I - Conhecendo a Relação em recurso dos vícios alegados de proibições de prova por falta de despacho em inquérito da respectiva autoridade judiciária esgotou-se aí o seu conhecimento, sendo inadmissível recurso sobre tal matéria para o STJ, a tando não obstando a circunstância de a nulidade ter sido inserida no recurso da decisão final.
II - Uma conversa entre pessoas constitui um meio de prova (instrumento) sendo os factos o próprio teor da conversação.
III - O crime de tráfico de estupefacientes respeitando a cocaína com elevado grau de pureza (83,50 %) e transportada em elevada quantidade (peso líquido de 710,538 kg) em embarcação ao longo do Oceano Atlântico, geraria, decerto, elevados proventos a quem viesse a distribuí-la e vendê-la, em causa estando uma operação de transporte de elevada escala.
IV - O grau de culpa de ambos os arguidos é intenso, são fortes as exigências de prevenção geral e especial, sendo premente a necessidade de reforço da confiança comunitária na validade e integridade das normas e valores por elas protegidos, de defesa da saúde pública em geral, razões por que as penas de 10 anos e 6 meses de prisão e de 9 anos e 6 meses de prisão fixadas a cada um dos arguidos são adequadas, necessárias e proporcionais.
5.ª Secção
Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça:
I. Relatório
Os arguidos AA, de nacionalidade sérvia e BB (também indicado como CC), de nacionalidade montenegrina, foram julgados e condenados no âmbito do processo n.º …, por acórdão do tribunal colectivo do Juiz … do Juízo Central Cível e Criminal …, do Tribunal Judicial da Comarca …, respectivamente nas penas de 9 anos e 6 meses de prisão e 10 anos e 6 meses de prisão, pela prática, em co-autoria, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo art.º 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22/01, com referência à Tabela anexa I-B.
Declarou, além do mais, perdidos a favor do Estado a importância apreendida de 3.420,00 €, a embarcação ……. e o respectivo título de registo de propriedade em nome de DD e 700 placas de cocaína apreendidas.
Desse acórdão recorreram para o Tribunal da Relação …… que, por acórdão de 02.07.2020, julgou, na íntegra, improcedentes ambos os recursos.
Ainda inconformados, recorreram os arguidos para este Supremo Tribunal, rematando a motivação conjunta com as seguintes conclusões:
“1 - Da nulidade do acórdão recorrido:
a. O recorrente entende que foi cometida a nulidade prevista nos artigos 379º 1º al. c), Aplicável aos acórdãos proferidos em recurso - 425º nº 4) – e artigo 428º, todos do C.P.P., porque o douto acórdão agora em crise deixou de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar;
b. Não houve qualquer reexame da matéria de facto impugnada ou um juízo substitutivo.
c. O acórdão recorrido fundamentou a sua decisão de modo genérico, assegurando a bondade da decisão de facto da 1ª instância, sem questionar o motivado pelo recorrente;
2 - Da prova proibida:
a. Não existe um despacho de apreensão cautelar do MP e definitivo do juiz, em relação aos dados informáticos retirados dos telefones dos arguidos;
i. Os despachos invocados pelo acórdão recorrido, como tendo valorado, validado e junto aos autos os dados informáticos recolhidos, são prévios aos exames, e por isso não levaram em consideração o seu conteúdo;
ii. Foi o próprio tribunal de 1ª instância a admitir a sua Inexistência, o que não foi contrariado pelo MP na sua resposta e parecer;
iii. E na verdade, os despachos referidos no acórdão recorrido são todos anteriores a 28.11.2018, data da realização dos exames e visualização dos dvd – 7.1.2019;
iv. Significa isto que as Mensagens de WhatsApp recolhidas não foram apresentadas ao juiz de direito;
v. Não se cumpriu assim o artigo 16º e 17º da lei do cibercrime;
b. Estando em causa mensagens de correio electrónico ou de natureza semelhante – como o são as conversas de WhatsApp – estão em causa direitos fundamentais protegidos pelos artigos 26.º n.º 1 e 34.º n.º 1 e n.º4 da CRP;
i. Estando em causa mensagens electrónicas de natureza privada, com protecção constitucional, não se pode admitir que a violação da intervenção do juiz – neste caso, a falta dela – possa ser enquadrável numa nulidade sanável, antes, deve ser na proibição de prova prevista no n.º 3 do artigo 126.º do CPP.
