VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
DECLARAÇÕES MEMÓRIA FUTURA
DIREITO DE AUDIÇÃO
DEFERIMENTO
Sumário


I - Não se verificando, em concreto, os pressupostos vertidos no nº1 do art. 271º do CPP, preceito legal invocado pelo Ministério Público para a peticionada tomada de declarações à ofendida, alegada vítima de violência doméstica, cumpre analisar a pretensão sob o prisma legal do regime vertido no art. 33º da Lei nº 112/2009, de 16.09.
II - Por força deste regime jurídico autónomo, no caso de inquérito por crime de violência doméstica, a lei estabeleceu um regime mais favorável, concedendo legitimidade à vítima [a par da concedida ao MP] para requerer a sua própria audição antecipada, reforçando dessarte a sua proteção e evitando as situações de revitimação ocorridas por via da sua nova audição em audiência de julgamento, quando a mesma não se mostrar necessária, mas antes suscetível de colocar em causa a saúde física ou psíquica da ofendida.
III – É consabido que o decurso do tempo é suscetível de perturbar a memória da vítima, fruto do trauma posterior. Nas situações de violência doméstica é ainda frequente a ocorrência de novas ofensas, físicas e/ou psíquicas, por parte do agressor à vítima, por vezes com resultados muito nefastos, quando não fatais, mesmo posteriormente à formalização de denúncia às autoridades competentes por esta, e, em muitos casos, precisamente por a ofendida se “atrever” a exercer esse direito. Ademais, a vítima de violência doméstica que denuncia os factos é frequentemente confrontada com chantagem psicológica por parte dos perpetradores, muitas vezes com vãs promessas de alterarem os seus comportamentos, ou então com ameaças à sua integridade física ou vida, com o fito de aquela, em audiência de julgamento, não prestar declarações ou negar os factos que antes haviam sido por si manifestados e que sustentaram a acusação pública, o que sucede efetivamente em múltiplos casos.
IV - Sendo o indiciado crime de violência doméstica punível com pena de prisão de máximo igual a cinco anos (cf. art. 152º, nºs 1, al. d), e 2, do CP) integra a noção de «criminalidade violenta» tal como definida no art.° 1.°, alínea j), do C.P.P., e, como tal, urge considerar a ofendida uma vítima especialmente vulnerável, e, isto, sem necessidade de averiguar se a mesma preenche algum dos critérios indicados na alínea b) do n° 1 do art.° 67.°-A do CPP [aditado pela Lei nº 130/2015, de 04.09] ou outros que igualmente evidenciem tal especial vulnerabilidade.
V - Também a Lei nº 130/2015, de 04.09, agora para a criminalidade em geral, reconhece, enquanto medida especial de proteção, o direito de audição em declarações para memória futura às vítimas especialmente vulneráveis, em termos idênticos aos previstos para as vítimas de violência doméstica (cf. arts. 21º, nºs 1 e 2, al. d), e 24º).
VI - In casu, verifica-se que: a) a alegada vítima de violência doméstica apresenta vetusta idade [nasceu a -.07.1924, contando, à data da decisão recorrida, com 95 anos de idade, a escassos 19 dias de perfazer 96 anos], sendo que nos situamos ainda num tempo marcado pela pandemia da doença COVID-19, que, desafortunadamente, muitas vidas tem colhido, particularmente entre a população idosa, o que permite afirmar o risco de ocorrência de acometimento de alguma doença grave ou mesmo do indesejado falecimento daquela até que preste declarações em sede de audiência de julgamento (relembre-se que, à data, ainda não havia sido deduzida acusação); b) a suspeita é filha da vítima e, como tal, pessoa que facilmente se pode voltar a aproximar desta, sendo a ofendida, em função da sua avançada idade, notoriamente incapaz de se defender dos indiciados maus tratos sobre si cometidos (quase diariamente) ou que venham a ser cometidos.
VII - Ponderados conjuntamente tais fatores, é de deferir a peticionada tomada de declarações à ofendida, assim assegurando à vítima a justa e legal proteção que a sua especial vulnerabilidade reclama e contribuindo sobremaneira para evitar a indesejável, dado que psicologicamente marcante, repetição de inquirições à mesma; por outro lado, a antecipação da sua inquirição também contribuiria para a preservação da prova e, dessa forma, para assegurar a boa administração da justiça.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO:

