, - Pelo que entendia, como continua a entender, que aquelas pequenas tarefas que pedia para os netos e a (...) realizarem também fazem parte da educação e eram uma pequena ajuda para arguida. - Sempre existiu um grande carinho entre a arguida e a assistente.”.
D. Da fundamentação da convicção pelo Tribunal recorrido
O Tribunal motivou a factualidade provada e não provada pela seguinte forma (transcrição): “O Tribunal formou a sua convicção quanto à matéria de facto considerada provada e não provada com base na ponderação e apreciação crítica da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento. Particularizando, os factos descritos de 1 a 6 basearam-se nos assentos de casamento de fls. fls. 23, 27, 29 e nas declarações da arguida, da assistente, e dos depoimentos das testemunhas (...) e (...) que descreveram, também, a composição do agregado familiar, indicando a respectiva morada, assim como as datas de abandono da residência. Quantos aos restantes factos, a arguida negou a prática dos mesmos, atribuindo o presente processo a manipulação, por parte da ofendida (...), com vista a ir viver para a Suíça. Assim, a factualidade descrita de 7 a 13, bem como a respeitante ao pedido de indemnização civil (18) alicerçou-se, nos depoimentos das testemunhas (...) e (...) (uma vez que o ofendido (...) se recusou a prestar depoimento), que prestaram um depoimento sereno e calmo, sem nenhum objectivo de prejudicar a avó, pessoa que demonstraram estimar. Estes depoimentos mostraram-se isentos e credíveis, até porque nem foram estas testemunhas a denunciar os factos nem deduziram pedido de indemnização, pelo que nenhum interesse têm na causa. Acresce que tais depoimentos são coincidentes com as declarações da assistente (...), pessoa com quem não mantém contacto desde que esta abandonou a residência - em 2013 pelo que não é possível acolher a versão de "manipulação" avançada pela arguida. Com efeito, a assistente e as referidas testemunhas relataram os episódios descritos nos factos provados, concretizando os mesmos de forma segura e pormenorizada, descrevendo a relação entre todos, elencando as palavras proferidas e gestos que a arguida efectuava, bem como o comportamento que lhes era exigido e, ainda, as consequências que de todos estes comportamentos decorreram para a saúde e estabilidade emocional dos ofendidos. Considerando a natureza dos factos em análise e a respectiva reiteração, é compreensível que os ofendidos não tenham conseguido localizar no tempo nem quantificar o número de ocasiões em que os factos aconteceram. Assim, e não obstante as declarações da assistente terem sido prestadas de forma mais precipitada e emocionada que a das restantes testemunhas — o que se coaduna com a sua própria maneira de ser — tal não obsta a que se confira a referida credibilidade, pelos motivos supra elencados. Aliás, tendo sido pedida a elaboração de exame psicológico e perícia psiquiátrica à assistente, ambos os relatórios concluíram que a assistente não revela qualquer limitação à sua capacidade de reproduzir os acontecimentos. As restantes testemunhas – (…), vizinhos e amigas da arguida, professores dos ofendidos, psicóloga do ofendido (...) e o próprio pai da assistente — que vieram dizer que nada viram e/ou que de nada suspeitaram, em nada abalaram a versão dos factos supra enunciada. De facto, é usual e natural que terceiros nada saibam sobre factos ilícitos acontecidos na intimidade do lar, desde logo porque não o frequentam 24h por dia (não podendo atestar o que não viram) e porque os próprios intervenientes não se sentem à vontade para relatá-los a terceiros, seja para proteger a sua privacidade seja por medo de eventuais consequências que tal publicidade pudesse trazer. Porém, estes depoimentos, em conjugação com os documentos juntos com a contestação e com as próprias declarações da arguida, da assistente e com os depoimentos dos ofendidos (...) e (...) fundaram a resposta “provado” aos factos descritos de 19 a 40. Os factos provados em 14 a 17, na parte que consubstanciam o elemento subjectivo, resultam dos factos objectivos dados como provados, uma vez que são os mesmos insusceptíveis de prova directa, os quais, atendendo às regras da experiência comum e mediante presunções naturais, permitem de forma segura inferir tais conclusões. Quanto às condições económicas e sociais da arguida, relevou-se o teor do relatório junto aos autos, elaborado pela DGRSP. No que diz respeito aos antecedentes criminais, teve-se em atenção o certificado de registo criminal junto aos autos. A factualidade dada como não provada resultou da ausência de prova bastante, que permitisse fundar tal conclusão.”.
E. Da fundamentação de direito pelo Tribunal recorrido
O Tribunal a quo fundamentou de direito pela seguinte forma (transcrição): “ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL A arguida foi acusada da prática de quatro crimes de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d), n.º 2 do Código Penal. Vejamos a caracterização jurídica deste tipo legal: Dispõe o artigo 152.º, n.º 1, alínea d) do Código Penal que comete o crime de violência doméstica quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais a pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite. Com a revisão operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro ao Código Penal, que consagrou o crime de violência doméstica (artigo 152.º), autonomizando-o face ao crime de maus tratos (artigo 152.º-A), foi expressamente consagrada a desnecessidade de reiteração das condutas como elemento objectivo do tipo, dissipando as dúvidas suscitadas artigo 152.º, n.º 2 do Código Penal, na redacção conferida pela Lei n.º 7/2000, de 27 de Maio e que previa a incriminação de maus tratos. De facto, é o estado de agressão permanente que permite concluir pelo exercício de uma relação de domínio ou de poder, proporcionado pelo ambiente familiar ou quase-familiar, deixando a vítima sem defesa numa situação humanamente degradante (Plácido Conde Fernandes, Violência Doméstica — novo quadro penal e processua lpenal, Revista do Cej, n.º 8, p.307), que caracteriza o crime de violência doméstica. Refere-se no Comentário Conimbricense do Código Penal (Tomo I, p. 132), que a ratio do artigo 152.º do Código Penal — relativa ao crime de maus tratos, mas aplicável à actual incriminação de violência doméstica - não assenta na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana. Com efeito, para além dos maus tratos físicos, compreende situações de maus tratos psíquicos, nomeadamente humilhações, provocações, ameaças, curtas privações de liberdade de movimentos, a sujeição a trabalhos desproporcionados à idade ou à saúde (física, psíquica ou mental) do subordinado, bem como a sujeição a actividades perigosas, desumanas ou proibidas (Tomo I, p. 132). Efectivamente, pretende-se proteger o bem jurídico saúde física, psíquica e emocional, razão pela qual este tipo de ilícito se encontra inserido no capítulo III Dos crimes contra a integridade fisica, do Título I Dos crimes contra as pessoas. Como anteriormente decidido (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.10.2003, CJSTJ03-III-208), o bem jurídico protegido pela incriminação é, em geral, o da dignidade humana, e, em particular, o da saúde, que abrange o bem estar físico, psíquico e mental, podendo este bem jurídico ser lesado, no âmbito que agora importa considerar, por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade pessoal e, nessa medida, seja susceptível de pôr em causa o supra referido bem estar. O crime de violência doméstica consubstancia um crime específico, porquanto constitui um delito que só pode ser levado a cabo por determinadas categorias de pessoas (no caso, por quem tenha vínculo conjugal ou de coabitação e seja especialmente vulnerável em razão da idade e dependência económica) e configura um crime complexo, que abarca os actos parcelares que integrem crimes autónomos, os quais perdem autonomia, relevando apenas na medida da culpa. Discutida a causa, apurou-se que, nas circunstâncias explícitas na acusação, a arguida dirigiu aos ofendidos as expressões transcritas, bem como os agrediu fisicamente por diversas vezes, mantendo um clima de submissão e medo. Mais se provou que, em consequência directa e necessária desta actuação, os ofendidos sentiram designadamente dores, vergonha, humilhação, ansiedade e medo e que a arguida sabia que actuava de molde a atingir a dignidade humana e a saúde psíquica daqueles, como pretendia e conseguiu, agindo livre e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. Assim sendo, dúvidas não restam de que as anteriormente analisadas condutas praticadas pela arguida, integram quatro crimes de violência doméstica, porquanto tais comportamentos surgem conectados entre si, tendentes a alcançar um só objectivo — humilhar e amedrontar os ofendidos, atingindo-os na sua dignidade como pessoas que a arguida tinha obrigação de proteger. Com efeito, os factos provados de 19 a 40 – indicados na contestação e aditados por força do teor do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora – não obstam à qualificação da factualidade provada como crimes de violência doméstica, pois tratam de outros aspectos da vida dos ofendidos, não sendo incompatíveis com os demais já provados. Na verdade, a prova destes factos não torna inverosímil a ocorrência dos restantes, que, por si mesmos, são suficientes para integrar os tipos de crime em causa. 