Ao invés do entendimento expresso na motivação do recurso, a revogação da redação primitiva da Lei nº 34/2013, de 16/05, no que concerne aos “porteiros de hotelaria”, não pode ser entendida como a atribuição ao “porteiro de hotelaria” da faculdade de praticar livremente atos próprios da função de segurança privada.
Com essa revogação pretendeu-se, isso sim, e tão-somente, uma arrumação sistemática das exclusões de aplicação do regime, sendo que o elemento definidor da aplicação do regime legal em causa deverá ser, sempre, o do conteúdo funcional concretamente demonstrado, e não o da categoria profissional (sem mais).
Nesta matéria, concordamos com o expendido, de forma detalhada, exaustiva e rigorosa, na sentença revidenda.
Olhando à exposição (correta e pormenorizada, repete-se) constante da sentença sub judice, não vamos aqui “repetir” (ou dizer por outras palavras, num mero exercício de semântica, inócuo e desnecessário) tudo o que foi expendido na sentença a propósito da questão agora em apreciação (aliás, deixámos acima transcrito, no presente acórdão, todo esse segmento da sentença revidenda).
Cumpre-nos apenas, de forma enxuta e resumida, dizer que, ao contrário do alegado pelas recorrentes, a circunstância de a Lei nº 34/2013, de 16/05, seja na redação original, seja na que foi introduzida pela Lei nº 46/2019, de 08/07, excluir do seu âmbito de aplicação “as atividades de porteiro de hotelaria” (artigo 1º, nº 5, da versão original), ou, na redação do novo artigo (artigo 1º, nº 6, al. a), introduzido pela Lei nº 46/2019), “a atividade de porteiro de hotelaria”, não implica (nem pressupõe) a possibilidade de o “porteiro de hotelaria” poder exercer, legalmente e sem mais, a atividade de segurança privado.
Dito de outro modo: o facto de a Lei nº 34/2013, de 16/05, excluir do seu âmbito de aplicação a atividade de “porteiro de hotelaria” não corresponde, como se nos afigura óbvio, à exclusão da punibilidade do exercício ilegal de segurança privada, ainda que esta seja exercida concomitantemente com a de “porteiro de hotelaria”.
O que conta, aquilo que é efetivamente relevante e decisivo para o preenchimento do tipo legal de crime em apreço, é o efetivo exercício, não licenciado nem legalmente autorizado, de segurança privada, seja ele cumulado, ou não, com o exercício da atividade de “porteiro de hotelaria”.
Em conclusão: também nesta última vertente (qualificação jurídica dos factos) o recurso das arguidas não merece provimento.
I - RELATÓRIO
No Processo Comum (Tribunal Singular) nº 10/17.9XALSB, do Juízo Local Criminal de Loulé (Juiz 3), e mediante pertinente sentença, foi decidido:
“1. Condenar a arguida M…, pela prática, na forma consumada, do crime previsto no n.º 4 do art. 57.º da Lei n.º 34/2013, de 16 de
maio, por referência aos n.ºs 1, 2 e 3 do mesmo normativo, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de €10,00.
2. Condenar a arguida R…, pela prática, na forma consumada, do crime previsto no n.º 4 do art. 57.º da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, ainda por referência aos n.ºs 1, 2 e 3 do mesmo preceito e ao art. 58.º do mesmo diploma, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de €250,00, substituída pela prestação de caução de boa conduta no montante de €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), pelo prazo de 1 ano.
3. Condenar as arguidas no pagamento das custas e encargos do processo, com taxa de justiça fixada em 4UC”.
*
Inconformadas, as arguidas interpuseram recurso da sentença, formulando na respetiva motivação as seguintes conclusões (em transcrição):
“Do facto provado A
A) As arguidas não concordam com o teor do facto provado A, nem com as conclusões do tribunal a quo que dão conta que na noite em que os factos se verificaram o L… fez uma ronda com o intuito de vigilância de segurança de pessoas e bens, ainda que se reconheça na sentença que aquele colaborador não desempenhava unicamente funções de vigilante, mas acumulava as mesmas com funções de porteiro/rececionista.
B) Na opinião das arguidas, a ronda efetuada pelo L… decorreu do âmbito das suas funções de porteiro/rececionista, como resulta da descrição de funções de “Porteiro de 1.ª” no CCT aplicável e que é ainda compatível com a definição de “porteiro de hotelaria” que consta da Lei n.º 34/2016, na redação dada pela Lei n.º 46/2019. Nesta medida, a pela descrição da conduta do L…, este agiu devidamente enquadrado nas suas funções.
C) O tribunal a quo justificou a sua conclusão nos depoimentos dos agentes da PSP que fizeram a vigilância, mas as arguidas entendem que tais depoimentos não merecem credibilidade. No documento de fls. 112 e seguintes, datado de julho de 2017, mês e meio após os factos atestados no Auto de Notícia, o Departamento que levou a cabo a inspeção reconheceu que “não nos foi possível estabelecer uma relação clara entre atividade ali exercida e os factos presenciados (...)”.
D) Ou seja, à data dos factos os agentes manifestaram dúvidas sobre a conduta do L…, mas três anos depois, no julgamento, esses agentes defenderam a tese do seu Departamento já com todas as certezas que antes lhes haviam faltado. É relevante referir que na noite em que os factos ocorreram, os mesmos agentes, noutra ação de inspeção, detiveram em flagrante delito algumas pessoas, mas não detiveram o L….
E) Não se aceita também a conclusão do tribunal a quo de que o foco funcional da prestação laboral efetiva do L… consistia na prática de atos reservados à segurança privada. Entendem as arguidas que não foram minimamente demonstrados factos que permitam tal ilação.
F) Em primeiro lugar, a descrição de funções do contrato é quase uma cópia do CCT aplicável e perfeitamente enquadrado na definição de porteiro de hotelaria que resulta da lei da segurança privada. A sentença entende que o L… vigiava pessoas, bens e edifícios com o propósito da sua segurança, e não que fazia rondas para verificar o normal funcionamento do estabelecimento (luzes, rega, sinalização, lixo, equipamentos como mesas, cadeiras, guarda-sóis).
G) Em segundo lugar, uma prestação laboral efetiva pressupõe a prática de atos consistentemente e ao longo do tempo, o que não foi referido por nenhuma testemunha, muito menos os agentes que verificaram uma ronda de poucos minutos.
H) Em terceiro lugar, não foi feita – nem referida na sentença – qualquer prova de que as arguidas tenham determinado o L… a praticar atos reservados à segurança privada, ou seja, que este deveria vigiar edifícios, pessoas e bens para segurança dos mesmos.
I) Em quarto lugar, a prestação laboral efetiva correspondente a atos de segurança privada esbarra na descrição, constante do Auto de Notícia, do facto de o L… não ter acesso ao sistema de CCTV, ou seja, às câmaras de vigilância existes nas entradas do empreendimento. Para quem, alegadamente, vigia pessoas e bens, este facto não deixa de ser estranho...
J) Em quinto lugar, o Auto de Notícia revela todos os equipamentos pessoais que o L… tinha na sua posse na noite dos factos, e nenhum deles corresponde a um equipamento de defesa pessoal.
K) Em sexto lugar, as declarações da arguida e depoimento da testemunha C…, não contrariados por qualquer outro meio de prova, demonstram que as rondas são normais nos porteiros de hotelaria, e qual o âmbito das mesmas, revelando ainda que nenhuma instrução foi dada pelas arguidas aos dois porteiros da noite (o L… e o C…, que faz as folgas daquele) que exceda o que resulta do enquadramento legal e contratual já referido.
L) Em sétimo lugar, a descrição da ronda apresentada pelos agentes da PSP não permite excluir que a mesma tenha sido levada a cabo para observação do normal funcionamento do estabelecimento, tal como decorre do já referido enquadramento contratual coletivo e da própria lei da segurança privada.
M) O facto provado A deve, assim, ser alterado, dele se excluindo a expressão “vigiando os imóveis que o compõem, e controlando a entrada e saída de pessoas” e ser afastada a conclusão de que “o L…, ao menos na data dos factos, era mais do que um mero porteiro de hotelaria, exercendo também funções como vigilante do empreendimento em causa no seu período de trabalho”.
N) A alteração da matéria de facto e o erro de julgamento do tribunal a quo quanto a esta matéria decorrem da contradição dos depoimentos de todos os agentes da PSP com o documento de fls. 112, o depoimento da testemunha C… e as declarações de parte da arguida M… (estes dois devidamente transcritos nas alegações, com indicação referente às gravações), o contrato de trabalho de L… (fls. 12) e no teor do CCT celebrado entre A… e F…, publicado no BTE de 08.01.2006, com as suas sucessivas alterações.
