CRIME DE NATUREZA SEMI-PÚBLICA
QUEIXA
RATIFICAÇÃO
Sumário

Tendo a queixa sido ratificada muito para além do prazo dos seis meses estabelecido no artigo 115º do Código Penal, o Ministério Público não tem legitimidade para exercer a ação penal caso pela prática de crime de natureza semi-pública.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes que constituem a secção criminal do Tribunal da Relação de Évora

No Processo Comum Singular nº 188/18.4GASSB, do Juízo de Competência Genérica de Sesimbra, J2, da Comarca de Setúbal, datado de 20-05-2020, o Mmº Juiz proferiu o seguinte despacho:

“Veio o arguido J… na sua contestação com a ref.ª ele. nº 5014422, alegar que inexiste queixa tempestiva (por quem tinha legitimidade para a apresentar), pelo que, tratando-se, o crime em apreço, de crime semi-público, falta um requisito de procedibilidade da acção devendo determinar-se, consequentemente, a extinção do procedimento criminal por ilegitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal.

Notificados os demais intervenientes para se pronunciarem quanto à questão prévia suscitada veio o arguido F…, aderir ao entendimento do co-arguido (ref.ª ele. nº 5079693).

O assistente F… veio pugnar pela legitimidade da queixa apresentada por M…, tia do ofendido, uma vez que, rm 28.04.2018, o ofendido foi inquirido no Posto Territorial da G.N.R. de … aí declarando pretender procedimento criminal (ref.ª ele. nº 5076348).

O Ministério Público (cfr. ref. ele. nº 5071465) entende que tendo em 28.04.2018 o ofendido sido inquirido no PT da GNR de …, e aí declarado pretender procedimento criminal, encontra-se assegurada a legitimidade do Ministério Público para a acção penal. Mais requereu que, a fim de ser esclarecida a qualidade de tutora de M…, se procedesse à junção aos autos de certidão de nascimento do ofendido.

A certidão de nascimento do ofendido/assistente foi junta cfr. ref.ª ele. nº 90282709 e os intervenientes notificados para querendo se pronunciarem.

Por requerimento com a ref.ª ele. nº 5094255 veio o arguido J… reiterar que a queixa-crime apresentada em 28/04/2018, foi subscrita por M…, sem poderes para o efeito.

Mais alega que, o ofendido foi ouvido no inquérito, pela primeira vez, e como testemunha, em 09.01.2019, e apesar ter prestado depoimento, não declarou pretender o procedimento criminal contra o arguido, nem tão pouco ratificou a queixa inicialmente apresentada por M….

Decidindo.

Estabelece o nº 1 do artigo 49º do Código Processo Penal que “quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas deem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo”.

O ofendido é que, em regra, tem legitimidade para apresentar queixa, considerando-se como tal e segundo o preceituado no artigo 113º, nº 1, do Código Penal “o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação” (in casu, o ofendido é o titular do interesse patrimonial alvo do prejuízo patrimonial importante, ou seja, a sociedade), tendo para o efeito, nos crimes de natureza particular e semipúblico, um prazo de seis meses para o exercício desse direito, sob pena do mesmo se extinguir (cfr. artigo115º do Código Penal).

O exercício do direito de queixa é uma condição essencial de procedibilidade para os crimes de natureza semipública – como é o caso do crime de ofensa à integridade física simples – e particular.

No caso, os autos iniciaram-se com a denúncia efectuada por M…, na qualidade de tutora de F… por factos ilícitos consubstanciadores de ofensa à integridade física ocorridos nesse mesmo dia, em 27.04.2018 (cfr. auto junto a fls. 4 a 6).

Consta do auto de inquirição de testemunha junto a fls. 20 e 21 dos autos que o ofendido F… foi inquirido em 28.04.2018 no Posto Territorial da Guarda Nacional Republicana de …, e que declarou pretender procedimento criminal, contudo tal auto não se mostra assinado pelo ofendido mas sim por M…, não sendo sequer feita menção de que o arguido não pode ou não sabe assinar e em que qualidade assinou M….