3 - Os factos descritos no ponto 7. do acórdão da 1ª instância, não são factos, antes meios de prova
a. Está em causa a transcrição de conversas telefónicas que consubstanciam meios de prova e não factos;
b. Seguimos de perto o acórdão deste STJ no processo 05P1441;
c. Deve assim ser dado como não escrito a descrição feita no ponto 7º da matéria de facto dada como provada por não conter factos, em violação do artigo 124º e 374º n.º 2 do CPP.
4 - As penas aplicadas aos recorrentes são muito elevadas;
a. Não tendo sido consideradas pelo acórdão recorrente quaisquer das considerações feitas pelos recorrentes quantos aos factos provados de natureza pessoal;
b. Ao facto de serem meros transportadores;
c. E à jurisprudência comparativa alegada pelos recorrentes;
d. Razões para considerar que a pena mais justa devesse ficar abaixo dos 7 anos de Prisão”.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta na Relação …… pronunciou-se pela improcedência do recurso, em resposta que rematou com as seguintes conclusões:
1. As nulidades invocadas no decurso da audiência de discussão e julgamento na 1.ª Instância, sendo susceptíveis de fundamentar recurso intercalar para o Tribunal da Relação, mormente quando atinentes à valoração da prova e, assim, à matéria de facto e quando o Tribunal da Relação não funciona em 1.ª Instância, não são fundamento de recurso para o STJ, apenas podendo ser conhecidas se insanáveis e oficiosamente detectadas e no restrito âmbito do art.º 410.° n.º 2 e n.º 3 do CPP.
2. O Tribunal da Relação conheceu e decidiu todas as questões suscitadas pelos Recorrentes, nomeadamente, as questões relativas às nulidades e à matéria de facto deficientemente impugnada, bem como quanto à medida da pena, pelo que não padece do vício do art.379° n.º 1, c), do CPP.
3. As penas de prisão aplicadas pela 1.ª Instância e confirmadas pelo Tribunal da Relação, mostram-se criteriosamente doseadas, em perfeita consonância com os critérios legais dos art.º 21.º n.º 1 do DL n.º 15/93 de 22.01 e art.º 40.° e 71.° do CP, pelo que deverão ser mantidas.
4. O recurso deverá ser julgado totalmente improcedente.
Neste Supremo Tribunal a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no mesmo sentido.
Cumprido o disposto no n.º 2 do art.º 417.º do CPP, os recorrentes quedaram-se inertes.
Após conferência, cumpre decidir.
São questões a apreciar:
a) – Nulidade do acórdão recorrido, quanto ao arguido AA, por omissão de pronúncia quanto à impugnação da matéria de facto vertida nos n.ºs 21.º, 27.º, 28.º, 29.º, 31.º e 32.º e inconstitucionalidade por violação do art.º 32.º, n.º 1, da CRP na eventualidade de tal vício não ser declarado;
b) – Proibição de prova relativamente a dados informáticos retirados dos telemóveis dos arguidos, por falta de despacho de apreensão cautelar do M.º P.º e definitivo do juiz de instrução e de mensagens de whatsapp por falta de apresentação da transcrição ao juiz de instrução, em infracção ao disposto nos art.ºs 16.º e 17.º da Lei do Cibercrime (Lei n.º 109/2009, de 15.09), com a consequente nulidade do n.º 3 do art.º 126.º do CPP;
c) – Inatendibilidade (ser declarada não escrita) da matéria do ponto 7 da matéria de facto provada por não se tratar de matéria de facto;
d) – Medida das penas (excessivas, não se atendendo aos factos provados de natureza pessoal, nem à circunstância de os recorrentes serem meros transportadores do estupefaciente, nem à jurisprudência comparativa).
