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QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO
JUSTIFICAÇÃO LEGAL
COMPETÊNCIA PARA CONHECER
Sumário
O instituto da quebra de sigilo bancário divide-se em duas fases distintas: um referente à legitimidade da escusa (artº 135º nº 2 do CPP), a outra à justificação da escusa (artº 135º nº 3 do CPP). A questão da legitimidade da escusa compete ao tribunal de primeira instância decidir enquanto que a questão da justificação da escusa já compete ao Tribunal da Relação decidir. A legitimidade da recusa prende-se com a legal possibilidade de uma entidade adstrita ao sigilo bancário, como por exemplo, o Banco de Portugal, de se recusar a prestar informações bancárias no âmbito de uma investigação criminal que integram o sigilo bancário. Assim, verificada pelo tribunal de primeira instância essa legitimidade, caberá ao Tribunal da Relação decidir, em momento posterior, se existe justificação legal para se impor a prestação das informações bancárias pedidas, atento o princípio do interesse prevalente, isto é, se o que se busca apurar com a informação bancária pedida toma prevalência sobre o que se visa proteger com o sigilo bancário.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. No âmbito do Inquérito (Actos Jurisdicionais), que corre termos pelo Juiz 3 do Juízo de Instrução Criminal de Lisboa, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, sob o nº 7278/20.1T9LSB, onde se investiga a possível prática de crime de abuso de confiança p. e p. pelo artº 205º do Código Penal, veio o MºPº determinar em despacho de 11-08-2020, com a refª 398129888, o seguinte: “Solicite à Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal que informe o mapa de responsabilidades de crédito de ACF______, NIF 1347.... Informe que o pedido é efectuado ao abrigo do artigo 79°, n° 2, al. e), do RJICSF.”
II. Notificado o Banco de Portugal em conformidade, veio o mesmo apresentar resposta em 09-09-2020 através da qual refere o seguinte:
“Em resposta ao ofício em referência supra, no qual se solicita informação relativa a responsabilidades de crédito, o Banco de Portugal vem expor a V. Exa o seguinte:
A informação sobre responsabilidades de crédito, constante da Central de Responsabilidades de Crédito, encontra-se coberta pelo dever de segredo profissional estabelecido no artigo 80.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado peio Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, pelo que o Banco de Portugal só poderá, legitimamente, facultar aquela informação nos casos excecionais previstos no n.º 2 do artigo 80.º do referido Regime Geral, ou seja, mediante autorização expressa das pessoas às quais os elementos informativos respeitam ou, em alternativa, mediante notificação do levantamento judicial do dever de segredo, nos termos previstos no artigo 135.º do Código de Processo Penal.
O Banco de Portugal solicita, assim, que lhe seja comunicado se o pedido em causa foi autorizado por ACF______.
Se não for esse o caso, e com vista a facilitar os procedimentos de colaboração com as autoridades judiciais, o Banco de Portugal vem, desde já, deduzir escusa legítima na prestação da informação solicitada, de modo a que possam ser promovidos, se assim se julgar conveniente, os mecanismos de levantamento judicial do segredo, comprometendo-se a prestar a informação solicitada assim que for notificado do levantamento do dever de segredo nos termos do incidente previsto no artigo 135.º do Código de Processo Penal.”