5. MEDIDA DA PENA Considerando o princípio da dignidade da pessoa humana, como princípio irrenunciável do sistema penal português, as finalidades da punição, como resulta do estatuído no artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, assentam na protecção de bens jurídicos e na reintegração do agente na sociedade. Resulta claro deste normativo que, para efeitos da escolha da pena relevam exclusivamente finalidades preventivas, assumindo a culpa um papel meramente delimitador da pena. Significa que, primordialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade da tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto, e que, nunca ultrapassando a medida da culpa, há-de fornecer um espaço de liberdade ou de indeterminação, uma moldura de prevenção, dentro dos quais podem (e devem) actuar as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização (Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, 2005, p.227-229). Concretizando, e tendo como limite máximo a medida da culpa (artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal), a pena é determinada dentro de uma moldura de prevenção geral de integração cujo limite superior é o ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando em considerações de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.03.2006, CJSTJ06-1-225). Importa, face ao caso concreto, atender que a pena aplicável ao crime de violência doméstica corresponde a prisão de 2 a 5 anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal. A pena concreta deve fixar-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigo 71.º, n.º 1 do Código Penal). Na determinação da medida concreta da pena, deve o Tribunal atender a todas as circunstâncias que deponham a favor ou contra o agente, abstendo-se, no entanto, de considerar aquelas que já fazem parte do tipo de crime cometido, salvo quando a sua intensidade supere aquela que foi considerada pelo legislador. Com vista a determinar o quantum das penas de prisão a aplicar, importa considerar, como dispõe o artigo 71.º do Código Penal, o dolo, que assumiu a intensidade máxima configurando a modalidade de dolo directo, uma vez que a arguida representou os factos que preenchem o tipo de crime e, mesmo assim, actuou com intenção de os realizar, sendo nessa medida particularmente intensa a sua vontade criminosa; o modo de execução, prevalecendo-se da fragilidade dos ofendidos, menores a seu cargo, que devia proteger, e da ausência de terceiros, porquanto os factos foram perpetrados no interior da residência da família; o grau de ilicitude dos factos é elevado, manifestado na frequência da actuação, no lapso temporal decorrido e na extensão do dano provocado; a gravidade das consequências da sua conduta donde ressalta a tristeza, angústia e a humilhação que provocou; as exigências de prevenção geral, uma vez que os crimes deste tipo não são, em regra, presenciados por terceiros, o que, aliado ao ascendente que o cuidador adulto tem sobre os menores, faz dos mesmos “crimes silenciosos”, e, por conseguinte, tendentes a proliferar; a inexistência de antecedentes criminais; a inserção social da arguida. Assim, de acordo com o circunstancialismo descrito, julga-se adequada para a punição de cada um dos quatro crimes de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2 do Código Penal, a pena de 2 (dois) anos de prisão. Com efeito, os factos provados de 19 a 40 – indicados na contestação e aditados por força do teor do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora – não exigem a alteração da medida da pena aplicada, uma vez que esta já havia sido fixada no seu limite mínimo. Nos termos do artigo 77.º, n.º 1 do Código Penal, quando o agente tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. Cumpre, então, efectuar o cúmulo jurídico das penas parcelares ora determinadas. De acordo com o disposto no artigo 77.º, n.º 1 do Código Penal, supra transcrito, e atendendo aos critérios enunciados no n.º 2 do citado artigo 77.º, a pena a aplicar, no caso em apreço, terá como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, sendo que, no caso concreto, este limite será de 8 (oito) anos de prisão (cinco anos, considerando a competência do Tribunal singular), tendo como limite mínimo a pena mais grave aplicada, que, no caso decidendo, é de 2 (dois) anos de prisão. Assim, considerando, em conjunto, a gravidade dos factos, nos termos supra explicitados, e a personalidade da arguida, que está bem inserida na sociedade e não tem antecedentes criminais, fixa-se em 4 (quatro) anos de prisão, a pena única a aplicar. 5.1 Da suspensão da execução da pena A pena de prisão, aplicada em concreto, de duração não superior a cinco anos pode ser suspensa na sua execução se o julgador, formulando um juízo de prognose, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (artigo 50.º, n.º 1 do Código Penal), podendo subordinar a mesma ao cumprimento de deveres ou regras de conduta (artigos 51.º e 52.º do Código Penal) ou determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova (artigo 53.º do Código Penal). No caso vertente, importa ponderar a circunstância de a arguida não ter antecedentes criminais e a sua inserção social. De facto, ao suspender a execução da pena de prisão, o tribunal deve encontrar-se disposto a correr um certo risco — digamos: fundado e calculado — sobre a manutenção do agente em liberdade (Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, 2005, p.344). Assim, entendemos que esse risco ainda encontra fundamento, tendo em atenção a consolidação e o reforço das expectativas comunitárias na validade da norma, sendo de prever que a censura do facto e a ameaça de prisão são suficientes para afastar a arguida da prática de novos crimes, pelo que decidimos suspender a execucão da pena pelo período de 4 (quatro) anos. 6. DO PEDIDO DE INDEMNIZACÃO CIVIL A assistente (...) deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida, peticionando a sua condenação no pagamento da quantia de 10.000€ (dez mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais. Prescreve o artigo 71.º do Código de Processo Penal que o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei, regulando-se tal pedido nos termos da lei civil (artigo 129.º do Código Penal) mais concretamente pelas normas respeitantes ao instituto da responsabilidade civil. Dispõe o artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil que aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. Nesta conformidade, são os seguintes os pressupostos da obrigação de indemnizar com base em facto ilícito: - facto humano dominável pela vontade; - ilicitude do facto (violação de direitos subjectivos ou de disposições legais destinadas a tutelar interesses alheios); - nexo de imputação do facto ao agente; - verificação de dano; - nexo causal entre o facto e o dano. No que se refere à conduta da arguida, a verificação dos pressupostos referidos é, em face da factualidade provada, inquestionável, porquanto a conduta desta constitui facto humano dominável pela vontade e ilícito, na medida em que atenta contra o bem jurídico dignidade da pessoa humana e emerge da violação das normas legais que incriminam a violência doméstica. Dúvidas também não subsistem na qualificação da conduta como culposa, apreciada de acordo com o critério consagrado no n.º 2, do artigo 487.º do Código Civil, uma vez que, em sede de apreciação da responsabilidade criminal, e pelos motivos aí expendidos, concluímos que a arguida agiu com dolo directo e com plena capacidade de entender e de querer praticar os factos que efectivamente praticou. No caso vertente, considerou-se provada a ocorrência de danos não patrimoniais emergentes da conduta da arguida resultantes do sentimento de dor, vergonha, humilhação, angústia e medo, infligidos à assistente. O nexo causal entre o facto e o dano, que deve ser atendido no âmbito da responsabilidade civil por facto ilícito, existe sempre que a conduta se considere idónea para a verificação do dano, não o tendo provocado por força de circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas (teoria da causalidade adequada negativa) - 563.º do Código Civil. No caso dos autos, afigura-se manifesto que foi a conduta da arguida que causou directa e necessariamente os danos que se vieram a verificar na pessoa da demandante. Pelos motivos expostos, encontrando-se preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil relativamente ao pedido de indemnização formulado nestes autos pela demandante, constituindo-se a arguida na obrigação de indemnizar os danos emergentes da sua conduta. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, devam merecer a tutela do direito (artigo 496.º, n.º 1 do Código Civil), que será fixada de acordo com critérios de equidade (artigo 496.º, n.º 3 do Código Civil). No caso vertente, resultou provado que a assistente sentiu dor, vergonha, humilhação, angústia e medo, durante lapso de tempo alargado. Esta circunstância tem relevância jurídica e, pela sua gravidade, de harmonia com critérios de equidade, decidimos valorá-la no montante de 3.000€ (três mil euros), absolvendo-se a arguida do demais peticionado.”.