*
II. Fundamentação
1. Matéria de facto
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provada pelas instâncias:
“1 - No dia 31 de Maio de 2018, foi firmado um acordo de compra e venda entre EE e FF como vendedores e DD como comprador, sendo que os primeiros declararam vender uma embarcação tipo ……denominada ….., com pavilhão ……., com 11,90 metros de comprimento e 6,50 metros de largura e o segundo por sua vez, declarou comprar este navio, pelo preço de 126.500,00 € (cento e vinte seis mil e quinhentos euros);
2 - Esta embarcação apresenta as seguintes características: trata-se de uma embarcação em fibra, construída no ano de 2003, modelo … e registo nº …;
3 - No acordo em causa, o indivíduo denominado como DD, apresenta como sua morada em … … …, … - …, …;
4 - No dia 29 de Maio de 2018, em nome de GG, conta sedeada no banco austríaco …., foi feita uma transferência bancária no valor de 4.000,00 € (quatro mil euros), para a conta bancária de FF com o número IBAN ….;
5 - No dia 15 de junho de 2018, a embarcação ……deu entrada na Marina …, … com a seguinte tripulação: HH, nascido a ……/1978, em … - …, titular do passaporte ……. e, II, nascido a ……./1978, em … - …., titular do passaporte …;
6 - No dia 9 de Julho de 2018, o barco……. dá entrada no …. em …., com previsão de aí permanecer até dia 5 de Agosto de 2018;
7 - Entre 21 de Julho de 2018 e o dia 31 de Julho de 2018, o arguido CC e um indivíduo chamado de DD, trocaram mensagens entre si, através do Iphone …. (…) com o IMEI …, via Whatsapp com o número de telemóvel … com o seguinte teor:
B - “ Arranjas duas gajas ”?
B - “Duas”
V - “Claro”
V - “Agora vou ter com uma delas.”
B - “Tudo bem. A gente vê-se.”
E no dia 31 de Julho –
V - “Irmão temos um problema com esta outra. A mãe não a deixa ir!
Fiquei doido.
”B - “Ok irmão, pode ser aquela de Belgrado ”
B - “Estás aqui?”
V - “Estou”
B - “Aquela de Belgrado quer? ” B - “Pode viajar com o V.”
V - “Quer mas não me responde, finge que está a dormir”
V - “Ligo-lhe amanhã”
B - “Ok irmão, amanhã de manhã vai responder”
B - “Depois confirma”
B - “Se for necessário ir buscá-la de carro, posso organizar isso ”
V - “Não há problema digo alguma coisa de manhã”
B - “Ok boa noite”
V - “Irmão eu adormeci ontem ”
B - “Ok”
B - “Ela já disse alguma coisa?
V - “Bom dia”
V - “Já arranjei outra”
V - “Irmão”
V - “Bósnia”
B - “Passaporte da Bósnia ”
V - “Sim”
B - “Ela vai com o AA”
B - “pode ser”
B - “Vou apresentá-los hoje”.
8 - Na sequência daquelas mensagens, vieram a ser recrutadas pelo arguido CC, LL, de nacionalidade montenegrina e JJ de nacionalidade Bósnia-herzegovina;
9 - Além das mensagens referidas no ponto 7, o arguido CC trocou outras mensagens com indivíduo chamado de DD, utilizando o mesmo equipamento Iphone …(…) com o IMEI …., via Whatsapp com o número de telemóvel …, sobre a execução da viagem marítima designadamente, sobre a aquisição de aparelhos electrónicos tais como GPS, mapas de navegação marítima, tablet’s; aquisição de mantimentos e água, gasolina, viagens/passagens aéreas, alojamento em hotel e sua calendarização;
10 - Na sequência das conversas mantidas, tal como referido nos pontos 7 e 9, o arguido CC veio a adquirir o aparelho de GPS … ….. e o Bluechart …., no valor respectivamente de 557,07 € e 185,07 €, tudo no valo total de 742,14 €;
11 - No dia 1 de Agosto de 2018, o arguido CC juntamente com LL e JJ viajaram por via aérea desde … no … em direcção a …, onde permaneceram até dia 3 de Agosto de 2018.
12 - Por sua vez o arguido AA, efectua a viagem sozinho, tendo saído de Podgorica em 03/08/2018 chegando a Paris em 03/08/2018 e sai de Paris em 04/08/2018, por via aérea no voo …. de Agosto até …, onde pernoitou de 04/08/2018 para 05/08/2018 em ….