III. Na sequência de tal motivo de escusa por parte do Banco de Portugal, e por considerar que o mesmo era legítimo, veio o MºPº, através de despacho de 15-09-2020 com a refª 398747519, requerer incidente de quebra de sigilo profissional do Banco de Portugal, ao abrigo do disposto no artº 135º CPP, nos seguintes termos: “Iniciaram-se os presentes autos com uma denúncia anónima contra ACF______, representante legal do ING Bank NV, Sucursal em Portugal, dando conta que a mesma efectua empréstimos no próprio Banco sem restituição dos montantes e sem avaliação de risco, pressionando os funcionários da instituição bancária nesse sentido. Tais factos seriam susceptíveis de integrar a prática de um crime de abuso e confiança p. e p. pelo artigo 205° do CP, É essencial ao apuramento dos factos, averiguar da existência de efectivos empréstimos incumpridos por parte da denunciada à referida instituição bancária, Solicitada esta informação ao Banco de Portugal, veio o mesmo invocar o sigilo profissional fundamentado no disposto no artigo 80° do RGICSF: “1 - As pessoas que exerçam ou tenham exercido funções no Banco de Portugal, bem como as que lhe prestem ou tenham prestado serviços a título permanente ou ocasional, ficam sujeitas a dever de segredo sobre factos cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício dessas funções ou da prestação desses serviços e não poderão divulgar nem utilizar as informações obtidas." No entanto, este dever de segredo não apresenta um carácter absoluto, devendo ceder sempre que tal seja absolutamente necessário, além do mais, para a descoberta da verdade material, em obediência ao dever de colaboração com a administração da justiça. Assim, concluímos que estamos perante dois interesses em confronto, a saber, a tutela do segredo profissional e o dever de colaboração com a administração da Justiça Penal, cuja primazia deverá ser dada aquele que, perante as circunstâncias do caso concreto e após uma criteriosa ponderação dos valores em conflito, se revele como o interesse dominante, A este respeito, escreveu o Professor Doutor Costa Andrade que este critério material do princípio da relevância do interesse preponderante projecta-se "em quatro implicações normativas fundamentais: a) Em primeiro lugar e por mais óbvia, avulta a intencionalidade normativa de vincular o julgador a padrões objectivos e controláveis, não cometendo a decisão à sua livre apreciação; b) Em segundo lugar, resulta líquido o propósito de afastar qualquer uma de duas soluções extremadas: tanto a tese de que o dever de segredo prevalece invariavelmente sobre o dever de colaborar com a justiça penal (...) como a tese inversa de que a prestação de testemunho perante o tribunal (penal) configura só por si e sem mais, justificação bastante da violação do segredo profissional (...); c) Em terceiro lugar, o apelo ao princípio da ponderação de interesses significa o afastamento deliberado da justificação, neste contexto, a título de prossecução de interesses legítimos. Isto é: a realização da justiça penal, só por si e sem mais (despida do peso específico dos crimes a perseguir) não figura como interesse legitimo bastante para justificar a imposição da quebra do segredo. E isto sem prejuízo da pertinência e validade reconhecidas a esta dirimente no regime geral da violação de segredo (...); d) Em quarto lugar, com o regime do artigo 135.°, do CPP, o legislador português reconheceu à dimensão repressiva da justiça penal a idoneidade para ser levada à balança da ponderação com a violação do segredo: tudo dependerá da gravidade dos crimes a perseguir." No caso concreto, haverá, pois, que ponderar, a intensidade da lesão dos interesses que fundamentam a instituição do segredo profissional, a concreta relevância das informações pretendidas para a investigação e a gravidade do crime que constitui o objecto do processo, o interesse público na boa administração da Justiça, o exercício do jus puniendi por parte do Estado relativamente a quem ofenda, de forma intolerável, a ordem jurídica estabelecida. Em face destes elementos, concluímos que as informações pretendidas por parte do Banco de Portugal revelam-se essenciais ao prosseguimento da investigação dos factos em causa, à descoberta da verdade material e, por fim, à realização da Justiça. Com efeito, tal informação permitirá apurar a efectiva existência de empréstimos bancários que têm por fundamento a denúncia. Por fim, cumpre salientar a gravidade dos ilícitos em causa nos autos, patente na conduta da responsável da instituição bancária denunciada. Pelo exposto, concluímos que o dever de colaboração com a Administração da Justiça sobrepõe-se ao dever de segredo profissional. Nesta conformidade, remeta os autos ao Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, a quem se promove que seja suscitado, junto do Tribunal da Relação de Lisboa, o incidente de quebra do segredo profissional, a fim de que seja considerada injustificada a escusa apresentada pelo Banco de Portugal e que seja ordenada a prestação das informações supra indicadas por parte desta entidade, nomeadamente, informação por parte da Central de Responsabilidades de Crédito do Banco de Portugal do mapa de responsabilidades de crédito de ACF______, NIF 1036….”
