SEPARAÇÃO DE PROCESSOS
PROIBIÇÃO DE PROVA
CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
PRINCÍPIO NEMO TENETUR
Sumário

I – Em caso de separação de processos, a decisão anteriormente proferida num deles em nada vincula a decisão a proferir no outro.
II – Na base das formalidades processuais mínimas, está o princípio nemo tenetur se ipsum accusare, ou seja, o princípio segundo o qual ninguém deverá ter que contribuir ativamente para a sua própria condenação.
III – A omissão ou a violação das formalidades relativas à constituição como arguido implica que as declarações prestadas (como testemunha ou informalmente) pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova (artigo 58.º, n.º 5, do Código de Processo Penal); não valem nem para a culpabilização do arguido, nem para a incriminação de terceiros por ele eventualmente implicados.

Texto Integral

Processo nº 6160/19.0T8PRT.P1
2ª Secção Criminal – Tribunal da Relação do Porto

Relatório
No processo identificado, por sentença de 12 de Fevereiro de 2020,depositada na mesma data, o tribunal a quo decidiu julgar a acusação improcedente e consequentemente absolver os arguidos B… e C…, devidamente identificados nos autos, da prática dos crimes de, associação criminosa, furto qualificado e falsificação documentos. O dispositivo absolveu os arguidos de todos os crimes imputados.

Inconformado com esta decisão o MP decidiu interpor recurso nos termos de fls. 30.723/31.006, com dedução das seguintes conclusões:
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Fundamentação.
Da decisão recorrida.
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Aliás, o que resulta do ofício junto a fls. 65 do Apenso 4 é que o número atribuído ao arguido é o número ………, relativamente ao qual não constam dos autos quaisquer listagens de comunicações.
Não se pode, por isso, recorrer ao que consta dessas mesmas listagens para localizar o arguido onde quer que fosse. E não se pode atender aos números ………, ……… e ……… para lhe atribuir a autoria de quaisquer conversações, orais ou escritas, com outros indivíduos objeto da mesma investigação, tanto mais que “D…” há muitos e nenhuma das testemunhas referiu sequer uma qualquer alcunha que lhe fosse atribuída, nomeadamente a de “C1…” (v. leitura e registo de memória do telemóvel apreendido a E…, constante de fls. 14 a 18 do Apenso 70).
Não existindo nos autos quaisquer documentos que comprovem a titularidade daqueles números de telefone por parte do arguido C…, é óbvio que o tribunal se questionou de onde é que eles surgiram, sendo certo que nenhuma das testemunhas inquiridas os referiu.
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«O artigo 58 do Código de Processo Penal português consagra, atualmente, os casos de constituição obrigatória como arguido e as formalidades inerentes a essa mesma constituição. Para o legislador, o ato é demasiado importante, quer no seu quando, quer no seu como, para poder ser deixado ao mero arbítrio do aplicador, estando por isso rodeado de cautelas suplementares.
Na base destas formalidades processuais mínimas está, sobretudo, o princípio do nemo tenetur se ipsum accusare; ou seja, o princípio segundo qual ninguém deverá ter que contribuir ativamente para a sua própria condenação. Num Estado de direito, o visado não tem que se auto incriminar: goza do privilege against self-incrimination, que, entre nós, muito embora não tenha logrado consagração expressa, tem, quer segundo a doutrina, quer segundo a jurisprudência, natureza constitucional implícita.
A omissão ou a violação das formalidades relativas à constituição como arguido implica que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova (artº 58, nº 5, do CPP): não valem nem para a culpabilização do arguido, nem para a incriminação de terceiros por ele eventualmente implicados. Numa palavra, não têm qualquer valor probatório. É como se não existissem no processo (do qual, em bom rigor, deviam ser, imediatamente, retiradas).» - João Conde Correia, in “A proibição de valoração decorrente da violação das formalidades relativas à constituição como arguido”, e-book do CEJ, Direito Penal e Processual Penal, 2012-2015, p. 87.
