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AÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
FASE ADMINISTRATIVA
AUTO
EXCEPÇÃO DILATÓRIA ATÍPICA
Sumário
I - Verifica-se uma exceção dilatória atípica quando existe circunstância que obsta ao conhecimento de mérito. II - Antes de a instância da ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho (art.º 186º-K do Código de Processo do Trabalho) se iniciar, tem lugar fase administrativa, junto da ACT, como previsto no nº 1 do art.º 15º-A do RPCOLSS, a qual se traduz apenas na recolha de indícios e no facultar à “beneficiária da atividade” a possibilidade de regularizar a situação ou dizer o que tiver por conveniente sobre esses indícios. III - A elaboração de Auto, nessa fase, com identificação de forma errada do representante legal da “beneficiária da atividade”, que foi notificado a essa beneficiária e em nada interferiu com a possibilidade de a “beneficiária da atividade” dizer o que teve por conveniente, não integra uma exceção dilatória atípica, não impedindo o conhecimento de mérito.
Texto Integral
Recurso de apelação n.º 4757/20.4T8VNG.P1
Origem: Comarca do Porto, Juízo do Trabalho de Vila Nova de Gaia – J2
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
O MºPº instaurou a presente ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho (art.ºs 186º-K ss do Código de Processo do Trabalho) contra “B…, SA”, pedindo a condenação da Ré a reconhecer a existência de um contrato de trabalho com o jornalista C…, com inicio em 09 de maio de 2019, nos termos do qual este exerce por conta da mesma as ditas funções de jornalista.
Fundou o seu pedido, em síntese, que a Ré admitiu C… para desempenhar as funções de jornalista, inicialmente em contexto de estágio e depois celebrando contrato designado de prestação de serviços, mas na realidade trata-se de um contrato de trabalho.
Citada a Ré para poder contestar, apresentou contestação na qual alegou, em resumo:
-- a nulidade do Auto originariamente elaborado pela ACT, configurando exceção dilatória inominada que deve conduzir à absolvição da Ré da instância;
-- que o pedido de reconhecimento de contrato de trabalho deve ser julgado liminarmente improcedente por implicar a constituição de um ato nulo;
-- em todo o caso, o contrato celebrado tem como objeto a prestação de serviços concretos e determinados, não estado em causa uma relação de trabalho subordinado.
Conclui que devem ser as exceções invocadas ser julgadas procedentes e em consequência ser determinada a absolvição da Ré da instância, ou, em qualquer caso, deve a ação ser julgada improcedente e a Ré absolvida do pedido.
Foi proferido despacho a determinar o exercício do contraditório em relação à contestação, com notificação também do trabalhador nos termos do nº 4 do art.º 186º-L do Código de Processo do Trabalho, tendo o MºPº apresentado resposta defendendo que as exceções invocadas pela Ré deveriam ser julgadas improcedentes, e o trabalhador apresentado requerimento indicando testemunhas.
Foi proferido despacho a determinar a junção, pelo MºPº/Autor, de documento.
Foi depois proferido despacho decidindo julgar verificada a existência de uma exceção dilatória inominada e absolver a Ré da instância nos termos dos art.ºs 576º, nºs 1 e 2 e 278º, nº 1, al. e) do Código de Processo Civil, cujo teor desde já se transcreve[1] (por ser o despacho recorrido):
Na presente ação de reconhecimento do contrato de trabalho deduzida pelo Ministério Público contra B…, S.A. veio aquele arguir a nulidade do auto originário enviado à Ré.
De acordo com o artigo 15º-A da Lei 107/2009, de 14.09 sob a epigrafe “Procedimento a adotar em caso de inadequação do vínculo que titula a prestação de uma atividade em condições correspondentes às do contrato de trabalho”, caso o inspetor do trabalho verifique, na relação entre a pessoa que presta uma atividade e outra ou outras que dela beneficiam, a existência de características de contrato de trabalho, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 12.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, lavra um auto e notifica o empregador para, no prazo de 10 dias, regularizar a situação, ou se pronunciar dizendo o que tiver por conveniente (nº 1).