13 - Quanto ao arguido CC, juntamente com a LL e JJ, no dia 3 de Agosto de 2018, viajam desde o aeroporto de …em …, tendo por destino … onde chegam a 4 de Agosto de 2018.
14 - No dia 5 de Agosto de 2018, o arguido CC bem como a LL e JJ viajam na embarcação ……. por via marítima desde …, …, onde a embarcação é abastecida de 296 unidades de combustível pelo preço de 799,20 dólares.
15 - Pelo menos no dia 6 de Agosto de 2018, o arguido CC juntamente com LL e JJ e o arguido AA, que passa a ser o Skipper da embarcação ……, até ao dia 1 de Setembro de 2018, passaram a tripular esta embarcação.
16 - E nesse dia 6 de Agosto de 2018, os arguidos bem como, as duas acompanhantes antes identificadas fazem uma viagem de teste na marina de … - ….
17 - No dia 7 de Agosto de 2018, os arguidos bem como LL e JJ, fazem segunda viagem de teste na baia de … - ….
18 - No dia 8 de Agosto de 2018, todos os arguidos bem como LL e JJ saem de … - …, tripulando a embarcação ……, com destino a ….
19 - Para acomodar o produto estupefaciente, foram realizadas intervenções na fibra da embarcação ……, nos seguintes locais:
- no compartimento da parte da frente da quilha a bombordo, por baixo do estrado que suporta uma cama;
- no compartimento da parte de trás da mesma quilha a bombordo, igualmente por baixo do estrado que suporta uma cama;
- na parte da frente e na parte de trás da quilha de estibordo;
- na parte exterior da embarcação, por baixo de um dos bancos que serve a mesa, cujo assento é móvel e dá acesso a um pequeno porão.
20 - Nos locais acima indicados, em data não concretamente apurada, foram introduzidas no seu interior 700 embalagens/placas de cocaína cloridrato com o peso líquido de 710.538,200 gramas, com o grau de pureza de 83,50 %, o que daria para 2.966.497 doses, após o que os referidos locais foram selados.
21 - O produto estupefaciente acima descrito, após acondicionado nos exactos locais mencionados no ponto 19, foi transportado pelos arguidos na embarcação ……, com destino previsível ..….
22 - No dia 1 de Setembro de 2018, a embarcação ……., parou ao …., onde permaneceu até ser rebocado.
23 - Cerca das 09h00 da manhã do dia 01 de Setembro de 2018, o … AA foi rebocado da … para o Porto Comercial …., na …, e deu entrada naquele porto, tendo atracado no pontão, às 10h45 minutos desse mesmo dia, com avaria de motor.
24 - No dia 1 de Setembro de 2018, pelas 13h30m, no cais comercial ……, na …, e na sequência de buscas realizadas pela Polícia Judiciária no barco….., foi encontrado o produto estupefaciente referido no ponto 20, nos seguintes moldes:
- no compartimento da parte da frente da quilha a bombordo, por baixo do estrado que suporta uma cama onde se encontrava a dormir AA, numa estrutura cavernosa construída entre o estrado que suporta a cama e o casco do navio, estavam acondicionadas 110 (cento e dez) placas de produto estupefaciente;
- no compartimento da parte de trás da mesma quilha a bombordo, igualmente em compartimento situado por baixo do estrado que suporta uma cama, e onde LL guardava os seus pertences, estavam acondicionadas mais 170 (cento e setenta) placas de produto estupefaciente;
- Na quilha de estibordo, na parte da frente e na parte de trás, sob os estrados das camas e nos compartimentos ocupados por JJ e pelo arguido BB, também se encontravam acondicionadas da seguinte forma:
- na parte da frente da quilha a estibordo, no compartimento utilizado por JJ, estavam acondicionadas 110 (cento e dez) placas de produto estupefaciente;
- na parte de trás da quilha a estibordo, no compartimento utilizado pelo arguido BB, estavam acondicionadas 170 (cento e setenta) placas de produto estupefaciente;
- Na parte exterior da embarcação, por baixo de um dos bancos que serve a mesa, cujo assento é móvel e dá acesso a um pequeno porão, onde estavam guardados “……..” de combustível, à qual se acedia a partir de uma estrutura cavernosa quebrando a parede lateral, estavam acondicionadas mais 140 (cento e quarenta) placas de produto estupefaciente.