3.2. Da apreciação dos recursos interpostos pela arguida
A arguida interpôs recurso do despacho interlocutório proferido no decurso do julgamento e, ainda, da decisão final que a condenou pela prática de quatro crimes de violência doméstica, na pena única de quatro anos de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de quatro anos, e ainda no pagamento da quantia de três mil euros, a título de danos não patrimoniais, à assistente (...).
Analisemos, então, as questões suscitadas nos dois recursos interpostos pela arguida e já apontadas em II. ponto 2. deste Acórdão.
3.2.1.Do recurso interlocutório
A arguida insurge-se, num primeiro momento, contra o despacho interlocutório, datado de 26.3.2019, que rejeitou a junção ao processo, no decurso da audiência de julgamento, de cinco fotografias e a condenou numa multa de 2 UC.
A este propósito o artigo 165.º, n.º 1 do CPP estabelece deverem os documentos referentes ao processo penal ser juntos no decurso do inquérito ou da instrução, e se tal não for possível poderem ser apresentados até ao encerramento da audiência.
A junção de documentos, segundo o Tribunal a quo, realizada para além do momento próprio (a contestação), corresponderia a um incidente e daí a razão de ser da sua penalização com multa, como acontece no processo civil.
Segundo o artigo 4.º do CPP, contudo, o recurso às normas de processo civil só é possível quando estas se harmonizam com o processo penal devendo na falta dessa harmonização ser aplicados os princípios gerais do processo penal.
No processo penal cabe ao juiz a descoberta da verdade material para a boa decisão da causa (cf. artigos 326.º, alíneas a) e b), 327.º, n.º 2 e 340.º, n.ºs 1 e 2 do CPP), por isso, pode ser ordenada oficiosamente a produção de todos os meios de prova.
No processo civil, de acordo com o artigo 411.º do CPC, o julgador, para apurar a verdade, tem de ter em conta “os factos de que lhe é lícito conhecer”, estando sujeito ao princípio do dispositivo.
Tal significa que enquanto no processo civil se procura a verdade decorrente das provas apresentadas pelas partes, no processo penal a busca da verdade material não se limita, em princípio, à atividade processual desenvolvida pelos intervenientes, que não o julgador.
Um “incidente” é uma questão surgida no desenvolvimento da lide, distinta da questão principal, que mantém uma relação com esta, e é prejudicial reclamando uma decisão prévia, atenta a sua projeção sobre o próprio direito material e sobre a relação processual em causa.
No processo penal, a junção tardia de um documento, ainda que realizada por um arguido, só pode ser encarada como anómala quando alheia à busca da verdade material e revestir, por exemplo, carácter dilatório.
Fora de tais casos, o desenvolvimento normal do processo penal abarca a junção, ainda que tardia, de documentos antes de ser proferida a decisão final no julgamento, conquanto com tal junção se procure alcançar a verdade material.
Na perspetiva indicada, a junção tardia de um documento em processo penal não pode ser punida como o é pelo artigo 411.º do CPC, daí no caso da junção tardia de documentos fora do momento processual adequado, cumpra aplicar os princípios gerais do processo penal.
Princípios do processo penal como o da legalidade e da oficialidade que implicam não poder ser aplicada uma multa pela apresentação tardia de documentos, se tal multa não estiver prevista na lei penal e processual penal impondo-se ao julgador ordenar todos os atos necessários à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (cf. artigos 323.º, alíneas a) e b) e artigo 327.º, n.º 2, 340.º, n.ºs 1 e 2 do CPP).
De acordo com o referido, a junção pela arguida de documentos por si entendidos como essenciais para a descoberta da verdade, em qualquer momento do processo, não constitui um ato anómalo ao desenrolar da investigação, que sempre procura a obtenção da verdade material.
Não estando a arguida proibida de apresentar as fotografias como o fez por as considerar relevantes na procura da verdade material, o julgador, por sua vez não está inibido de apreciar a documentação tardiamente entregue e de julgar a mesma como não essencial, ou irrelevante.
Compreende-se, desta forma, que o julgador, ao indeferir a junção das fotografias, tenha considerado tal prova como irrelevante, face aos elementos probatórios até então apurados e à visão por si tida da globalidade do processo. Assim, a sua atendibilidade, apenas poderia ser considerada após o recurso final, se a junção de tais fotografias fosse julgada essencial para a descoberta da verdade, o que manifestamente se não verifica no caso concreto, como mais à frente se explicitará a propósito do recurso interposto da decisão final.
Nega-se, assim, provimento ao recurso interlocutório interposto na parte em que o Tribunal a quo decidiu pela irrelevância das fotografias pretendidas apresentar.
Atento, contudo, o exposto, o princípio da legalidade e à não aplicação no caso dos princípios do processo civil, verifica-se a ilegalidade da condenação em pena de multa revogando-se o despacho na parte em que aplicou à arguida a pena de 2 UC de multa, por apresentação intempestiva das fotografias.
3.2.2.Do recurso principal
A. Do crime de violência doméstica e do bem especialmente tutelado em relação a crianças, como vítimas especialmente vulneráveis
Antes de se passar à análise do caso concreto, convém esclarecer estar em causa neste processo, em termos globais, a forma como atualmente está prevista na Constituição da República Portuguesa e nos Código Penal e Processo Penal a proteção das crianças pelo crime de violência doméstica.
