PESSOA COLECTIVA
TRANSCRIÇÃO
CERTIFICADO DE REGISTO CRIMINAL
Sumário

A possibilidade de não transcrição em relação a condenações sofridas por pessoas singulares, para efeitos civis, estriba-se numa finalidade específica, que se reconduz a evitar, em casos de condenações menos graves, a desinserção social e a estigmatização do agente, não o prejudicando, nomeadamente em termos laborais ou de acesso ao emprego. Esse fundamento não se verifica relativamente a pessoas coletivas e, como tal, a diversa solução jurídica legal não acarreta a violação dos sobreditos princípios.
Não  viola, igualmente, o disposto no artº 30 da CRP uma vez que a Lei permite quer a reabilitação – mesmo em relação a condenações sofridas por pessoas coletivas – quer a eliminação de anteriores condenações, pelo decurso de determinado lapso temporal.
Na verdade, logo pela letra da lei ou pelo elemento literal conclui-se claramente que as pessoas coletivas não podem requerer, nem os Tribunais decidir quanto a elas, a não transcrição no registo para efeitos meramente civis.
 O legislador assim o entendeu para segurança das relações comerciais económicas e garantia de diminuição das exigências de prevenção geral exigindo uma maior visibilidade das suas atividades

Texto Integral

Acórdão proferido na 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

Nos presentes autos, não se conformando com a decisão que indeferiu a não transcrição da condenação sofrida no CRC veio SISBIT - Automatização de Sistemas de Informação, Lda recorrer da mesma apresentando para tanto as seguintes
Conclusões: 
I - No âmbito do processo supramencionado foi proferida a douta sentença, já transitada em julgado, decidindo o Tribunal a quo condenar a arguida pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelos 30°, n.° 2 do Código Penal, 105°, n.°s 1, 2, 4,
5 e 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de multa no valor de € 1.750,00.
II - A aqui recorrente requereu a não transcrição da douta sentença nos certificados de registo criminal respeitantes aos Arguidos SISBIT - Automatização de Sistemas de Informação, Lda., com fundamento na aplicação extensiva às pessoas coletivas do disposto no n° 1 do artigo 13° da Lei n° 37/2015, de 5 de maio.
III - O Tribunal a quo decidiu indeferir o pedido da aqui Recorrente por ausência de fundamento legal.
IV - Atenta a raiz da previsão legal da não transcrição, prevista no n°1 do artigo 13.° da Lei n° 37/2015, de 5 de maio, é entendimento da aqui Recorrente, que tal norma é de aplicar também às pessoas coletivas tanto que estas também sofrem com a estigmatização do registo criminal, nomeadamente, no que diz respeito ao acesso a concursos públicos, ao eventual financiamento bancário e a outras tantas situações.
V - O artigo 12°, n° 2 da CRP é inequívoco, “as pessoas coletivas gozam dos direitos e estão sujeitas aos deveres compatíveis com a sua natureza”.
VI - Garantindo-se, desta forma, e nas melhores palavras do Professor Doutor Jorge Miranda, “um conjunto de direitos de caráter geral ou comum, embora com as necessárias adaptações à sua natureza colectiva”.
VII - As soluções legislativas que visam a atenuação do efeito nefasto da identificação criminal, têm raiz constitucional, nomeadamente, nos n° 1 e 4 do artigo 26° da CRP e nos n° 1 e 4 do artigo 30° da Constituição.
VIII - A interpretação de que o direito à não transcrição, previsto pelo n° 1 do artigo 13° da Lei n° 37/2015, de 5 de maio, exclui as pessoas coletivas, para além de violar o disposto nos n° 1 e 4 do artigo 26° da CRP e nos n° 1 e 4 do artigo 30° da Constituição, contraria o disposto no n° 2 do artigo 12° da CRP e viola o próprio princípio da igualdade, ínsito no artigo 13° da CRP.
IX - Parece, aliás, ser esse o entendimento do Tribunal Constitucional, ainda que
referente a outra matéria, ao estabelecer que “Entre esses direitos encontra -se a possibilidade de fazer valer os seus direitos e interesses legítimos perante os tribunais em iguais condições e com os mesmos meios de defesa que as pessoas físicas.”