25 - Aquando da intercepção no dia 1 de setembro, os arguidos detinham, no interior da embarcação ……, a quantia de € 4.030,00 (quatro mil e trinta euros), ou seja, 620, 00 € pertencentes a BB, mais 610,00 € pertencentes a LL e 2.800,00 € pertencentes a AA;
26 - Foi ainda apreendido diverso equipamento eletrónico, informático e de telecomunicações e de navegação, tal como a própria embarcação …….. e, o título de registo de propriedade em nome de DD, a saber:
- 1 (um) aparelho de navegação GPS marítimo, da marca GARMN, modelo …, com o número de série ….;
- 1 (um) aparelho de navegação GPS marítimo, da marca FORUNO, modelo …, com o número de série …;
- 01 (um) radio de comunicações da marca Standard Horizon, modelo … ….;
- 01 (um) tablet da marca ASUS, de cor branca, modelo …., com o número de série …;
- 01 (um) aparelho de satélite, da marca IRIDIUM, modelo …, com o IMEI …, contendo no seu interior um cartão SIM, da marca IRIDIUM com o número de série …;
- 01 (um) aparelho de satélite, da marca IRIDIUM, modelo …, com o IMEI …, contendo no seu interior um cartão SIM, da marca IRIDIUM com o número de série …;
- 01 (um) telemóvel dual SIM da marca SAMSUNG, modelo …, com os IMEI … e …, sem cartão SIM;
- 01 (um) telemóvel dual SIM da marca BLU, de cor preto e vermelho, com os IMEI … e …, contendo um cartão SIM da operadora … com número de série …;
- 01 (um) telemóvel da marca NOKIA, modelo …, sem IMEI visível, com o cartão SIM com o número de série ….;
- 01 (um) computador da marca ACER, com o SNID …., com carregador;
- 01 (um) tablet da marca ASUS, de cor preta com a respectiva capa de protecção cor-de-rosa, modelo …;
- 01 (um) telemóvel da marca HTC, de cor preta, em mau estado de conservação, com um cartão SIM sem qualquer sinal distintivo, e sem IMEI visível;
- 1 (um) telemóvel da marca Apple, modelo IPhone, de cor branca, com o IMEI …, contendo no seu interior um cartão SIM sem número de série visível;
- 1 (um) telemóvel da marca HTC, modelo …, com o IMEI …, contendo no seu interior 1 cartão SIM da operadora …., com o número de série ….;
- 1 (um) telemóvel da marca Samsung, modelo …, com o IMEI …, contendo no seu interior um cartão SD de 4GB e um cartão SIM sem operadora visível, com o número de série …;
- 1 (um) telemóvel da marca Samsung, modelo …, com o IMEI …, contendo no seu interior 1 cartão SIM da operadora M TEL, com o número de série … e respectivo cartão de memória;
- 1 (uma) máquina fotográfica da marca Panasonic LUMX, modelo …, com o número de série …., com uma óptica da marca LEICA, …, com cartão de memória SD 64GB;
- 1 (um) Carregador com duas baterias da marca Panasonic, modelo LUMIX;
- 2 Cartões de memória SD da marca SAMSUNG, com 64 e 32 GB, respectivamente;
- 1 (um) cartão se suporte de cartão SIM, da operadora T-Mobile, referente ao número …;
- 1 (um) telemóvel Blackberry, modelo BOLD, com o IMEI …, com o BlackBerry PIN …., contendo no seu interior um cartão da operadora …., com o número de série …;
- 1 (um) telemóvel da marca Apple, modelo IPhone, modelo …, contendo no seu interior um cartão da operadora … com o número de série ….
27 - Os arguidos transportaram o mencionado produto estupefaciente, a troco do recebimento de pelo menos, a quantia de 5.000,00 €/ cada um (cinco mil euros).
28 - Os arguidos conheciam perfeitamente a natureza estupefaciente e proibida da cocaína cloridrato que transportavam.
