INVENTÁRIO
MENORES
INTERVENÇÃO PRINCIPAL
REPÚDIO DA HERANÇA
REPRESENTAÇÃO SUCESSÓRIA
Sumário

1. Num processo de inventário iniciado em Cartório Notarial e que oficiosamente transitou para o Tribunal Judicial atenta a existência de um interessado menor, compete ao juiz do processo, no uso dos poderes de gestão processual e adequação formal, ordenar os actos tendentes a conciliar os efeitos processuais dos actos já praticados com a subsequente tramitação;----------
2. Dada a natureza do actual modelo de tutela dos interesses dos menores no processo de inventário a intervenção do Ministério Público tem lugar como parte principal, devendo ser citado para todos os actos e termos do processo logo que o processo passe a ser tramitado no tribunal;
3. Encontrando-se o processo numa fase inicial do seu desenvolvimento quando transitou para o tribunal judicial – decorrido o prazo da oposição ou impugnação posterior à citação dos interessados – a intervenção do Ministério Público não deve ficar subordinada à conduta omissiva da representante legal do menor no que toca à reclamação contra a relação de bens;
4. É nulo o repúdio da herança por parte do herdeiro que posteriormente à abertura da sucessão, e anteriormente à outorga da escritura de repúdio, praticou actos que objectivamente traduzem a aceitação da herança, recebendo da herança quantias em dinheiro que não devolveu findo o prazo acordado, não obstante a tal se ter comprometido.
5. Não sendo a representação sucessória modo de transmissão de dívidas não se transmite aos herdeiros que intervenham em representação de um herdeiro repudiante da herança a obrigação de pagar à herança as dívidas por ele contraídas.

Texto Integral

Em NOME DO POVO PORTUGUÊS, OS JUÍZES DESEMBARGADORES DA 6ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA, ACORDAM:

A. RELATÓRIO
I. Introdução
a) Em processo de inventário pendente no Juízo Local Cível de Ponta Delgada – para onde foi remetido ao abrigo do disposto no artigo 12.º nº 1 da Lei 117/2019, de 13 de setembro – a Digna Magistrada do Ministério Público tendo sido citada para os termos do inventário como parte principal em representação do então menor V N P, impugnou, em 15 de maio de 2020, e ao abrigo do disposto no artigo 1104.º n.º 1 alíneas d) e e) do Código de Processo Civil, os créditos da herança de GAP e EJP indicados na relação de bens oportunamente apresentada e imputados ao identificado menor, defendendo que o devedor da herança era seu pai L A P e que a obrigação por este contraída perante a herança não se transmite por via sucessória, pelo que da relação de bens deve constar que a herança é credora do referido L A P.
b) A interessada M R P, cabeça de casal, em articulado de resposta alegou a invalidade da citação do Ministério Público em representação do menor V N P, por este ter sido citado no decurso do inventário notarial na pessoa de sua mãe, sua representante legal e que com ele não concorre à herança, sendo certo que há muito decorreu o prazo para reclamar da relação de bens; mais alegou que os herdeiros que substituem o herdeiro legitimário que repudiou a herança – L A P – recebem a universalidade do activo e passivo que caberia ao herdeiro repudiante, razão pela qual a impugnação feita pelo Ministério Público em representação de V N P deveria ser julgada improcedente.
c) Por sua vez, a interessada M M P em articulado de resposta à impugnação apresentada pelo Ministério Público em representação do então menor V N P alegou, em síntese, que o único responsável pelos créditos relacionados é L A P, o qual deve ser considerado responsável pela dívida de 772.889,33 euros à herança, sendo ineficaz a escritura de repúdio da herança, pelo que deve ser ele assumir a qualidade de herdeiro e ser citado como tal.
d) Por despacho de 8 de outubro de 2020 o Sr. Juiz de Direito do Juízo Local Cível de Ponta Delgada considerou válida a citação do Ministério Público em representação do menor V N P efectuada após a remessa do processo de inventário para o Tribunal e que as dívidas de L A P à herança de seus pais não se transmitem para os seus filhos por efeito do repúdio da herança, sendo, portanto, da sua responsabilidade.
Julgou, em conformidade, procedente a impugnação dos créditos da herança relacionados nas verbas 1 a 4 da relação de bens na medida em que eram indicados como devedores os filhos daquele L A P, V P e V N P – determinando que passasse a ali constar que a herança de G A P e E J P era credora de L A P nos montantes indicados na relação de bens.
e) O Sr. Juiz de Direito do Juízo Local Cível de Ponta Delgada indeferiu igualmente o entendimento expresso na resposta apresentada por M M P, nos termos seguintes:
Conforme decorre do artigo 1.104.º nº 1 do Código de Processo Civil, os interessados diretos na partilha e o Ministério Público, quando tenha intervenção principal, podem no prazo de 30 dias a contar da sua citação, impugnar os créditos e as dívidas da herança.
Os presentes autos foram remetidos a este Tribunal ao abrigo do artigo 12.º n.º 1 da Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, a qual alterou o Código de Processo Civil em processo de inventário, revogando o regime jurídico do processo de inventário, aprovado pela Lei 23/2013, de 5 de março e aprovando o regime de inventário notarial.
Em tal processo notarial, foram as partes notificadas, em outubro de 2018, para deduzirem oposição ou impugnação, ao abrigo dos artigos 30.º a 32.º do regime jurídico vigente à data. Não o tendo feito, não pode a interessada M M P fazê-lo agora, pelo que se julgam improcedentes os seus pedidos”.