IV. Por despacho de 09-11-2020 com a refª 399981258 a Mmª Juiz de Instrução, por considerar legítima a recusa por parte do Banco de Portugal, ordenou a remessa do incidente a este Tribunal da Relação nos seguintes termos: “No decurso dos presentes autos de inquérito foram solicitadas, ao Banco de Portugal, diversas informações, nos termos do despacho de fls. 12, que se revelam como necessárias ao prosseguimento da investigação em curso. Em resposta ao solicitado, o Banco de Portugal recusou fornecer as informações pretendidas, invocando sigilo bancário, conforme e nos termos constantes de fls. 14, dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido. Perante tal recusa, o Ministério Público pretende que seja declarada a ilegitimidade da escusa e, como consequência, se ordene ao Banco de Portugal que forneça, aos autos, as informações pretendidas, por serem imprescindíveis para que a investigação, dos autos, possa prosseguir, conforme e nos termos constantes de fls. 15a 17, dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido. Compulsados os autos, entendemos que a recusa manifestada pelo Banco de Portugal é legítima. Porém, compulsados os autos conclui-se que a obtenção das informações pretendidas pelo Ministério Público é essencial e imprescindível para o esclarecimento dos factos, a descoberta da verdade, bem como para a prova desses factos. Face ao exposto, suscito, sobre a questão supra referida, o respectivo incidente junto do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, cuja subida, se determina seja de imediato e em separado, nos termos do disposto nos artigos 135° e 182°, ambos do C. P. Penal. Assim, organize apenso do incidente, em separado, instruindo-o com certidão integral de todo o processado. Notifique. D.n.”
V. Aberta vista foi proferido douto parecer em 23-11-2020, com a refª 16340012, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, através do qual o Digno Procurador-Geral Adjunto pugna pelo levantamento do sigilo profissional por entender que os interesses na descoberta da verdade e no prosseguimento da acção penal se sobrepõem aos interesses que o sigilo bancário visam salvaguardar.
VI. Notificado o Banco de Portugal nos termos do artº 417º nº 2 CPP do teor do parecer, nada veio oferecer aos autos.
VII. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
Cumpre decidir.
Está em causa decidir se a recusa do Banco de Portugal em prestar certas informações que lhe foram solicitadas no âmbito de um inquérito criminal por parte do MºPº deve ser considerada justificada ou, se pelo contrário, essa recusa deve ser rejeitada e o respectivo Banco de Portugal ordenado a prestar as respectivas informações.
Para resolvermos a questão sub judice é mister compreender o instituto em causa começando pelo seu enquadramento legal, doutrinário e jurisprudencial.