De acordo com o nº 2 daquele normativo, o procedimento é imediatamente arquivado no caso em que o empregador faça prova da regularização da situação do trabalhador, designadamente mediante a apresentação do contrato de trabalho ou de documento comprovativo da existência do mesmo, reportada à data do início da relação laboral. Ainda dispõe o nº 3 que “Findo o prazo referido no n.º 1 sem que a situação do trabalhador em causa se mostre devidamente regularizada, a ACT remete, em cinco dias, participação dos factos para os serviços do Ministério Público junto do tribunal do lugar da prestação da atividade, acompanhada de todos os elementos de prova recolhidos, para fins de instauração de ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho”.
Conforme resulta dos elementos carreados para os autos, inclusive da referência 27191906 de 30.10, a notificação feita nos termos do artigo 15ºA, nº 1 da Lei 107/2009 pela ACT sob a referência NT 1920502085 em 30.06.2020 ocorreu nos membros do Conselho Fiscal da B….
Da conjugação dos artigos 7º, 11º, 19º, 24º e 29º da Lei 8/2007 de 14.02 atualizado pela Lei 39/2014 de 09.07, diploma que procede à reestruturação da concessionária do serviço público de rádio e televisão é evidente que a notificação em causa deveria ter ocorrido nos membros do Conselho de Administração, órgão legitimidade para se pronunciar e assegurar o direito de defesa da Ré nesta situação.
Nos termos daquela comunicação, foi a Ré para, “no prazo de 10 dias, regularizar a situação ou pronunciar-se dizendo o que tiver por conveniente”.
A Ré pronunciou-se (cfr. ref. 27191906 de 30.10) invocando a nulidade das notificação efetuada por errada identificação dos representantes legais da Ré, a impossibilidade de regularização da situação em causa na medida em que a celebração do contrato de trabalho neste âmbito necessita de prévia autorização governamental; a especificidade da natureza desenvolvida pela B… e a inexistência de indícios suscetíveis de caraterizar a relação como laboral.
O ACT nada disse relativamente a esta defesa apresentada, elaborando o auto de participação nº ………. junto com a p.i. de 14.07.2020 onde remete para uma auto com a mesma data onde aí indica os membros do Conselho de Administração da Ré e que junta em anexo.
Analisado todo este circunstancialismo, o mesmo evidencia não só a omissão de pronúncia por parte da Autoridade para as Condições de Trabalho sobre as questões suscitadas pela Ré como também a fabricação de um novo auto em quase tudo idêntico ao anterior (com a ref. 1920502085) com uma nova data (14 de junho de 2020) e com a identificação correta dos representantes legais da Ré – os membros do Conselho de Administração) e que nunca foi notificado à Ré.
Assim, em conclusão:
O que temos é que a participação dos factos feita aos Serviços de Ministério Público para fins de instauração de ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho não ocorreu com base no auto que foi inicialmente notificado à Ré.
Estas omissões e preterição de formalidades legais (que se consubstanciam em verdadeiros “atropelos” da lei) consubstanciam, a nosso ver, uma irregularidade nos termos do artigo 123º do CPP ex vi artigo 60º da Lei 107/2009 de 14.09 e 32º do DL 433/82, de 27.10. que determinam a invalidade do ato praticado pelo ACT – a participação efetuada aos serviços do Ministério Público e consequentemente, a instauração da presente ação - já que esta não poderia ser apresentada em juízo nos condicionalismos em que o foi, tendo sido posta em causa o direito ao contraditório da Ré que jamais teve oportunidade de se pronunciar sobre este novo auto que acompanhou a participação, tendo havido uma evidente violação dos mais elementares direitos de defesa.
Pelo exposto, julgo verificada a existência de uma exceção dilatória inominada e absolvo a Ré da instância nos termos dos artigos 576º, nº 1 e 2 e 278º, nº 1, al. e) do CPC.
Foi fixado o valor da ação em € 2.000,00.
Não se conformando com a decisão proferida, dela veio o MºPº interpor recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES, que se transcrevem:
1º De acordo com o disposto no art.º 40º dos estatutos da Ré B…, SA, aprovados e republicados pela Lei 39/2014, de 09/07, é aplicável aos trabalhadores da Ré o regime jurídico do contrato individual de trabalho.