Dos factos provados B, D e E
O) O facto provado E dá conta de que as arguidas conheciam a ilicitude dos factos e, ainda assim, pretenderam cometer esses atos ilícitos, partindo daqui para justificar que o crime foi praticado com dolo necessário. O dolo exige prova do conhecimento, pelos agentes, da ilicitude do facto e, perante esta consciência, a prova de que quiseram praticá-lo, representaram-no ou se conformaram com o mesmo.
P) Não foi feita qualquer referência, muito menos prova, do conhecimento da ilicitude dos factos, sendo a sentença completa e grosseiramente omissa a este respeito.
Q) O crime em que as arguidas foram condenadas exige o dolo, não havendo punição da negligência, de modo que a ausência de prova dos factos constitutivos do dolo determina, só por si, a absolvição daquelas.
R) O facto provado E deverá ser revogado, por ausência de prova e por total omissão na sentença quanto aos seus fundamentos.
S) Não foi feita igualmente qualquer demonstração da matéria correspondente ao facto D, relacionada com o cartão de segurança privada do L…. A arguida M… esclareceu que essa questão nem sequer se colocou, porque este não foi contratado para exercer funções de segurança privada, não tendo esta afirmação sido contrariada por qualquer meio de prova.
T) Assim, o facto provado E deverá também ser revogado.
U) Quanto ao facto B, e às conclusões retiradas a partir do mesmo pelo tribunal a quo, elas pressupõem que se entenda que a descrição de funções do contrato de trabalho do L… contemplava alguns atos ilícitos, se por este praticados sem dar cumprimento aos pressupostos legais inerentes à atividade de segurança privada, e que as arguidas determinaram e elaboraram esse contrato tendo em vista a prática de tais atos.
V) As referências já efetuadas ao (des)conhecimento da ilicitude bastariam para que este facto fosse dado por não provado, mas importa sublinhar que, mais uma vez, nada se provou de que resulte a conclusão de que as arguidas sabiam ou devessem saber que o contrato de trabalho contemplaria funções e atos que estariam excluídos ao L….
W) Para esta conclusão, importa considerar e valorar que a cláusula do contrato de trabalho é uma cópia quase literal da descrição de funções da categoria profissional constante do CCT, que este CCT não prevê qualquer habilitação legal para a prática de atos inerentes à categoria de porteiro, que ao fazer coincidir esta redação a arguida sociedade revelou um cuidado adequado na elaboração do documento, a minuta não foi preparada pela arguida M…, mas pelo advogado da arguida R…, que a arguida M… não é jurista e que este diploma da segurança privada contempla questões específicas pouco conhecidas e das quais a esmagadora maioria das pessoas, mesmo empresários, não terão conhecimento ou sequer perceção das soluções e, seguramente, dos artigos que preveem a punição das condutas.
X) Ou seja, não está provado o conhecimento das arguidas de qualquer ilicitude inerente às funções descritas no contrato, nem que lhes fosse exigível conhecê-las ou, sequer, suspeitar das mesmas, o que, como visto, impede o dolo e impõe a sua absolvição.
Da exclusão da ilicitude do facto
Y) A redação do regime da segurança privada, quer nos termos da Lei n.º 34/2013, quer na versão que resulta das alterações impostas pela Lei n.º 46/2019, exclui do seu âmbito de aplicação as atividades de porteiro de hotelaria.
Z) O n.º 5 do artigo 1.º da versão original do diploma, que passou a ser o n.º 6, a), do mesmo artigo na versão revista (rearrumado sistematicamente mas com redação quase igual), preveem expressamente que “ficam excluídos do âmbito de aplicação deste diploma a atividade de porteiro de hotelaria”, constando da alínea l) da primeira versão e da alínea m) da versão alterada do artigo 2.º desse regime a definição dos atos de porteiro de hotelaria, que contemplam rondas para verificar o normal funcionamento do estabelecimento.
AA) Resulta claro da prova produzida – reconhecido pelo tribunal a quo – que o L… era um porteiro de hotelaria (ainda que o tribunal a quo tenha entendido que ele seria mais do que isso), de forma que não poderá deixar de se considerar que os seus atos estão excluídos deste diploma.
BB) Ainda que fosse aplicável o n.º 6 do artigo 1.º da versão original do diploma, e que por essa via houvesse lugar a conduta ilícita das arguidas, o que se pondera, mas não se concede, e que seria estranho face à exclusão expressamente contemplada no n.º 5 à atividade de porteiro de hotelaria, o facto é que a revisão do diploma eliminou a norma em questão, de modo que nunca as arguidas poderiam vir a ser punidas, sob pena de violação dos artigos 1.º e 2.º do Código Penal e artigo 32.º da constituição da república Portuguesa.
Da alegada sobreposição de funções
CC) Ignorando a exclusão da aplicação do diploma à atividade de porteiro de hotelaria e não obstante a eliminação da norma constante do n.º 6 do artigo 1.º da versão originária do regime da segurança privada, o tribunal a quo desenvolveu um considerável esforço para ampliar a aplicação do regime legal da segurança privada, por forma a abranger os porteiros de hotelaria e, especificamente, as arguidas. Não concordamos com a fundamentação, nem com as conclusões.
DD) Em primeiro lugar, esta tese não pode proceder perante a circunstância de ambos os diplomas (o original e a sua versão atualizada) conterem expressa previsão da exclusão da atividade dos porteiros de hotelaria. O tribunal a quo “navega”, portanto, contra lei expressa e cuja solução legal, acrescente-se, foi ponderada, alterada sistematicamente e mantida expressamente numa revisão do regime legal. A interpretação constante da sentença viola o disposto no artigo 9º do Código Civil, porquanto excede as orientações de interpretação estabelecidas no nosso ordenamento.
EE) Em segundo lugar, a pretensão de, mesmo contra expressa previsão legal, entender que o diploma, ainda assim, através de um esforço interpretativo muito considerável, comporta uma interpretação que permitirá punir as condutas de porteiro de hotelaria (e quem faz uso do mesmo), quando este não se encontre enquadrado para exercer a atividade de segurança privada, atenta gravemente contra a segurança e a certeza jurídicas que devem pautar a vida em sociedade.
FF) E se assim é em termos abstratos, seguramente que esta conclusão assenta perfeitamente nos factos apurados e não apurados neste processo. Pretender punir as arguidas contra o que resulta manifestamente claro no próprio regime legal, mas também decorre da atitude prudente com que foi preparada a descrição de funções do contrato de trabalho e como o mesmo foi aplicado, é de uma extrema violência.
GG) Por tudo isto, devem ser rejeitadas as considerações de direito e a construção punitiva delas constantes, que se encontra na sentença recorrida, devendo reconhecer-se que, para além da inexistência de factos que revelam uma conduta ilícita do L…, e do desconhecimento das arguidas de que a celebração do contrato e as funções do colaborador constituíam atos ilícitos com relevância criminal, inexiste norma punitiva, pelo que as arguidas deverão ser absolvidas do crime em que foram condenadas em primeira instância.
HH) A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 1.º n.ºs 5, 2.º e 57.º da Lei n.º 34/2013 e artigo 1.º n.º 6, a), do mesmo regime legal, mas revisto pela Lei n.º 446/2019, o artigo 9.º do Código Civil, os artigos 1.º e 2.º do Código Penal e o artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos e nos demais de Direito, deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente e, por consequência, serem as arguidas absolvidas do crime em que foram condenadas em primeira instância, assim se fazendo Justiça”.
*
A Exmª Magistrada do Ministério Público junto do tribunal de primeira instância apresentou resposta ao recurso, concluindo pela sua improcedência.
Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, entendendo, em breve resumo, que a sentença enferma do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (410º, nº 2, al. a), do C. P. Penal), porquanto o Tribunal recorrido apenas poderia dar como provado que as arguidas sabiam que o L… não dispunha de licença ou autorização para exercer a atividade de segurança privada se, antes, tivesse sido dado como provado que o L… e a arguida R…, não dispunham da referida licença ou autorização (uma coisa é o facto típico objetivo, outra coisa é o elemento subjetivo decorrente do conhecimento que o agente tenha, ou não, daquele).
Entende ainda o Exmº Procurador-Geral Adjunto que esse vício pode (e deve) ser sanado por este Tribunal da Relação, não sendo necessário determinar o reenvio do processo (artigo 426º do C. P. Penal).
Sanado que seja esse vício, com alteração não substancial dos factos, conclui o Exmº Procurador-Geral Adjunto que o recurso é de improceder.
Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do C. P. Penal, as arguidas não responderam.
Foram colhidos os vistos legais e foi realizada a conferência.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1 - Delimitação do objeto do recurso.
No caso destes autos, face às conclusões retiradas pelas recorrentes da motivação do recurso, e vista a questão suscitada, neste Tribunal da Relação, pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto, são três as questões a conhecer:
1ª - Existência do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (o Tribunal recorrido apenas poderia dar como provado que as arguidas sabiam que o L… não dispunha de licença ou autorização para exercer a atividade de segurança privada se, antes, tivesse sido dado como provado que o L… e a arguida R…, não dispunham de tal licença ou autorização).