29 - Foi em conjugação de esforços, conjuntamente e em execução de plano previamente delineado, que a transportaram.
30 - A totalidade daquele produto estupefaciente proibido era destinado a venda a terceiros, por pessoa não concretamente apurada.
31 - Agiram de comum acordo, livre, voluntaria e conscientemente.
32 - Bem sabendo serem tais condutas proibidas e punidas por lei.
33 - Condições pessoais quanto ao arguido BB - o mesmo é natural de … e é solteiro, tendo três irmãos;
34 - À data da sua detenção, o pai era detentor de uma empresa ……. e a mãe…….;
35 - Estudou cerca de 8 anos e a seguir fez formação universitária como…….;
36 - Começou a trabalhar logo a seguir a terminar os estudos e há cerca de seis anos a esta parte, montou uma oficina ….. mantendo igualmente a reparação ….. com rendimentos que lhe garantiam a satisfação das suas necessidades e manteve duas relações afectivas de longa duração mas que terminaram;
37 - Em contexto prisional tem revelado uma boa adesão às regras e adaptação a esta vida;
38 - Ocupa-se com treino físico e leitura;
39 - Já recebeu visitas de um irmão e de um cunhado;
40 - O arguido não tem quaisquer antecedentes criminais averbadas no seu certificado de registo criminal;
41 - Condições pessoais quanto ao arguido AA - o mesmo é natural……., República ……e é o mais novo de dois irmãos;
42 - Casou-se e desta união nasceu um filho que actualmente tem 11 anos de idade, mas que com o tempo instalou-se uma certa distância entre si e a esposa e por isso quando a esposa se mudou de país por razões profissionais dá-se a ruptura entre o casal e quando sair da prisão vai concretizar o divórcio;
43 - Estudou normalmente e fez uma formação especializada em navegação marítima sendo que depois a nível profissional foi capitão de várias embarcações, quer turísticas, quer de pesca e durante o inverno porque havia menor trabalho, então dedicou-se a trabalhos na área……..; pontualmente também foi……;
44 - Na prisão apresenta um comportamento adequado e é cumpridor das normas, apenas registando um conflito com o co-arguido BB.
45 - O arguido não tem quaisquer antecedentes criminais averbadas no seu certificado de registo criminal”.
*
2. Apreciando:
2.1. Começando pela nulidade arguida de omissão de pronúncia quanto à impugnação da matéria de facto provada pala 1.ª instância relativamente ao co-arguido AA quanto aos factos provados nos pontos 21.º, 27.º, 28.º, 29.º, 31.º e 32.º, por alegadamente a Relação não ter procedido ao seu reexame, antes de forma genérica se pronunciou pela bondade do decidido, cumpre assinalar o seguinte:
A matéria de facto impugnada versa (comprova) sobre a co-autoria do recorrente AA pela prática do crime de tráfico de estupefacientes por que foi condenado e a impugnação que dela fez para a Relação foi no sentido de vir a ser considerada não provada.
Como prova para tal impugnação indicou as suas próprias declarações gravadas, que remeteu para a indicação dos dois dias em que decorreu a audiência de julgamento e para as horas (início e fim) em que foi interrogado.
Desde já se adianta que o acórdão recorrido se pronunciou sobre a impugnação de forma que se tem como suficiente.
Desde logo considerou que “a cada um dos recorrentes incumbia o dever de especificar as provas que não foram devidamente levadas em conta pelo tribunal a quo - o que não sucede -, bem como o dever de indicar (e apreciar criticamente) o conjunto de provas que estiveram na base da decisão recorrida, não podendo este Tribunal superior conhecer apenas a visão dos factos alegada e, de acordo com os interesses do invocante, ignorar as provas que estiveram na base da decisão recorrida e acolher a sugerida diversa interpretação” (…), “não se apontam, nem se observam explicação, valoração e/ou diferentes considerações de valor técnico-legal que permitam decisão em sentido diverso daquele que resultou no acórdão in judice, estando a opção tomada assente na actividade cognitiva do tribunal a quo, com os mínimos necessários à devida estruturação”.