Assim, o incidente de levantamento de sigilo profissional, neste caso bancário, encontra assento legal no artº 135º do CPP que diz o seguinte: "1. Os ministros de religião ou confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos. 2. Havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento. 3. O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado, ou, no caso de o incidente ter sido suscitado perante o Supremo Tribunal de Justiça, o pleno das secções criminais, pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos. A intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento. 4. Nos casos previstos nos nºs 2 e 3, a decisão da autoridade judiciária ou do tribunal é tomada ouvido o organismo representativo da profissão relacionada com o segredo profissional em causa, nos termos e com os efeitos previstos na legislação que a esse organismo seja aplicável. 5. O disposto nos nºs 3 e 4 não se aplica ao segredo religioso." Paulo Pinto de AlbuquerqueIn Comentário do Código de Processo Penal, 2.ª edição actualizada, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, Maio 2008, págs. 361-363 e 366-368, sintetiza que: “1. O incidente escusa de segredo profissional rege-se pelos seguintes princípios: a. O incidente está dividido em duas fases, uma referente à questão da legitimidade da escusa, outra referente à questão da justificação da escusa. b. Só o tribunal de primeira instância é competente para decidir sobre a legitimidade da escusa. c. Só o tribunal superior é competente para decidir sobre a justificação da escusa. d. A intervenção do tribunal superior é oficiosa e tem lugar sempre que o juiz de primeira instância tenha decidido que a escusa é legítima. 2. Assim, em termos esquemáticos, o incidente estrutura-se do seguinte modo: a. Pedido de escusa. b. Averiguações necessárias da autoridade judiciária competente, consoante a fase processual, sobre a questão da legitimidade da escusa, incluindo a audição do organismo representativo da profissão. c. Decisão do juiz: i. O juiz declara a ilegitimidade da escusa e ordena a prestação de depoimento (despacho recorrível pelo requerente da escusa) ou,
ii. O juiz declara a legitimidade da escusa e ordena oficiosamente a subida ao tribunal de recurso para decisão sobre a questão da justificação da escusa (despacho irrecorrível).
d. Decisão do tribunal superior (recorrível): i. Injustificada a escusa: o tribunal declara injustificada a escusa e ordena a prestação do depoimento. ii. Justificação da escusa: o tribunal declara justificada a escusa.”
Assim, "o incidente de quebra de sigilo profissional está dividido em duas fases: a questão da legitimidade da escusa é tratada no n.º 2 do artigo 135.º; a questão da justificação da escusa é tratada no n.º 3 do artigo 135º. A resolução destas questões foi intencionalmente separada pelo legislador, conferindo competência para decidir a questão da legitimidade da escusa ao tribunal de primeira instância e competência para decidir a questão da justificação da escusa apenas ao tribunal superior."[1]
Tendo a primeira instância avaliado da legitimidade do Banco de Portugal em se recusar a prestar as informações solicitadas pelo MºPº em sede de inquérito, compete agora ao Tribunal da Relação decidir sobre a justificação dessa escusa.
Ou conforme se refere no Acórdão do STJ de 24-11-2016 (procº nº 1233/13.5YRLSB.S1)[2]: "A questão da legitimidade da invocação do segredo é da competência da autoridade judicial onde o incidente surgiu. A decisão sobre a quebra do segredo é da competência do tribunal que lhe for superior. O legislador quis que a competência para emitir esse juízo fosse de um tribunal hierarquicamente superior, porque face à natureza da questão, achou por bem estabelecer maior distanciamento e maior qualificação da entidade decisora. A decisão que o Tribunal da Relação proferiu em primeira mão (de apreciação da justificação da escusa), não deve ser considerada proferida em 1.ª instância, para efeito da al. a) do n.º 1 do art. 432.º do CPP. As decisões que a Relação profere em 1.ª instância não são as decisões apreciadas pela primeira vez, sem excepção, logo na Relação. São as decisões em que a Relação funciona como tribunal de 1.ª instância. Ou seja, quando exerce uma competência que por regra é cometida à 1.ª instância e excepcionalmente, designadamente em atenção à qualidade do arguido, se atribui à Relação (al. a) do n.º 3 do art. 12.º do CPP). A regulamentação processual que o legislador entendeu fazer, do incidente de quebra de segredo, afasta-se da atribuição normal de competência para actos de investigação ou instrução, e portanto do regime geral de recursos. O legislador antecipou-se a um possível recurso, da decisão que fosse proferida na 1.ª instância, com benefício em termos de celeridade, atribuindo logo competência decisória em primeira mão, à instância para a qual seria interposto o recurso. O acórdão de que se recorreu, proferido pelo Tribunal da Relação ao abrigo do n.º 3 do art. 135.º do CPP, é assim irrecorrível."