Como diz o citado autor, “a generalidade das proibições de produção e de valoração de prova mergulha as suas raízes nas grandes opções jurídico-constitucionais do Estado de direito, relativas à prova em processo penal. No fundo, são verdadeiras limitações à descoberta da verdade, decorrentes de princípios constitucionais, penais e, mesmo, processuais penais, inerentes à salvaguarda da dignidade da pessoa humana. O ius puniendi estadual não pode ser exercido a todo o custo, devendo respeitar certos limites ético jurídicos prévios. Meios (como, por exemplo, a tortura) ou temas (como, por exemplo, o segredo de Estado ou o núcleo irredutível da intimidade da vida privada) são inadmissíveis num Estado de direito ou, então, são admissíveis, mas ficam sujeitos a um certo formalismo, que garante a sua fiabilidade processual penal mínima e sem o qual também não são toleráveis. Numa palavra, são abusivos e, como tal, incompatíveis com a Lei Fundamental (art. 32.º, n.º 8, segunda parte, da CRP) – op. cit. p. 89”.
Sobre esta matéria, acolhe-se plenamente a posição acima exposta e refuta-se a defendida por Paulo Pinto de Albuquerque, que entende que a violação das formalidades previstas no citado artº 58 do CPP se trata de uma proibição de prova «cujo efeito é o da nulidade sanável das provas obtidas, salvo consentimento do visado (artigo 32, nº 8, da Constituição da República e artigo 126, nº 3, do CPP)». Em causa estará uma «intromissão na vida privada da pessoa visada», pelo que «nada obsta ao aproveitamento dos atos processuais realizados pelo visado se essa for a sua vontade depois de constituído como arguido, isto é, depois de devidamente informado dos seus direitos e deveres» - Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa, Universidade Católica Editora (2007), p. 182, comentário que, nesta parte, se manteve inalterado nas edições posteriores.
Na verdade, como entende João Conde Correia na obra citada, tal tese é inadmissível, não podendo tais declarações valer como prova em qualquer fase do processo, nomeadamente para justificar a decisão final, pois não podem nunca ser valoradas, não se podendo retirar das mesmas qualquer elemento suscetível de contribuir para a formação da livre convicção do tribunal, na medida em que a consequência processual não é uma qualquer nulidade sanável, mas sim uma proibição de valoração, de conhecimento oficioso, a todo o tempo.
É por isso que, no caso, as declarações prestadas pelo arguido C… ao agente F… em 11.03.2011 (cfr. auto de inquirição de fls. 10 e seguintes do vol. 1) não podem valer como meio de prova.
Pela similitude da situação em análise e pela clareza do seu entendimento, que aqui acolhemos, passamos a citar o douto Acórdão do TRE, de 07.04.2015, proferido no processo nº 1161/11.9PBFAR, relatado por João Gomes de Sousa (in www.dgsi.pt):
«…no caso presente a “comunicação” reduziu-se à eventual verbalização voluntária de uma “queixa” contra desconhecidos por parte do arguido antes de ter essa qualidade.
Ou seja, as forças policiais não estão proibidas de falar com os cidadãos que podem vir a ser arguidos ou com os suspeitos, ou com quem se encontra numa “cena de crime”, que a tal resultado conduz o excesso, o radicalismo, na análise destas situações e na fase inicial do processo.
Esta situação teórico-processual é de fronteira e de difícil solução em muitos casos (…)
E é de fronteira quando o ainda não arguido, mas já pode ser suspeito, ainda não foi constituído arguido, podendo considerar-se que há motivo para tal. Mas o caso dos autos não é de fronteira, pois que o arguido, antes de o ser e de haver motivos para o ser, na perspetiva do agente que o ouve naquele momento, faz uma afirmação que denuncia a prática eventual de um crime, de que o agente tem que tomar conhecimento e formalizar.
Só após a sua afirmação surge a possibilidade – que pode não ser imediata, por necessidade de obter mais indícios – de constituição de arguido. (…)
Para este caso parece-nos, deveria valer o disposto nos artigos 58º e 59º do Código de Processo Penal, aquele sob a epígrafe “Constituição de arguido”, norma que é o cerne da nossa questão concreta (e não a questão do “depoimento indireto” ou das “conversas informais”):
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, é obrigatória a constituição de arguido logo que:
d) For levantado auto de notícia que dê uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado, salvo se a notícia for manifestamente infundada.
2 - A constituição de arguido opera-se através da comunicação, oral ou por escrito, feita ao visado por uma autoridade judiciária ou um órgão de polícia criminal, de que a partir desse momento aquele deve considerar-se arguido num processo penal e da indicação e, se necessário, explicação dos direitos e deveres processuais referidos no artigo 61.º que por essa razão passam a caber-lhe.