Notificada para fazer prova da sua qualidade de tutora (fls. 99 e 99 verso), M… nada disse.

O ofendido foi inquirido, na qualidade de testemunha, em 09.01.2019 (cfr. auto devidamente assinado de fls. 102/103), não lhe tendo sido perguntado se pretendia procedimento criminal contra os arguidos (o que sempre seria extemporâneo), nem se ratificava a queixa inicialmente apresentada por M….

Analisada a certidão de nascimento junta a fls. 214 dos autos, verifica-se que não existe qualquer averbamento ou cancelamento de averbamento que permita concluir que M… foi tutora do ofendido.

Em suma, não existe queixa por parte da vítima das alegadas ofensas à integridade física.

Assim sendo, o Ministério Público carece de legitimidade para deduzir a acusação em causa (cf. artigo 49º, nº 1, do Código de Processo Penal).

Acresce que o prazo de 6 meses para o exercício do direito de queixa, há muito que se esgotou, pelo que deverão nesta parte os autos ser arquivados.

Pelo exposto, julgo o Ministério Público parte ilegítima para promover o processo penal quanto aos crimes de ofensa à integridade física simples imputados aos arguidos, prosseguindo os autos para julgamento apenas quanto aos crimes de coacção tentados imputados ao arguido F….

Notifique.”

Inconformado com o decidido, recorreu o ofendido/assistente F…, concluindo nos seguintes termos:

a) Apresentada a queixa por crime semipúblico, por mandatário sem poderes, o Ministério Público tem legitimidade para exercer a ação penal se a queixa for ratificada pelo titular do direito – ainda que após o prazo previsto no artigo 115º, nº 1, do Código Penal.

b) Tendo a queixa sido apresentada por pessoa que se apresentou como tia do ofendido, não sendo mandatário forense, e sem que existam nos autos comprovação dos seus poderes especiais para apresentar tal queixa em nome do representado, o Tribunal não pode considerar extinto o direito de queixa se a ratificação não tiver sido feita antes do decurso do prazo de seis meses, conforme dispõe o artigo 115º do Código Penal.

c) Se assim fosse, caberia o entendimento de que a ratificação não tem efeito retroativo em todos os casos, operando ex tunc – artigo 268º, nº 2 do Código Civil.

d) A ratificação da queixa não está sujeita ao prazo mencionado no artigo 115º, nº 1 do Código Penal.

e) Daí que, in casu, não pudesse o Tribunal a quo ter recusado o recebimento da parte da acusação deduzida contra os arguidos, como autores materiais, na forma consumada, e em concurso real, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.

f) Na realidade, tendo a queixa sido apresentada em 27.04.2018, ainda que ineficaz por parte da tia do ofendido, a ratificação manifestada pelo mesmo em 27-05-2020 – Refª Citius 35643620, operou retroactivamente, de acordo com o disposto no artigo 268º, nº 2 do Código Civil, conferindo eficácia à queixa inicialmente apresentada.

g) O Ministério Público tem legitimidade para exercer a ação penal, desde que a queixa venha a ser ratificada pelo titular respectivo, ainda que após o prazo previsto no artigo 115º, nº 1 do Código Penal.

h) Do mesmo passo, o douto despacho recorrido deverá ser revogado e substituído por outro que receba integralmente a acusação pública deduzida nos autos contra os arguidos, pela prática de um crime de ofensas à integridade física simples, previsto e punido, pelo artigo 143º, nº 1 do Código Penal.

O arguido J… respondeu, concluindo nos seguintes termos:

- O Douto Despacho cumpre, de modo absolutamente irrepreensível, o preceituado no art.º 374º do CPP.

- Pelo que, não se mostrando violados quaisquer normativos legais, deverá manter-se a Douta Decisão, nos seus exactos termos.

Assim,

- Tendo em consideração todo o exposto; Sem prescindir do douto suprimento de V. Exas., não deve o presente recurso merecer provimento, devendo-se manter a Douta Decisão sob censura, nos precisos termos em que foi proferida.