IV - Pedido
Termos em que deve o douto despacho de que se recorre ser revogado e substituído por outro que aceite o pedido de não transcrição da pena aplicada à aqui Recorrente para os certificados de registo criminal emitidos nos termos do disposto nos nºs 5 e 6 do artigo 10.° da Lei n° 37/2015, de 5 de maio, fazendo V. Exas., desta forma, a tão costumada Justiça!
Pronunciou-se o MP Em 1ª Instância apresentando as seguintes  
CONCLUSÕES:
I. O Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, interpretou e aplicou correctamente a norma constante do artigo 13° do Decreto-Lei n.° 37/2015, de 05-05.
II. A não transcrição da condenação no certificado de registo criminal estar vedada às pessoas colectivas não pode ser suprida através de interpretação extensiva, por não existirem quaisquer elementos interpretativos que permitam concluir que o legislador se expressou incorrectamente na formulação adoptada, não se mostrando ilidida a presunção do artigo 9°, n.° 3, do Código Civil, nos termos do artigo 350°, n° 2, do mesmo diploma.
III. A natureza das pessoas colectivas e das pessoas singulares é diversa, justificando a diferença de tratamento que o legislador escolher consagrar na lei ordinária quanto ao registo criminal.
IV. A opção do legislador é racionalmente estribada, historicamente fundada e decorre de uma opção legítima e não arbitrária, que não enferma de qualquer vício, por ofensa à Lei Fundamental ou a outra.
V. A decisão recorrida não merece, por isso, qualquer reparo, devendo manter-se nos seus precisos termos.
Por estas razões, entende o Ministério Público que o presente recurso deve improceder, com o que os Venerandos Desembargadores farão A COSTUMEIRA JUSTIÇA.
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Neste Tribunal pronunciou-se Exma. Procuradora geral Adjunta pugnando pela improcedência do recurso e pela consequente manutenção do decidido
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Do despacho recorrido resulta:
Requerimento de não transcrição da condenação no certificado de registo criminal da arguida: o requerido não tem fundamento legal, pelo que se indefere.           
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Cumpre decidir:  
Pretende a recorrente que não seja transcrita a sua condenação no seu CRC para os certificados de registo criminal emitidos nos termos do disposto nos nºs 5 e 6 do artigo 10° da Lei n° 37/2015, de 5 de Maio.
Vejamos:
O que a recorrente clama é a não transcrição por causas que nada têm que ver com a parte crime ou Penal, ou seja, o que pretende é que não haja transcrição da sua condenação para efeitos civis com vista a não perder assim, o seu bom nome nas relações comerciais que se venham a manter entre si e outros interessados.
 O artº 13º nº 1 da Lei 37/15 de 5-5 estabelece as condições para que o Juiz possa determinar a não transcrição da condenação sofrida no CRC mas fá-lo relativamente às pessoas singulares, donas de uma vontade e condenadas na medida de uma culpa. Ou seja, o legislador pondera, quase como na suspensão da execução da pena, se deve dar ao condenado a hipótese de, em caso por exemplo de oferta de trabalho, não surgir no seu CRC uma condenação que não passou de um caso isolado, tendo em conta o seu comportamento anterior e posterior aos factos e as exigências de prevenção geral e especial e claro, a medida da culpa demonstrada quanto aos factos praticados. 
Será tal extensível às pessoas coletivas?
 Ao intérprete não cabe uma interpretação diferente daquela que o legislador permite e em Direito Penal não há interpretações extensivas nem analogias.
 Olhando a letra da lei podemos desde logo afirmar que tal não é possível aplicar às pessoas coletivas.
 Podemos também socorrer-nos do elemento histórico e verificamos que a Lei n.º 57/98, 18/8, no seu art.º 17º  - atual art.º 13º, L. n.º 37/15- não fazia qualquer alusão   às pessoas coletivas.
A revisão determinada pela Lei n.º 114/09, 22/9, apresenta um artº 17º, que trata da não transcrição das condenações para efeitos civis, apenas relativamente às pessoas singulares. 