Tendo esta Relação competência para decidir se a recusa do Banco de Portugal em prestar as informações solicitadas é ou não justificada resta saber se não se deveria, antes de proferir decisão, dar cumprimento ao disposto no nº 4 do artº 135º CPP e fazer intervir o respectivo organismo profissional.
A resposta é negativa pelos motivos que se encontram muito bem explanados no Acórdão da Relação de Coimbra de 16-12-2009 no procº nº 132/08.7JAGRD-C.C1 que se passa a transcrever: "A audição do organismo representativo da profissão deve ter lugar antes da decisão sobre a legitimidade do pedido de escusa, como resulta claramente da remissão do n.º 4 para o n.º 2 do artigo 135.º. A razão é esta: o organismo profissional está em condições objectivas para se pronunciar sobre a legitimidade da escusa em face das regras estatutárias profissionais, por exemplo, em face de dúvidas que se possam colocar sobre a inscrição na ordem profissional do requerente da escusa. Nada obsta, contudo, a que também o tribunal superior oiça, sendo necessário, o organismo representativo da profissão, como resulta igualmente da remissão do n.º 4 para o n.º 3 do artigo 135.º.
O n.º 4 do artigo 135.º consagra a preponderância da legislação especial relativa aos organismos representativos das profissões quer quanto aos “termos” da audição desses organismos quer quanto aos “efeitos” da mesma e, portanto, vincula o tribunal à decisão do organismo representativo da profissão sobre o pedido de escusa, nos termos da legislação especial pertinente. Nos termos da legislação especial, a quebra de segredo pode estar dependente de requisitos específicos fixados nos estatutos, como por exemplo uma autorização prévia do organismo representativo da profissão nesse sentido. A interpretação conjugada do artigo 135.º, n.º 4, com a legislação especial nele referida no sentido de que é atribuída ao organismo de representação profissional a competência para decidir em definitivo sobre a legitimidade e a justificação do pedido de escusa, ficando o tribunal vinculado à decisão do organismo de representação profissional, é inconstitucional, por violar o princípio da independência dos tribunais e o princípio da prossecução da verdade material, próprios de um Estado de Direito, e constituir um encurtamento inadmissível das garantias de defesa (artigos 2.º, 32.º, n.º 1, e 203.º, da CRP). Com efeito, a decisão sobre a quebra do sigilo profissional é uma decisão de ponderação de diversos valores constitucionais em conflito e, portanto, tem natureza constitucional. Por isso, esta decisão deve estar reservada aos tribunais. Por isso também, a vinculação dos tribunais a uma decisão prévia dos organismos representativos da profissão em matéria de natureza constitucional não se compadece com a independência dos tribunais, nem com o princípio da prossecução da verdade material e encurta de forma inadmissível as garantias da defesa. O julgador deve, pois, desaplicar aquelas normas com a interpretação referida, devendo aplicá-las no sentido de considerar a “audição” da decisão do organismo representativo da profissão como não vinculativa. Aliás, é neste exacto sentido que a lei tem sido desde sempre aplicada, como resulta, por exemplo, da jurisprudência sobre o segredo profissional do advogado e do solicitador Acórdão do STJ, de 21.4.2005, in CJ, Acs. do STJ, XIII, 2, 186." - sublinhado nosso
Feita esta resenha legal, doutrinária e jurisprudencial vejamos, então, o caso em apreço.