2ª - Impugnação alargada da matéria de facto (aquilo que é essencial nos factos dados como provados na sentença revidenda sob as alíneas A), B) D) e E) deve ser dado como não provado, o que implica a absolvição das arguidas).
3ª - Qualificação jurídica dos factos (não existiu consciência da ilicitude dos factos e os factos não são ilícitos nem “típicos” - não preenchem os elementos objetivos do crime em causa -, o que tem como consequência a absolvição das arguidas).
2 - A decisão recorrida.
A sentença revidenda é do seguinte teor (quanto aos factos, à fundamentação da decisão fáctica e, ainda, ao enquadramento jurídico-penal dos factos) - com a alteração do facto dado como provado na sentença em causa sob a alínea C), nos termos propostos pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto no respetivo “parecer”, e conforme mais adiante, no presente acórdão, será decidido -:
“1. Factos provados.
A. No dia 24 de Maio de 2017, pelas 22:30h, L… encontrava-se junto à zona do gradeamento das piscinas do A…, em …, uniformizado com uma farda de cor preta, com a inscrição P… nas costas, envergando ainda um cinturão com bolsas porta objetos, uma lanterna, e luvas técnicas, fazendo uma ronda ao perímetro exterior das instalações do condomínio, vigiando os imóveis que o compõem, e controlando a entrada e saída de pessoas.
B. Com efeito, no dia 5 de dezembro de 2016, a arguida R…, representada pela arguida M…, contratou o referido L… com a categoria de porteiro/rececionista para, entre outras funções, fazer rondas e vigiar o funcionamento normal do empreendimento, e controlar a entrada, saída, e presença de pessoas.
C. O referido L… não era à data possuidor de cartão de segurança privada, pois que o mesmo se encontrava retido na PSP uma vez que não se encontrava a trabalhar para qualquer empresa de segurança privada, tal como tão pouco era titular de qualquer licença ou autorização para o desempenho das funções coincidentes com as de vigilante, nem a sociedade arguida era titular de alvará, licença ou autorização para o efeito.
D. As arguidas bem sabiam que L… não era à data possuidor de cartão de segurança privada (por estar entregue na PSP) nem dispunha de licença ou autorização para exercer tal atividade, e, apesar disso, contrataram-no para as funções descritas.
E. Em tudo agiram as arguidas livre, voluntária, e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Mais se provou:
F. A arguida pessoa singular desempenha funções como diretora hoteleira.
G. Aufere cerca de €1.800,00 mensais com acréscimo de prémios de produtividade.
H. É casada e tem filhos gémeos com 5 anos.
I. Amortiza dois empréstimos no valor mensal agregado de €1.200,00.
J. Para seu sustento médio mensal despende quase todo o seu rendimento.
K. A arguida pessoa singular é licenciada em gestão.
L. A sociedade arguida tem cerca de 47 anos de laboração.
M. Tem capital social de €1.500.000,00.
N. No último exercício contabilístico apresentou lucros.
O. Os arguidos não averbam antecedentes criminais.
2. Factos não provados.
Inexistem com relevo para a decisão da causa.
3. Motivação da decisão sobre a matéria de facto.
O tribunal fundou a sua convicção com base na análise das declarações dos arguidos que foram conjugadas com os depoimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento, e com o teor da prova documental que consta dos autos, designadamente: auto de notícia de fls. 56, fotografias de fls. 58 e ss., cópia de contrato de trabalho de fls. 64 e ss., cópia de procuração de fls. 68 e ss, certidão permanente de fls. 78 e ss, informação de fls. 94 e ss., planta de fls. 327, informação da PSP de fls. 365.
A arguida M…, que desempenha funções como diretora hoteleira no empreendimento gerido pela sociedade R…, negou a contratação de L… como segurança privado. Procurava um reforço da receção para equilibrar a distribuição o serviço, garantindo alguém que pudesse fazer check-in no período da noite. O horário de trabalho de L… é das 22h às 6h, e ainda hoje desempenha o mesmo conteúdo funcional. Segundo aventou, a ronda, detetada pela fiscalização da PSP, faz parte do seu conteúdo funcional como porteiro/rececionista - verificava a arrumação do equipamento de piscina ou alguma necessidade de reparação. Desde os factos e até à presente data, a arguida sempre desempenhou funções como diretora hoteleira, respondendo os demais funcionários perante si, como supervisora e responsável pelo funcionamento do empreendimento, incluindo a contratação de novos funcionários, como foi o caso de L….
M…, representante legal da sociedade arguida, negou a contratação de um segurança. Pretenderam contratar um rececionista da noite. Explicou ainda que inicialmente o espaço do empreendimento não era vedado, o que, entretanto, se modificou, descartando a necessidade de um segurança.
C…, agente da PSP, confirmou o teor da seguinte prova documental: auto de notícia de fls. 56 e fotografias de fls. 58 e ss. Relatou os indícios que levaram a equipa de fiscalização a considerar o exercício de segurança privada: o funcionário utilizava indumentária que parecia militar ou operacional, designadamente botas e luvas táticas, cinturão, lanterna, t-shirt com a nomenclatura do empreendimento e caminhava sobre o condomínio, fazendo rondas. Após a abordagem dos agentes da PSP, verificou-se que a receção estava fechada à chave e que para aceder à mesma, o visado L… necessitou de recorrer à rececionista. À data dos factos, o visado L… era titular de cartão habilitante para a prática da segurança particular, mas estava suspensa a sua atividade.
H…, comissário da PSP, recordou-se de que a fiscalização iniciou-se por uma denúncia; observaram as movimentações de L… durante cerca de 30 minutos antes da abordagem e justificou o levantamento do auto após conversa com este último e apuramento das funções efetivamente exercidas: no turno da noite, acompanhava os hóspedes às habitações, caso necessário, mas necessitava de um terceiro funcionário para concluir o check-in, a quem chamava para o efeito, mesmo durante o período da noite; fazia rondas noturnas junto dos pontos de acesso, para evitar intrusões e guardar os bens do empreendimento; apresentava-se com um ar inspetivo e postura de segurança [confirmou a indumentária já referida pelo agente C…]; a sua postura conjugada com o fardamento tinham um efeito dissuasor.
Os agentes V… e L… corroboraram os depoimentos anteriores na íntegra, acrescentando apenas que ficaram com a perceção de que, em face do exposto supra, e do comportamento de L…, ficaram convencidos de que este era segurança do empreendimento, pois fazia patrulha apeada como se de um polícia se tratasse no momento em que foi fiscalizado.
C…, era e é rececionista do empreendimento em causa e colega de trabalho do visado L…. Segundo esta última este trabalha para a R… desde 2018, com as funções de rececionista e porteiro, no horário noturno, das 22h às 6h. Contudo, confirmou que na data dos factos o seu colega não tinha faculdade para fazer um check-in no horário noturno, que passaria sempre por si, pois este último não tinha, como hoje tem, acesso à receção no período noturno (detentor de chaves). Acrescentou que na data dos factos o seu colega tinha efetivamente um fardamento diverso do seu e que este apenas efetua rondas para verificar se há avarias no imobilizado, pois o empreendimento não tem segurança privada. Confirmou ainda que, pelo menos desde 2018, é a arguida M… quem exercia funções de supervisão e controlo do empreendimento.
L…, rececionista no empreendimento desde 2017, revelou um depoimento confuso, pouco coerente e circunstanciado em termo temporais, apenas se percebendo do mesmo que não presenciou atos da função de L…, pois os seus horários de trabalho são diversos.
C…, amiga de longa data da arguida pessoa singular, cliente do empreendimento, revelou angariar alguns hóspedes no âmbito da sua atividade profissional, recordou alguns episódios em que se cruzou com L…, nos quais este conduziu alguns dos hóspedes por si angariados às habitações. Segundo a sua impressão, o visado L… era o rececionista da noite e tinha acesso à receção, sem necessidade das chaves de um terceiro. O seu depoimento foi muito dúbio na circunstanciação temporal, não sabendo dizer quando se verificou tal episódio, sendo possível que tal observação tenha ocorrido após a fiscalização da PSP. Acresce ter demonstrado forte proximidade à arguida pessoa singular, não se podendo descartar que o seu depoimento tivesse feito mero eco dos entendimentos e teses da arguida.
C…, também rececionista do empreendimento desde 2018, no turno da noite, ou seja, nos dias de folga do colega L…. Explicou que, durante os seus turnos, faz rondas para verificar se está tudo bem (detetar algum barulho ou dano no imobilizado) e também faz o check-in de clientes, não transporta equipamento de defesa pessoal. Em rigor, sobre as exatas funções de L… na data dos factos não revelou qualquer razão de ciência direta.