2º Assim, a Ré tem de se conformar com as regras do Código do Trabalho, designadamente, com o art.º 12º, que estabelece critérios presuntivos de laboralidade e sanciona a utilização de trabalho dissimulado;
3º Na sequência da ação inspetiva desenvolvida pela Autoridade para as Condições de Trabalho verificou-se a existência de indícios de ume situação de prestação de atividade aparentemente autónoma, em condições análogas ao contrato de trabalho, relativamente à entidade B…, SA e ao prestador da atividade C…;
4º Foi a entidade beneficiária da atividade notificada nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 15º-A, da Lei nº 107/2009, na redação dada pela Lei nº 63/2013, de 27/8, para no prazo de 10 dias regularizar a situação ou pronunciar-se.
5º A entidade beneficiária não regularizou a situação, tendo apresentado, dentro do prazo legalmente determinado, resposta à referida notificação, pronunciando-se circunstanciadamente sobre os factos imputados, revelando ter tido conhecimento completo do seu teor.
6º Em causa está a apreciação da qualificação jurídica da relação contratual entre a Ré e o respetivo prestador da atividade: se de contrato de trabalho previsto no art.º 1152º do Código Civil e 11º do Código do Trabalho, se de contrato de prestação de serviços, previsto no art.º 1154º do Código Civil.
7º É facto que a participação dos factos ao Ministério Púbico para fins de instauração da ação, não ocorreu com base no auto inicialmente notificado à Ré, lavrado em 29-06-2020, mas sim num outro, lavrado em 14-07-2020.
8º Porém, ambos os autos foram lavrados na sequência da mesma visita inspetiva, efetuada pela Srª inspetora da ACT em 21-05-2020, sendo os factos relatados os mesmos, identificando-se, contudo, no primeiro, os membros do Conselho Fiscal da Ré e, no segundo, os membros do Conselho de Administração da Ré;
9º Porém, a Ré “B…, SA” foi notificada dos factos apurados pela Srª inspetora na visita efetuada e respondeu à referida notificação, requerendo o arquivamento dos autos/notificações, fosse pelas nulidades de que padecem, fosse pela inexistência de utilização indevida de contrato de prestação de serviços, relativo a qualquer um dos prestadores de serviços, nomeadamente C….
10º E tal resposta foi dada através do Ex.mº Advogado, constituído procurador da Ré nos autos por dois dos membros de Conselho de Administração da Ré, concretamente os Ex.mºs D… e E…, conforme procuração junta a fls. 33 dos autos.
11º A Ré contestou também a ação quando citada para o efeito, nos termos do art.º 186º-L, nº 2, do Código de Processo do Trabalho;
12º Não se vê, assim, que tenha sido posto em causa o direito ao contraditório da Ré.
13º Como omissão de pronúncia da mesma Ré;
14º Mostram-se violados, além do mais, o nº 3 do art.º 186º-N do C.P. Trabalho, introduzido pela Lei nº 63/2019, de 27/8, os art.ºs 12º e 122º, nº 1, do C.T. e art.º 2º, nº 2, do C.P.C.
Termina dizendo dever o recurso ser julgado procedente, substituindo a decisão recorrida por outra em que se considere como não verificada a exceção dilatória inominada, determinando-se, em consequência, o prosseguimento da lide.
A Ré apresentou resposta, formulando as seguintes CONCLUSÕES, que igualmente se transcrevem:
i. A Sentença a quo não merece qualquer censura, ao contrário da atuação da ACT e das conclusões apresentadas pelo Recorrente que lhe dão cobro.
ii. Com o devido respeito, as conclusões formuladas padecem de um clamoroso erro de apreciação fáctica e jurídica, fazem tábua rasa do Direito adjetivo aplicável in casu e, sendo coniventes com uma atuação flagrante e censuravelmente ilícita por parte da ACT, estão inequivocamente votadas à improcedência.
iii. O Auto de notícia de que a Ré foi notificada, elaborado pela ACT a 29 de junho de 2020, é inválido, porquanto identifica incorretamente os representantes legais da Recorrida, identificando os membros do Conselho Fiscal, ao invés de identificar os membros do Conselho de Administração (cfr. art.º 15º, nº 2 da Lei n.º 107/2009 e art.º 24º dos Estatutos da B…).