“ (…) De resto, a credibilidade, ou não, de uma fonte de prova tem por base uma valoração do julgador que é fundada na imediação e na oralidade, o que o tribunal de recurso, em rigor, só poderia criticar se tivesse sido demonstrado, como não sucede, que a mesma seria inadmissível em face das regras da experiência comum.
É que, analisando a prova produzida e ajuizando sobre a sua verosimilhança e plausibilidade, não se observam razões para censurar o juízo que o tribunal a quo formulou sobre a não credibilidade da tese de cada um dos arguidos”.
Para concluir que “para lá da natureza da impugnação do decidido de facto e da postura de cada um dos arguidos em julgamento, sem esquecer que o princípio da livre apreciação da prova também se aplica ao tribunal de 2.ª instância, a evidência processual não impunha uma outra decisão, do que deriva a impossibilidade de se poder modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto”.
Quer dizer, o acórdão recorrido considerou por um lado, que a impugnação não obedeceu aos ditames do art.º 412.º, n.º 3, alín. b) e n.ºs 4 e 6, do CPP, desde logo ao cumprimento do ónus de especificação das passagens gravadas das declarações do próprio impugnante, o que só por si seria acertado motivo de rejeição da impugnação, mas, ainda assim, passou em revista a demais prova produzida, fosse a prova documental, pericial e testemunhal, nela não vendo motivo para alteração da factualidade assinalada pelo recorrente.
Há que indeferir, assim, a nulidade arguida.
Na motivação, que não, depois também, nas conclusões, o mesmo recorrente invocou a inconstitucionalidade material das normas dos art.ºs 379.º, n.º 1, alín. c), 425.º, n.º 4 e 428.º, do CPP, por violação do art.º 32.º, n.º 1, da CRP, caso fosse desatendida a nulidade.
Como fundamento alegou simplesmente que nesse caso ficariam intoleravelmente comprimidos os seus direitos de defesa.
Assim não se afigura.
O indeferimento da nulidade mais não é que a resultante seja da deficiente forma como se procedeu à impugnação da matéria de facto, seja da pronúncia devida, minguada, é certo, mas ainda assim suficiente, do tribunal recorrido.
Razão por que improcede a inconstitucionalidade invocada.
*
2.2. Quanto às proibições de prova, por falta de despacho, em inquérito, fosse cautelar do M.º P.º ou subsequente despacho do juiz de instrução, relativamente à apreensão de dados informáticos retirados dos telemóveis ou tablets dos arguidos e à falta de apresentação, também, ao juiz de instrução das comunicações transcritas, em infracção ao disposto nos art.ºs 16.º e 17.º da Lei do Cibercrime, foi matéria que a 1.ª instância apreciou, considerando sanadas as respectivas nulidades, dado deverem ter sido arguidas até ao encerramento do debate instrutório (art.º 120.º, n.º 3, alín. c), do CPP).
Os vícios alegados eram, pois, susceptíveis de fundamentar recurso intercalar para o tribunal da relação que, deles conheceu, no sentido de ter sufragado o decidido em 1.ª instância.
Nos termos do art.º 400.º, n.º 1, alín. c) do CPP não é admissível recurso para o STJ de acórdãos proferidos em recurso pelas relações que não conheçam, a final, do objecto do processo.
Assim sendo, a decisão sobre as proibições de prova foi pronunciada pela Relação em última instância, aí se esgotando o seu conhecimento (Acs. do STJ de 24.10.2013, Proc. 780/10.5JAPRT.S1 e 19.10.2016, Proc. 108/13.2PGPRT.G1.S1).
Nesse sentido, por inadmissibilidade, não há que conhecer dessa parte do recurso (art.º 414.º, n.º 2 e 420.º, n.º 1, alín. b), do CPP), a tanto não obstando a circunstância de a nulidade ter sido inserida no recurso da decisão final (v. em, situação similar, o Ac. STJ de 06.02.2013, Proc. 593/09.7TBBGC.P1.S1).
*
2.3. Sobre o ponto n.º 7 da matéria de facto provada, ou seja, a transcrição de uma conversa telefónica entre arguido CC (que prestou declarações em audiência de julgamento) e o dono do navio, a pretensão dos recorrentes de ser considerada como não escrita por não constituir matéria de facto, antes um meio de prova, não pode ter acolhimento.