A prova das condições socioeconómicas e pessoais das arguidas fundou-se no teor das suas declarações, não havendo razões para duvidar do respetivo teor.
A prova da ausência de antecedentes criminais fundou-se na exegese dos CRCs atualizados.
4. Enquadramento jurídico-penal.
Incorre na prática do crime de exercício ilícito da atividade de segurança privada, em conformidade com o que vai disposto no nº 1 do art. 57º da L. nº 34/2013, de 16.05, na redação aplicável ao tempo dos factos, quem prestar serviços de segurança privada sem o necessário alvará, licença ou autorização.
O diploma em que a citada disposição normativa se insere estabelece o regime do exercício da atividade de segurança privada, bem como as medidas de segurança a adotar por entidades públicas ou privadas com vista a prevenir a prática de crimes - cfr. art.1º, nº 1.
Nesse enquadramento, prescreve-se no nº 3 do art. 1º do mencionado diploma legal que, para os efeitos nele previstos, se considera atividade de segurança privada:
- A prestação de serviços a terceiros por entidades privadas com vista à proteção de pessoas e bens, bem como à prevenção da prática de crimes – cfr. al. a);
- A organização, por quaisquer entidades e em proveito próprio, de serviços de autoproteção, com vista à proteção de pessoas e bens, bem como à prevenção da prática de crimes – cfr. al. b).
Dispõe-se, por seu turno, no art. 3º, nº 1, que os serviços de segurança compreendem, designadamente, a vigilância de bens móveis e imóveis e o controlo de entrada, presença e saída de pessoas, bem como a prevenção da entrada de armas, substâncias e artigos de uso e porte proibidos ou suscetíveis de provocar atos de violência no interior de edifícios ou outros locais, públicos ou privados, de acesso vedado ou condicionado ao público - al. a) -, e, ainda, a exploração e a gestão de centrais de receção e monitorização de sinais de alarme e de videovigilância, assim como serviços de resposta cuja realização não seja da competência das forças e serviços de segurança - al. b) -.
No que respeita às condições para o exercício da atividade de segurança privada, encontra-se a mesma dependente, nos termos prescritos pelo art. 4º, nº 1, da titularidade de alvará, licença ou autorização, a conceder, designadamente, a empresas de segurança privada ou a entidades que organizem serviços de autoproteção no âmbito dos serviços previstos nas als. a) a d) do nº 1 do art. 3º - cfr. als. a) e b) do nº 2 do art. 4 e artºs 14º a 16º.
Por empresa de segurança privada entende-se, para os efeitos do disposto no diploma sob consideração, toda a entidade privada, pessoa singular ou coletiva, devidamente autorizada, cujo objeto social consista exclusivamente na prestação de serviços de segurança privada e que, independentemente da designação que adote, exerça uma atividade de prestação de serviços a terceiros de um ou mais dos serviços previstos no nº 1 do art. 3º - cfr. art. 2º, al. a).
Os serviços de autoproteção de entidades e serviços de segurança privada, previstos pela al. b) do nº 3 do art. 1º, são organizados com recurso exclusivo a trabalhadores vinculados por contrato de trabalho com a entidade titular da respetiva licença, podendo tais serviços ser complementados com recurso à prestação de serviços de entidades titulares de alvará adequado para o efeito - cfr. art. 13º.
Entre o pessoal de segurança privada inclui-se o pessoal de vigilância, como tal se entendendo o trabalhador, devidamente habilitado e autorizado a exercer as funções previstas na Lei nº 34/2013, vinculado por contrato de trabalho a entidades titulares de alvará ou licença - cfr. artºs 2º, al. j), e 17º, nº 1.
Posto isto, cumpre referir que, tal como supra referido, às arguidas é imputada a prática de um crime de exercício ilícito da Atividade de Segurança Privada, p. e p. pelo art.º 57.º, nº 4, da Lei nº 34/2013, de 16/05, por referência aos n.ºs 1, 2 e 3 do mesmo preceito (Regime Jurídico de Exercício da Atividade de Segurança Privada), na redação aplicável ao tempo dos factos:
Dispõe esse preceito:
“1 - Quem prestar serviços de segurança privada sem o necessário alvará, licença ou autorização é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - Quem exercer funções de segurança privada não sendo titular de cartão profissional é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
3 - Quem exercer funções de segurança privada de especialidade prevista na presente lei e para a qual não se encontra habilitado é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
4 - Na mesma pena incorre quem utilizar os serviços da pessoa referida nos números anteriores, sabendo que a prestação de serviços de segurança se realiza sem o necessário alvará, licença ou autorização, ou que as funções de segurança privada não são exercidas por titular de cartão profissional ou da especialidade”.
Por seu lado, o art.º 3º, nº 1, do diploma em causa, na sua redação anterior, sob a epígrafe “Serviços de Segurança privada”, estabelece que os serviços de segurança privada referidos no n.º 3 do artigo 1.º compreendem:
a) A vigilância de bens moveis e imóveis e o controlo de entrada, presença e saída de pessoas, bem como a prevenção da entrada de armas, substâncias e artigos de uso e porte proibidos ou suscetíveis de provocar atos de violência no interior de edifícios ou outros locais, públicos ou privados, de acesso vedado ou condicionado ao público;
b) A proteção pessoal, sem prejuízo das competências exclusivas atribuídas às forças de segurança;
c) A exploração e a gestão de centrais de receção e monotorização de sinais de alarme e de videovigilância, assim como serviços de resposta cuja realização não seja da competência das forças e serviços de segurança:
d) O transporte, a guarda, e tratamento e a distribuição de fundos e valores e demais objetos que pelo seu valor económico possam requer proteção especial, sem prejuízo das atividades próprias das instituições financeiras reguladas por norma especial;
e) O rastreio, inspeção e filtragem de bagagens e cargas e o controlo de passageiros no acesso a zonas restritas de segurança nos portos e aeroportos, bem como a prevenção da entrada de armas, substâncias e artigos de uso e porte proibidos ou suscetíveis de provocar atos de violência nos aeroportos, nos portos e no interior de aeronaves e navios, sem prejuízo das competências exclusivas atribuídas às forças e serviços de segurança;
f) A fiscalização de títulos de transporte, sob a supervisão da entidade pública competente ou da-entidade titular de uma concessão de transporte público;
g) A elaboração de estudos e planos de segurança e de projetos de organização e montagem de serviços de segurança privada previstos na presente lei.
Por seu lado, o art. 18.º, nºs 1 e 2, do mesmo diploma estabelece o seguinte:
“1 - O segurança privado exerce exclusivamente as funções do conteúdo funcional das especialidades para que se encontra autorizado e habilitado nos termos da presente lei.
2 - O vigilante exerce exclusivamente as seguintes funções (sendo o vigilante uma das especialidades de segurança privada prevista no art.º 17º):
a) Vigiar e proteger pessoas e bens em locais de acesso vedado ou condicionado ao público, bem como prevenir a prática de crimes;
b) Controlar a entrada, a presença e a saída de pessoas e bens em locais de acesso vedado ou condicionado ao público;
c) Prevenir a prática de crimes em relação ao objeto da sua proteção;
d) Executar serviços de resposta e intervenção relativamente a alarmes que se produzam em centrais de receção e monitorização de alarmes;
e) Realizar revistas pessoais de prevenção e segurança, quando autorizadas expressamente por despacho do membro do Governo responsável pela administração interna, em locais de acesso vedado ou condicionado ao público sujeitos a medidas de segurança reforçada.
Por sua vez, o art.º 58.º do diploma refere-se à atuação das pessoas coletivas e sua responsabilização penal.
Analisada toda a matéria assente, bem como a matéria apurada instrumentalmente, não há qualquer dúvida de que L…, ao menos na data dos factos, aquando da fiscalização, era mais do que mero porteiro de hotelaria, exercendo também funções como vigilante do empreendimento em causa no seu período de trabalho.
Senão vejamos.
De acordo com o seu contrato de trabalho (fls. 12 a 14 e 64 a 66), as funções que aí lhe estão atribuídas correspondem efetivamente às de porteiro de hotelaria.
Contudo, repare-se que à data dos factos não tinha acesso autónomo à receção, não fazia o check-in dos clientes chegados em período noturno, socorrendo-se sempre da funcionária C… caso tal necessidade surgisse, o que sugere que o seu foco funcional, à data, materializado na prestação laboral efetiva, consistia na prática de atos próprios da função de vigilante, nomeadamente: vigiava e protegia pessoas e bens em locais de acesso condicionado ao público [o empreendimento estava vedado, conforme o seu representante legal assentiu] e controlava a entrada, a presença e a saída de pessoas e bens num local de acesso condicionado ao público.