II. Recurso de apelação interposto por M R P
f) Inconformada a interessada M R P interpôs recurso de apelação, com subida imediata em separado e efeito devolutivo, tendo rematado as suas alegações de recurso com as seguintes CONCLUSÕES:
I. O presente recurso versa sobre matéria de direito e o seu objecto é restringido ao teor da seguinte parte dispositiva da decisão proferida nos presentes autos:
1. Admissão indevida com o douto despacho de que se recorre do articulado do Ministério Público: “Conclui-se assim pela validade da citação do Ministério Público para defesa dos interesses do menor V N P”;
2. Da desconsideração no acervo do inventário dos valores que o herdeiro legitimário L A P recebeu de seus pais, autores da herança: “(…) julgo procedente a impugnação aos créditos relacionados na relação de bens, determinando a correcção das verbas 1 a 4 da relação de bens, passando a constar das mesmas que a herança é credora de L A P”;
3. Improcedência do pedido de declaração de ineficácia do repúdio da herança do herdeiro L A P, formulado pela interessada M M P no seu requerimento datado de 14 de setembro de 2020: “Em tal processo notarial foram as partes notificadas, em outubro de 2018, para deduzirem oposição ou impugnação, ao abrigo dos artigos 30.º a 32.º do regime jurídico vigente à data. Não o tendo feito, não pode a interessada M M P fazê-lo agora, pelo que se julgam improcedentes os seus pedidos”.
II. Quanto à questão da repetição indevida do acto de citação do menor V N P ou da inadmissibilidade do articulado do Ministério Público, temos que em 30 de outubro de 2018 e 11 de outubro de 2018 a T N P, mãe do menor V N P, foi expressamente notificada do despacho do Notário, nos termos da qual à mesma foi remetida a relação de bens e a mesma advertida para, querendo, no prazo de 20 dias previsto no artigo 30.º do Regime Jurídico do Processo de Inventário (RJPI), deduzir oposição ao inventário” e “reclamar da relação de bens”.
III. Essa última notificação de 11 de outubro de 2018 remetida pelos CTT deve considerar-se recebida pela referida T N P e progenitora do menor em 15 de outubro de 2018.
IV. Não tendo apresentado oposição nos 20 dias seguintes, em 8 de novembro de 2018 precludiu o direito do menor V N P reclamar da relação de bens.
V. Esse silêncio equivale a uma verdadeira declaração de concordância com a relação de bens em causa, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 218.º do Código Civil: “O silêncio vale como declaração negocial, quando esse valor lhe seja atribuído por lei, uso ou convenção”.
VI. A qual é irretratável, no âmbito do processo de inventário em causa.
VII. Pelo que o Tribunal a quo não poderia ter notificado o Ministério Público em 24 de março de 2020 para que, querendo, viesse, em nome do menor V N P, exercer (de novo) um direito que o mesmo, em 11 de novembro de 2018, por intermédio da sua progenitora e representante legal, já tinha tido oportunidade processual de exercer. VIII. O não exercício daquele direito de reclamar da relação de bens, dentro do prazo legalmente estabelecido, faz extinguir esse mesmo direito.
IX. Com efeito, o decurso de um prazo de caducidade extingue o direito de cujo exercício se trate. X. A caducidade não tem por objectivo primeiro a protecção do sujeito passivo, mas sim o valor da certeza e segurança dos direitos, valores também eles muito importantes no direito.
XI. Donde se verifica que, não tendo a representante legal do menor V N P exercido o direito de reclamar da relação de bens nos 20 dias seguintes à citação de 11 de outubro de 2018, não poderia mais exercê-lo, por caducidade (artigo 298.º nº 2 do Código de Processo Civil).
XII. Pelo que, como se disse, no dia 8 de novembro de 2018 precludiu definitivamente o direito que o menor e interessado V N P tinha de se opor ao inventário ou reclamar da relação de bens.
XIII. Tendo esse direito ficado nessa data de 18 de novembro de 2018 definitivamente pulverizado e enterrado em caixão de metal, soterrado no centro da terra.
XIV. Donde, por essa razão, em maio de 2020 não era mais possível qualquer interessado se opor ao inventário nem reclamar da relação de bens, não excluindo o Ministério Público, como é compreensível. XV. Sob pena de se conceder a um interessado um direito especial que ele não tem.
XVI. Em conclusão, e salvaguardando o devido respeito, que é muito, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que não admita o articulado da oposição remetido aos autos pelo Ministério Público em 15 de maio de 2020, devendo, em consequência, o mesmo ser desentranhado dos autos, comas necessárias consequências legais.
XVII. Quanto à questão dos valores que o interessado L A P recebeu de seus pais, autores da herança, o Tribunal a quo entendeu que “em face do exposto, julgo procedente a impugnação aos créditos relacionados na relação de bens, determinando a correcção das verbas 1 a 4 da relação de bens, passando a constar das mesmas que a herança é credora de L A P”. XVIII. Ora se é certo que as dívidas do herdeiro L A P não são transmitidas aos seus representantes e descendentes, estes, contudo, não podem receber mais do que caberia ao herdeiro L A P.
XIX. Tudo isto para referir que a doação da importância em dinheiro de 772.889,33 euros, que os inventariados fizeram em vida ao herdeiro L A P, deve ser tida por conta da legítima deste, por significar que aqueles não pretendem beneficiar esse herdeiro, mas antes antecipar a sua quota hereditária, no todo ou em parte, preenchendo-a com essas importâncias doadas.
XX. Razão pela qual a doação da importância em dinheiro em causa deve ser imputada na quota do inventariado, sem prejuízo da sua redução por inoficiosidade. XXI. Ocorrendo essa imputação, caberá aos representantes do herdeiro repudiante exactamente aquilo que lhe caberia, caso não ocorresse o repúdio.
XXII. Tudo sob pena de, assim não se considerando, consubstanciar uma ofensa da legítima dos restantes herdeiros legitimários.
XXIII. Por fim, quanto à questão da improcedência dos pedidos formulados pela interessada M M P no seu requerimento de 14 de setembro de 2020 e da validade do repúdio de L A P, salienta-se em primeiro lugar que, no despacho que proferiu e de que ora se recorre, o Tribunal a quo não se pronunciou quanto ao teor ou questões de fundo suscitadas nesse articulado, designadamente, a que respeita à validade do repúdio do interessado L A P.
XXIV. Sucede que a questão suscitada da invalidade do repúdio constitui uma nulidade, nos termos do artigo 294.º do Código Civil (no caso o repúdio violou o artigo 2.059.º do Código Civil nos termos supra referidos). XXV. Sendo as nulidades invocáveis a todo o tempo por qualquer interessado e podendo ser declaradas oficiosamente pelo Tribunal (artigo 286.º do Código Civil).