O Ministério Público respondeu, pronunciando-se pela manutenção do decidido, concluindo nos seguintes termos:

1. Por douta decisão datada de 19.05.2020, foi o Ministério Público considerado parte ilegítima para promover o processo penal quanto aos crimes de ofensa à integridade física imputados aos arguidos;

2. Inconformado com tal decisão, o assistente interpôs o presente recurso;

3. Alegando que ratificou a queixa em 27.05.2020 e que, não obstante, o lapso de tempo decorrido desde a data dos factos, 27.04.2018, a mesma deverá ser considerada por não se aplicar à ratificação o prazo de 6 (seis) meses estabelecido no artigo 115º, do Código Penal;

4. Ora, os factos ocorreram em 27.04.2018, tendo em 28.04.2018 sido os mesmos denunciados, junto do Órgão de Policia Criminal, por M…, tia do ofendido F…;

5. Apesar de constar dos autos auto de inquirição do ofendido, realizado em 28.04.2018, certo que quer o referido auto de inquirição, quer o demais expediente se encontra assinado por M….

6. À data dos factos o ofendido era maior de 16 (dezasseis) anos e possuía capacidade para entender o alcance do exercício do direito de queixa, o que resulta da sua certidão de nascimento da qual não consta qualquer averbamento de tutoria anterior ou posterior à data dos factos;

7. Pese embora nessa data, o ofendido não tenha manifestado expressamente que pretendia prosseguir com o procedimento criminal, em 09.01.2019,quando inquirido na presença de Magistrado do Ministério Público, já se encontrava ultrapassado o prazo de 6 (seis) meses concedido pelo artigo 115º, do Código Penal, para o exercício do direito de queixa;

8. Mais ainda, quando em 27.05.2020,dirige aos autos requerimento no qual declara ratificar a queixa apresentada.

9. A ratificação da queixa, para produzir efeitos, tem que ser feita no prazo concedido pelo artigo 115º, do Código Penal;

10. Neste sentido, Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, no âmbito dos autos nº 494/13.4GHSTC, datado de 26.10.2016, disponível em www.dgsi.pt.

11. Assim, o direito de queixa do ofendido F… não foi exercido no prazo concedido pelo artigo 115º, do Código Penal, carecendo o Ministério Público de legitimidade para o exercício da acção penal no que respeita ao crime de ofensa à integridade física, o qual reveste natureza semi-pública, devendo a decisão proferida manter-se nos seus precisos termos;

12. O douto despacho ora recorrido não merece qualquer reparo ou censura;

13. Por tudo, a decisão proferida e ora em crise deverá manter-se nos precisos termos em que foi proferida.

Neste Tribunal da Relação de Évora, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seu desenvolvido parecer, no qual concluiu no sentido da improcedência do recurso.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Como o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas pelos recorrentes nas respetivas motivações de recurso, nos termos preceituados nos artigos 403º, nº 1 e 412º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal, podendo o Tribunal de recurso conhecer de quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida, cumprindo cingir-se, no entanto, ao objeto do recurso, e, ainda, dos vícios referidos no artigo 410º do referido Código de Processo Penal, - v. Ac. do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95 de 19 de Outubro - vejamos, pois, se assiste razão ao ofendido/assistente, ora recorrente, no que respeita às questões que suscitou nas conclusões do presente recurso, as quais se prendem com a tempestividade da queixa apresentada no que respeita ao crime semi-público em causa.

Vejamos:

Como o disse o despacho recorrido:

Estabelece o nº 1 do artigo 49º do Código Processo Penal que “quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas deem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo”.

O ofendido é que, em regra, tem legitimidade para apresentar queixa, considerando-se como tal e segundo o preceituado no artigo 113º, nº 1, do Código Penal “o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação” (in casu, o ofendido é o titular do interesse patrimonial alvo do prejuízo patrimonial importante, ou seja, a sociedade), tendo para o efeito, nos crimes de natureza particular e semipúblico, um prazo de seis meses para o exercício desse direito, sob pena do mesmo se extinguir (cfr. artigo115º do Código Penal).