iv. Muito embora a Ré tenha sido dificultada no seu direito de defesa por, através de um irónico e incoerente ato formalista, a ACT lhe ter indeferido o requerimento de prorrogação do prazo para apresentar a sua resposta à notificação, a Recorrida apresentou a sua defesa tempestivamente, invocando, desde logo, nessa sede, a invalidade do Auto com base no supra indicado.
v. Apercebendo-se do seu erro, aceitando tacitamente a invalidade invocada, a ACT sanou sub-repticiamente o seu próprio vício, fabricando um novo Auto, com data distinta, no qual identifica os membros do Conselho de Administração da Ré,
vi. Furtando-se, porém, de notificar esse novo Auto à Ré, abstendo-se, ainda, de se pronunciar sobre a invalidade invocada ou sobre as demais questões processuais suscitadas. Mas mais,
vii. Num ato ainda mais censurável e imbuído de má fé, a ACT forjou todo o processo, incorporando aquele novo Auto que, à margem da lei, fabricou e sobre o qual a B… nunca teve oportunidade de se pronunciar, na participação dirigida ao Ministério Público para efeitos de instauração da presente ação.
viii. Com a sua conduta, a ACT ignora todos os princípios constitucionais e infraconstitucionais a que está vinculada na sua atuação, atropelando o Direito adjetivo aplicável, atentando, consequentemente, contra os princípios, basilares do nosso ordenamento jurídico, da legalidade e do contraditório.
ix. Os argumentos aduzidos pelo Recorrente são insubsistentes e impregnados de vícios de raciocínio lógico, não merecendo, por conseguinte, qualquer atenção por parte deste Venerando Tribunal.
x. O Recorrente faz tábua rasa das ilicitudes que precederam e estiveram na base da instauração dos presentes autos, enfatizando o caráter publicista inerente à natureza desta ação – de combate à utilização indevida de contratos de prestação de serviços –, ignorando, porém, o interesse público subjacente ao garante do respeito e cumprimento dos trâmites e formalidades processuais exigidos para a adoção dos atos processuais.
xi. Num Estado de Direito os fins não podem justificar os meios, pelo que (sem nunca conceder) a proteção dos bens jurídicos, em concreto, não pode prevalecer sobre os pilares do nosso ordenamento jurídico, nem, outrossim, pode justificar e legitimar a ofensa ao Direito adjetivo aplicável.
xii. Entendimento diverso é cúmplice de um Estado castrador ou anárquico, manifestamente contrário e ofensivo da nossa Lei Fundamental.
xiii. Tendo sido surpreendida, aquando da citação da presente ação, com a existência de um novo Auto, sobre o qual foi preterida a possibilidade de se defender, à Recorrida foi inquestionavelmente vedado o seu direito ao contraditório, sendo, para este efeito, irrelevante a semelhança do conteúdo de ambos os Autos.
xiv. O Auto de Notícia que deu origem aos presentes autos é irrefutavelmente inválido, estando, por conseguinte, inquinados todos os atos que lhe são subsequentes, em concreto, a participação aos Serviços do Ministério Público e, bem assim, a subsequente instauração desta ação, a qual, como muito bem decidiu o Tribunal a quo, não pode prosseguir.
xv. Outro desfecho para os presentes autos que não seja a absolvição da Ré da instância não só deixa impune um claro e inequívoco atropelo à letra e ao espírito da lei, a cujo cumprimento estão vinculados a ACT e o Ministério Público, como compactua com comportamentos gravemente ofensivos de pilares chave do Estado de Direito.
Termina dizendo improceder as conclusões do recorrente, devendo a apelação ser negada e a decisão a quo ser mantida na íntegra.
Foi proferido despacho a mandar subir o recurso de apelação, imediatamente, nos próprios autos, e com efeito meramente devolutivo.
O Senhor Procurador-Geral-Adjunto, neste Tribunal da Relação, teve vista do processo, declarando estar neste processo legalmente vedada a emissão de parecer dado ser o MºPº Autor e recorrente.
Procedeu-se a exame preliminar, foram colhidos os vistos, após o que o processo foi submetido à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
Conforme vem sendo entendimento uniforme, e como se extrai do nº 3 do art.º 635º do Código de Processo Civil (cfr. também os art.ºs 637º, nº 2, 1ª parte, 639º, nºs 1 a 3, e 635º, nº 4 do Código de Processo Civil – todos aplicáveis por força do art.º 87º, nº 1 do Código de Processo do Trabalho), o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação apresentada[2], sem prejuízo, naturalmente, das questões de conhecimento oficioso.