XXVI. A declaração de nulidade tem efeito retroactivo (artigo 289.º do Código Civil).
XXVII. Donde o Tribunal a quo deveria ter conhecido de tal questão e, em consequência, declarado a nulidade do repúdio do interessado L A P, com todas as consequências legais daí resultantes e identificadas na parte do requerimento da interessada M M P acima transcrita, para onde se remete e que aqui se consideram por integralmente reproduzidas.
XXVIII. Atento o exposto, deve o douto despacho recorrido ser substituído por outro que: (1) considere como responsável pela dívida de 772.889,33 à herança L A P e não os interessados V P e V N P e
(2) considere a escritura de repúdio outorgada por L A P, no que à herança aberta por óbito do inventariado diz respeito, nula e ineficaz, com as necessárias consequências legais.”
g) Em relação ao recurso de apelação interposto por M R P o Ministério Público apresentou contra-alegações cujas CONCLUSÕES são do seguinte teor:
“7. Não se conformando com o despacho proferido pelo Tribunal a quo em 8 de outubro de 2020 na parte em que admitiu o requerimento apresentado em 15 de maio de 2020 pelo Ministério Público em representação do interessado V N P, menor, na sequência da notificação determinada ao abrigo do disposto no artigo 1.104.º do Código de Processo Civil vem a apelante M R P do mesmo interpor recurso.
8. No que respeita à invocada repetição indevida do acto de citação do Ministério Público em representação do menor V N P, importa atentar que os autos de processo de inventário tiveram a sua origem no processo de inventário notarial n.º 1354/16, que se iniciou junto do Cartório Notarial de Jorge Carvalho em Ponta Delgada e correu sobre os termos da Lei 23/2013, de 5 de março.
9. O processo foi remetido a este Juízo Local Cível por efeitos do disposto no artigo 12.º nº 1 da Lei 117/2019, de 13 de setembro, lei essa que aprovou o processo especial de inventário agora previsto e regulado nos artigos 1.082.º e seguintes do Código de Processo Civil.
10. Efectivamente, à luz do Regime Jurídico do Processo de Inventário (Lei n.º 23/2013, de 5 de março, o Ministério Público não tinha intervenção principal.
11. Sucede que com a entrada em vigor da Lei 117/2019, que determinou a reposição do processo de inventário no Código de Processo Civil, todos os inventários que se encontrem pendentes nos notários e em que forem interessados menores, maiores acompanhados ou ausentes, deverão ser oficiosamente remetidos ao tribunal competente para a tramitação.
12. O processo de inventário que nos ocupa deu entrada no Juízo Local Cível de Ponta Delgada em 26 de fevereiro de 2020, sendo que o último acto praticado enquanto pendente no Cartório Notarial data de 29 de outubro de 2018, tratando-se de notificação de interessado por citação realizada em terceira pessoa.
13. A citação do representante legal do menor V N P terá sido registada no processo em 3 de outubro de 2018, tendo sido o aviso de recepção assinado por terceira pessoa, o que originou a notificação de 11 de outubro de 2018.
14. Pelo que, desde 29 de outubro de 2018 até 11 de fevereiro de 2020 (data do despacho que determinou a remessa do inventário para tribunal) que não foi praticado qualquer outro acto no processo.
15. Vislumbra-se legítimo, lógico e admissível, salvo melhor e douta opinião, à luz das disposições processuais do processo de inventário aprovado pela Lei 117/2019 que, encontrando-se o processo remetido pelo Cartório Notarial na fase das citações (embora com decurso dos respectivos prazos para apresentação de reclamações/oposições que se fizesse intervir o Ministério Público de acordo com o disposto nos artigos 1085.º n.º 1 alínea b), 1100.º n.º 2 alínea c) e 1104.º n.º 1, todos do Código de Processo Civil.
16. Se assim não se entendesse esvazia-se por completo a pretensão do legislador ao fazer intervir (novamente) o Ministério Público a título principal nos processos de inventário conforme deixou previsto e regulado nos termos aprovados pela referida Lei 117/2019, de 5 de março.
17. Além de que cabe nos poderes de gestão processual do juiz adequar os autos e a sua tramitação subsequente às regras processuais do inventário judicial.
18. A falta de resposta por parte da representante legal do menor interessado após a ocorrência da sua citação no âmbito do processo de inventário enquanto pendente no Cartório Notarial, não tendo ocorrido qualquer acto de tramitação subsequente entre aquela e a remessa do processo para tribunal, não poderá justificar a preclusão do direito do interessado menor em ver assegurada a sua representação nos autos, pois que à luz das disposições do processo de inventário aprovado pela Lei 117/2019, de 5 de março e que vigoram do Código de Processo Civil, a sua situação de interessado seria sempre assegurada pela citação do seu representante legal e do Ministério Público, uma não excluindo a outra (cfr. Artigos 1.085.º, 1.086.º e 1100.º nº 2 alínea c) e 1.104.º, todos do Código de Processo Civil).
19. Por todo o exposto supra somos do entendimento de que bem andou o Tribunal a quo ao determinar a citação do Ministério Público e, na sua sequência, admitir o requerimento apresentado ao abrigo do artigo 1104.º do Código de Processo Civil, não cabendo razão à apelante, não se verificando a violação do preceito legal invocado e contido no artigo 298.º nº 2 do Código de Processo Civil.
20. Quanto aos valores alegadamente recebidos por L A P, repudiante, dos Inventariados, dita o artigo 2.062.º do Código Civil que “os efeitos do repúdio da herança retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão (…) salvo para efeitos de representação”.
21. Para efeitos de partilha à estirpe que ocupar o lugar do repudiante, cabe aquilo em que sucederia o ascendente respectivo, ou seja, a parte que caberia ao herdeiro repudiante será atribuída à estirpe que o representa e dividido em partes iguais por tantos quantos a componham (artigo 2.044.º do Código Civil).