3 - …
5 - A omissão ou violação das formalidades previstas nos números anteriores implica que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova.
6 - A não validação da constituição de arguido pela autoridade judiciária não prejudica as provas anteriormente obtidas.
E, como mera decorrência do nº 5 do artigo 58º do Código de Processo Penal, a omissão ou violação das formalidades previstas nos números anteriores implica que qualquer declaração daquele que já deveria ter sido constituído como arguido não pode ser utilizada como prova. Tratar-se-ia de clara proibição de prova (produção e valoração) se tal tivesse ocorrido.
Mas esta proibição de prova não abrange as declarações ouvidas pelos agentes policiais ao arguido (antes de o ser) se não houver culpa sua no atrasar da formalização daquela constituição e se aquelas não constituírem confissão de factos.
Como se fundamenta no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 Julho 2001 (Coletânea de Jurisprudência (STJ), Tomo III/2001, Rel. Lourenço Martins, Processo: 1796/01.):
“Convém realçar que a não constituição de alguém como arguido nos casos a que se refere o citado artigo 58°, nomeadamente, a violação ou omissão das formalidades aí previstas "implica que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova contra ela" (nº 4).
Face ao ordenamento português e no caso concreto parece-nos indubitável que simples cidadão não suspeito nem arguido ou cidadão apenas suspeito não goza do direito ao silêncio e, como tal, a prova produzida pelas suas declarações, melhor, depoimento, é válido, enquanto as mesmas não obrigarem à sua constituição como arguido.
Isso mesmo se deduz, sem interpretação a contrario sensu, do nº 2 do artigo 59 na parte sublinhada.
Se ainda não havia obrigação de constituição como arguido e as entidades policiais agiam dentro dos poderes concedidos pelas normas reguladoras da aquisição e notícia do crime (artigos 241 e 242) e de medidas cautelares e de polícia (artigos 248 e segs., designadamente o artigo 250 do C.P.P.) e, sem má-fé ou atraso propositado na constituição de arguido, ouvem do cidadão ou suspeito a informação da prática de um crime, isso não constitui violação de lei ou fraude à lei, nem obtenção de prova proibida.
Por isso que a questão não se centra em saber se a proibição de “conversas informais” deve abranger afirmações anteriores ou posteriores à constituição de arguido.
Que são proibidas após a constituição como arguido é do reino do óbvio. Que nunca são antes da constituição como arguido também nos parece evidente, já que aí nem existem “conversas informais”, sim afirmações de um cidadão, que pode ser suspeito ou nem isso. E o suspeito ou nem isso é, no ordenamento processual penal português, uma testemunha.
Exceto se a má-fé policial tiver ilegalmente atrasado essa constituição. Por isso que o artigo 58 tenha um nº 5, que comina com a nulidade probatória uma conduta policial que conduza a um resultado não querido pelo legislador.
Assim, sendo certo que as “declarações” prestadas antes da constituição como arguido não valem como confessórias, a questão centra-se, no caso de situações de fronteira, na distinção a fazer entre as figuras de “suspeito” e “arguido”. Este goza de direitos, aquele é testemunha. O arguido goza do direito ao silêncio, o suspeito não.
Numa situação de facto duvidosa em que as forças policiais não constituem logo como arguido – que o pode ser verbalmente – um suspeito da prática de um crime é de reconhecer ao suspeito o direito ao silêncio (e seus benefícios em audiência – não admissão de depoimentos policiais)? Ou seja, podemos resolver a questão através da extensão de direitos do arguido ao suspeito? Ou fazer retrotrair a condição de arguido a momento anterior independentemente de uma situação de nulidade (fora, portanto, da operatividade do nº 5 do artigo 58)? Ou estaremos limitados à clara delimitação da situação de facto, até em função da relevância do momento em que a constituição como arguido deve ocorrer?
O direito francês resolve o problema suscitado por estas questões de fronteira através da figura da “témoin assisté”, reconhecendo a esta direitos análogos aos do arguido – Code de Prócedure Pénale, artigos 113-2 a 113-8 (48º Edition, 2007, Dalloz), principalmente o artigo 113-4, 1º §.