Assim, aquilo que importa apreciar e decidir neste caso é saber se se verifica uma exceção dilatória inominada, consubstanciada em irregularidade nos termos do art.º 123º do Código de Processo Penal, decorrente da invalidade da participação efetuada pela ACT aos serviços do MºPº que deu origem ao presente processo.
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Para apreciação dessa questão importa ter presente o desenvolvimento procedimental relevante que teve lugar até de ser apresentada a petição inicial (PI), que é o seguinte, como se alcança compulsando o processo:
1) Em 29.06.2020 o Centro Local do Grande Porto da ACT elaborou, ao abrigo do disposto no nº 1 do art.º 15º-A do regime processual aplicável às contra ordenações laborais e da Segurança Social, aprovado pela Lei nº 107/2009, de 14 de setembro (doravante designado por RPCOLSS), “Auto por inadequação do vínculo que titula a prestação de atividade”, identificando como “beneficiária da atividade” a “B…, SA”, e identificando como representantes legais da mesma os membros do seu Conselho Fiscal: F… (Presidente), G… (Vogal) e H… (Vogal).
2) Tal Auto foi notificado à “beneficiária da atividade” nos termos e para efeitos do nº 1 do art.º 15º-A doRPCOLSS, por email de 30.06.2020 dirigido a I…, e por correio registado em 02.07.2020 dirigido a “Drª I…, B…, SA”.
3) A “beneficiária da atividade” remeteu ao Centro Local do Grande Porto da ACT, através do seu ilustre mandatário (Dr. J…) requerimento solicitando a prorrogação do prazo concedido por igual período de 10 dias.
4) O Centro Local do Grande Porto da ACT respondeu ao mandatário, por email de 08.07.2020, informando não poder o serviço administrativo proceder a qualquer alteração do prazo legalmente fixado.
5) A “beneficiária da atividade” apresentou requerimento em que refere “tendo sido notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 15-A, nº 1, da Lei nº 107/2009, de 14 de setembro … vem pronunciar-se nos seguintes termos”, no qual alega, entre o mais, a nulidade do Auto e respetiva notificação enviada, por estarem identificados como representantes legais os membros do Conselho Fiscal quando a representação legal da “beneficiária da atividade” compete ao Conselho de Administração.
6) Com data de 14.07.2020 o Centro Local do Grande Porto da ACT elaborou “Auto por inadequação do vínculo que titula a prestação de atividade” idêntico ao de 29.06.2020, mas identificando como representantes legais da “beneficiária da atividade” os membros do seu Conselho de Administração: D… (Presidente), K… (Vogal executivo) e E… (Vogal executivo).
7) O Auto referido no ponto anterior não foi notificado à “beneficiária da atividade”.
8) O Centro Local do Grande Porto da ACT enviou depois aos Serviços do MºPº junto do Juízo do Trabalho de Vila Nova de Gaia, nos termos do nº 3 do art.º 15º-A doRPCOLSS, participação para fins de instauração de ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, anexando o Auto referido em 6).
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Tendo presente esta factualidade, bem como a contida no relatório supra, apreciemos então a questão suscitada, começando por situar processualmente a elaboração do Auto que o tribunal a quo considerou integrar, a par da elaboração de novo Auto sem conhecer da nulidade suscitada pela “beneficiária da atividade”, uma preterição de formalidades legais que consubstanciam uma irregularidade nos termos do art.º 123º do Código de Processo Penal, determinando a invalidade da participação efetuada pela ACT aos Serviços do MºPº.
Ou seja, considerou o tribunal a quo que estamos perante uma invalidade residual relevante, pois, como é sabido, em processo penal, o ato que não seja tipificado como nulidade constitui uma «irregularidade», mas só sendo relevantes aquelas que possam afetar o valor do ato praticado.
A Lei nº 63/2013, de 27 de agosto, veio instituir mecanismos de combate à utilização indevida do contrato de prestação de serviços em relações de trabalho subordinado, através de um procedimento administrativo da competência da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) e de um novo tipo de ação judicial, a ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho (que passou a estar prevista nos art.ºs 186º-K ss do Código de Processo do Trabalho) [4].