Cremos que a descrição dos agentes da PSP foi eloquente ao narrarem a situação que levou ao levantamento do auto: a ronda efetuada por L… tinha também um propósito dissuasor, ou seja, o de prevenir a prática de crimes em relação ao objeto da sua proteção. A ronda que o mesmo efetuava não era apenas uma ronda destinada a verificar o funcionamento de luzes, ar condicionado, aquecimento e águas, e em elaborar estatísticas e relatos sobre reclamações de clientes. A ronda elaborada tinha também um propósito de vigilância e proteção de bens e prevenção da prática de crimes, controlando eventuais entradas de terceiros não autorizados no empreendimento.
Não se coloca em causa que o funcionário em causa também encaminhasse, no seu período de trabalho, os hóspedes aos respetivos apartamentos, que fornecesse informações e procedesse à substituição ou reparação de algum equipamento (lâmpadas, por ex.). O desempenho destas funções foi também relatado pelas demais testemunhas, que referiram ainda o controlo do funcionamento e utilização do esquipamento, mormente da piscina e campos de ténis, através de rondas, deixando anotada a anomalia detetada, sempre que a não conseguia reparar e para que tal fosse efetuado pelo pessoal da manutenção no âmbito da distribuição de funções pelos funcionários do empreendimento. Contudo, tais funções de porteiro de hotelaria eram cumuladas com funções coincidentes com a prática de atos típicos de segurança privada, nomeadamente de vigilante.
Vejamos como enquadrar esta sobreposição de funções.
A respeito do porteiro de hotelaria, dispõe o art.º 1º, n.º 5, da Lei 34/2013, de 16/05, redação aplicável à data dos factos: “ficam excluídas do âmbito de aplicação da presente lei as atividades de porteiro de hotelaria e de porteiro de prédio urbano destinado a habitação ou a escritórios, cuja atividade seja regulada pelas câmaras municipais”.
E o nº 6 do art.º 1º estabelecia: “as entidades que prestem serviços de portaria ou as profissões de porteiro cujo âmbito de serviço corresponda, ainda que parcialmente, aos serviços de segurança privada ou às funções da profissão de segurança privado, estão sujeitas ao regime previso na presente lei.
Acerca das funções do porteiro de hotelaria, dispõe o art.º 2º: “Para efeitos do disposto na presente lei e em regulamentação complementar, entende-se por l) «Porteiro de hotelaria» todo o trabalhador cujas funções consistam em controlar o movimento de entrada e saída de hóspedes, em entregar e restituir chaves de quartos, em orientar a receção de bagagem e correio e assegurar a sua distribuição, em efetuar o registado serviço de despertar e de objetos perdidos, em receber e transmitir comunicações telefónicas e mensagens e prestar informações, em efetuar ou orientar rondas nos andares e outras dependências, verificando, nomeadamente, o funcionamento de luzes, ar condicionado, aquecimento e águas, e em elaborar estatísticas e relatos sobre reclamações de clientes, transmitindo-as aos serviços competentes”.
Salvo melhor entendimento, a revogação do n.º 6 do art. 1.º da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio, não permite fundar a inferência interpretativa de uma eventual descriminalização da conduta, sustentada anteriormente pelas arguidas.
Segundo apurado, o Sr. L… era mais do que porteiro hoteleiro, era também vigilante (segurança privado), pois foi igualmente contratado para fazer rondas e vigiar o funcionamento normal do empreendimento e controlar a entrada, saída, e presença de pessoas [cfr. o referido art. 3.º, n.º 1, al. a), por referência ao art. 1.º, n.º 4, al. a), da Lei n.º 34/2013, de 16 de maio].
A revogação da primitiva redação do nº 6 do artigo 1º não significa, a contrario sensu, que o legislador pretendeu atribuir ao porteiro hoteleiro faculdade de praticar livremente atos próprios da profissão de segurança privada, não cometendo o crime do artigo 57º no caso de não estar legalmente habilitado ou autorizado para o efeito.
Segundo cremos a revogação teve como desígnio uma mera arrumação sistemática das exclusões de aplicação do regime, sendo ainda assim válida a interpretação de que o porteiro hoteleiro que também seja contratado para exercer funções de segurança deva ser abrangido pelo referido regime.
Repare-se que as qualidades não são excludentes, estando na livre disponibilidade contratual das partes definir o objeto da prestação do trabalho ou dos serviços com o trabalhador/prestador de serviços, desde que, no âmbito das funções de segurança privada, as partes se conformem com o específico regime legal.
Segundo cremos, a acumulação de funções faz com que o regime legal do porteiro hoteleiro, que também exerce funções de segurança privado, seja misto (e não mutuamente excludente): na primeira vertente aplica-se o respetivo instrumento de regulamentação coletiva e/ou contrato de trabalho e na segunda vertente as disposições legais relativas à segurança privada.
A seguir-se a tese mutuamente excludente de regimes, poderíamos redundar no paradoxo da coexistência legalmente válida de porteiros hoteleiros habilitados para o exercício da segurança privada e outros porteiros hoteleiros não habilitados para o efeito, a exercerem, sem mais, e validamente, tal objeto funcional misto, desde que a respetiva categoria profissional fosse a de porteiro hoteleiro (permitindo-se flagrante fraude à lei que regulamenta o exercício da segurança privada para os empregadores hoteleiros).
Cremos, pois, que o elemento definidor da aplicação do regime legal em causa deverá sempre ser o do conteúdo funcional concretamente demonstrado nos autos e não o da categoria profissional, sem mais.
E, no caso em apreço, dúvidas não restam de que a imputação penal feita às arguidas repousa no seguinte conteúdo funcional: realizar rondas e vigiar o funcionamento normal do empreendimento e controlar a entrada, saída, e presença de pessoas (cfr. o referido art. 3.º, n.º 1, al. a), por referência ao art. 18.º, n.ºs 1 e 2, do referido diploma, na redação aplicável à data dos factos), o que configura, sem dúvida, um ato típico e próprio de segurança privada.
Repare-se ainda que, à luz do anterior regime, a cumulação de funções, ainda que parcial, prevista no art. 1.º, n.º 6, coexistia sistematicamente com a exclusividade funcional do vigilante de acordo com a sua especialidade no âmbito do pessoal da vigilância – art. 17.º, o que se mantém na presente redação da lei.
Salvo melhor entendimento, tal descrição não é um óbice à cumulação, ainda que parcial, entre as funções de porteiro de hotelaria e vigilante, pois a exclusividade referida destina-se a evitar a miscigenação de funções entre as várias categorias de pessoal de segurança e não a impedir a acumulação com outro tipo de funções que não as de segurança privada.
Apesar da mudança da Lei, cremos continuar válida a afirmação de que apenas quando as funções do porteiro de hotelaria não são integradas com atos simultaneamente próprios do segurança privado é que a atividade de porteiro de hotelaria não estará abrangida pelo regime da Lei 34/2013, de16/05, estando nos demais casos.
A primeira hipótese corresponde à situação dos autos, em que as funções de porteiro de hotelaria de L… compreendiam também atos próprios das funções de segurança privada, tais como fazer rondas e controlar as entradas e saídas de pessoas.
Assim sendo, terá de se concluir que, pelas funções que L… desempenhava, as quais eram parcialmente coincidentes com as de segurança privada (na parte em que controlava as entradas e saídas do empreendimento em período noturno e efetuava rondas ao mesmo, estas que foram verificadas pelo OP'C, como relatado no auto de notícia), estão sujeitas ao regime da Lei nº 34/2013, de 16/05.
Ora, de acordo com o art.º 4º, nº 1, deste diploma, “o exercício da atividade de segurança privada carece de título, concedido pelo membro do Governo responsável pela área da administração interna, que pode revestir a natureza de alvará, licença ou autorização”, sendo que os tipos de alvarás, licenças e autorizações se mostram previstos nos arts. 14º a 16º, e os requisitos para a sua emissão se mostram plasmados nos arts. 41º a 54º.
Por seu lado, o art. 27.º, nº 1, do diploma, estabelece que “para o exercício das suas funções, as profissões reguladas de diretor de segurança e de segurança privado são titulares de cartão profissional, emitido pela Direção Nacional da PSP, válido pelo prazo de cinco anos e suscetível de renovação por iguais períodos de tempo”, cartão que deve ser entregue pelo seu titular à sua entidade patronal, no prazo de 10 dias após a cessação do vínculo laboral, por forma a ser remetida por esta à PSP (art. 27º, nºs 4 e 5). Atualmente, prevê o nº 4 da norma: “o pessoal de vigilância que não esteja vinculado a nenhuma entidade patronal não pode, em circunstância alguma, fazer uso, exibir ou identificar-se com o cartão profissional”.