A decisão recorrida, na fundamentação de direito, salienta ter o estado de agressão permanente permitido concluir pelo exercício de uma relação de domínio ou de poder, em ambiente familiar ou quase familiar, deixando as vítimas indefesas numa situação humanamente degradante. Acrescentou-se, ainda, ter o artigo 152.º do CP a sua ratio na proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana, abrangendo os maus tratos psíquicos, os trabalhos desproporcionados em relação à idade das vítimas (a (...) dos 13 aos 20 anos; a (...) dos 7 aos 18 anos; o (...) dos 5 aos 16 anos; o (...) dos 3 aos 14 anos), a falta de liberdade de movimentos, entre outros.
Como se refere no Acórdão da RE de 3.7.2012[1] este tipo de crime concretiza-se quando a conduta imputada constitua um atentado à dignidade pessoal aí protegida.
Atentado à dignidade pessoal desde logo protegida constitucionalmente no artigo 1.º da CRP, como um dos seus princípios fundamentais, sendo o homem visto como sujeito e não como objeto dos poderes ou relações de domínio[2].
Essa mesma proteção constitucional levou a CRP a impor uma especial proteção do Estado às crianças, tendo em vista o seu desenvolvimento integral e a proibir o exercício abusivo da autoridade em família e nas demais instituições (artigo 69.º da CRP[3]).
Nessa proteção, como é assinalado pelos mesmos autores, proíbe-se qualquer forma de descriminação e de opressão sobre as crianças, sejam formas de violência psíquica ou corporal, seja de exploração económica, seja de atribuição de trabalhos que sejam suscetíveis de comprometer a sua personalidade e saúde.
O exercício abusivo de autoridade em família é todo o poder usado em excesso, como dirigir insultos a uma criança, excedendo-se os limites do direito de correção e de respeito de se fazer obedecer, pela consideração merecida pelas crianças para não se obstar ao seu desenvolvimento integral [4].
É na linha da proteção constitucional das crianças e da sua dignidade, nos termos já referidos, que se insere o artigo 152.º do CP em relação à proteção das pessoas particularmente indefesas em razão da idade, residentes em domicílio comum, sejam familiares ou dependentes económicos.
Nessa mesma linha de orientação é protegida a dignidade das crianças quanto à interpretação atualizada do crime de violência doméstica especialmente punido pela Lei 112/2009 de 16 de setembro e pela Lei 130/2015 de 4 de setembro, ao estabelecer o Estatuto das Vítimas designadamente dos crimes de violência doméstica.
No decurso do tempo o apoio às vítimas de violência doméstica foi-se ampliando bem como agravadas as sanções aplicáveis aos agressores, tendo o artigo 67.º-A do CPP alargado a proteção já concedida em relação às vítimas especialmente vulneráveis.
Com o artigo 67.º-A do CPP[5] a produção reiterada de maus tratos psíquicos ou físicos causadores de danos à integridade física ou psíquica, ou os danos emocionais ou morais a pessoas em função da sua idade, tipo, grau e duração de vitimização, com consequências graves no seu equilíbrio psicológico, ou nas condições da sua integração social, que vivam economicamente dependentes, passou a ser protegida com a penalização do crime da violência doméstica, designadamente quando praticada contra crianças com idade inferior a 18 anos ( artigo 67.º, n.º 1, alínea d) do CPP).
A incriminação prevista nos artigos 153.º, n.º 1 e 152.º, n.º 1 do CP e no artigo 67.º-A do CPP passou a consistir na prática de quaisquer ameaças atentatórias da liberdade da vida e que provoquem medo ou inquietação e prejudiquem a liberdade de determinação da vítima, em particular da sua dignidade, nos termos do conceito constante da CRP e em particular dos seus artigos 1.º e 69.º.
As crianças, em ambiente familiar, embora possam não exibir desestabilização psicológica, em termos de gravidade, são afetados por sequelas em consequência dos comportamentos de que foram alvo, revelando-se estes prejudiciais ao seu desenvolvimento integral e, daí, serem consideradas como vítimas especialmente vulneráveis.
B. Definido e devidamente caracterizado o crime de violência doméstica contra crianças, como vítimas especialmente vulneráveis e indefesas em ambiente familiar, e tendo em conta, de modo especial, a proteção da sua dignidade, da forma atrás exposta, apreciemos então a versão dos factos apresentada pela recorrente e entendida por esta como devendo ter sido a dada como provada pelo Tribunal a quo.
Neste âmbito deve ser previamente sublinhado que a prova produzida em julgamento deve ser apreciada segundo as regras de experiência e da livre convicção. Por outro lado, a prova considerada apurada só poderá ser valorada de forma diferente da realizada em 1.ª instância, se a versão apresentada pela recorrente se sobrepuser, pela sua razão, lógica e coerência, à versão adotada pelo tribunal, de acordo com o artigo 127.º do CPP.
Vejamos, então, como a recorrente valorou a prova produzida em julgamento.
A arguida, começou por negar a totalidade dos factos que lhe eram imputados na acusação, referindo ter acolhido a (...), a (...), o (...) e o (...) todos de igual forma e com o mesmo carinho. Em julgamento, contudo, ficou clarificado dispensar a arguida um tratamento diferenciado em razão do género à neta (...) e à assistente (...) (meninas) em contraposição ao trato dado aos netos (...) e (...) (rapazes), e, ainda, em razão da idade em relação, designadamente, aos netos do sexo masculino. A arguida, todavia, negou esse tratamento discriminatório, baseado numa conceção de educação ultrapassada nos tempos hodiernos.
Em relação ao (...), ao contrário do sustentado pela arguida, o tratamento era “mais suave” em comparação com o dispensado ao (...), embora quanto a este também se tenha dado como provado que o agredisse com bofetadas no corpo, puxasse os cabelos, e, pelo menos por duas vezes, com um pau e com um cinto (factos provados sob os pontos 7. e 8.). Daí a enfase pretendida dar pela recorrente a documentos que diz não terem sido apreciados pelo tribunal a quo.
A este propósito é de notar, igualmente, ter o (...) sido o único a continuar a viver em casa da arguida após os factos chegarem ao conhecimento público, no ano de 2017, e não ter querido prestar declarações em Tribunal. Embora o (...) se tenha remetido ao silêncio, com base nas declarações das outras vítimas, o Tribunal a quo considerou provados os factos e condenou a arguida pela prática, sobre este neto, do crime de violência doméstica.
Se esse tratamento diferenciado era “justificado” entre a (...) e a (...) por uma ser sua neta e a outra estar a viver na sua dependência económica, em relação aos netos (...) e (...), tudo leva a crer que se devesse à circunstância de o (...) ser o mais novo e com uma carência acrescida em razão de ser afetado de hiperatividade e deficit de atenção.
Se em relação a ambos os netos do sexo masculino a arguida foi acusada de os ter agredido com um pau e com um cinto, no concernente ao (...) ocorria também menosprezo, porquanto lhe dizia “és mau, devias beijar o chão onde o teu primo passa, nunca vais ser ninguém, és um burro” (facto provado sob o ponto 9.).
Esta diferença de tratamento dada ao (...), suspeita-se estar ligada à não contribuição dos seus familiares para as despesas com a sua manutenção, ao contrário do sucedido com o pai do (...), bem como à menor idade e necessidades educativas especiais deste último.
Por outro lado, a versão da arguida sustenta-se em redor de pessoas que viviam, ou na sua dependência económica, a saber: a tia da (...), que para ela trabalhou durante algum tempo, era paga pela arguida e ali foi acolhida em momento particularmente difícil da sua vida; pessoas estranhas ao ambiente familiar, como as professoras e professores ouvidos, o chefe dos escuteiros ou vizinhos e até no pai da (...) que regularmente ia a sua casa em certos períodos do dia e referiu nunca se ter apercebido de qualquer violência.