Com a Lei nº 37/15  o art.º 13º apresenta-nos uma redação idêntica. Ou seja, o legislador não contempla as pessoas coletivas claramente e, mesmo invocando preceitos constitucionais, há sempre que ter em conta que uma pessoa coletiva que possui uma firma, e tem nome no comércio ou em relações comerciais deve pautar-se por condutas de boa fé, lisura e estar livre de qualquer mancha no seu circuito comercial, laboral ou negocial.
É uma questão de confiança nos meios económicos e laborais.
Há ainda que não esquecer que a evolução legislativa ou seja, os anteriores arts.º 11ºnº 3 e 12ºnº1, L. n.º 57/98 não tinha a redação do atual art.º 10ºnº7 L. n.º 57/98, refere que os C.R.Cs “requeridos por pessoas coletivas (…) contêm todas as decisões de Tribunais portugueses vigentes”. 
Que diferença haverá entre pessoa coletiva e pessoa singular para que o Direito Penal seja mais exigente no que se refere ao registo de comportamentos ilícitos quanto aquela? Certamente a sua natureza tantas vezes referida no diploma legal aplicável á questão tratada aqui.
A personalidade jurídica tem como definição quase invariável a «suscetibilidade de ser sujeito de direitos e obrigações». Ora tanto a pessoa coletiva como a singular o são.
A personalidade jurídica pode ser singular ou coletiva.
É singular quando referida a pessoa humana adquirindo-se no momento do nascimento completo e com vida e cessa com a morte.
É coletiva quando referida a organizações de pessoas e/ou de bens iniciando-se com a constituição e o reconhecimento e cessa com a  dissolução da pessoa coletiva, liquidação e transmissão dos seus bens. 
O termo “pessoa coletiva” foi fixado na bibliografia jurídica portuguesa por Guilherme Moreira, que, no início do século XX, publicou a obra intitulada “Da Personalidade Coletiva”, na qual o autor designava as pessoas coletivas como entes jurídicos não humanos[1].
Na obra referida, o autor defendeu, de um modo pioneiro, o uso da denominação pessoa coletiva por contraste a expressões como pessoas jurídicas, pessoas morais, pessoas sociais, pessoas fictícias ou até mesmo pessoas abstratas, que eram bastante usuais na época e que serviam para designar os entes jurídicos não humanos.
Segundo Pais de Vasconcelos[2], a personalidade das pessoas singulares é supralegal, enquanto que a das pessoas coletivas é legal, ou seja, o Direito e a lei não têm poder de conceder ou recusar a personalidade às pessoas singulares, mas são o Direito e a Lei que constituem e excluem a personalidade coletiva.
Oliveira Ascensão concorda com esta dicotomização entre a personalidade das pessoas singulares e a personalidade das pessoas coletivas, mas discorda desta equiparação analógica de regimes.
Para Mota Pinto e Pinto Monteiro[3] à categoria de pessoas coletivas pertencem, entre outras o Estado, os municípios, os distritos, as sociedades comerciais, os institutos públicos, as associações recreativas ou culturais e as fundações. 
Segundo Carvalho Fernandes pessoa coletiva é um organismo social destinado a um fim lícito, a que o Direito atribui a suscetibilidade de direitos e vinculações, ou seja, a possibilidade de ser sujeito de relações jurídicas.
A existência de pessoas coletivas resulta do facto de existirem interesses humanos duradouros comuns e coletivos, em que a obtenção destes interesses impõe a afluência dos meios e atividades de várias pessoas, logo, exige o Estado, ou exige o Legislador uma maior visibilidade das suas atividades.
A personalidade jurídica, de modo geral, constitui uma formação real do próprio Direito e o mesmo acontece, especificamente, para as pessoas coletivas. A personalidade jurídica, quer das pessoas singulares, quer das pessoas coletivas, é um conceito jurídico e uma realidade. No entanto e, ainda assim, a personalidade coletiva não pode ser confundida com a personalidade singular, nem deve ser colocada no mesmo grau ou patamar, dado que só a pessoa humana (pessoa singular), tem dignidade própria, com características autónomas e até mesmo suprajurídicas, que não são criadas pelo Direito, uma vez que este apenas se limita a reconhecê-las.