Sobre a titularidade de cartão profissional por L… é incontornável o facto de que o mesmo era titular do mesmo à data dos factos (basta analisar o auto de notícia), mas não era possuidor (por o ter entregue na PSP, facto que não fez cessar a titularidade). Contudo, tal aspeto não substancial não altera a integração do tipo: as arguidas, mormente a arguida pessoa singular agindo em nome e por conta da sociedade arguida sabia que os serviços de segurança se realizavam sem o necessário alvará, licença ou autorização.
Postas estas considerações, terá de se concluir que para desempenhar as funções de porteiro de hotelaria nos termos em que se encontrava a desempenhar, ou seja, incluindo as que são coincidentes com as de segurança privada, L… carecia de ter constituído empresa, ainda que individual, que fosse titular de licença para o efeito, sendo que apenas perante isso lhe poderia ser devolvido o cartão profissional de segurança, ou desempenhar funções para empresa que fosse titular de alvará, licença ou autorização para o desempenho das funções coincidentes com as de vigilante, o que a sociedade arguida igualmente não possuía, tendo esta usado os serviços de L… nessas condições, suas conhecidas.
A conduta integra, assim, o disposto no n.º 4 do art. 57º, por remissão para n.º 1, n.º 2 e n.º 3 do mesmo preceito.
Por fim, vejamos a questão suscitada pela arguida M…, que refere ser, tão-só, trabalhadora da sociedade arguida e, portanto, não lhe poder ser assacada responsabilidade criminal, já que, não sendo legal representante da sociedade arguida, não se pode dizer que usou os serviços de L….
Resulta efetivamente dos elementos dos autos, mormente do teor da certidão permanente de fls. 78 a 88, que a arguida M… não é administradora de direito da sociedade arguida, ou seja, não se encontra designada administradora e registada essa designação.
É sabido, no entanto, que essa circunstância não implica necessariamente a ausência de responsabilização criminal de outras pessoas, mormente daquelas que, atuando de facto em nome e representação da sociedade, pratiquem facto de natureza ilícita.
Em sentido oposto, a qualidade de represente legal também não implica necessariamente a responsabilização criminal, antes se exigindo que, além da representação legalmente registada, ocorra de facto a atuação em representação da sociedade.
Dito isto, cumpre referir que a sociedade arguida tem como objeto as atividades turísticas em qualquer modalidade, desde a urbanização de terrenos, compra e venda de propriedades, até à exploração de estabelecimentos hoteleiros e similares (fls. 78).
Por outro lado, resulta de fls. 16 a 18 e 68 a 69, que os legais representantes da sociedade arguida, em instrumento notarial e representação da sociedade arguida, constituíram a arguida M… procuradora da sociedade arguida, conferindo-lhe poderes de ordem vária e generalizada, mormente para movimentação de contas bancárias, contas correntes e de crédito, assinando todos os documentos necessários a uma tal movimentação, incluindo emissão de cheques, levantamentos, ordens de pagamento e transferências; poderes para celebrar contratos de trabalho, de serviço e de fornecimento; assinar recibos de quitação, assinar correspondência, representar a sociedade junto de entidades e organismos oficiais.
Foi no âmbito destes poderes que contratou, em representação da sociedade arguida, o L…, e passou a utilizar, rectius, beneficiar economicamente o empreendimento de que é a máxima responsável com os serviços de segurança de L….
Por seu lado, todas as testemunhas inquiridas foram unânimes ao afirmarem que a arguida M… é a responsável pelo empreendimento Turístico em análise, sendo também a mesma responsável e que supervisiona o trabalho de L…, tal como as demais funções, pelo menos desde a data dos factos.
Face aos poderes generalizados que se mostram atribuídos a M… por procuração, supra referidos, e atendendo à prova produzida, demonstrou-se que a mesma possuía efetivamente poderes de representação da sociedade arguida, poderes que não se limitavam a uma atuação circunscrita para a qual foi mandatada, mas antes eram generalizados, implicando o poder de decidir os desígnios da sociedade arguida, pelo menos no que respeita à exploração do empreendimento turístico A… (de que é diretora).
Neste âmbito, é pertinente aludir ao Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, no Processo nº 364/16.4T9SNT.L1, datado de 11-12-2018, consultado in www.dgsi.pt: “I - A imputação jurídico-penal dos entes coletivos assenta numa culpa erigida através do facto e da culpa das pessoas físicas, e a responsabilidade da pessoa coletiva só existe quando a pessoa física (agente singular que detenha uma posição de liderança, ou um agente subordinado em virtude da violação de deveres de vigilância ou controlo) tenha agido (ou omitido o comportamento devido) em nome e no interesse coletivo. II - Por isso, a existência de um nexo de imputação do ato ilícito típico (ou facto de conexão) a um elemento da sociedade com posição de liderança na organização constitui um pressuposto essencial para imputação do crime à pessoa coletiva e depende da identificação funcional do líder/autor do facto concretamente acontecido”.
Importa notar a conjugação entre o disposto no art. 58.º do diploma supra referido e a norma constante do artigo 11º do Código Penal, por força do artigo 8º do mesmo compêndio normativo, dispondo que a imputação dos factos à pessoa coletiva ocorre quando os crimes forem cometidos a) em seu nome e no interesse coletivo, por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança.
Logo, o regime vigente não é de responsabilidade “direta” da sociedade, e, para que o crime seja imputado à sociedade (para que se possa validamente afirmar que “a sociedade cometeu o crime”), é necessário, pelo menos em princípio, que o representante também o seja, ou possa ser, dado que o facto e a culpa do agente físico são componentes essenciais e pressupostos da imputação da pessoa coletiva (Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, Lisboa 2009, p. 296-297).
Assim é que a imputação jurídico-penal dos entes coletivos assenta numa culpa erigida através do facto e da culpa das pessoas físicas, e a responsabilidade da pessoa coletiva só existe quando a pessoa física (agente singular que detenha uma posição de liderança, ou um agente subordinado em virtude da violação de deveres de vigilância ou controlo) tenha agido (ou omitido o comportamento devido) em nome e no interesse coletivo.
Por isso, a existência de um nexo de imputação do ato ilícito típico (ou facto de conexão) a um elemento da sociedade com posição de liderança na organização constitui um pressuposto essencial para a imputação do crime à pessoa coletiva e depende da "identificação funcional" do líder/autor do facto concretamente acontecido (Teresa Quintela de Brito, Fundamento da responsabilidade criminal de entes coletivos: articulação com a responsabilidade individual, Direito Penal Económico e Financeiro, Conferências do Curso Pós Graduado de Aperfeiçoamento, Coimbra, 2012, p. 205 e 206, e RPCC, Ano 20, nº 1, janeiro-março 2010, p. 41 a 71).
Assim, embora não seja exigível que o agente singular seja efetivamente condenado (artigo 11º, nº 7, do Código Penal), é necessário que, pelo menos, seja apurada a culpa das pessoas físicas que atuam em nome e no interesse da pessoa coletiva; a contrario, se a pessoa que ocupa a posição de liderança dever ser declarada sem culpa, a pessoa coletiva beneficiará também da exoneração da responsabilidade (Germano Marques da Silva Responsabilidade Penal das Pessoas Coletivas, Revista do CEJ, 1º semestre 2008, nº 8, Almedina, p. 94).
A conduta integra, assim, o disposto no n.º 4 do art. 57º, por remissão para o n.º 1 e o n.º 2 do mesmo preceito, quanto a ambas as arguidas.
Inexistindo causas de exclusão da culpa ou da ilicitude, deverão as arguidas ser punidas pelo crime previsto no art. 57.º, n.º 4, por referência ao n.º 1 e ao n.º 2 do mesmo preceito, da Lei nº 34/2013, de 16/05 (Regime Jurídico de Exercício da Atividade de Segurança Privada), do qual vinham pronunciadas”.
3 - Apreciação do mérito do recurso.
a) Do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
O Exmº Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer, alegou que o Tribunal recorrido apenas poderia dar como provado que as arguidas sabiam que o L… não dispunha de licença ou autorização para exercer a atividade de segurança privada se, antes, tivesse sido dado como provado que o L… e a arguida R…, não dispunham de tal licença ou autorização.
Na sequência dessa alegação, e aceitando-a como válida e totalmente pertinente, este Tribunal ad quem, por despacho datado de 05 de novembro de 2020, e ao abrigo do disposto no artigo 424º, nº 3, do C. P. Penal, ordenou a comunicação às arguidas da seguinte factualidade, a aditar à constante do despacho de pronúncia (e da sentença revidenda), factualidade que esta instância recursória expressamente considerou constituir uma “alteração não substancial” dos factos descritos na decisão instrutória (e dos factos dados como provados na sentença recorrida):
“O L… não era titular de qualquer licença ou autorização para o desempenho das funções coincidentes com as de vigilante, nem a sociedade arguida era titular de alvará, licença ou autorização para o efeito”.