É, ainda, de salientar que a arguida tinha um salário de 600 € e uma reforma de invalidez do marido de 800 €, tendo sido ela própria a insistir com a (...) para esta vir para sua casa em 2007, quando a recorrente tinha em sua casa a sogra doente e acamada, carecendo de cuidados redobrados devido à sua avançada idade.
A ideia expressa pela (...) de que a arguida a queria em sua casa para trabalhar (“como criada”), quando tinha cerca de 13/14 anos, apresenta-se lógica e não é de afastar, em função das circunstâncias de vida da arguida àquela data (ausente de casa durante o período laboral), pelo menos para a ajudar no trabalho da casa que era intenso e à circunstância de ter sido colocada a dormir no mesmo quarto com uma idosa acamada (sogra da arguida), e não com a (...), como seria mais natural.
Essa conclusão de que o trabalho era muito extrai-se em função de número de pessoas residentes em cada momento na casa da arguida (entre sete a nove pessoas simultaneamente, a saber: as quatro vítimas; a arguida, o marido, a sogra, o filho e a namorada do filho da arguida e da tia da (...)), da atividade que a recorrente desenvolvia no hospital bem, como a certa altura, com a venda de produtos naturais e que lhe ocupavam a maior parte do tempo disponível.
Na altura, em 2007, quando a (...) foi residir na casa da arguida, esta teria quarenta e cinco anos, tinha a sogra a cargos e três netos, tinha perdido um filho e a sua filha (mãe do (...)) tinha paradeiro desconhecido e havia abandonado o descendente. Tal, porém, não justifica o autoritarismo com que dirigia o seu domicílio e o controlo apertado exercido sobre os netos e a (...), sempre a verificar os seus passos e a exigir relatórios do que faziam.
Com aquela idade, a arguida, auxiliar de ação médica (área de gestão hoteleira), a exercer num meio pequeno, com um horário que a ocupava totalmente e ainda com atividade na venda de produtos naturais, com diminuto salário, tinha totalmente preenchido o seu tempo, não tendo grandes possibilidades económicas, não podendo executar tarefas domésticas durante o dia.
Perante este quadro é mais provável que a (...), entre os anos de 2007 e 2013, ano este em que saiu da casa da arguida, ajudasse, e muito, nas lides domésticas da casa da arguida, para além da frequência da escola cuja obrigatoriedade resultava de imperativo legal. É também lógico que a intensidade desses trabalhos domésticos fosse agravada durante os fins de semana e férias, como relatado pela (...) e confirmado pela (...) e ainda pelo (...).
Esses trabalhos logicamente seriam intensos, dado o número de pessoas existente no agregado familiar embora necessariamente menor quando arguida teve pessoas, como a tia da (...) ali a prestar serviço ou quando a (...) a ela se juntava.
Não deixa também de ser lógico e coerente, como teria sido o caso, de ter ocorrido uma maior intensidade de trabalho enquanto a sogra da arguida, acamada e doente, permaneceu naquela casa, porquanto a (...) pernoitava no mesmo quarto da idosa. Neste quadro também se apresenta como lógico e credível ter a (...) lavado, levado à casa de banho, dado a medicação, a comida à boca da idosa e que esta inclusive lhe tivesse morrido nos braços.
É igualmente evidente que a recorrente, com inúmeros contatos proporcionados pela sua vivência no hospital e num meio pequeno (…), conhecesse e contatasse com frequência todos os professores da escola em que a (...) e os netos estudavam, bem como a psicóloga da aqui assistente e até com os médicos.
Tudo o descrito proporcionava à recorrente uma ampla visão da vivência dos netos e da assistente na comunidade, conferindo-lhe um controlo e domínio das relações exteriores da (...) e dos seus netos, levando-os, de acordo com as regras da experiência, necessariamente, a recear extravasar para além de casa o que se passava no seu interior.
Apresenta-se, assim, como plausível a versão apresentada pela (...) quando afirma:
- Nunca ter conseguido contar o sucedido ao pai, “por medo”, pois a arguida estava sempre presente ou mandava-a para a cozinha e “andava sempre em cima, se a gente dizia alguma coisa fora do que se passava lá em casa (…) se contávamos alguma coisa, ela tirava-me o telemóvel”;
- “Ela tirava-me o telemóvel, eu não conseguia contactar … com ninguém … ela estava sempre a controlar o telemóvel… recebi uma chamada ela ia ouvir … recebia uma mensagem ela queria ver e tinha de responder o que ela me mandava, ela metia muito medo, andava sempre a berrar … ela impedia-me de sair de casa … “ “chegou-me a queimar, (…) dar chapadas, a puxar os cabelos” “ela chamava-me nomes … puta, vaca, chula, cabra, porca, badalhoca … velhaca”.
- “Eu não podia sequer falar com ele” (pai) “quando ele ia lá a casa … o medo era tanto… impedia-me de falar…. Eu não conseguia falar com ninguém, só quando saí de lá é que consegui … e mesmo assim… e mesmo assim… foi aos poucos”;
- Só saiu de casa da arguida aos vinte anos pois “vivia cheia de medo” “que ela fosse ter comigo, que ela me perseguisse, tal como fez o marido”;
- “Ela metia medo ,,, porque ela …. Fazia-me a vida negra… tratava-me mal… berrava, mandava vir… chamava nomes, chamava-me tudo … puxava-me os cabelos. Passava com a porcaria na minha cara se tivesse alguma coisa suja, queimou-me, puxava-me por um braço … estava sempre a dizer que se dissesse alguma coisa …a alguém …” e o companheiro da arguida “também me fazia mal” (atos sexuais).
- Não falava nestas coisas à psicóloga pois “a psicóloga a seguir ia contar tudo … a ela” (arguida) eu saía de lá (consulta) “e elas iam conversar as duas, logo ela ia-lhe contar o que se passava lá dentro …. Foi sempre a ideia com que eu fiquei …”.
- “Só falei as coisas depois de lá sair”, pois “Não é fácil falar destas situações quando se está cheio de medo e sempre nervoso todos os dias”.
Todo o comportamento da arguida levou a (...) e os netos, com exceção do (...), a saírem da casa, sem lá mais voltarem, sendo plausível o relato da (...), para justificar o só ter abandonado definitivamente a casa da arguida com a idade de vinte anos.
A arguida, também, recebeu dinheiro dos cursos frequentados pela (...), da tutela exercida sobre os netos (...) e (...) bem como favores do pai da (...), pedreiro, na construção da sua casa. Assim, a ideia pretendida transmitir de tudo fazer a favor do bem-estar da (...) e dos netos, por pura solidariedade e carinho, perante as suas limitadas possibilidades económicas e o número de pessoas por si acolhidas, peca claramente por excessiva.
Como desmesurado era o regime de autoridade familiar por si imposto, com horários rígidos, controlo excessivo dos passos das crianças fora do ambiente familiar, criação de medo perante as crianças de relatarem a terceiros os acontecimentos relativos a maus tratos físicos, o proferir expressões depreciativas prejudiciais ao desenvolvimento integral das crianças e que as ofendiam na sua dignidade.
A versão aceite pelo Tribunal, em contraposição à versão apresentada pela recorrente, foi a de aceitar a credibilidade dos depoimentos da (...) e dos netos ((...) e (...)), pessoas que vivenciaram diretamente os acontecimentos traumáticos descritos na acusação.