O Banco de Portugal a quem foi solicitado o levantamento do sigilo bancário, em relação à pessoa que se encontra em investigação criminal, ACF______, invocou motivo de escusa abrigando tal pedido no artº 80º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei nº 298/92 de 31 de dezembro, (doravante "RGICSF") o qual dispõe o seguinte[3]: "1 - As pessoas que exerçam ou tenham exercido funções no Banco de Portugal, bem como as que lhe prestem ou tenham prestado serviços a título permanente ou ocasional, ficam sujeitas a dever de segredo sobre factos cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício dessas funções ou da prestação desses serviços e não poderão divulgar nem utilizar as informações obtidas. 2 - Os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados mediante autorização do interessado, transmitida ao Banco de Portugal, ou nos termos previstos na lei penal e de processo penal. 3 - Fica ressalvada a divulgação de informações confidenciais relativas a instituições de crédito no âmbito da aplicação de medidas de intervenção correctiva ou de resolução, da nomeação de uma administração provisória ou de processos de liquidação, excepto tratando-se de informações relativas a pessoas que tenham participado na recuperação ou reestruturação financeira da instituição. - sublinhado nosso 4 - É lícita, designadamente para efeitos estatísticos, a divulgação de informação em forma sumária ou agregada e que não permita a identificação individualizada de pessoas ou instituições. 5 - Fica igualmente ressalvada do dever de segredo a comunicação a outras entidades pelo Banco de Portugal de dados centralizados, nos termos da legislação respectiva." - sublinhado nosso
Considerando o tipo de informação que fora solicitado ao Banco de Portugal dúvidas não podemos ter quanto à sua natureza sigilosa e por isso, quanto à legitimidade do referido Banco em se recusar a prestar tais informações.
No entanto, relembremos o disposto no artº 135º nº 3 do CPP, "o tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado ... pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos."
Sendo legítima a recusa em prestar as informações solicitadas no âmbito do inquérito em apreço, a única forma de impor ao Banco de Portugal que preste tais informações, quebrando, assim, o sigilo bancário é através de decisão judicial que decida pela quebra de tal sigilo.
Para tanto, a decisão judicial tem de considerar o princípio da prevalência do interesse preponderante, isto é, estando em confronto dois interesses legítimos qual dos dois deve ceder perante o outro.
Para avaliar a preponderância dos interesses em jogo a lei manda atender, nomeadamente, mas não só:
a) à imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade;
b) à gravidade do crime;
c) à necessidade de protecção de bens jurídicos.
A resolução do conflito de interesses passa assim “pela avaliação da diferente natureza e relevância dos bens jurídicos tutelados por aqueles deveres, segundo um critério de proporcionalidade na restrição, na medida do necessário, de direitos e interesses constitucionalmente protegidos, como impõe o n.º 2 do art. 18.º, da Constituição, e tendo em consideração do caso concreto.” (Ac. do STJ de 21 de Abril de 2005).
Nos presentes autos está em causa descobrir factos cuja prática poderá integrar, pelo menos, um crime de abuso de confiança qualificado p. e p. pelo artº 205º do Código Penal.
O crime previsto no artº 205º do Código Penal tem como pena máxima aplicável até 3 anos de prisão, e, em caso de valor consideravelmente elevado, até 8 anos de prisão.
Ora, no inquérito relativamente ao qual se suscita o sigilo bancário, investigam-se factos referentes a uma denúncia anónima que veio relatar[4] que ACF______, “representante legal do ING Bank NV, Sucursal em Portugal, dando conta que a mesma efectua empréstimos no próprio Banco sem restituição dos montantes e sem avaliação de risco, pressionando os funcionários da instituição bancária nesse sentido…” sendo que “tal informação (bancária) permitirá apurar a efectiva existência de empréstimos bancários que têm por fundamento a denúncia.”
Olhando os vários elementos que a lei oferece para se avaliar qual dos interesses em jogo deve prevalecer constata-se que, não só o crime indiciado, que poderá ser subsumido na factualidade descrita e a apurar é objectivamente grave, com uma moldura penal que pode ir para além dos 5 anos de prisão, como a própria factualidade subjacente é deveras preocupante pois está em causa apurar a existência de um financiamento fraudulento de uma funcionária superior de um banco, que, do que resulta da denúncia, utilizando a sua posição hierárquica dentro do banco, exerce pressões extremas (resta saber se não haverá aqui também uma forma de coacção ou ameaça susceptível de censura penal) sobre os restantes funcionários para conseguir empréstimos de curta duração, sem observar os trâmites internos e sem restituir os valores em causa.