22. Sucede que no presente inventário a cabeça de casal relacionou créditos da herança imputando-os aos interessados V N P e V P, chamados por efeito do direito de representação sucessória a ocupar o lugar do seu ascendente repudiante das heranças inventariadas, invocando para tal que L A P, herdeiro repudiante, havia contraído empréstimos junto da Inventariada, em vida desta, por conta da sua quota hereditária.
23. Ora o devedor às heranças, a julgar pelo invocado pela cabeça de casal, só poderá ser L A P, por ter sido este que de um modo ou de outro se vinculou à realização da prestação ou se constituiu devedor da inventariada (artigo 397.º do Código Civil).
24. A representação sucessória não é um meio de transmissão singular de dívidas, e ainda que se operasse tal transmissão, sempre se dirá que o interessado apenas responderia na medida do valor da sua quota hereditária. 25. Pelo exposto, entende-se que bem andou o Tribunal a quo ao admitir o requerimento do Ministério Público, após citação ao abrigo do disposto nos artigos 1.085.º n.º 1 alínea b), 1.100.º n.º 2 alínea c) e 1.104.º n.º 1, todos do Código de Processo Civil e, na sua sequência, ao determinar que os créditos relacionados deveriam ser imputados a L A P enquanto devedor das heranças, no entanto, acompanhamos o alegado pelas apelantes no que respeita ao conhecimento da invocada nulidade do repúdio, a qual deveria ter sido conhecida e julgada pelo Tribunal a quo, em respeito pelos artigos 2056.º, 2059.º n.º 1 e 2061.º e dos artigos 286.º e 294.º, todos do Código Civil”.
III. Recurso de apelação interposto por M M P
h) Também inconformada com o indeferimento do seu requerimento a interessada M M P apresentou recurso de apelação com subida imediata e em separado e com efeito devolutivo, tendo nas suas alegações de recurso formulado as seguintes CONCLUSÕES:
“I. Vem o presente recurso, interposto do despacho proferido pelo Tribunal a quo em 08 de outubro de 2020, que decidiu que: "Em tal processo notarial, foram as partes notificadas, em outubro de 2018, para deduzirem oposição ou impugnação, ao abrigo dos artigos 30° a 32° do regime jurídico vigente à data. Não o tendo feito, não pode a interessada M M P fazê-lo agora, pelo que se julgam improcedentes os seus pedidos''.
II. Foram julgados improcedentes os pedidos da Recorrente de reconhecimento da ineficácia da escritura de repúdio outorgada por L A P, no que à herança aberta por óbito do Inventariado diz respeito.
III. Assumindo L A P a qualidade de herdeiro na herança aberta por óbito do Inventariado. IV. Devendo o seu quinhão hereditário responder pela dívida de € 772.889,33 — da qual é responsável perante a herança.
V. Devendo o aludido passivo ser pago integralmente pelo seu quinhão e só após pagamento desse passivo por ativos do devedor responsável, operar o direito de representação a favor dos seus filhos, ora Interessados V P e V N P, sob pena de se verificar a ofensa da legitima dos restantes herdeiros legitimários.
VI. Ora, a Recorrente não se conforma com a decisão do Tribunal a quo, pelo que vem interpor recurso da mesma.
VII. Salvo o devido respeito por melhor opinião, considera-se que a decisão do Tribunal a quo, além de não estar devidamente fundamentada, atenta contra desideratos normativos de carácter imperativo no ordenamento jurídico português, pelo que o presente recurso tem como objeto a matéria de direito da decisão proferida nos presentes autos.
VIII. Entende a Recorrente que o Tribunal a quo não julgou corretamente parte da matéria de direito que as partes submeteram a sua consideração, fazendo uma errada aplicação da lei, pois diante dos factos carreados a juízo impunha-se uma decisão diferente da ora recorrida.
IX. Porquanto o Inventariado faleceu a 04 de outubro de 1999 e a Inventariada faleceu a 24 de outubro de 2011.
X. Apenas no dia 17 de outubro de 2012, cerca de 12 anos após o falecimento do pai e um ano após o falecimento da mãe, L A P outorgou escritura de repúdio das heranças de seus pais.
XI. O prazo máximo de 10 anos para decidir aceitar ou repudiar a herança, nos termos do disposto no artigo 2.059.º do Código Civil, não foi cumprido por L A P, que repudiou a herança do pai cerca de 12 anos após o seu falecimento.
XII. Acresce que, e conforme consta dos autos de inventario do processo n.º 1354/16, no dia 14 de fevereiro de 2003 — em data posterior ao falecimento do Inventariado e anterior a outorga da escritura de repúdio – L A P declara em documento por si assinado que recebeu da herança do Inventariado, em 02 de dezembro de 2002, o valor total de € 264 487,58.
XIII. Em 19 de março de 2008, L A P é habilitado como herdeiro do Inventariado em escritura de habilitação de herdeiros de G A P.
XIV. Em respeito pelo princípio da indivisibilidade da vocação, consagrado no n.º 2 do artigo 2.054.º do Código Civil, não é possível aceitar uma parte da herança e repudiar a outra parte.
XV. A aceitação nos termos do disposto no artigo 2.056.º do C6digo Civil, pode ser expressa ou tácita. XVI. A existir aceitação, os seus efeitos retroagem-se a data da abertura da sucessão, não operando o repúdio posterior.
XVII. Assim, ao declarar ter recebido ativos da herança do Inventariado, na qual é herdeiro, em 01 de dezembro de 2002, L A P aceita, de forma inequívoca, a herança aberta pelo óbito do Inventariado, seu pai, assumindo – de forma efetiva – a qualidade de herdeiro.
XVIII. E, tendo L A P aceite a herança em data anterior ao repúdio, a declaração de repúdio operada carece de qualquer efeito, visto que é posterior à irrevogável declaração de aceitação, valendo a primeira. XIX. Este é o entendimento sufragado pela jurisprudência nacional, nomeadamente pelo Tribunal da Relação de Évora, em acórdão de 21 de junho de 2007: "A aceitação e o repúdio duma herança são por natureza incompatíveis. Assim, uma vez aceite não pode haver repúdio".