O tribunal rejeitou, igualmente, a teoria da manipulação da ofendida (...) de ter criado uma mentira por apenas ter querido ir viver para a Suíça e a arguida não estar de acordo com esse seu desiderato.
O Tribunal recorrido rejeitou a tese da “manipulação” das vítimas, designadamente por a queixa (denúncia anónima) ter sido realizada já depois de a (...) se ter afastado da casa da arguida decorridos quatro anos (no ano de 2013) e os netos (...) e (...) só o terem feito (em 2017) depois de ouvidos no âmbito deste processo, sem que mantivesse qualquer contacto com a (...), nesse período.
O Tribunal a quo sublinhou a dificuldade em situar os acontecimentos durante o longo período da sua ocorrência e salientou não terem as circunstâncias sido sempre as mesmas, com altos e baixos no comportamento recíproco entre todos os intervenientes residentes no mesmo domicílio.
Salientou, igualmente, que os exames psicológicos e perícia realizados à (...) haviam concluído não revelar esta qualquer limitação na capacidade de reproduzir os acontecimentos.
A decisão recorrida explicitou, ainda, que se tratando de atos de violência praticados no interior de uma habitação e dadas as relações de domínio exercidos pela arguida sobre os ofendidos, estes não estavam em condições de superar o medo de relatarem exteriormente os atos de que foram vítimas.
Era natural, por isso, não darem as vítimas a conhecer aos professores e outras pessoas do exterior, como a mãe da (...) com quem esta contatava e até, no caso do pai, com quem estava pessoalmente no interior da habitação em certos períodos do dia. Tendo aliás sido o pai da (...) a revelar, no final, ter sido uma tia da sua filha que o alertou para a situação desta.
Aliás, as declarações da neta (...) são paradigmáticas do domínio e controle tidos pela arguida sobre os quatro ofendidos quando afirmou “o que ela quiser saber e descobrir, ela sabe e descobre, por isso, … se eu falasse” e “a minha avó conhece muitas pessoas, e normalmente se eu fizesse algo que eu não quisesse que ela soubesse, ela sabia na mesma” o que confirma em toda a extensão o medo relatado pela (...), pela (...) e pelo (...).
Tudo o referido na versão e valoração do tribunal, perante a crítica à versão da arguida e as regras de experiência, da lógica e do senso comum, afasta a ideia pretendida inculcar pela recorrente ter sempre atendido e recebido os netos respeitando a sua dignidade e sempre com o objetivo de apoiar as crianças no seu desenvolvimento integral, acompanhando-as física e psicologicamente, sem interesse material ou proveito, apenas visando o seu bem-estar e integração social.
C. Caraterizado o crime de violência doméstica de acordo com a sua interpretação constitucional e legislativa atual em função do grau de proteção das crianças visando o seu desenvolvimento integral e evidenciado que a versão dos factos apresentada pela recorrente não se sobrepõe ou sobreleva à valoração dos mesmos feita pela decisão recorrida, considerada como mais lógica, coerente e de acordo com as regras de experiência comum o artigo 127.º do CPP, passa-se de seguida a analisar cada uma das conclusões apresentadas pela recorrente, assim:
- Quanto à existência de erro notório na apreciação das provas e insuficiência da matéria de facto provada, nos termos e para os efeitos das alíneas a) e c) do artigo 410.º do CPP
Sustenta a recorrente nas suas conclusões 1. a 9. que o tribunal recorrido não mencionou os sete documentos juntos com a sua contestação, bem como as fotografias cuja junção indeferiu, situação esta suscitada em sede de recurso interlocutório. Tendo, contudo, em consideração a globalidade da prova produzida, designadamente a já atrás apontada, é evidente a sua irrelevância.
Aliás a própria vítima (...) afirmou nunca lhe ter faltado educação, saúde e comida enquanto viveu com a avó, mas esta “sempre foi bruta” e dava-lhe muita “porrada” (arrastou-a pelos cabelos, esbofeteou-a, pontapeou). Acrescentou que a avó batia no corpo e cabeça do (...) com as mãos e com um pau (cabo de vassoura) nas pernas várias vezes, dava-lhe murros na cara, socos, puxava-lhe os cabelos e dizia-lhe que devia beijar o chão onde o primo pisava, chamando-lhe, ainda, “burro, não vais ser ninguém”. Já ao (…) a arguida bateu-lhe com o cinto, puxava cabelos e com uma bofetada chegou a abrir-lhe o lábio. À (...) chamava puta vaca, queixinhas manipuladora, tendo-a queimado no braço propositadamente com um tabuleiro do forno. Assim, a circunstância de serem captadas fotografias com determinados momentos em família ou escritos determinadas mensagens à arguida não retira a credibilidade ao declarado por esta testemunha de que “todas as semanas havia porrada”.
Quanto aos demais documentos não mencionados expressamente pela sentença recorrida, é manifesto estar o julgador, em face dos factos que tem de apurar para a descoberta da vontade material em processo penal, vinculado à apreciação de todos os documentos oferecidos pelo interveniente que lhe oferece no momento próprio, no caso a contestação, como se refere no artigo 164.º do CPP.
Como, porém, já foi referido a propósito do recurso interlocutório, pode o tribunal não mencionar os documentos entregues, conquanto os elementos de prova tidos em seu poder e que lhe compete apreciar, sejam, de per si suficientes para a busca da verdade material.
Foi o caso dos autos, pois o Tribunal acolheu a versão dos acontecimentos relatado pelas vítimas, face ao estabelecido no artigo 127.º do CPP. Assim, por exemplo, em relação aos documentos que demonstrariam ter o (...) sido recebido pela arguida em más condições e ter sido sempre bem tratado, tal foi considerado em termos relativos pelo Tribunal a quo ao não deixar de considerar esse tratamento preferencial em comparação com o sucedido ao (...) e ao dar como provado o facto 21. e 22..
Daí improceder na globalidade esta conclusão relativa aos documentos juntos e não apreciados em virtude da procura da verdade material e do poder concedido ao julgador de ponderar a sua essencialidade, ou não essencialidade, para a descoberta da verdade e face à convicção formada sobre a versão acolhida.
Não houve, pois, erro, e muito menos notório, quanto à insuficiência da matéria de facto na versão acolhida dos acontecimentos pelo Tribunal, não se verificando, em consequência, nessa parte, insuficiência para a matéria de facto dada como provada nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea a) do CPP.
- Sustenta, depois, a recorrente nas conclusões 9. a 24. que não deveriam ter sido dados como provados os pontos 7. a 18. da matéria de facto.
Considera a recorrente, nesse sentido existir contradição, resultante de a (...) já não ser menor em 2011 e não ser particularmente indefesa durante a estadia na sua casa. Refere a este propósito que a (...) passava dias com a mãe e o pai, frequentava consultas de psicologia, tinha uma relação de amizade com uma professora, frequentou dois cursos profissionais, a tia paterna era empregada doméstica da arguida e atualmente tinha vinte cinco anos, não podendo ser considerada particularmente indefesa.
De igual modo os netos (...) e (...) não poderiam ter esse estatuto por serem acompanhados por pediatras, psicólogos e professores. Para concluir, salientou ser esse estatuto incompatível com a circunstância de nunca terem dado sinal de qualquer violência física ou psíquica de que tenham sido alvo.