No âmbito do Inquérito nº 1384/20.0T9GMR, a correr termos no Ministério Público – Procuradoria da República da Comarca de Braga – DIAP – 2ª Secção Guimarães, no dia 01.07.2020, pelo Exmo. Juiz de Instrução Criminal a exercer funções no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo de Instrução Criminal de Guimarães – Juiz 1, foi proferido o despacho que aqui se transcreve (fls. 21 a 24; referência 168776069):

«Requerimento de fls. 3 e ss
Através do requerimento ora em apreço veio o Ministério Público requerer, nos termos do disposto no artigo 33.º, n.º 1, da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, a realização de diligência de declarações para memória futura da ofendida R. M., nascida em -.7.1924.
Refere, para tanto e em síntese, que investigam-se nos autos factos susceptíveis de configurarem a prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas d) e n.º 2, alínea a), e 3 do Código Penal, na pessoa da ofendida.

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Cumpre apreciar e decidir.

Conforme assinala Damião da Cunha, citado no estudo de Cruz Bucho «Declarações para memória futura (elementos de estudo)», página 3, «parece adquirido genericamente que, num processo de estrutura acusatória, a audiência de julgamento e em especial a produção da prova assume o lugar central no processo penal. A produção da prova que deve servir para fundamentar a convicção do julgador, tem de ser a realizada na audiência e segundo os princípios naturais de um processo de estrutura acusatória: os princípios da imediação, da oralidade e da contraditoriedade na produção da prova.».
Sendo esta a regra, que, em princípio, toda a prova deve ser produzida em audiência, o legislador não podia ignorar as realidades da vida.
Seguindo de perto o referido no estudo supra citado, páginas 8/9, diremos que «pode suceder que a produção de determinada prova apresente carácter de urgência incompatível com a espera do momento normal e oportuno da audiência de julgamento; pode dar-se o caso de haver risco de perda da prova se houver de aguardar-se por aquele momento.
A lei não podia deixar de prover a este perigo, permitindo a produção antecipada da prova. De outro modo prejudicar-se-iam gravemente as garantias de apuramento da verdade, se a lei não acudisse, com uma solução adequada, à necessidade de obtenção urgente do meio de prova que ameaça perder-se.

É esta a finalidade originária dos artigos 271.º e 294.º (cujo regime foi depois tornado extensivo às vitimas de crime de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual) ao permitir que em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha (ou assistente, parte civil, perito ou consultor técnico) que previsivelmente a impeça de ser ouvida, o juiz de instrução, proceda à sua inquirição no decurso do inquérito ou da instrução a fim de que o seu depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
Embora entre nós o ponto seja raramente acentuado, a produção antecipada de prova não constitui apenas uma “esigenze pratiche” (Tonini), um meio cautelar de conservação da prova, mas também um direito, o direito a que se assegure a produção ou conservação da prova através da actuação antecipada e adequada dos meios probatórios, integrando-se no direito à prova.».
A prestação de declarações para memória futura realizada em fase de inquérito ou de instrução constitui uma excepção ao princípio da imediação porque, embora percepcionada de modo directo por um juiz, a prova é produzida perante um juiz (juiz de instrução) que é, em regra, diferente daquele que a vai valorar (juiz de julgamento).

São três os fundamentos ou requisitos gerais da tomada de declarações para memória futura:

- Doença grave que previsivelmente impeça a testemunha (assistente, parte civil, perito ou consultor técnico) de ser inquirida em julgamento;
- Deslocação para o estrangeiro que previsivelmente impeça a testemunha (assistente, parte civil, perito ou consultor técnico) de ser inquirida em julgamento;
- Crimes do catálogo (contra a liberdade e autodeterminação sexual e tráfico de pessoas).
*
Não estando preenchido nenhum destes requisitos, socorre-se o Ministério Público do previsto na Lei 112/2009, de 16 de Setembro – Regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas (não sendo, certamente, indiferentes ou irrelevantes as genéricas recomendações constantes da Directiva nº 5/2019, da Procuradoria-Geral da República).
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 33.º, do referido regime jurídico, o juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
Conforme se refere no estudo a que aludimos supra, no âmbito do crime de violência doméstica o artigo 33.º prevê um regime formalmente autónomo para a prestação de declarações para memória futura, atribuindo, inclusive, legitimidade à vítima, que não constituída assistente ou parte civil.
O objectivo perseguido pelo legislador foi, claramente, o de reforçar a tutela judicial da vítima, consagrando um direito que visa uma protecção célere e eficaz [artigo 3º, alínea a)] e assegurando-lhe uma protecção jurisdicional igualmente célere e eficaz [artigo 3º, alínea h)].
Está em causa o propósito de proteger a vítima, prevenindo a vitimização secundária e a sujeição a pressões desnecessárias.
Neste domínio das declarações para memória futura, o propósito da lei de violência doméstica terá sido o de consagrar a possibilidade de inquirição antecipada da vítima de violência doméstica, conferindo-lhe a este nível um estatuto equivalente ao das vítimas de crimes de tráfico de pessoas ou de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual (artigo 271.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), reforçado ao nível da legitimidade para requerer a produção antecipada de prova.
A redacção legal constante do mencionado n.º 1 do citado artigo 33º não deixa margem para dúvidas sobre o carácter não obrigatório da tomada de declarações para memória futura, ao estatuir que «o juiz (…) pode».
Conforme se deixou escrito no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido no âmbito do processo n.º 689/11.5PBPDL, datado de 11/01/2012 e consultável em www.dgsi.pt, «a redacção originária do CPP de 1987, em coerência com o modelo acusatório que adoptou, previa no seu artigo 271.º que, em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a pudesse vir a impedir de ser ouvida em julgamento, o juiz de instrução procedesse à sua inquirição no decurso do inquérito para que o seu depoimento pudesse, se necessário, vir a ser tomado em conta no julgamento.
Embora o formalismo estabelecido para esse acto possibilitasse, em certa medida, o exercício do contraditório, o acto não decorria em condições idênticas àquelas em que teria lugar se realizado na audiência.
Este instituto, na versão originária do Código, desempenhava uma função puramente cautelar visando obter uma prova que poderia ser impossível de produzir na audiência de julgamento. A prova assim recolhida somente poderia ser utilizada, através da leitura do respectivo auto, se tal viesse a ser necessário.
As revisões de 1998 e de 2007 alteraram a natureza meramente cautelar do artigo 271.º do Código de Processo Penal.
Conquanto esta finalidade se tenha mantido, as declarações para memória futura passaram a poder ter igualmente lugar para protecção de vítimas de determinados crimes. A partir de 1998, dos crimes sexuais e, a partir de 2007, dos crimes de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual. Manteve-se, mesmo quanto às vítimas dos indicados crimes, a menção de que as declarações prestadas para memória futura apenas seriam tomadas em conta na audiência se tal fosse necessário, se bem que se tenham restringido os pressupostos da audição dessas testemunhas na audiência através da introdução da exigência suplementar de o respectivo depoimento não pôr em causa a saúde física ou psíquica de quem o devesse prestar.
O artigo 28.º, n.º 2, da Lei de Protecção das Testemunhas em Processo Penal, ao estabelecer que, «sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal», veio alargar ainda mais o âmbito de aplicação deste preceito. Deixou de ter uma mera função cautelar e de proteger as vítimas de certo tipo de crimes, passando a abranger todas as pessoas que se incluam no amplo conceito de testemunha, tal como ele se encontra definido pelo artigo 2.º, alínea a), da Lei n.º 93/99, de 14/07, e a abarcar qualquer tipo legal de crime.
A Lei n.º 112/2009, de 16/09, veio, por sua vez, no seu art. 33.º, prever um regime formalmente autónomo para a prestação de declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica, se bem que esse regime diste pouco do hoje constante do artigo 271.º do Código de Processo Penal.
Admitindo o artigo 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16/09, que a vítima de violência doméstica possa prestar declarações para memória futura e não se estabelecendo a obrigatoriedade da prática desse acto, importa procurar na lei um critério que permita determinar os casos em que ele deve ter lugar.
Esse critério há-de resultar de uma ponderação entre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça.».