XX. Ora, sendo a aceitação da herança irrevogável por força do disposto no artigo 2.061.º do Código Civil, a escritura de repúdio outorgada por L A P a 17 de outubro de 2012 viola uma norma de carácter imperativo. XXI. E neste sentido vai também a jurisprudência nacional, nomeadamente o Tribunal da Relação de Guimarães que, em acórdão de 01 de março de 2018, entendeu que: "existindo declaração de aceitação de uma herança, mesmo que tácita, prévia à declaração de repúdio, esta segunda é ineficaz, por força da irrevogabilidade de que goza a declaração de aceitação da herança".
XXII. Prevê o artigo 294.º do Código Civil que "os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei".
XXIII. Um contrato ou outro negócio jurídico é considerado nulo nos casos em que, devido a um vicio existente no momento em que foi celebrado, não produz os efeitos jurídicos que diz produzir. E, nos termos do regime geral (artigo 286.º do Código Civil), esta nulidade pode ser invocada a qualquer momento por qualquer interessado, podendo igualmente ser declarada oficiosamente pelo tribunal.
XXIV. Assim, tem a Recorrente, enquanto Interessada, legitimidade para, a qualquer momento, invocar a nulidade da escritura de repúdio outorgada por L A P, atento que a mesma viola uma norma de carácter imperativo (artigo 2.061.º do Código Civil).
XXV. De facto, não pode agora a falta de oposição/impugnação da Recorrente servir de fundamento para a denegação do exercício dos seus direitos fundamentais, nomeadamente, do direito a ver os seus direitos e interesses legalmente protegidos, através de uma tutela jurisdicional efetiva, nos termos do disposto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
XXVI. Ao não declarar a ineficácia da escritura de repúdio outorgada por L A P no que a herança aberta por óbito do Inventariado diz respeito, não assumindo o mesmo a qualidade de herdeiro na referida herança, são a Recorrente e os restantes Interessados prejudicados na partilha, porquanto serão os seus quinhões hereditários reduzidos e as suas legitimas ofendidas face a existência de um passivo da herança em relação ao qual L A P, que deveria responder pela divida com o seu quinhão, é o único responsável.
XXVII. Aliás, dispõe o n.º 2 do artigo 2.074.º do Código Civil que: "São imputadas na quota do herdeiro as quantias em dinheiro de que ele é devedor à herança".
XXVIII. Pelo exposto, entendemos, e salvo respeito por opinião diversa, que o Tribunal a quo decidiu de forma injusta e injustificada.
XXIX. Premiando o infrator e violando o disposto nos artigos 294.º, 2.059.º e 2.061.º todos do Código Civil, e no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
XXX. Pelo que deve o presente recurso ser julgado procedente e o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que declare a nulidade e a ineficácia da escritura de repúdio outorgada por L A P, no que à herança aberta por óbito do Inventariado diz respeito, assumindo L A P a qualidade de herdeiro na herança aberta por óbito do Inventariado, devendo o seu quinhão hereditário responder pela divida de € 772.889,33 — da qual é responsável perante a herança – devendo o aludido passivo ser pago integralmente pelo seu quinhão e só após pagamento desse passivo por ativos do devedor responsável é que se deverá operar o direito de representação a favor dos seus filhos, ora Interessados V P e V N P.
i) A Digna Magistrada do Ministério Público, em representação do menor V N P, apresentou as suas contra-alegações, quanto ao recurso interposto por M M P, as quais contêm as seguintes CONCLUSÕES:
“1. Não se conformando com o despacho proferido pelo Tribunal a quo em 8 de outubro de 2020, na parte em que julgou improcedentes os pedidos formulados pela apelante, a ali cabeça de casal, M M P no requerimento junto em 14 de setembro de 2020, vem do mesmo interpor recurso.
2. No requerimento junto ao processo de inventário em 14 de setembro de 2020 e que deu origem ao despacho recorrido, pretende a apelante que se reconheça a nulidade da escritura de repúdio outorgada por L A P quanto ao inventariado, seu pai, G A P, passando aquela a assumir a qualidade de interessado na herança deste, à qual será devedor.
3. O despacho recorrido e que recaiu sobre o requerimento da apelante veio indeferir os pedidos formulados em consequência da pretendida declaração de ineficácia do repúdio da herança do inventariado G A P, com fundamento em que, tendo já decorrido os termos legais do processo de inventário previstos na Lei 23/2013, de 5 de março, anteriores à entrada em vigor da Lei 117/2019, de 13 de setembro, e sido citados os interessados, ficaram consolidados os efeitos das suas oposições ou da ausência das mesmas quanto à legitimidade dos interessados.
4. Mostrando-se em causa aferir se deveria ou não o Tribunal a quo conhecer do teor do requerimento apresentado pela apelante, ou se tal direito se mostrava já precludido, ou ainda se deveria o Tribunal a quo ter-se pronunciado por se mostrar invocada uma nulidade.
5. Ponderadas as disposições legais conjugadas dos artigos 2.056.º, 2.059.º, n.º 1 e 2.061.º do Código Civil, parece resultar, efectivamente, que decorridos que sejam 10 anos após o conhecimento do sucessível de haver sido chamado à herança sem que o mesmo a tenha repudiado, preclude tal direito, operando-se a aceitação tácita, aceitando-se que G A P não poderia desconhecer o facto do falecimento do seu pai, inventariado, ocorrido em 4 de outubro de 1999.
6. Tendo a aceitação carácter irrevogável (artigo 2.061.º do Código Civil), o repúdio que posteriormente se pretenda fazer operar não poderá produzir quaisquer efeitos por se mostrar celebrado contra disposição legal de carácter imperativo (artigo 294.º do Código Civil) e por tal ferido de nulidade invocável a todo o tempo, conforme dispõe o artigo 286.º do Código Civil.”
j) Depois de ordenada a apensação dos dois recursos de apelação que inicialmente corriam termos de forma autónoma foram colhidos os Vistos legais das Exmªs Senhoras Juízas Desembargadoras adjuntas cumprindo agora apreciar e decidir.