Com essa Lei, foi aditado o art.º 15º-A ao RPCOLSS, com a epígrafe «Procedimento a adotar em caso de inadequação do vínculo que titula a prestação de uma atividade em condições correspondentes às do contrato de trabalho», e com o seguinte teor:
1- Caso o inspetor do trabalho verifique, na relação entre a pessoa que presta uma atividade e outra ou outras que dela beneficiam, a existência de características de contrato de trabalho, nos termos previstos no nº 1 do artigo 12º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, lavra um auto e notifica o empregador para, no prazo de 10 dias, regularizar a situação, ou se pronunciar dizendo o que tiver por conveniente.
2- O procedimento é imediatamente arquivado no caso em que o empregador faça prova da regularização da situação do trabalhador, designadamente mediante a apresentação do contrato de trabalho ou de documento comprovativo da existência do mesmo, reportada à data do início da relação laboral.
3- Findo o prazo referido no nº 1 sem que a situação do trabalhador em causa se mostre devidamente regularizada, a ACT remete, em cinco dias, participação dos factos para os serviços do Ministério Público junto do tribunal do lugar da prestação da atividade, acompanhada de todos os elementos de prova recolhidos, para fins de instauração de ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.
4- A ação referida no número anterior suspende até ao trânsito em julgado da decisão o procedimento contraordenacional ou a execução com ela relacionada.
Como se vê, a ação de reconhecimento de existência de contrato de trabalho (prevista nos art.ºs 186º-K ss do Código de Processo do Trabalho) tem subjacente um procedimento prévio (previsto no artigo 15.º-A do RPCOLSS), no qual, tendo sido verificada a existência de indícios de uma situação de prestação de atividade, aparentemente autónoma, em condições análogas às de um contrato de trabalho, e na falta de regularização da situação pela entidade empregadora, a ACT remete participação dos factos para os serviços do Ministério Público para fins de instauração de ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho.
Ou seja, esta ação tem na sua base uma verificação prévia por parte da ACT, a quem foram atribuídas competências para o efeito, de existência de indícios de uma situação de qualificação fraudulenta (e legalmente proibida) de um determinado contrato como tendo uma natureza diferente de um contrato de trabalho, com o objetivo da subtração da relação em causa ao regime laboral, causando-se com isso prejuízo ao trabalhador e ao Estado.
Assim, como referem João Correia e Albertina Pereira[5], deparamo-nos com 3 fases: uma primeira meramente administrativa, cuja tramitação cabe à ACT, e uma terceira puramente judicial, que se inicia com a eventual propositura de ação pelo Ministério Público, e de permeio ocorrem algumas diligências que assumem uma natureza híbrida (simultaneamente administrativa e para-judicial que culmina na remessa da participação da ACT para o Ministério Público intentar a ação).
Com relevo para a decisão do recurso, importa ainda referir que a instância na ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, nos termos do nº 6 do art.º 26º do Código de Processo do Trabalho, se inicia com o recebimento da participação (dos factos remetida pela ACT aos serviços do MºPº) [regime divergente do estabelecido no nº 1 do art.º 259º do Código de Processo Civil].
A questão posta neste processo prende-se com o Auto que esteve na base da participação elaborada pela ACT, gerada pelo procedimento contido no artigo 15.º-A do RPCOLSS, ou seja, prende-se com o procedimento que conduziu ao início da instância, mais propriamente da circunstância de ser elaborado um Auto em 29.06.2020, de que foi dado conhecimento à “beneficiária da atividade”, mas, depois de a “beneficiária da atividade” suscitar a sua nulidade, ser elaborado outro Auto, de que não lhe foi dado conhecimento, o qual acompanhou a participação ao MºPº.
Ora, há que dizer que nenhuma invalidade se alcança da circunstância de a participação enviada aos serviços do MºPº se fazer acompanhar, não do Auto elaborado em 29.06.2020, mas daquele outro Auto (não enviado à “beneficiária da atividade”).
É que o Auto enviado é idêntico ao de 29.06.2020 em termos de factos (cfr. supra ponto 6).