O caso concreto permite-nos afirmar que, na essência, a questão se coloca na proibição de produção e valoração de prova do depoimento do agente policial no que respeita a tudo o que sejam “declarações de arguido”, constem ou não de auto.
No caso presente, em que sequer se indicia deficiente conduta policial (muito menos má-fé na sua atuação), mas uma verbalização voluntária do arguido, não estamos perante uma situação de fronteira.
Desde logo a afirmação de que tais “verbalizações”, sendo a notícia do crime para aquele concreto agente, exigem um percurso probatório que não pode passar pela promoção do “dito” (conversa pré-processual que deu notícia do crime) a “confessado”, exercendo o arguido ou não o seu direito ao silêncio.
Porque bastarmo-nos com as palavras supostamente ditas pelo arguido e valorá-las através de um depoimento que a lei proíbe é elevá-las à categoria de “confissão” pré-processual. E isso está vedado ao tribunal, como é natural.
Desde logo pela natureza do dito, depois pelas cautelas de que o efeito confessório é rodeado pela ordem jurídica, por fim porque aceitar o verbalizado como equiparada a “confissão” é inviabilizar direitos a exercer no futuro desenrolar do processo, designadamente o direito ao silêncio e, aliás, ao próprio direito a um julgamento em audiência pública. Seria a completa negação da imediação e oralidade e, máxime, do acusatório.
Assim, no nosso caso, em que não há atraso na constituição de arguido no momento em que faz a afirmação que revela a prática da coautoria do crime não se fica a dever a conduta criticável do agente OR, que agiu da forma mais adequada assegurando com prioridade a saúde do arguido, mas sim a esta imperativa necessidade, a única solução plausível passa por determinar de forma clara e concreta o que é válido e inválido nesse depoimento.
Ou seja, é aceitar tudo o que seja depoimento da testemunha e que se não refira a reproduzir declarações do arguido.
Daqui resulta que é admissível o depoimento da testemunha sobre a circunstância de o arguido o ter contactado no dia, hora e local indicados no aditamento, a circunstância de se apresentar desorientado/alucinado, que o arguido andou com a testemunha à procura de uma faca e que foi transportado ao hospital num episódio de urgência.
O restante são declarações não atendíveis na medida em que, ditas, nasceu a obrigação de constituição como arguido nos termos do artigo 59 CPP e tais declarações não poderem ser tidas como pré-processualmente confessórias.»
No caso dos autos, a situação é ainda mais evidente, pois quando o arguido C… se dispôs a denunciar a atividade criminosa do grupo que se dedicada à prática de furtos de tratores e semirreboques, indicando ao agente policial que o inquiriu a identidade dos elementos do grupo, o modus operandi e os locais dos furtos, conforme referido pela testemunha F…, já era suspeito da prática desse tipo de crime, pois já havia sido identificado como tal no Inquérito 962/10.0GAVFR, no âmbito do qual foi intercetado e identificado pelo referido agente G… (cfr. fls. 13 a 15 do Apenso A).
Sendo já suspeito da prática de crimes de furto e tendo-se disposto, nas palavras da testemunha H…, a confessar vários crimes, devia ter sido logo constituído arguido e interrogado como tal, por força do disposto no citado artº 58, nº 1, alínea d), do CPP, ou pelo menos no decurso da sua inquirição como testemunha (cfr. artº 59, nºs 1 e 3 do CPP) com a inerente comunicação dos direitos e deveres processuais referidos no artº 61 do mesmo código, designadamente do direito ao silêncio, não se justificando, no caso, a comprovação prévia da veracidade dos factos denunciados, tanto mais que foi com base nas suas declarações que se deu início ao inquérito.
Assim, tendo sido omitidas as formalidades previstas no artº 58, nºs 1, 2 e 4, do CPP, temos de concluir que as declarações prestadas pelo arguido C… não podem ser utilizadas como prova (cfr. nº 5 do mesmo artigo), por constituir prova proibida, nelas se incluindo quaisquer números de telefone que haja indicado ou locais que tenha reconhecido, não sendo igualmente admissíveis os depoimentos das testemunhas inquiridas sobre aquilo que o arguido lhes relatou.
Vejamos agora os demais factos que vêm imputados aos arguidos.
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Da apreciação de mérito.