São as seguintes as questões a decidir conjugadamente nos dois recursos em apreciação:-----------
- a legalidade da citação do Ministério Público em representação de então menor para os termos do inventário e a subsequente apresentação de reclamação contra a relação de bens;
- a nulidade do repúdio da herança de seus pais por parte de L A P;
- a responsabilidade pelo pagamento dos créditos da herança indicados nas verbas 1 a 4 da relação de bens apresentada pela cabeça de casal.
B - OS FACTOS
a) De relevo para a decisão, para além dos factos que resultam do antecedente relatório, há a considerar o seguinte:
No dia 4 de outubro de 1999 faleceu G A P, no estado de casado com E J P.  
Foram habilitados como seus herdeiros, além da viúva, os seus filhos M M P, L A P e M R P.
No dia 24 de Outubro de 2011 faleceu E J P, tendo sido habilitados como seus herdeiros seus filhos M M P, L A P e M R P.
No dia 17 de outubro de 2012 foi lavrada no Cartório Notarial de Jorge Carvalho em Ponta Delgada escritura pública em que L A P declarou repudiar para todos os efeitos as heranças deixadas por óbito de seus pais G A P e E J P;
M R P requereu o inventário por óbito de seus pais no Cartório Notarial de Jorge Carvalho, em Ponta Delgada, indicando como cabeça de casal sua irmã M M P, a qual prestou declarações nessa qualidade em 24 de maio de 2016.
Nesse acto a cabeça de casal declarou que os herdeiros legitimários de G A P e de E J P eram ela própria, a sua irmã M R P, requerente do inventário e, em representação de seu irmão L A P, os netos dos inventariados V N e V N P, sendo este menor, sucedendo tal representação em virtude do repúdio das heranças de seus pais por parte de L A P.  
A requerente do inventário, M R P, viria a substituir a anterior cabeça de casal nessas funções, por despacho de 26 de abril de 2017, tendo prestado declarações nessa qualidade.
A nova cabeça de casal apresentou a relação de bens dos inventariados G A P e E J P.
Sob as verbas Um a Quatro da relação de bens apresentada foram relacionados os seguintes direitos de crédito:
- 514.429,16 euros referentes às quantias de 250.895,34 euros e respectivos juros convencionados à taxa de 7% e de 13.592,24 euros, sem juros no prazo de três anos, recebidos por L A P, “por empréstimo, do acervo hereditário deixado por óbito de seu pai”, em 14 de fevereiro de 2003;
- 65.574,63 euros, referentes a um mútuo bancário contraído em nome da inventariada e cujo montante foi recebido por L A P e pago pela inventariada E J P;
- 36.251,04 euros, referentes ao valor de uma livrança da responsabilidade de L A P e pago pela inventariada E J P;
- 156.637,50 euros, referentes ao valor de 5/8 do valor comercial de um prédio urbano penhorado num processo de execução movida contra L A P e a inventariada E J P, esta na qualidade de avalista de uma livrança e que foram adjudicados ao exequente por dívida da responsabilidade de L A P.
Na reação de bens foram indicados como devedores das heranças a partilhar os interessados V N e V N P, porque em representação do herdeiro repudiante não poderiam receber mais do que aquilo que lhe caberia.
Por despacho de 2 de outubro de 2018 foi ordenada a citação dos interessados para os termos do processo e para deduzirem, querendo, oposição (artigo 30.º da Lei 23/2013, de 5 de março) ou apresentarem reclamação contra a relação de bens (artigo 32.º da Lei 23/2013, de 5 de março).
O então menor V N P foi citado na pessoa de sua mãe, T N P sua representante legal, em 8 de outubro de 2018.
Não foi apresentada, nem decidida qualquer reclamação no processo de inventário até à data em que foi ordenada a remessa dos autos ao Juízo Local Cível de Ponta Delgada.
V N P atingiu a maioridade em 14 de dezembro de 2020, tendo cessado a intervenção do Ministério Público, conforme despacho de 20 de janeiro de 2021.
C - O DIREITO
I. Sobre a legalidade da citação do Ministério Público em representação do então menor e a oportunidade da reclamação apresentada
a) A apelante M R P insurge-se nas suas alegações de recurso contra a citação do Ministério Público para os termos do inventário em representação do então menor V N P que, enquanto o processo correu termos no Cartório Notarial, foi legalmente representado por sua mãe.
Vejamos.
De facto, o Ministério Público não tinha qualquer tipo de intervenção a título principal no Regime Jurídico do Processo de Inventário instituído pela Lei 23/2013, de 5 de março.
Sendo o inventário e partilha de bens em regra um negócio privado, a intervenção do Ministério Público era puramente residual e estava prevista apenas no artigo 66.º nº 2 da Lei 23/2013, de 5 de março para promoção do que entendesse necessário à defesa dos interesses que lhe estão estatutariamente confiados no caso de a herança ser deferida a menores ou incapazes.
A tutela dos menores e incapazes no âmbito do processo de inventário notarial estava confiada aos respectivos representantes legais ou a curador especialmente nomeado para o efeito.
O modelo adoptado pelo legislador era substancialmente diferente, neste aspecto concreto de tutela dos interesses dos menores e incapazes, do que foi (re)introduzido pela Lei 117/2019, de 13 de setembro.
Sensível à necessidade de reforço da defesa dos interesses dos menores e maiores necessitados de acompanhamento, o legislador de 2019 fez com que os processos de inventário em que eles fossem interessados que corriam termos nos Cartórios Notariais transitassem oficiosamente para os Tribunais Judiciais.
O Ministério Público passou com este diploma a ter legitimidade para intervir como parte principal em todos os termos e actos do processo de inventário sempre que a herança seja deferida a menores.
Nessa qualidade e com esse novo enquadramento legal invocado no despacho que a determinou, foi ordenada e teve lugar a citação do Ministério Público como interveniente a título principal para defesa dos interesses do então menor V N P.
Não cabe, pois, contestação ao facto de o Ministério Público ter sido regularmente citado para os termos do processo.
f) Questão diversa é de saber se, agindo em representação do então menor V N P, poderia o Ministério Público vir exercer um direito que o menor já não poderia exercer no inventário notarial por ter, entretanto, decorrido o prazo de que a sua representante legal, notificada para o efeito, dispôs para apresentar reclamação contra a relação de bens.