Acrescenta-se, depois, no referido acórdão quanto ao critério que deve nortear o juiz na admissão ou rejeição da prova antecipada em matéria de violência doméstica que «para aplicar o critério traçado a este caso concreto há que ter especialmente em atenção:

– A complexidade do processo, que em muito resulta da personalidade das pessoas envolvidas;
– A importância que a inquirição da queixosa tem para o apuramento da verdade em toda a sua extensão;
– A relevância que para a correcta valoração da prova tem, especialmente neste caso, o contacto directo do juiz de julgamento com as fontes de prova (princípio da imediação em sentido estrito) e a produção concentrada de todos os meios de prova na audiência de julgamento;
– A circunstância de a tomada de declarações da vítima para memória futura durante a fase de inquérito não evitar, muito provavelmente, uma nova inquirição no decurso da audiência;
– O facto de essa inquirição, desde que realizada com as cautelas previstas na lei, não pôr previsivelmente em causa, de uma forma significativa, a saúde psíquica da vítima.».

Ora, ponderando estes elementos à luz do critério supra traçado, afigura-se-nos que não existe motivo suficientemente forte para que se deva proceder durante a fase de inquérito deste processo à tomada de declarações da vítima para memória futura (ainda que a vitima tenha nascido em 1924), tanto mais que, tendo o processo natureza urgente, conforme previsto no artigo 28.º do diploma legal supra citado, a acusação, não tendo ainda sido deduzida, sê-lo-á, certamente, em breve e o julgamento será, por certo, realizado com a urgência que o caso requer.
Refira-se que, de acordo com o constante dos autos, o depoimento da ofendida será essencial o apuramento da verdade em toda a sua extensão, afigurando-se, em todos os casos, mas muito mais nestas circunstâncias, essencial o contacto directo do juiz de julgamento com as fontes de prova (princípio da imediação em sentido estrito) e a produção concentrada de todos os meios de prova na audiência de julgamento.
Por outro lado, a possibilidade de um contraditório pleno do arguido de toda a prova apresentada pelo Ministério Público é, também ele, essencial à justa decisão do caso.
Diremos, por fim, que os argumentos citados pelo Ministério Público quanto á perturbação da personalidade decorrentes da presença em Tribunal em julgamento também irá ocorrer em sede de declarações para memória futura.
Concluindo, pois, no sentido do indeferimento do requerido pelo Ministério Público, não podemos deixar de referir que não nos parece adequado querer transformar uma medida de carácter excepcional, como é o caso das declarações para memória futura, no regime regra.
Acresce que sempre poderia ser requerida a realização da diligência através de videoconferência, a ser realizada com a presença da titular do inquérito sempre melhor para a descoberta da verdade.
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● Decisão.
Nestes termos, tendo em atenção tudo quanto acabo de deixar dito e sem necessidade de ulteriores considerações, decido indeferir o promovido pelo Ministério Público.
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Notifique e devolva os autos aos Serviços do MP.»



▪ Inconformada com tal decisão, veio a Digna Magistrada do Ministério Público interpor o presente recurso, que contém motivação e culmina com as seguintes conclusões – transcrição – e petitório (fls. 47 a 54):

«1 – Requerida a tomada de declarações para memória futura a R. M., nos termos do disposto no artigo 271.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, por esta contar com 96 anos e padecer de várias doenças, foi tal requerimento indeferido por despacho de Mmo. JIC.
2 – Salvo o devido respeito, o despacho viola o disposto no artigo 271.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e o disposto nos artigos 26.º e 28.º da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho;
3 – Considerando que a idosa contar com 96 anos uma interpretação correta do artigo 271.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, determinaria o deferimento do requerido;
4 – Ademais, em face de tais características da idosa, sempre deveria ter sido deferido o requerido porquanto a visada é, numa correta interpretação do artigo 26.º da Lei n.º 93/95, de 14 de julho, testemunha especialmente vulnerável.»
Peticiona a procedência do recurso e, em conformidade, que seja ordenada a tomada de declarações para memória futura a R. M..
▪ Na primeira instância não foi deduzida resposta ao recurso.
▪ Neste Tribunal da Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, comungando da posição da magistrada recorrente, emitiu parecer defendendo procedência do recurso (fls. 78).
Cumprido o disposto no art. 417º, nº2 do CPP, o arguido não apresentou resposta ao parecer.
Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.
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II – ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO (QUESTÃO A DECIDIR):