 No entanto e ainda assim, a construção normativa das pessoas coletivas não pode ser encarada como uma ficção, uma vez que estas, sendo também pessoas jurídicas, são semelhantes às pessoas singulares e o seu agir existe no âmbito da autonomia privada e tem como fator inerente a responsabilidade. Elas são detentoras de direitos, nomeadamente de direitos de personalidade, na exata medida em que a sua titularidade seja indispensável à prossecução de fim que almejam sendo, também, consideradas como sujeitos de Direito e titulares de obrigações e deveres.
A personalidade jurídica, nas pessoas coletivas, trata-se de um processo técnico de organização das relações jurídicas relacionadas com essas mesmas pessoas, ou seja, pode-se considerar que os direitos das pessoas coletivas são direitos de caráter funcional, já que estas agem e interagem na vida e no comércio jurídico como entes social e juridicamente autónomos e independentes que devem reger-se por regras e normas não violando nenhumas delas para garantia coletiva de todos e possibilidade de interagirem neste comércio sem sanções. Daí repete-se o legislador exigir uma maior visibilidade quanto às suas condutas.
O tipo de sanções que lhes são aplicáveis também são diferentes e a medida da pena é avaliada tendo em conta a culpa, mas uma culpa despida de emoções e vontades, uma culpa coletiva na maior parte dos casos que, embora por interposta pessoa, mancha a atividade a que se destina a pessoa em si, e deve, para garantia de todos, permanecer registada, visível, conhecida. Faz parte da própria sanção que lhes é infligida.
Foi isso que o legislador entendeu como necessário para garantia das exigências de prevenção geral mais que da prevenção especial. Um crime de abuso de confiança fiscal, por exemplo, deve ser do conhecimento de todos, é por isso que muitas pessoas coletivas vêem as decisões que as condenam publicitadas e publicadas.
Na verdade, logo pela letra da lei ou pelo elemento literal conclui-se claramente que as pessoas coletivas não podem requerer, nem os Tribunais decidir quanto a elas, a não transcrição no registo para efeitos meramente civis.
 O legislador assim o entendeu para segurança das relações comerciais e económicas e garantia de diminuição das exigências de prevenção geral exigindo uma maior visibilidade das suas atividades. (no mesmo sentido, vide Acórdão do T.R.G., processo 2137/10.9TABRG-A.G, de 06-02-2017, consultável emhttp://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/498b242cab17a8a9802580c70053d44e?Ope nDocument,)
Assim, inexiste a apontada interpretação violadora de preceitos constitucionais que a recorrente imputa ao decidido, desde logo porque a inserção, em sede de registo criminal, de uma condenação transitada em julgado, não é violadora do disposto no artº 26 da CRP, já que se reconduz à constatação de uma verdade juridicamente relevante, nem se mostram violados os princípios da universalidade e da igualdade, uma vez que se limita a dar tratamento diverso, a realidades diferentes. De facto, a possibilidade de não transcrição em relação a condenações sofridas por pessoas singulares, para efeitos civis, estriba-se numa finalidade específica, que se reconduz a evitar, em casos de condenações menos graves, a desinserção social e a estigmatização do agente, não o prejudicando, nomeadamente em termos laborais ou de acesso ao emprego. Esse fundamento não se verifica relativamente a pessoas coletivas e, como tal, a diversa solução jurídica legal não acarreta a violação dos sobreditos princípios.
Finalmente, não viola, igualmente, o disposto no artº 30 da CRP uma vez que a Lei permite quer a reabilitação – mesmo em relação a condenações sofridas por pessoas coletivas – quer a eliminação de anteriores condenações, pelo decurso de determinado lapso temporal.
Assim decide-se 
Negar provimento ao recurso interposto mantendo a decisão recorrida.  
Custas pela recorrente fixando a taxa de justiça em 4 Ucs .DN
 
Lisboa,13.01.2021
Adelina Barradas de Oliveira
Margarida Ramos de Almeida  
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[1] Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Parte Geral, Tomo IV - Pessoas. Coimbra: Almedina O Levantamento da Personalidade Coletiva: no Direito Civil e Comercial. Coimbra: Almedina.
[2] Pais de Vasconcelos, P. (2006). Direitos de Personalidade. Coimbra: Almedina
[3] O Direito: Introdução e Teoria Geral. 13ª edição. Coimbra: Almedina