A resposta a esta questão terá que levar em linha de conta não só as razões já aduzidas que nortearam a alteração do regime como também o teor das normas transitórias, e em especial o espírito do artigo 13.º n.º 4 da Lei 117/2019, de 13 de setembro, nos termos do qual, remetido o processo de inventário ao tribunal cabia ao juiz, com base nos poderes de gestão processual e de adequação formal, determinar a tramitação subsequente do processo que se mostre idónea a conciliar “o respeito pelos efeitos dos actos processuais já regularmente praticados no inventário notarial com o ulterior processamento do inventário judicial”.
Ainda que a resposta a esta última questão não seja isenta de dúvidas, tendemos a considerar que o facto de a representante legal do menor já não poder reclamar do teor da relação de bens de que foi oportunamente notificada em representação do menor no âmbito do processo de inventário notarial, não inibe o Ministério Público de assumir em plenitude, logo que citado para os termos do processo de inventário pendente em tribunal, a tutela dos interesses dos menores, promovendo ou requerendo o que tiver por necessário para o efeito.
Tal entendimento é, de resto, o mais conforme no quadro da opção do legislador de 2019 de reforçar a tutela dos interesses dos menores, sendo certo que a circunstância de o processo de inventário se encontrar numa fase inicial e de não ter sido proferida qualquer decisão no processo de inventário notarial subsequente à notificação da relação de bens, reforçam a salvaguarda da tutela dos actos processuais já praticados sem perder de vista a finalidade da intervenção do Ministério Público.
Dito de forma clara, dado a fase processual e o estado do processo de inventário quando remetido a tribunal, não pode considerar-se definitivamente afastado o direito do Ministério Público a reclamar, em defesa dos interesses do então menor V N P, logo que foi citado como parte principal para os termos do inventário.
g) Tendo a reclamação apresentada pelo Ministério Público sido oportuna e tempestiva sobre ela foi proferido o despacho ora impugnado em que, além de não se admitir a invocação da nulidade do repúdio da herança por parte da interessada M M P, se decidiu ordenar a alteração da relação de bens no que toca à imputação da responsabilidade pelas dívidas à herança ao herdeiro repudiante L A P.
Abordaremos de seguida estas duas questões.
II. Sobre o repúdio da herança por parte de L A P
h) A questão da invalidade ou da ineficácia do repúdio da(s) herança(s) de seus pais por parte de L A P foi suscitada nos autos pela interessada M M P pela primeira vez no articulado de resposta à reclamação contra a relação de bens apresentada pelo Ministério Público actuando, como já se disse, como parte principal em representação de V N P, então menor. -------------------
A referida interessada na qualidade de cabeça de casal inicial tinha prestado declarações e indicado que os filhos de seu irmão L A P eram herdeiros legitimários dos inventariados, em exercício de direito de representação, porque ele tinha – validamente – repudiado a(s) herança(s) a partilhar.
No despacho sob recurso considerou-se que as partes foram notificadas para exercer os direitos previstos nos artigos 30.º a 32.º do Regime Jurídico do Processo de Inventário então em vigor e que, não o tendo feito, a referida interessada não poderia agora fazê-lo.
Por essa razão foram julgados improcedentes os pedidos feitos por M M P, entre os quais se contava o pedido de declaração de ineficácia da escritura de repúdio da herança outorgada por L A P.
i) Justifica-se uma breve introdução sobre o regime jurídico da aceitação ou repúdio da herança.--
A sucessão é o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida, sendo a ela chamados aqueles que gozam de prioridade na hierarquia dos sucessíveis.
Contudo ao chamado é reconhecido o direito de aceitar ou de repudiar a herança, sendo pelo exercício desse direito de aceitar a herança que o chamado ingressa na titularidade de relações jurídicas patrimoniais da pessoa falecida.
A aceitação da herança pode ser expressa ou tácita, sendo havida como expressa quando o herdeiro declare em documento escrito que aceita a herança ou quando assume o título de herdeiro com intenção de a adquirir.  
Haverá aceitação tácita quando, nos termos do artigo 217.º do Código Civil, ela se deduz de factos objectivos ou subjectivos que, com toda a probabilidade, a revelam.
Por outro lado, o repúdio da herança, sempre expresso e efectuado em escritura pública quando haja bens na herança cuja alienação o exija, traduz-se na declaração incondicional, e não receptícia, da vontade do herdeiro de não assumir a titularidade de nenhuma das relações jurídicas patrimoniais da pessoa falecida.
Sem prejuízo do direito de representação dos herdeiros legais do repudiante, o repúdio da herança, cujos efeitos retroagem à data da abertura da sucessão, é irrevogável e incompatível com a prática de qualquer acto de que decorra a aceitação da herança, já que a aceitação da herança é, também ela, de natureza irrevogável.
Daí que, como prevê o artigo 2054.º n.º 2 do Código Civil, não possa a herança ser repudiada - nem aceite – apenas em parte.
Resta mencionar que quer a aceitação da herança quer o seu repúdio caducam ao fim de dez anos sobre o momento em que o sucessível teve conhecimento de ter sido chamado à titularidade da herança.
j) No caso presente, alegou a apelante M M P, e está suficientemente demonstrado por documento junto aos autos, que L A P declarou, em 17 de outubro de 2012, repudiar as heranças de seus pais G A P e E J P, ele falecido no dia 4 de outubro de 1999 e ela no dia 24 de outubro de 2011.
Mais alegou a apelante, e está também suficientemente demonstrado nos autos, que L A P declarou, em documento particular datado de 14 de fevereiro de 2003, ter recebido no dia 1 de dezembro de 2002, “por empréstimo, do acervo hereditário deixado por óbito de seu pai” a quantia de 250.895,34 euros e que recebeu, “por empréstimo da herança”, a quantia de 13.592,24 euros.
Ainda que outra leitura da real vontade do declarante em tal documento seja hipoteticamente possível, a circunstância de nessa data a herança de G A P estar indivisa e de o autor do escrito ser um dos seus herdeiros legitimários faz com que, para um declaratário normal colocado na posição do real declaratário, ela tenha o significado de aceitação da herança de seu pai e de vontade de preenchimento antecipado do seu quinhão hereditário.