É sustentado, também, existir contradição nos depoimentos dos netos (...) e (...) quanto à (...) ser obrigada a realizar tarefas doméstica na residência, não devendo o ponto 11. da matéria de facto ter sido dado como provado.
No demais menciona-se, ainda, não existir uma unanimidade nos depoimentos da (...) e do (...) quanto aos factos contra si praticados e os nomes contra si utilizados, por não corresponderem às expressões constantes da acusação. Deste modo os pontos 10. e 12. dos factos provados não o deviam ter sido, por falta de prova credível e também os pontos 7. a 18. da matéria de facto não deveriam ter sido considerados como provados.
Vejamos: Como já se referiu o Tribunal a quo aceitou globalmente a credibilidade dos depoimentos da assistente e de dois dos três ofendidos.
Sendo estas as pessoas que estiveram no centro dos maus tratos contra a sua dignidade e sendo sobre elas que se projetou a violência verbal e física, é absolutamente razoável, de acordo com as regras de experiência da lógica e do senso comum, recordarem-se com maior acutilância dos atos contra si praticados, divergindo nos pormenores do exercício dessa violência há muito realizada.
Como é natural e humano que pormenores das agressões, em sentido amplo, efetuadas durante um tão longo período de tempo, não deixem vestígios físicos visíveis decorridos tantos anos e se tenham esvaído parcialmente na memória dos ofendidos, consoante a respetiva vivência.
Sendo, ainda, de salientar que em tempos de férias as tarefas domésticas da (...) eram acrescidas e as palavras vexatórias de carácter sexual parecem ter surgido por alegados abusos sexuais perpetrados pelo marido da arguida, denunciados entretanto pela (...), após a abertura deste processo, e que deram origem a um inquérito autónomo, embora não comprovados por estar em causa a sua palavras contra as do agressor sexual.
Tal não significa ter o Tribunal a quo ficado impedido de globalmente aceitar a credibilidade do depoimento da (...) e das restantes vítimas, que de outra forma seriam impossíveis de provar, atentos os pormenores dos depoimentos que os ofendidos prestaram.
Daí o Tribunal recorrido ter aceite a credibilidade dos respetivos depoimentos em relação aos pontos 7. a 13., por se tratarem de memórias vivenciadas pelos próprios, com maior ou menor acuidade, dado o tempo entretanto decorrido (a (...), o (...) e o (...) viveram na casa da arguida durante dez anos e a (...) por um período de seis anos) e tal se enquadrar na forma autoritária com a arguida tratava os seus netos e a (...), e da necessidade que esta última tinha de realizar as respetivas tarefas domésticas, em função de todas as circunstâncias que rodearam a sua vinda e permanência junto da arguida.
Já quanto à (...) não ser pessoa especialmente indefesa, esquece-se a arguida do período que decorreu até aquela ser maior e a sua idade, a sua dependência económica, o referido estatuto de vulnerabilidade aplicável a todas as crianças com menos de 18 anos, como também acontecia com os netos da arguida sujeitos à sua tutela e distanciados dos pais.
A credibilidade dos depoimentos dos ofendidos é reforçada, nalguns deles, como quando a (...) em relação à agressão com a vassoura acaba por referir ter sido a própria arguida a ficar ferida e ao não mencionar que tivesse visto alguma vez a (...) a ser agredida.
Improcedem deste modo as conclusões 9. a 24. dada a versão acolhida pelo tribunal tomada lógica e coerentemente, de acordo com o artigo 127.º do CPP.
- Quanto à conclusão 25. sobre não terem sido provados os pontos 14. a 18. e a sua contradição entre os pontos da matéria de facto 19. e 40., pretende-se confundir momentos de carinho e de afeição mostrados por vezes pela arguida para com a neta (...) e pela (...), com o tratamento geral e global dado pela arguida à neta e à (...) durante um longo período de tempo e aceite como provado pela versão acolhida pelo Tribunal a quo.
Aliás, nestes casos, não se trata propriamente de factos contraditórios, mas de conclusões extraídas pela decisão recorrida do dolo objetivo das condutas tidas como provadas (ponto 14. da matéria de facto), de conceitos jurídicos (os ofendidos serem menores, as condutas serem proibidas pelo direito penal), estando claramente provado que os comportamentos da arguida decorreram no interior da sua habitação (ponto 16. da matéria de facto).
- Nas conclusões 26., 27., 28., 29., 30., 31., 32. e 33. pretende-se ter existido erro na apreciação da prova daí resultando insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, insistindo-se que da prova produzida por professores e outras pessoas estranhas ao domicílio dos ofendidos, resultaria não terem estes tido conhecimento dos atos pelos quais a arguida foi acusada.
Aqui impõe-se de novo referir o afirmado a propósito da versão da arguida, em contraposição com a versão aceite pelo tribunal.
O referido pela arguida sobre o tratamento dispensado à (...) e aos netos, não se sobrepõe ao considerado pelo Tribunal que avaliou a conduta daquela globalmente durante o tempo em análise. A ideia de a arguida ter sempre proporcionado alimentação, cuidados de saúde, vestuário e habitação, não afastou a convicção do Tribunal de a arguida ter atentado contra a dignidade das crianças, com as agressões e impropérios de que eram alvo de forma repetida e trabalhos domésticos excessivos.
- Nas conclusões 34., 35., 36., 37., 38., 39., 40., 41. e 42. a recorrente insiste agora na contrariedade dos depoimentos prestados baseando essa contraditoriedade nas regras de experiência e da mais elementar lógica, mantendo a ideia de “cabala” criada pela (...) para criar todo este processo, que constituiria apenas uma mentira.
Já nos referimos anteriormente a esta questão, desmontada pelo tribunal recorrido como inverosímil, pelo que não abordaremos de novo o assunto, dada a sua improcedência, como foi referido oportunamente.
- Quanto às conclusões 43., 44. e 45. refere a recorrente não estar o elemento subjetivo do crime comprovado. A arguida considera que ao agir com agiu não o fez com excesso de poder de domínio sobre o círculo de crianças consigo residentes e com essa atitude não obstava ao seu desenvolvimento integral, considerando, pelo contrário, atuar no âmbito dos poderes que lhe competiam.
Como foi, porém, explanado, o elemento subjetivo do crime em causa assenta na vulnerabilidade das crianças vítimas de violência doméstica pela sua idade ou dependência económica, como vítimas particularmente indefesas.
Sendo a arguida conhecedora da idade, debilidade e dependência económica dos ofendidos tratando-os apesar disso com ofensa da sua dignidade, na forma como agiu e não obstante todos os outros fatores pretendidos demonstrar (alimentação, educação, saúde, vestuário, habitação) a sua atuação ultrapassou, claramente, os limites de autoridade conferidos no âmbito das relações familiares.
O tratamento dado aos ofendidos, claramente excessivo, repreensivo e dominador, causou-lhes perturbações no seu desenvolvimento, pelo autoritarismo e medo incutido.
Esse tratamento foi querido e voluntariamente assumido pela arguida ao efetuar as agressões físicas e psicológicas dadas como provadas, pela sua prática reiterada, afetando o equilíbrio psicológico e físico das crianças dominadas pelo medo que lhes incutia a arguida e de relatar os mesmos factos a terceiros.
No caso da (...), do (...) e do (...) a arguida não os quis tratar em termos de igualdade, fazendo-o em função da sua dependência económica no caso da (...), do seu sexo no caso da (...) e da (...) e até em função dos benefícios pecuniários recebidos dos respetivos responsáveis parentais no caso do (...).