Notificadas as arguidas para, querendo, se pronunciarem, no prazo de 10 dias, sobre tal “alteração não substancial dos factos”, as mesmas nada disseram.
Assim sendo, a factualidade em causa, cuja alteração foi comunicada às arguidas, foi, agora, confirmada em sede do presente acórdão (nos termos já acima enunciados - nova redação dada à alínea C) da matéria de facto provada -), ficando, por via disso, sanado o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (vício muito bem invocado pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto no seu douto “parecer”).
Em consequência, e sendo ainda certo que a factualidade em causa (alínea C) dos factos) não está diretamente questionada na impugnação da decisão fáctica constante da motivação do recurso (aí são colocados em crise apenas os factos provados sob as alíneas A), B), D) e E) da matéria de facto provada), o facto dado como provado na sentença revidenda sob a alínea C) dos “Factos provados” passou a ter a seguinte redação (já acima dada por assente, repete-se):
“O referido L… não era à data possuidor de cartão de segurança privada, pois que o mesmo se encontrava retido na PSP uma vez que não se encontrava a trabalhar para qualquer empresa de segurança privada, tal como tão pouco era titular de qualquer licença ou autorização para o desempenho das funções coincidentes com as de vigilante, nem a sociedade arguida era titular de alvará, licença ou autorização para o efeito”.
Perante o que vem de dizer-se, a “questão prévia” suscitada no “parecer” do Exmº Procurador-Geral Adjunto merece inteiro provimento e ficou solucionada, ou seja, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, invocado em tal “parecer”, ficou, do modo descrito, sanado.
b) Da impugnação alargada da matéria de facto.
As recorrentes impugnam os factos dados como provados na sentença revidenda sob as alíneas A), B) D) e E) (este último relativo aos elementos subjetivos do crime - nomeadamente o dolo com que as arguidas atuaram e, bem assim, a consciência da ilicitude -), entendendo que a prova produzida na audiência de discussão e julgamento não é suficiente para dar tais factos como provados.
Cumpre apreciar e decidir.
Há que salientar, em primeiro lugar, que o recurso sobre a matéria de facto não envolve (não pode envolver) para o tribunal ad quem a realização de um “novo julgamento”, com a reanálise de todo o complexo de elementos probatórios produzidos.
A impugnação da decisão fáctica tem por finalidade, isso sim, o reexame de erros de procedimento ou de julgamento, erros que afetem a decisão recorrida e que o recorrente indique (especificadamente), tendo ainda o recorrente de indicar, por forma também especificada, as provas que, no entender do mesmo, impõem (e não apenas sugerem ou possibilitam) uma decisão de conteúdo diferente.
Ora, a nosso ver, a discordância expressa pelas recorrentes visa toda a matéria de facto (naquilo que é efetivamente relevante para o preenchimento dos elementos do crime em questão - os pontos A), B), D) e E) da matéria de facto dada como provada na sentença revidenda -), e, além disso, questiona a análise, efetuada pelo tribunal a quo, de toda a prova produzida.
Lendo e relendo a motivação do recurso e as suas conclusões, delas decorre, inequivocamente, que está questionado o acervo factológico tido como provado (e relevante para o crime em causa), na sua integralidade, por o tribunal a quo ter seguido um processo de convicção diferente daquele que é o das recorrentes.
Aquilo que as recorrentes pretendem, no fundo, é que este tribunal de recurso proceda a um novo julgamento, analisando toda a prova produzida na primeira instância (depoimento a depoimento, documento a documento, ponto por ponto), e, é óbvio, fixando depois a matéria de facto de acordo com uma convicção que as recorrentes pretendem seja idêntica à delas próprias.
Em segundo lugar, para procedermos à pretendida alteração da decisão fáctica tomada na sentença revidenda, era necessário que a prova produzida em audiência de discussão e julgamento não apenas aconselhasse, ou permitisse, ou consentisse, uma tal alteração, mas, isso sim, impusesse essa alteração da decisão a que o tribunal recorrido chegou, fundamentadamente, sobre a matéria de facto (cfr. o disposto no artigo 412º, nº 3, al. b), do C. P. Penal).
Como bem se escreve no acórdão deste Tribunal da Relação de Évora datado de 15-03-2011 (relator Sénio Alves, disponível in www.dgsi.pt), “se, perante determinada situação de facto em concreto, as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis, e o juiz, fundamentadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável: o recorrente (tenha ele, nos autos, a posição processual que tiver), ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efetuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso, que por ela opte, em detrimento e atropelo do princípio da livre apreciação da prova”.
Também o Prof. Figueiredo Dias (in “Direito Processual Penal”, Vol. I, Coimbra Editora, 1981, pág. 233), em sentido similar, esclarece: “por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efetivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de um processo penal submetido predominantemente ao princípio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento”.
Acrescenta ainda o mesmo Ilustre Professor, a propósito dos princípios da oralidade e da imediação (ob. citada, págs. 233 e 234): “só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar, o mais corretamente possível, da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais”.
Lendo a motivação do recurso, verifica-se, facilmente, que as recorrentes não atentaram nestes princípios (da oralidade e da imediação), nem no princípio da livre apreciação da prova (artigo 127º do C. P. Penal), pretendendo que o tribunal (quer o tribunal a quo, quer este tribunal ad quem) acolha a versão dos factos que mais lhes convêm.
Ora, e repetindo o acima dito, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3, al. b), do C. P. Penal, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve indicar, especificadamente, as provas que “impõem” decisão diversa da recorrida (que “impõem”, repete-se, e não que permitem ou aconselham).
A esta luz, lendo a sentença revidenda, na motivação da respetiva decisão fáctica, verificamos, sem dificuldade, que as provas produzidas não “impõem” uma decisão diversa daquela que foi proferida em primeira instância.
Ou seja: o tribunal a quo não decidiu ao arrepio da prova produzida, ou contra tal prova, nem deu como provado determinado facto com fundamento no depoimento de uma determinada testemunha, e, analisado tal depoimento, constata-se que a dita testemunha se não pronunciou sobre tal facto, ou que, pronunciando-se, disse coisa diferente da afirmada na decisão recorrida, nem, por último, o tribunal recorrido valorou a prova produzida contra as regras da experiência, ou de modo aleatório e discricionário.
Pelo contrário, o Exmº Juiz fez a análise das declarações da arguida M…, dos documentos juntos ao processo e, bem assim, de todos os depoimentos prestados em audiência, procedendo ao exame crítico das provas, de modo claro e apreensível, esclarecendo os motivos pelos quais deu credibilidade a uns depoimentos e não deu a outros, tudo por forma a permitir (como permite), quer aos destinatários diretos da decisão quer à comunidade em geral, perceber os seus raciocínios (as razões pelas quais atribuiu credibilidade a uns testemunhos e não a outros).
Por outras palavras: ao contrário do que alegam as recorrentes, o Tribunal a quo valorou devidamente a prova que foi produzida na audiência de discussão e julgamento, seguindo critérios racionais, devidamente explicitados, e seguindo as regras da experiência comum (da lógica comumente aceite, ou seja, da lógica do “Homem médio” suposto pela ordem jurídica).
Por último, cumpre salientar que, não só nenhum dos elementos de prova invocados pelas recorrentes impõe decisão diversa da recorrida, como, ao invés, os elementos de prova produzidos na audiência de discussão e julgamento, avaliados de modo global e complexivo, não poderiam deixar de conduzir a outra decisão que não fosse considerar como provada a factualidade vertida nos pontos A), B), D) e E) da sentença revidenda.
Senão vejamos (em breve resumo, e indo apenas aos aspetos que consideramos essenciais):
1º - Os agentes da P.S.P., que fizeram a fiscalização ao local, relataram, de modo convincente e uniforme, que o funcionário L…, que observaram durante cerca de trinta minutos, vestia uma farda que parecia militar ou “operacional”, nomeadamente usando botas e luvas táticas, cinturão e lanterna, caminhando tal funcionário pelo condomínio a fazer “rondas”, tendo, manifestamente, quer a sua postura quer o seu fardamento, um efeito dissuasor contra intrusos.
2º - Os referidos agentes da P.S.P. esclareceram ainda que, após a abordagem que fizeram ao L…, verificaram que a receção do empreendimento turístico em causa se encontrava fechada à chave, que o L… não tinha acesso a tal receção, e que foi necessário recorrer à rececionista.
3º - Os agentes da P.S.P. em causa verificaram também que, muito embora o L… acompanhasse, quando necessário, os hóspedes aos respetivos alojamentos, tinha de chamar um outro funcionário para fazer o check-in, e fazia sempre “rondas” noturnas junto dos pontos de acesso, para evitar intrusos e, obviamente, para preservar a segurança e os bens do empreendimento turístico em questão.