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O recorrente não deixa de aludir aos autos principais, causa desta pretensa culpa tocante. Os arguidos foram declarados contumazes e o tribunal procedeu à separação de processos criando agora um processo autónomo para julgar os arguidos C… e B…. Este é o processo nº 6190/19.0T8PRT, aquele era o nº 21/11.8PEPRT, o denominado processo das galeras. Os processos são independentes e esta afirmação não é despicienda.
Levantam-se algumas questões preliminares importantes para sanear o caso concreto.
A primeira questão diz respeito ao facto de o recorrente alegar repetidamente que o tribunal recorrido decidiu contrariamente ao proferido na mesma Instância (processo-causa) e nas Instâncias Superiores sobre matéria idêntica. O recorrente sabe que este processo teve origem nos autos com o nº 21/11.8PEPRT, vulgo Galeras, e foi ordenada a separação por via da declaração de contumácia quanto a dois arguidos: C… e B… (artº 30 nº 1, alª d) do CPP). Aquela decisão não vincula a que o tribunal tomar nos presentes autos. Se, no primitivo processo, a questão tivesse ficado resolvida não teríamos necessidade de julgar estes dois arguidos num processo autónomo. Estamos perante objectos processuais autónomos, com arguidos e factos distintos do primeiro processo, muito embora com conecção, pela alegada comparticipação, matéria objecto da presente análise.
Insistir no trânsito em julgado da decisão conexa, como forma de condicionar a apreciação destes autos, parece-nos negar a evidência da separação processual, por força das declarações de contumácia. A excepção de caso julgado não opera no presente caso.
O inquérito nº 962/10.9GAVFRartº 144 da acusação – marca a intervenção do arguido C… nestes autos. Os factos tiveram início em 24/12/2010 mas os arguidos C… e I… foram interceptados no dia seguinte – 25/10/2010. Neste sentido importa valorar o testemunho do agente da PSP, G…, interveniente naquela ocorrência policial. O arguido C…, à data suspeito, ficou sinalizado e convidado a contactar as autoridades caso quisesse falar, o que veio a acontecer com a denúncia de 11/03/2011, fls. 10/15 do I volume. Importante aferir o valor destas declarações prestadas como testemunha, a que o recorrente prefere chamar auto de denúncia, depoimento onde faz imputações e confessadamente narra a sua participação em determinados crimes. A diferença entre denunciante e testemunha é irrelevante para apreciar este caso. Já veremos por que razão C… devia ter sido imediatamente constituído arguido - o mesmo assume estar arrependido da sua comparticipação nas actividades ilícitas que agora denuncia e está disposto a colaborar com a justiça (sic). Por livre alvedrio dos agentes, com surpresa, aguardando ulterior confirmação, C… depôs como simples testemunha, sem cumprir as necessárias formalidades inerentes à constituição de arguido, o que se impunha perante discurso tão arrojado, numa manifesta auto-incriminação: uma verdadeira declaração confessória. É precisamente este princípio que está na base da restrição prevista no artº 58 nº 5 do CPP – a omissão ou violação das formalidades previstas nos números anteriores implica que as declarações prestadas pela pessoa visada (suspeito) não podem ser utilizadas como prova. Porquê brandir com o princípio da proibição da auto-incriminação (?).
O legislador português trata esta matéria de forma circunstanciada, com fundamento constitucional no artº 32 nº 8 da CRP – violação das garantias processuais. O artº 58 nº 2 do CPP faz uma referência expressa à formalização da constituição de arguido devendo, se necessário, ser dada explicação ao arguido a constituir, dos direitos e deveres processuais descritos no artº 61 do CPP, onde, entre outros, figura a possibilidade de ser informado e não responder a perguntas sobre factos que lhe são imputados, de forma a evitar um contributo para efeito de condenação, uma vez que o suspeito está a tomar, em regra e pela primeira vez, contacto com o aparelho judicial, ou pelo menos com o próprio processo. As hipóteses de proteger o princípio nemo tenetur se ipsum accusare são inúmeras e estão configuradas pela doutrina e jurisprudência … Portanto, se um indiciado confessou sem antes ter sido instruído sobre o direito ao silêncio, não pode ser condenado com base nesta declaração, o que configura uma auto-incriminação involuntária. O interrogatório ardiloso ou travestido de simples declaração não pode proceder – ninguém pode ser induzido a incriminar-se por coacção, engano ou ardilLa prohibición de autoincriminación y escuchas domiciliarias – Claus Roxin – Ediciones Hammurabi, fls. 57/81.