Com efeito, do nº 3 do art.º 15º-A acima transcrito resulta que a acompanhar a participação devem ser juntos os elementos que apontem para a existência de indícios de uma situação de prestação de atividade, aparentemente autónoma, em condições análogas às de um contrato de trabalho (nesta fase só se pode falar em indícios), e esses elementos têm que se considerar terem sido juntos na medida em que é enviada a descrição dos factos indiciados, factos esses de que foi dado conhecimento à “beneficiária da atividade”.
Para concluirmos assim temos presente que será depois, na fase de instrução – art.º 186º-N, nº 3 do Código de Processo do Trabalho –, que serão analisadas as provas que não incluem necessariamente o Auto, e temos também presente que o Auto deverá conter os elementos referidos no art.º 15º do RPCOLSS, estabelecendo o nº 2 que sendo o responsável pela contra ordenação uma pessoa coletiva ou equiparada, indica-se, sempre que possível, a sede da pessoa coletiva e a identificação e a residência dos respetivos gerentes, administradores ou diretores.
Como escreve João Soares Ribeiro[6], a ratio da expressão “sempre que possível” contida no nº 2 tem a ver com o facto de aqueles representantes legais serem responsáveis solidários com a própria pessoa coletiva pelo pagamento da coima (cfr. art.º 551º do Código do Trabalho) e, por isso, haver necessidade de serem notificados para o efeito.
Há que salientar ainda que o Auto elaborado dará origem a procedimento contraordenacional, que ficará, porém, como prescreve o nº 4 do art.º 15º-A acima transcrito, suspenso até ao trânsito em julgado da decisão final a proferir na ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, não estando neste último processo em causa a existência de eventual responsabilidade contraordenacional ou regularidade de procedimento contraordenacional (caso seja na ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho reconhecida a existência de contrato de trabalho, depois disso, caso aconteça, estará aberto o caminho para, eventualmente, se discutir toda uma outra série de questões[7]).
Ou seja, neste processo não está em questão a avaliação de eventual invalidade do procedimento contraordenacional, mas tão só a apreciação da instância duma ação de natureza cível (cfr. art.º 126º da Lei da Organização do Sistema Judiciário), de saber se alguma circunstância obsta a que nessa instância se conheça de mérito (circunstância essa que, nessa medida, poderá configurar uma exceção dilatória inominada ou atípica[8]).
Dito de outra forma, neste processo de natureza cível importa ver se existe uma invalidade na acima referida primeira fase (meramente administrativa) que leve a considerar não ser possível vir aqui a conhecer de mérito, invalidade essa que in casu se reporta mais concretamente ao Auto de 29.06.2020.
No caso em apreço, é pacífico que o Auto de 29.06.2020 identifica mal o representante legal da “beneficiária da atividade”, pois identifica os elementos do Conselho Fiscal, quando o representante legal é o Conselho de Administração, tendo a “beneficiária da atividade” alegado junto de quem elaborou o Auto a sua invalidade e da sua notificação, sem que houvesse resposta (resulta que foi elaborado um outro Auto, com a identificação correta do representante legal, sem ser dado conhecimento dele).
É claro que o procedimento seguido pela ACT, de elaborar um outro Auto sem justificar a sua elaboração e sem dele dar conhecimento a quem lhe suscitou invalidade no anterior, não pode merecer aprovação.
Todavia, tendo presente o objetivo da identificação dos gerentes, administradores ou diretores da pessoa coletiva no Auto, bem como o enfoque a dar à questão a resolver neste processo, tudo como acima exposto, para se poder falar de invalidade que obstaria a que neste processo se conheça de mérito, impõe-se que o exercício do contraditório previsto no nº 1 do art.º 15º-A acima transcrito tenha sido, senão impedido, pelo menos perturbado de forma relevante.
Na verdade, a referida primeira fase (meramente administrativa) traduz-se apenas na recolha de indícios e no facultar a possibilidade de a “beneficiária da atividade” regularizar a situação ou dizer o que tiver por conveniente sobre os factos verificados, não estando previsto, nem se compreenderia que estivesse, que se desencadeie nesta fase, que podemos apelidar de larvar, junto da entidade administrativa, um procedimento que verse sobre o mérito da situação (o art.º 15º-A acima transcrito é muito claro, o inspetor do trabalho perante indícios lavra Auto, que notifica à “beneficiária da atividade”, e depois das duas uma: ou é regularizada a situação e o procedimento é arquivado, ou não é regularizada a situação e é remetida participação aos serviços do MºPº para ser desencadeada ação cível).