É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente, CPP, e diploma a que nos referimos sempre que não se indicar outro) (1).
Assim sendo, no caso vertente, a questão que importa dilucidar é se estão verificados, no caso concreto, os requisitos legais para a tomada de declarações à ofendida para memória futura.
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III – APECIAÇÃO:

A decisão recorrida incidiu sobre o requerimento de tomada de declarações para memória futura à ofendida apresentado pelo Ministério Público (MP) no âmbito do sobredito inquérito.
Para tanto, o MP, após indicar os factos que, no seu entender, estavam suficientemente indiciados, suscetíveis de integrar a prática pela denunciada, filha da vítima, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, nº1, al. d), nºs 2, al. a), e 3, do CP, peticiona, nos termos do art. 271º, nº1, do CPP, a audição da vítima nesta fase processual, atendendo, por um lado, à sua idade avançada e, por outro lado, para obstar às consequências nefastas para a evolução da sua personalidade e do equilíbrio psíquico-emocional decorrentes da sua presença em tribunal e nomeadamente em audiência de julgamento.
Alega também, ainda que forma genérica, descarnada de factos, o estado de saúde da ofendida.
O Exmo. Juiz de Instrução não foi sensível a tais argumentos, indeferindo a inquirição, considerando não se encontrarem verificados os requisitos gerais da tomada de declarações para memória futura vertidos no nº1 do art. 271º do CPP, e, abordando o regime especial vertido no art. 33º, nº1 da Lei nº 112/2009, de 16.09 e respetivos critérios de ponderação da sua pertinência e necessidade, entendeu não se justificar no caso a realização antecipada da audição, apesar da avançada idade da vítima. Para fundamentar tal decisão, invocou: a) a natureza urgente do processo, que implicaria, previsivelmente, a marcha célere do mesmo, com brevidade na realização do julgamento; b) o depoimento daquela será essencial para o apuramento da verdade, mostrando-se por isso essencial a sua presença em audiência, com o contacto direto do juiz de julgamento, em consonância com os princípios da imediação, da concentração de prova e do contraditório na audiência de julgamento; c) a perturbação da personalidade da vítima decorrente da presença em Tribunal também irá ocorrer em sede de declarações para memória futura.
Vejamos se colhem os fundamentos invocados para o indeferimento.
Preceitua o art. 271º, nº 1 [redação do artigo introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29.08]: «Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.»
De acordo com o disposto no nº8 do mesmo normativo, a tomada de declarações nesses termos não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.

Constituem fundamentos da tomada de declarações para memória futura:

- Que a testemunha a inquirir esteja afetada por doença grave ou que tenha que se deslocar para o estrangeiro;
- Que seja previsível, quer por causa da doença, quer por causa da deslocação, que a testemunha esteja impedida de depor em julgamento;
- Nos casos de crime de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, a vítima pode ser ouvida em declarações para memória futura [tal diligência é obrigatório quanto a ofendido menor em crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, nos termos do nº 2], dispensando-se a verificação dos sobreditos requisitos.

No caso, como observa o tribunal recorrido, não se verificam os pressupostos vertidos no nº1 do art. 271º do CPP, preceito legal invocado pelo Ministério Público para a tomada de declarações.
De todo o modo, como bem fez o Mmo. Juiz em primeira instância, cumpre analisar a questão sob o prisma legal do regime vertido no art. 33º da Lei nº 112/2009, de 16.09 [estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas].

Prescreve o art. 33º da Lei 112/2009:

«Declarações para memória futura
1 – O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 - O Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
3 - A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo a vítima ser assistida no decurso do acto processual pelo técnico de apoio à vítima ou por outro profissional que lhe tenha vindo a prestar apoio psicológico ou psiquiátrico, previamente autorizados pelo tribunal. [redação da Lei nº 129/2015, de 03.09]
4 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados constituídos e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.
5 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º do Código de Processo Penal.
6 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e a acareações.
7 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.»