Sendo a aceitação da herança irrevogável o posterior repúdio da herança, mesmo que tempestivo fosse (e não o foi quanto à herança de G A P, falecido cerca de doze anos antes), sempre seria nulo por violação directa de norma de cariz imperativo (artigo 294.º do Código Civil) que, no caso, estabelece a irrevogabilidade da aceitação da herança (artigo 2.061º do Código Civil).
A nulidade do repúdio da herança de seu pai por parte de L A P, que tacitamente tinha aceite – é, nos termos gerais, invocável a todo o tempo por qualquer interessado.
Carece assim de fundamento o argumento do despacho recorrido no sentido de que tinha precludido o direito da interessada M M P a impugnar os créditos e as dívidas da herança.
Em verdade a questão era algo diversa e tinha a ver com a nulidade do repúdio da herança de seu pai por parte de L A P, ainda que a validade ou invalidade do repúdio tenha repercussão directa na definição dos sucessíveis que são chamados à titularidade dos bens da herança.
E tal nulidade podia validamente ser invocada pela interessada M M P a todo o tempo.
Procedem os recursos em apreciação no que se refere à questão da declaração de nulidade do repúdio da herança de seu pai por parte de L A P.
l) No presente processo de inventário está em causa, cumulativamente, a partilha das heranças deixadas por G A P e por E J P, sendo os mesmos os herdeiros interessados e os bens a partilhar.
A nulidade do repúdio da herança de seu pai por parte do L A P não prejudica, porém, a validade do repúdio da herança de sua mãe E J P.
L A P deverá, enquanto herdeiro de seu pai G A P, ser em conformidade citado para os termos do presente inventário.  
Os interessados V P e V N P mantêm a sua qualidade de herdeiros interessados na herança de E J P em representação de L A P, em virtude do repúdio ser nessa parte operante.
III. Sobre a responsabilidade pelo pagamento dos créditos da herança indicados nas verbas 1 a 4 da relação de bens
m) A reação da apelante M R P em relação à possibilidade de apresentação da reclamação sobre o teor da relação de bens é aparentemente contraditória com a aceitação – ou no mínimo com a falta de interesse em agir – da parte da decisão impugnada que imputa ao herdeiro L A P a responsabilidade pelo pagamento dos créditos da herança e que ela aceita nas suas conclusões. 
Na verdade, o cerne da impugnação contra a relação de bens que foi apresentada pelo Ministério Público residia no facto de a responsabilidade pelos créditos da herança relacionados nas verbas 1 a 4 da relação de bens ser atribuída ao menor V N P e a sua irmã V P, pedindo que eles fossem relacionados como reclamáveis ao seu devedor – L A P.
Alega, em síntese, o Ministério Públio - e foi acolhido no despacho impugnado – que a representação sucessória não constitui forma de transmissão das dívidas assumidas pelo herdeiro L A P.
Em sentido concordante com a posição expressa pelo Ministério Público logo se pronunciou a interessada M M P no articulado de resposta que apresentou.
A decisão ora impugnada – despacho de 8 de outubro de 2020 – determinou, com base na prova documental que os autos fornecem, a correcção da relação de bens de forma a que ficasse a constar a propósito das verbas 1 a 4 que a herança era credora de L A P.
Nas suas alegações de recurso a apelante M R P defende que deve ser considerado responsável pela dívida à herança L A P, o mesmo entendendo a apelante M M P nas suas alegações de recurso, entendendo que o quinhão da herança do devedor deveria responder pela dívida.
n) Ou seja, mesmo que dúvidas pudesse haver acerca da possibilidade legal de apresentação de reclamação da relação de bens pelo Ministério Público depois da omissão da representante legal do então menor V N P a esse propósito, a posição das apelantes sobre o teor da relação de bens quanto à responsabilidade pela satisfação dos créditos relacionados nas verbas 1 a 4, acaba por ser coincidente no sentido de a herança de G A P e E J P ser credora do herdeiro L A P.
o) Por último, não cabe neste momento tomar qualquer posição sobre a forma de garantir o pagamento do crédito da herança ou sobre a composição dos quinhões, porque tais matérias não foram objecto da decisão impugnada.
p) Em conclusão, o recurso interposto pela apelante M R P:  
- improcede quanto à questão da repetição indevida do acto de citação do Ministério Público em representação do então menor V N P;
- procede quanto à questão da tempestividade da invocação da nulidade do repúdio da herança de G A P por parte de M M P;
- procede quanto à questão da responsabilidade de L A P perante a herança pelos créditos descritos nas verbas 1 a 4 da relação de bens.
Por sua vez o recurso da apelante M M P:
- procede quanto à questão da nulidade do repúdio da herança de G A P e da tempestividade da sua invocação;
- procede quanto à questão da responsabilidade de L A P perante a herança pelos créditos descritos nas verbas 1 a 4 da relação de bens.

D – DECISÃO
Termos em que, julgando parcialmente procedente a apelação interposta pela cabeça de casal M R P e procedente a apelação interposta pela interessada M M P, decidem:
Declarar válida a citação do Ministério Público como interveniente principal em representação de V N P enquanto menor, e tempestiva a reclamação contra o teor da relação de bens apresentada;
Confirmar o teor do despacho recorrido no que tange a ser L A P o responsável perante a herança pelos créditos identificados nas verbas 1 a 4 da relação de bens oportunamente apresentada;
Declarar a nulidade do repúdio da herança de G A P por parte do herdeiro L A P, efectuado por escritura pública outorgada em 17 de outubro de 2012 no Cartório Notarial de Jorge Carvalho em Ponta Delgada.
Custas da apelação interposta por M R P (594/20.4T8PDL-B.L1) pela apelante na proporção do decaimento que se fixa em um terço (1/3).
Custas da apelação interposta por M M P (594/20-4T8PDL-A.L1) - Sem custas dada a procedência.-

Lisboa, 25 de fevereiro de 2021
Manuel José Aguiar Pereira
Maria Teresa Batalha Pires Soares
Octávia Machadinho Viegas