O meio de prova é a conversa em si (instrumento), constituindo factos o teor dessa mesma conversa.
Factos instrumentais, é certo, mas factos, relevantes para concluir do modo de organização da viagem de transporte do estupefaciente, de livre apreciação das instâncias e cuja valoração sempre estaria fora do âmbito de cognição deste STJ, razão por que improcede a conclusão recursiva.
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2.4. Quanto às medidas das penas, consideradas excessivas pelos recorrentes, por não terem sido considerados os factos de natureza pessoal, nem a circunstância de ambos serem meros transportadores e não estarem em consonância com a jurisprudência, vejamos:
Sobre as condições pessoais dos arguidos, que foram elencadas na matéria de facto indicada quanto a um e a outro dos arguidos, não deixaram de ter a devida correspondência na medida das penas, nos termos do art.º 71.º do CP, que foi considerado.
Como também em relação à qualidade de transportadores ou “correios” de droga o acórdão recorrido não deixou de subscrever o acórdão de 1.ª instância quando considerou que “não obstante serem um correio de droga, ou seja, não são o dono da droga que transportaram, constituem uma peça importante, porventura cada vez mais importante, para fazer a conexão entre a produção e o consumo, sem o que não existe negócio” e que “apesar estarmos perante correios de droga, atendendo à quantidade transportada e à gravidade dos efeitos sociais que a respectiva disseminação provocaria, para a qual os arguidos contribuiriam com o transporte, tem-se por elevada a ilicitude da sua conduta”.
Quanto à comparação das penas com outros casos decididos, importa atentar que nenhuma situação julgada em processo criminal é repetição de qualquer outra.
Dos três arestos indicados pelos recorrentes apenas o Ac. do STJ de 25.10.2017 tem localização disponível na base de dados da ex-dgsi, dele se vendo, contudo, que um dos fundamentos para determinação da medida concreta da pena de 7 anos de prisão consistiu na primariedade e idade de 80 anos de arguido doente, sendo que não obstante a quantidade de cocaína ter aí sido 1.238,00 Kg, o seu grau de pureza foi de 67,9%, ou seja muito inferior ao dos autos (83,50%) e, por diverso tal circunstancialismo não é sobreponível aos recorrentes.
Ilícito similar, de transporte intercontinental por via marítima a partir de embarcação preparada para o efeito, de transporte de cocaína na quantidade de 344,332 Kg, ou seja menos de metade da dos autos, foi julgado em recurso por este STJ por acórdão de 31.10.2019 (Proc. 362/17.0JELSB.L1.S1, in SASTJ) onde foram impostas penas de prisão de 8 anos e 6 meses a cada um de dois arguidos.
Assim e concluindo, soçobram, por um lado, as conclusões recursivas e, por outro, importa considerar que o crime de tráfico de estupefacientes respeita a produto (cocaína) com forte grau de danosidade social e foi transportado em elevada quantidade (peso líquido de 710,538 kg) em embarcação ao longo do Oceano Atlântico e geraria, decerto, elevados proventos a quem viesse a distribui-lo e vendê-lo, em causa estando uma operação de transporte de elevada escala.
O grau de culpa de ambos os arguidos é intenso, são fortes as exigências de prevenção geral e especial, sendo premente a necessidade de reforço da confiança comunitária na validade e integridade das normas e valores por elas protegidos, de defesa da saúde pública em geral, razões por que as penas, de 10 anos e 6 meses de prisão imposta ao arguido CC, cuja conduta apresenta maior grau de ilicitude face ao modo como contribuiu para a organização e preparação do transporte em causa e de 9 anos e 6 meses de prisão fixada ao arguido AA, se mostram adequadas, necessárias e proporcionais, por isso se mantendo.
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III. Decisão
Face ao exposto, acordam em julgar improcedentes os recursos e manter o acórdão recorrido.
Custas pelos recorrentes, cada um com a taxa de justiça de 7 UC.
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Supremo Tribunal de Justiça, 17 de Dezembro de 2020
Francisco Caetano (Relator)
António Clemente Lima