4º - Os representantes legais da sociedade arguida constituíram a arguida M… procuradora da referida sociedade, conferindo-lhe poderes, entre outros, para movimentação de contas bancárias, contas correntes e de crédito, assinando todos os documentos necessários a essa movimentação, incluindo emissão de cheques, levantamentos, ordens de pagamento, transferências, bem como poderes para celebrar contratos de trabalho, de serviço e de fornecimento, assinar recibos de quitação, assinar correspondência, representar a sociedade junto de entidades e organismos oficiais. Ora, perante tudo isso, documentalmente comprovado, e ainda com base nos depoimentos das testemunhas ouvidas e que possuem ligação à sociedade arguida, outra conclusão não poderia retirar o tribunal recorrido que não fosse a de que a arguida M…, de facto, a “gerente” da sociedade arguida, sendo ela a responsável pela contratação e pelo indevido exercício de funções por banda do L…. Como muito bem se escreve na sentença recorrida, “face aos poderes generalizados que se mostram atribuídos a M… por procuração (…) e atendendo à prova produzida, demonstrou-se que a mesma possuía efetivamente poderes de representação da sociedade arguida, poderes que não se limitavam a uma atuação circunscrita para a qual foi mandatada, mas antes eram generalizados, implicando o poder de decidir os desígnios da sociedade arguida, pelo menos no que respeita à exploração do empreendimento turístico A… (de que é diretora)”.
5º - No tocante aos elementos subjetivos do crime, também questionados na motivação do recurso (está impugnado o facto provado na sentença revidenda sob a alínea E), nenhum elemento de prova permite, minimamente, concluir pela exclusão do dolo da arguida M… (o que implicaria a respetiva absolvição, bem como a absolvição da sociedade arguida), ou pela existência de um erro sobre a ilicitude (ter tal arguida agido sem consciência da ilicitude do facto). Pelo contrário, as elementares regras da experiência, analisadas à luz dos conhecimentos exigíveis à arguida M… para o desempenho das suas funções, impõem a conclusão de que tal arguida sabia a sua conduta legalmente proibida. Ou seja, os factos referentes aos elementos subjetivos do crime basearam-se, como não podia deixar de ser, em juízos de inferência, a partir dos factos objetivos dados como provados (como é consabido, o dolo e a consciência da ilicitude, sendo acontecimentos do foro interno do agente, não são suscetíveis de apreensão e de prova diretas - ressalvados os casos em que há confissão -, resultando, isso sim, da factualidade objetiva dada como provada, devidamente conjugada com as regras da lógica e da experiência comum).
Face ao predito, e em jeito de conclusão, subscrevem-se, inteiramente, as seguintes considerações, feitas, a propósito desta vertente recursiva, no “parecer” emitido pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto: “no que à impugnação da matéria de facto diz respeito, permitimo-nos, desde logo, convocar a exaustiva e convincente fundamentação da Sentença, por meio da qual se impõe reconhecer a bondade do decidido, sustentado que foi na prova efetivamente produzida e melhor valorada. O que do Recurso transpira, de forma insofismável, ao questionar o modo como o Tribunal apreciou livremente a prova (artº 127º do CPP), mais não é do que o que as Recorrentes gostariam que o Tribunal tivesse acolhido, como corolário da prova produzida, que não o que, acolhendo, deu como provado, na Sentença de que recorrem. Como se o Tribunal estivesse obrigado a acolher, ou a enjeitar, em bloco, cada um dos depoimentos, designadamente, os que resultam da prova convocada, estando-lhe vedado acolhê-los de forma ponderada e fundamentadamente casuística. Como se o Tribunal não pudesse dar (maior) credibilidade a certos meios de prova, negando-a, ou desvalorizando-a, quanto a outros. Como se os critérios de avaliação da prova não decorressem dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação, ainda que tributários de um raciocínio intrinsecamente coerente e extrinsecamente não desfasado”.
Por tudo o que ficou exposto, é totalmente de improceder esta vertente do recurso, considerando-se definitivamente fixada a matéria de facto nos precisos termos em que o foi pelo tribunal recorrido.
c) Da qualificação jurídica dos factos.
Alegam as recorrentes, por um lado, que na presente situação agiram sem consciência da ilicitude do facto, e, por outro lado, que não existe “norma punitiva” suscetível de legitimar a condenação operada na sentença revidenda.
Há que decidir.
Desde logo, quanto à falta de consciência da ilicitude dos factos (e, por isso, à inexistência de dolo, o que acarreta a absolvição das arguidas), cumpre apenas salientar que o conhecimento de tal questão ficou prejudicado pela decisão acima tomada relativamente à impugnação da decisão fáctica.
Com efeito, ao manter-se como provada a factualidade constante da alínea E) dos “Factos provados” (“agiram as arguidas livre, voluntária, e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei”), da mesma decorre, inequivocamente, a existência de dolo e de consciência da ilicitude.
A exclusão do dolo, por erro sobre a ilicitude (por as arguidas terem atuado sem consciência da ilicitude dos factos - cfr. o disposto no artigo 17º do Código Penal -), conforme alegado na motivação do recurso, estava, pois, dependente da procedência da impugnação relativamente à matéria de facto, e, como tal impugnação é totalmente de improceder (nos termos já acima decididos), é também de improceder, obviamente, a questão agora em apreço (inexistência de dolo, por falta de consciência da ilicitude).
Depois, quanto ao enquadramento jurídico-penal dos factos propriamente dito (quanto à ilicitude e quanto à tipicidade dos factos dados como provados em primeira instância), e com o devido respeito pelo esforço argumentativo levado a cabo na motivação do recurso, nenhuma razão assiste às recorrentes.
É que, contrariamente ao alegado pelas recorrentes, os factos em causa nestes autos (dados como provados na sentença recorrida) são, manifestamente, ilícitos e “típicos” (ou seja, preenchem os elementos objetivos do crime em análise).
Na verdade, a nosso ver, e ao invés do entendimento expresso na motivação do recurso, a revogação da redação primitiva da Lei nº 34/2013, de 16/05, no que concerne aos “porteiros de hotelaria”, não pode ser entendida como a atribuição ao “porteiro de hotelaria” da faculdade de praticar livremente atos próprios da função de segurança privada.
Com essa revogação pretendeu-se, isso sim, e tão-somente, uma arrumação sistemática das exclusões de aplicação do regime, sendo que o elemento definidor da aplicação do regime legal em causa deverá ser, sempre, o do conteúdo funcional concretamente demonstrado, e não o da categoria profissional (sem mais).
Nesta matéria, concordamos com o expendido, de forma detalhada, exaustiva e rigorosa, na sentença revidenda.
Olhando à exposição (correta e pormenorizada, repete-se) constante da sentença sub judice, não vamos aqui “repetir” (ou dizer por outras palavras, num mero exercício de semântica, inócuo e desnecessário) tudo o que foi expendido na sentença a propósito da questão agora em apreciação (aliás, deixámos acima transcrito, no presente acórdão, todo esse segmento da sentença revidenda).
Cumpre-nos apenas, de forma enxuta e resumida, dizer que, ao contrário do alegado pelas recorrentes, a circunstância de a Lei nº 34/2013, de 16/05, seja na redação original, seja na que foi introduzida pela Lei nº 46/2019, de 08/07, excluir do seu âmbito de aplicação “as atividades de porteiro de hotelaria” (artigo 1º, nº 5, da versão original), ou, na redação do novo artigo (artigo 1º, nº 6, al. a), introduzido pela Lei nº 46/2019), “a atividade de porteiro de hotelaria”, não implica (nem pressupõe) a possibilidade de o “porteiro de hotelaria” poder exercer, legalmente e sem mais, a atividade de segurança privado.
Dito de outro modo: o facto de a Lei nº 34/2013, de 16/05, excluir do seu âmbito de aplicação a atividade de “porteiro de hotelaria” não corresponde, como se nos afigura óbvio, à exclusão da punibilidade do exercício ilegal de segurança privada, ainda que esta seja exercida concomitantemente com a de “porteiro de hotelaria”.
O que conta, aquilo que é efetivamente relevante e decisivo para o preenchimento do tipo legal de crime em apreço, é o efetivo exercício, não licenciado nem legalmente autorizado, de segurança privada, seja ele cumulado, ou não, com o exercício da atividade de “porteiro de hotelaria”.
Em conclusão: também nesta última vertente (qualificação jurídica dos factos) o recurso das arguidas não merece provimento.
Face a tudo quanto ficou dito, é de manter a decisão revidenda, sendo de improceder o recurso.
III - DECISÃO
Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso interposto pelas arguidas, mantendo-se, consequentemente, a decisão recorrida.
Custas pelas recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.
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Texto processado e integralmente revisto pelo relator.
Évora, 09 de fevereiro de 2021
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(João Manuel Monteiro Amaro)
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(Laura Goulart Maurício)