Ora, no caso sub judice, no requerimento que a “beneficiária da atividade” apresentou (o referido no ponto 5), começando por alegar nulidades, a mesma depois pronunciou-se sobre os factos que lhe são imputados no Auto, defendendo a sua posição sobre os mesmos, não deixando a forma minuciosa como expõe o seu ponto de vista em relação ao relatado no Auto quaisquer dúvidas de que o exercício do contraditório em nada foi afetado (note-se que a incorreção estava apenas na identificação do representante legal)[9].
Em suma, chegamos a conclusão diversa da decisão recorrida, isto é, não vemos que com a elaboração do Auto de 29.06.2020 (com identificação errada do representante legal da “beneficiária da atividade”) e sua notificação conforme art.º 15º-A do RPCOLSS, considerando que o contraditório foi exercido sem constrangimentos, não vemos que, repete-se, se possa dizer ter sido afetado o valor do ato praticado, nem que tenha influído na posterior participação/apresentação de PI (não sendo a circunstância de esta ser acompanhada de outro Auto, de que não foi dado conhecimento à “beneficiária da atividade”, mas que contém a descrição dos factos indiciados nos exatos termos em que foi dado conhecimento à “beneficiária da atividade”, e que sobre eles exerceu o contraditório, que leva a dizer que a instância cível se iniciou em termos tais que não poderá vir a ser conhecido de mérito).
Dito de outra forma, não vemos que o referido procedimento configure uma circunstância/invalidade que seja de tratar como exceção dilatória atípica, pois o contraditório foi exercido sem constrangimentos, não sendo essa circunstância que impede se conheça de mérito, devendo por isso os autos prosseguir nos termos do art.º 186º-N do Código de Processo do Trabalho.
Tem, assim, provimento o recurso.
Quanto a custas, sendo concedido provimento ao recurso, as custas do mesmo ficam a cargo da recorrida (art.º 527º do Código de Processo Civil).
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DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desembargadores da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida, considerando-se não se verificar a exceção dilatória atípica ali apontada.
Custas pela recorrida (art.º 527º do Código de Processo Civil), com taxa de justiça conforme tabela I-B anexa ao RCP (cfr. art.º 7º, nº 2 do RCP).
Valor do recurso: o da ação (art.º 12º, nº 2 do RCP).
Notifique e registe.
(texto processado e revisto pelo relator, assinado eletronicamente)
Porto, 22 de fevereiro de 2021
António Luís Carvalhão
Domingos Morais
Paula Leal de Carvalho
_______________ [1] As transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo correção de gralhas evidentes e realces/sublinhados que no geral não se mantêm (porque interessa o texto em si), consignando-se que quanto à ortografia utilizada se adota o Novo Acordo Ortográfico. [2] Vd. António Santos Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 5ª edição, pág. 156 e págs. 545/546 (estas no apêndice I: “recursos no processo do trabalho”). [3] Vd. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal (à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem)”, 4ª edição atualizada, Universidade Católica Editora, pág. 326/327 – nota 2 ao art.º 123º. [4] Vd. a propósito acórdão do TRC de 07.05.2015, consultável em www.dgsi.pt, processo nº 859/14.4T8CTB.C1. [5] In “Código de Processo do Trabalho Anotado – após a revisão operada pela Lei 107/2019, de 9 de setembro”, 2ª edição, Almedina, pág. 263. [6] In “Contra-Ordenações Laborais – Regime Jurídico”, Almedina, 2011 – 3ª edição, págs. 40/41. [7] Vd. acórdão do STJ de 04.04.2018, consultável em www.dgsi.pt, processo nº 2635/17.3T8VFX.L1.S1. [8] O art.º 577º do Código de Processo Civil não faz enumeração taxativa das exceções dilatórias, referindo quais são elas entre outras. [9] Sobre a nulidade da notificação do Auto, pode ver-se o acórdão do TRE de 31.10.2018, consultável em www.dgsi.pt, processo nº 1140/18.5T8STR.E1.