Também a jurisprudência nacional e estrangeira é pacífica e vai impedindo a violação dos direitos do suspeito, recusando interrogatórios ardilosos ou valoração de conversas informais.
O tribunal a quo esteve atento e verificou que esta prova proibida não pode ser utilizada, aliás analisou esta matéria exaustivamente. As declarações prestadas, ao agente da PSP F…, em 11/03/2011, pelo arguido C…, não valem como meio de prova. No decurso da inquirição a autoridade judiciária, mediante fundada suspeita da prática de vários crimes, tinha o dever de suspender o acto e proceder à comunicação prevista no artº 58 nº 2 do CPP. Devemos concluir, sem hesitação, que as declarações prestadas por C… não servem como meio de prova, configuram prova proibida (artº 58 nº 5 do CPP), onde se incluem números de telefone indicados, reconhecimento de locais ou quaisquer outras referências que possam servir como elementos de prova, bem como os próprios depoimentos das testemunhas (agentes de investigação/OPC) assentes nesta tomada de declarações.
A contratualização ainda não é permitida no âmbito do processo penal. Depois destas declarações o MP interveio diversas vezes no exercício da investigação, pelo que a leitura daquelas era imprescindivel e obrigatória…
Muito se tem escrito sobre as consequências da prova proibida. A par das nulidades especiais associadas às proibições de prova (artº 126 do CPP e artº 11 da LOPJ), há outras violações de normas penais em matéria probatória que apenas geram nulidades disciplinadas pelo regime geral previsto no artº 118 e seguintes do CPP. Precisamente quando estamos perante a violação de meras formalidades de prova, como a prevista no artº 58 nº 5 do CPP. A distinção entre proibições de prova – limites impostos à descoberta da verdade material – e regras de produção de prova – destinadas a disciplinar o procedimento exterior da realização de prova – estabelece a fronteira entre nulidades especiais, do tipo do artº 118 nº 3 do CPP e o regime de nulidade geral, insanável, previsto no artº 119 (corpo do artigo) do CPP, de onde e necessariamente nos parecem excluídas as previstas no artº 120 do CPP, uma vez que o suspeito não foi assistido por defensor até à acusação – Das proibições de prova no âmbito do processo penalCláudio Lima Rodrigues – Mestre em Direito pela FDUL – Verbo Jurídico, fls. 13. Esta matéria é tão delicada que nos levanta dúvidas quanto ao efeito-à-distância das proibições de prova. A jurisprudência caminha no sentido das limitações: a projecção da invalidade da prova em matéria de legitimidade ou validade de prova sequencial, não é automática, o que, em cada caso há que determinar se existe nexo de antijuridicidade que fundamente o efeito-à-distância, ou se, em diverso existe na prova subsequente um tal grau de autonomia relativamente à prova inválida, que destaque o meio de prova subsequente substancialmente daqueleAcórdão do STJ de 07/06/2006, in Processo nº 06P650 – Relator: Henrique Gaspar.
Há porém uma certeza, aquela prova, com omissão das formalidades previstas na lei (antes da constituição formal de arguido), não pode ser utilizada contra o actual arguido, C…, o que também, liminarmente, exclui a valoração de prova proibida pro reo.
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Acordam os juízes que integram esta 4ª Secção Criminal do TRP em julgar improcedente o recurso interposto pelo MP.

Sem tributação.

Nos termos dos D/L nº 10-A/2020 e D/L nº 20/2020 de 1 de Maio – artºs 3 (aditamento ao artº 15-A daquele D/L) e 6 – a assinatura dos outros juízes que, para além do relator, tenham intervindo em tribunal colectivo, nos termos previstos no nº 1 do artº 153 do CPP, aprovado pela lei nº 41/2013, de 26 de Junho, na sua redacção actual, pode ser substituída por declaração escrita do relator atestando o voto de conformidade dos juízes que não assinaram.
Nestes termos atesto o voto do Juiz Desembargador Adjunto em conformidade com a decisão.

Porto, 16 de Dezembro de 2020.
Horácio Correia Pinto
Moreira Ramos