Nos atos objetivos praticados pela arguida como bofetadas, puxões de cabelo, agressões com pau e cinto, palavras vexatórias de carácter sexual em relação à (...) (puta, vaca, cabra, chula, ladra, bruxa) e humilhantes em relação ao (...) (“és mau, devias beijar o chão onde o teu primo passa, nunca vais ser ninguém, és um burro”), a arguido sempre agiu voluntaria e conscientemente, ofendendo-os na sua dignidade pessoal, de modo a garantir a sua posição de domínio no âmbito do exercício abusivo da sua autoridade familiar dentro do seu domicílio, pondo em causa o desenvolvimento dos ofendidos como crianças vulneráveis e especialmente desprotegidas.
É, assim, claro, na perspetiva aceite pelo tribunal recorrido e agora reiterado nesta 2.ª Instância, ter a arguida obstado da forma referida ao desenvolvimento integral das crianças e perturbado o seu equilíbrio emocional, como é referido no ponto 14. da matéria de facto dada com provada.
O dolo subjetivo da arguida decorre das condutas por ela assumidas objetivamente e dadas como provadas, demonstrativas e reveladoras da sua vontade em ofender a dignidade das crianças ofendidas nos termos assinalados.
D. Das penas aplicadas e da sua dosimetria
A decisão recorrida aplicou à arguida, pelos quatro crimes de violência doméstica considerados provados, uma pena de dois anos de prisão por cada crime praticado dentro de uma moldura penal abstrata de dois a cinco anos de prisão.
Condenou a arguida, em cúmulo jurídico, no limite mínimo das penas aplicadas, no caso na pena de dois anos de prisão, atendendo à personalidade da arguida, bem inserida na sociedade e sem antecedentes criminais fixando a pena única no seu limite mínimo.
A pena foi fixada no seu limite mínimo, pois o dolo da arguida foi realizado numa perspetiva de autoridade família, embora abusiva e ultrapassada no tempo. Atento o lato período em que foi perpetrado (seis anos no caso da (...) e dez anos em relação às restantes vítimas), contudo, não chocaria que a pena tivesse sido fixada acima desse limite mínimo, tendo certamente o Tribunal a quo optado por essa solução, porquanto foram sendo prestados às vítimas cuidados de higiene, alimentação, saúde e educação.
O limite da pena mínima aplicada aparece, assim justificado, mas sem haver lugar a uma atenuação especial da pena, pois dos factos provados e relevantes para apuramento do seu grau de culpa não resulta a verificação de qualquer das circunstâncias previstas no artigo 72.º do CP e em especial do seu n.º 2, para lhe ser aplicável tal artigo.
E. Quanto ao pedido de indemnização civil a que se referem as conclusões 45.ª a 51.ª há a dizer o seguinte:
Provado o ilícito criminal de que a arguida foi acusada cometido com dolo e a violação do direito da assistente, com a conduta ilícita da arguida, a mesma tem de ser condenada civilmente, em função da sua apurada responsabilidade criminal, por ofensa à dignidade da ofendida (...), nos termos previstos no artigo 487.º, n.º 2 do CC.
Sendo os danos não patrimoniais resultantes para a assistente da vergonha, humilhação, angústia e medo considerados graves pelo Tribunal recorrido, nos termos do artigo 496.º, n.º 1 do CC e calculados equitativa e equilibradamente, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo em 3.000 €, perante os 10.000 € e correspondentes ao montante de indemnização peticionado pela assistente, nada há a apontar ao montante atribuído, que se julga equilibrado, proporcional e equitativo[6].
III. DECISÃO
Nestes termos e com os fundamentos expostos:
1. Nega-se provimento ao recurso interlocutório interposto na parte em que o tribunal decidiu pela irrelevância das fotografias pretendidas apresentar embora se revogue o mesmo despacho na parte em que aplicou à arguida 2 UC de multa, por apresentação intempestiva das fotografias.
2. Nega-se provimento ao recurso principal interposto pela arguida e em consequência, mantem-se na íntegra, a sentença recorrida.
3. Custas pela arguida/recorrente, quanto ao recurso da decisão final, fixando-se a taxa de justiça quanto ao recurso principal em 5 UC (artigos 513.º, n.ºs 1 e 3 e 514.º, n.ºs 1 do CPP e artigo 8.º, n.º 9 e tabela III anexa, do Código das Custas Processuais).
Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado e revisto pela relatora; tem voto de conformidade por parte do Exmo. Desembargador Adjunto, Dr.º João Martinho de Sousa Cardoso, atento o atual estado de pandemia da Covid-19.
Évora, 9 de março de 2021.
[1] Proferido no processo 53/10.3GDFTR.E153/10.3GDFTR.E1, relatado por Sérgio Corvacho e disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jtre.
[2] CANOTILHO, Gomes; MOREIRA, Vital – “Constituição da República Portuguesa Anotada. Coimbra Editora. 1993. 3.ª edição revista. P. 59. ISBN 972-32-0592-0.
[3] O artigo 69.º, sob a epígrafe “Infância” estabelece que: “1. As crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições. (…)”.
[4] Cf. neste sentido Acórdão da RE de 11.3.2014, proferido no processo 317/09.9STB.E2, relatado por Alberto João Borges, e disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/jtre e onde se afirma que o “poder-dever de educar ou corrigir supõe, sempre, (…) que o agente atue com essa finalidade e (…) que os castigos infligidos sejam criteriosamente ponderados e proporcionais à falta ou faltas cometidas, o que é de todo incompatível com a violência física, com castigos corporais ou com castigos humilhantes e atentatórios da dignidade do menor”.
[5] O artigo 67.º-A do CPP sob a epígrafe “Vítima” estabelece que “1 – 1 - Considera-se: (…) 'Vítima especialmente vulnerável', a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social; c) 'Familiares', o cônjuge da vítima ou a pessoa que convivesse com a vítima em condições análogas às dos cônjuges, os seus parentes em linha reta, os irmãos e as pessoas economicamente dependentes da vítima; d) 'Criança ou jovem', uma pessoa singular com idade inferior a 18 anos. (…) 3 - As vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1.”.
[6] Embora não tenhamos encontrado publicados acórdãos em que as vítimas menores tivessem sido sujeitas a violência doméstica estendendo-se pela maioridade encontrámos vários Acórdãos em que as vítimas foram mulheres adultas e os agressores os seus companheiros, prolongando-se as agressões mais ou menos no tempo. Assim: no Acórdão da RC de 18.5.2016 (P. 232/12.9GEACB.C2, relatado por Olga Maurício) em que a vítima era a mulher do arguido, durante dois anos ameaçada várias vezes de morte, o agressor foi condenado a pagar uma indemnização de 2.000 €; No Acórdão da RL proferido no processo 974/16.0PEOER.L1-9 a vítima foi injuriada e ameaçada de morte, inclusive à frente dos filhos menores, durante 11 anos tendo a indemnização sido fixada em 5.000 €; No Acórdão da RG de 4.12.2017 (processo 214/16.1PPGMR.G1 em que foi relator Pedro Cunha Lopes) o arguido foi condenado no pagamento de 1.500 € por ter perseguido a mulher entre novembro de 2015 a março de 2016 chamando-lhe puta, vaca e dizendo “qualquer dia estendo-te”.