Temos, pois, que, por força deste regime jurídico autónomo, no caso de inquérito por crime de violência doméstica, como sucede no ajuizado caso, a audição da vitima em declarações para memória futura poderá ocorrer a requerimento do Ministério Público ou da própria vitima. Estabeleceu assim a lei um regime mais favorável nas situações de violência doméstica, concedendo legitimidade à vítima para requerer a sua própria audição antecipada, reforçando assim a sua proteção e evitando as situações de revitimação ocorridas por via da sua nova audição em audiência de julgamento, quando a mesma não se mostrar necessária, mas antes suscetível de colocar em causa a saúde física ou psíquica da ofendida.

Por outro lado, como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30.04.2020, processo nº14/20.4PBRGR-A.L1, 9ª Secção (2), “é sabido que quanto mais tardiamente são prestadas as declarações pelas vítimas, mais se intensificam as perturbações da memória fruto do trauma posterior”.
Nas situações de violência doméstica é ainda frequente a ocorrência de novas ofensas, físicas e/ou psíquicas, por parte do agressor à vítima, por vezes com resultados muito nefastos, quando não fatais, mesmo posteriormente à formalização de denúncia às autoridades competentes por esta, e, em muitos casos, precisamente por a ofendida se “atrever” a exercer esse direito.
Ademais, como resulta da nossa experiência forense (por certo, comum à de muitos magistrados), a vítima de violência doméstica que denuncia os factos é frequentemente confrontada com chantagem psicológica por parte dos perpetradores, muitas vezes com vãs promessas de alterarem os seus comportamentos, ou então com ameaças à sua integridade física ou vida, com o fito de aquela, em audiência de julgamento, não prestar declarações ou negar os factos que antes haviam sido por si manifestados e que sustentaram a acusação pública, o que sucede efetivamente em múltiplos casos.
Note-se que, sendo o indiciado crime de violência doméstica punível com pena de prisão de máximo igual a cinco anos (cf. art. 152º, nºs 1, al. d), e 2, do CP) integra a noção de «criminalidade violenta» tal como definida no art.° 1.°, alínea j), do C.P.P., e, como tal, urge considerar a ofendida uma vítima especialmente vulnerável, e, isto, sem necessidade de averiguar se a mesma preenche algum dos critérios indicados na alínea b) do n° 1 do art.° 67.°-A do CPP [aditado pela Lei nº 130/2015, de 04.09] ou outros que igualmente evidenciem tal especial vulnerabilidade.
Também a Lei nº 130/2015, de 04.09, agora para a criminalidade em geral, reconhece, enquanto medida especial de proteção, o direito de audição em declarações para memória futura às vítimas especialmente vulneráveis, em termos idênticos aos previstos para as vítimas de violência doméstica (cf. arts. 21º, nºs 1 e 2, al. d), e 24º).

In casu, verifica-se que:

- A alegada vítima de violência doméstica apresenta vetusta idade [nasceu a -.07.1924, contando, à data da decisão recorrida, com 95 anos de idade, a escassos 19 dias de perfazer 96 anos], sendo que nos situamos ainda num tempo marcado pela pandemia da doença COVID-19, que, desafortunadamente, muitas vidas tem colhido, particularmente entre a população idosa, o que permite afirmar o risco de ocorrência de acometimento de alguma doença grave ou mesmo do indesejado falecimento daquela até que preste declarações em sede de audiência de julgamento (relembre-se que, à data, ainda não havia sido deduzida acusação);
- A suspeita é filha da vítima e, como tal, pessoa que facilmente se pode voltar a aproximar desta, sendo a ofendida, em função da sua avançada idade, notoriamente incapaz de se defender dos indiciados maus tratos sobre si cometidos (quase diariamente) ou que venham a ser cometidos.
Ponderados conjuntamente tais fatores, cremos que o Mmo. Juiz de Instrução podia e devia ter deferido a peticionada tomada de declarações à ofendida, assim assegurando à vítima a justa e legal proteção que a sua especial vulnerabilidade reclama e contribuindo sobremaneira para evitar a indesejável, dado que psicologicamente marcante, repetição de inquirições à mesma; também contribuiria para a preservação da prova e, dessa forma, para assegurar a boa administração da justiça.
É que, ressalvado o devido respeito, não colhem os argumentos aduzidos pelo tribunal recorrido para sustentar a sua decisão de indeferimento.
Em primeiro lugar, a brevidade com que decorrerão os ulteriores trâmites processuais que o Sr. Juiz invoca, é um fator que encerra sempre alguma dose de imprevisibilidade e que não está nas suas mãos controlar e assegurar. Depois, como vimos, não é suficiente para assegurar que não ocorra, entretanto, a morte da vítima, atenta a avançada idade desta, ou, pelo menos, que a mesma seja acometida por alguma doença grave.
Por outro lado, é precisamente pela extrema relevância do depoimento a prestar pela ofendida – porquanto é sobejamente sabido que neste tipo de criminalidade, particularmente quando os factos são cometidos no interior da residência da vítima e do agente (como sucede in casu), é frequente inexistirem testemunhas presenciais dos mesmos –, que é imperioso salvaguardar a sua efetiva prestação, e em condições que assegurem o mais possível a sua proximidade temporal aos factos e a veracidade do seu conteúdo (pelo afastamento de pressões exteriores e obstando ao eventual condicionamento provocado por natural perda de memória).
É certo que, por exigência do princípio do contraditório, as provas devem, em princípio, ser produzidas perante o arguido, em audiência pública. Contudo, como vimos, tal princípio comporta exceções, sendo que uma delas se reporta a situações como a ajuizada, em que se verifica a especial vulnerabilidade da declarante, permitindo o legislador, na ponderação de interesses por si operada, que as declarações antecipadamente produzidas perante juiz possam ser valoradas na audiência de julgamento (mesmo na ausência da pessoa que os produziu).
É que o princípio do contraditório não exige, em termos absolutos, o interrogatório directo ou em cross-examination, e o modo de o modo de prestar declarações para memória futura, tal como previsto nas mencionadas normas legais, respeita no essencial o princípio do contraditório (3)(4).
Ademais, o argumento da necessidade de contraditório expendido pelo Mmo. Juiz, no fundo, é válido para todos os casos, e não acautela e enquadra as aludidas situações excecionais em que urge sacrificá-lo na menor medida possível, em nome de outros interesses igualmente válidos, o que é assegurado pelos termos legais em que se prevê a tomada de declarações para memória futura.
No que tange à objeção derivada do princípio da imediação, dir-se-á que a sua falta se encontra atualmente cada vez mais mitigada por força da imperiosidade de gravação das declarações que forem prestadas para memória futura, em formato áudio ou audiovisual (cf. art. 364º, nº1, do CPP, ex vi do art. 33º, nº5, da Lei nº 112/2009, de 16.09).
Pelo exposto, procede o douto recurso interposto pelo Ministério Público.


IV - DISPOSITIVO:

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, e, em conformidade, revogar o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que determine a tomada de declarações para memória futura à ofendida R. M..
Sem custas.
*
Guimarães, 11 de janeiro de 2021,

Paulo Correia Serafim (relator)
Nazaré Saraiva

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos – cfr. art. 94º, nº 2, do CPP)





1. Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 334 e seguintes; o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém atualidade.
2. Disponível em www.pgdlisboa.pt.
3. Assim também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-11-2007, processo nº 07P3630, in www.dgsi.pt.
4. Como menciona o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05.05.2017, processo nº 12/15.0JDLSB.L1-9, in www.dgsi.pt, «Mesmo com a actual redação do art.º 271º do CPP, a tomada de declarações para memória futura pode ser feita, verificadas determinadas circunstâncias (nomeadamente, desconhecimento da identidade do suspeito, ausência deste, necessidade urgente de preservar prova, necessidade urgente de proteger o declarante ou outras pessoas, partida eminente ou possibilidade séria de morte deste) antes de haver arguido constituído, sem que isso ponha irremediavelmente em causa o direito ao contraditório, desde que ao arguido seja posteriormente dada a real possibilidade de contraditar e/ou confrontar o autor de tais declarações