O exercício do direito de queixa é uma condição essencial de procedibilidade para os crimes de natureza semipública – como é o caso do crime de ofensa à integridade física simples – e particular.

No caso, os autos iniciaram-se com a denúncia efectuada por M…, na qualidade de tutora de F… por factos ilícitos consubstanciadores de ofensa à integridade física ocorridos nesse mesmo dia, em 27.04.2018 (cfr. auto junto a fls. 4 a 6).

Consta do auto de inquirição de testemunha junto a fls. 20 e 21 dos autos que o ofendido F… foi inquirido em 28.04.2018 no Posto Territorial da Guarda Nacional Republicana de …, e que declarou pretender procedimento criminal, contudo tal auto não se mostra assinado pelo ofendido mas sim por M…, não sendo sequer feita menção de que o arguido não pode ou não sabe assinar e em que qualidade assinou M….

Notificada para fazer prova da sua qualidade de tutora (fls. 99 e 99 verso), M… nada disse.

O ofendido foi inquirido, na qualidade de testemunha, em 09.01.2019 (cfr. auto devidamente assinado de fls. 102/103), não lhe tendo sido perguntado se pretendia procedimento criminal contra os arguidos (o que sempre seria extemporâneo), nem se ratificava a queixa inicialmente apresentada por M….

Analisada a certidão de nascimento junta a fls. 214 dos autos, verifica-se que não existe qualquer averbamento ou cancelamento de averbamento que permita concluir que M… foi tutora do ofendido.

Em suma, não existe queixa por parte da vítima das alegadas ofensas à integridade física.

Assim sendo, o Ministério Público carece de legitimidade para deduzir a acusação em causa (cf. artigo 49º, nº 1, do Código de Processo Penal).”

Concorda-se inteiramente com esta decisão.

Com efeito, desde logo, o ofendido poderia por si próprio ter apresentado queixa contra o arguido pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, do qual terá sido vítima em 27-04-2018, já que possuía então dezasseis anos de idade, e ao que tudo indica um normal discernimento – cfr. artigo 113º, nº 4 do Código Penal.

Foi sempre M…, dizendo-se tutora do assistente, mas nunca provando essa qualidade, que apresentou queixa em nome daquele.

O ofendido/assistente só veio validamente ratificar a queixa apresentada contra o arguido pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, em 27-05-2020, portanto, muito para além do prazo estabelecido no artigo 115º nº 1 do citado Código Penal.

Argumenta agora com a disciplina constante do artigo 268º, nº 2, do Código Civil e o seu efeito ex tunc.

A esse respeito, concorda-se inteiramente com a jurisprudência do Ac. desta Relação de Évora, de 25-10-2016, proferido no Processo nº 494/13.4GHSTC.E1, citado pelo Ministério Público, pondo a tónica no direito do arguido a ser julgado no mais curto prazo, compatível com as garantias de defesa, como o prevê o artigo 32º, nº 2, da Constituição, situação de todo incompatível com uma retificação da queixa a todo o tempo, sendo que só a prescrição do procedimento criminal acabaria com a indefinição da situação daquele em casos semelhantes a este, o que é de todo incompatível com os seus direitos, nomeadamente a uma justiça célere com a qual, se for caso disso, pague à sociedade os seus erros tidos como crimes semi-púbicos, e prossiga a sua vida, como se espera, com o respeito devido pelas normas.

Assim sendo, e como a queixa só foi ratificada muito para além do prazo dos seis meses estabelecido no artigo 115º do Código Penal, entende-se que o Ministério Público não tem legitimidade para exercer a ação penal neste caso pela prática do crime de natureza semi-pública, pelo que bem andou o Tribunal a qio ao decidir da forma por que o fez.

Assim, e pelo exposto, acordam os Juízes que constituem a secção criminal do Tribunal da relação de Évora, em negar provimento ao recurso, mantendo, na íntegra, o despacho recorrido.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, com os legais acréscimos.

Évora, 09-02-2021

Maria Fernanda Palma

Isabel Duarte