Os factos que se investigam têm, assim, um claro interesse público porquanto estará em causa a violação de regras bancárias que podem, em última instância, colocar em causa não só a confiança na respectiva instituição de credito, e no controle que deve ser exercido pelo Banco de Portugal, como pode levar a uma falta de liquidez do respectivo banco apta a provocar problemas de tesouraria que tem sido observado já em relação a outros bancos.
Para além disto o tipo de crime em causa envolve a prática de actos que se provam, em grande parte, com recurso a documentos bancários e de ficheiros informáticos, neste caso, da Central de Responsabilidades de Crédito (assegurado pelo Banco de Portugal nos termos da sua Lei Orgânica, aprovada pela Lei nº 5/98 de 31-01) que tem, nos termos do artº 1º do DL nº 204/2008 de 14-10, que tem como objecto o seguinte: "1 a) Centralizar as responsabilidades efectivas ou potenciais de crédito concedido por entidades sujeitas à supervisão do Banco de Portugal ou por quaisquer outras entidades que, sob qualquer forma, concedam crédito ou realizem operações análogas; b) Divulgar a informação centralizada às entidades participantes; c) Reunir informação necessária à avaliação dos riscos envolvidos na aceitação de empréstimos bancários como garantia no âmbito de operações de política monetária e de crédito intradiário. 2 - A Central de Responsabilidades de Crédito abrange a informação recebida relativa a responsabilidades efectivas ou potenciais decorrentes de operações de crédito, sob qualquer forma ou modalidade, de que sejam beneficiárias pessoas singulares ou colectivas, residentes ou não residentes em território nacional. (...)"
Dúvidas não podem assim restar que a informação solicitada pelo MºPº no âmbito do inquérito ao Banco de Portugal é de vital importância para a descoberta da verdade que também serve os interesses da arguida/suspeita, bem como agilizará a acção penal evitando demoras desnecessárias no tempo de inquérito.
Os elementos pretendidos são também elementos objectivos, despidos de juízos de valor e de pre-conceitos com que muitas das vezes as testemunhas, mesmo as mais bem intencionadas, impregnam os seus depoimentos.
Há, assim, um claro interesse em se obter os elementos em causa sendo que esse interesse, que é também de natureza pública, se sobrepõe ao interesse que o sigilo bancário visa salvaguardar.
É que o sigilo bancário visa proteger a privacidade e identidade de pessoas honestas, não visa encobrir actividades que se suspeitam serem criminosas.
Face ao exposto este Tribunal não tem qualquer dúvida de que o levantamento do sigilo bancário no caso em apreço é não só legítimo como absolutamente necessário para que o Estado possa prosseguir a sua investigação penal, salvaguardar a busca da verdade material e, com respeito pelos interesses da arguida/suspeita, acautelar um interesse público digno de tutela jurídica.
Pelo exposto: Acorda-se em deferir a dispensa do segredo bancário, determinando-se que o Banco de Portugal faculte ao respectivo processo a informação solicitada pelo DIAP relativamente a ACF______.
Sem tributação.
Lisboa, 20 de Janeiro de 2021.
Florbela Sebastião e Silva
José Alfredo Costa
Vasco Freitas
_______________________________________________________ [1] Ac. Relação de Coimbra de 16-12-2009 no procº nº 132/08.7JAGRD-C.C1 in dgsi.pt. [2]In DRE de 25-09-2019. [3] Embora a última alteração a este diploma legal tenha ocorrido através da Lei nº 23/2019 de 13-03, a última alteração operada ao artº 80º, em especial, foi efectuada pelo DL nº 157/2014 de 24-10. [4] Conforme se retira do despacho de 15-09-2020.