1 - Não é da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais conhecer dos pedidos cíveis formulados com base na responsabilidade civil extracontratual resultante da prática de ilícitos criminais.
2 - O número 1 do artigo 150º do Código Penal não é um tipo penal, sim um “não-tipo” ou de uma norma de exclusão da tipicidade penal, uma “descrição de um conjunto de actividades que não se consideram típicas”, uma "cláusula de exclusão da tipicidade ou um contratipo”, com quatro requisitos ou pressupostos.
3 - O número 2 do mesmo artigo 150º do Código Penal já é um tipo penal e pressupõe para a sua consumação que o médico o seja legalmente, a “intervenção e o tratamento” sejam indicados e haja animus curandi. E só é penalizada a conduta, se ocorrer violação das leges artis e, por isso, se crie “um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde”.
Trata-se de um crime de perigo concreto. E caracteriza-se no lado objectivo como um crime específico, próprio e de perigo concreto. No lado subjectivo o dolo tem que necessariamente incluir uma intervenção com violação das leges artis e o perigo para a vida, corpo ou saúde do paciente.
O crime neste tipo penal só se consuma se esses tratamentos existirem e forem (1) realizados por pessoa “legalmente autorizada”; (2) realizados com intenção de tratamento (animus curandi): (3) eram indicados; (4) e violaram as leges artis causando um perigo.
Ou seja, não é possível configurar o crime contido no art. 150º, nº 2 do CP como um crime doloso omissivo.
4 - Se o tribunal considerar existente um crime negligente e não doloso isso constituirá uma alteração não substancial dos factos, impondo-se o cumprimento do disposto no artigo 358º do Código de Processo Penal.
Os mesmos factos ocorridos – e que não são alterados - necessitam de assumir a veste de uma conduta que a ordem jurídica qualifica como negligente, essa a natureza da alteração, uma adaptação nos factos, naturalisticamente entendidos, por exigência normativa, formal.
Acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
A - Relatório:
No 1º Juízo do Tribunal Judicial de Portalegre correu termos o processo comum singular supra numerado no qual é arguida
(...),
imputando-lhe a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo de:
- um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos com violação das leges artis, por omissão, previsto e punido pelo artigo 150.º, n.º 2 e com referência aos artigos 10.º, 14.º, n.º 3, 26.º, todos do Código Penal e
- um crime de ofensas à integridade física, por omissão, previsto e punido pelo artigo 144.º al. a) e b), com referência aos artigos 10.º, 14.º, n.º 3, 26.º, todos do Código penal.
(...), em representação do seu filho, deduziu pedido cível contra a arguida, (…) e ULSNA – Unidade Local de Saúde do Norte Alentejano EPE, pedindo a condenação solidária dos demandados no pagamento do montante que se vier a apurar por conta da incapacidade resultante para o lesado, e por danos não patrimoniais sofridos pelo lesado o montante de €40.000,00. Montantes esses acrescidos de juros legais até integral pagamento.
A ULSNA contestou, invocando a incompetência do Tribunal em razão da matéria e impugnando os factos alegados pela demandante, nos termos constantes de fls. 282-287.
A) Da parte Criminal:
1. Em face do exposto decido, julgar a acusação improcedente, por não provada e, em consequência, decido, absolver a arguida (...) dos crimes que lhe vinham imputados na acusação;
2. Declaro cessada a medida de coacção a que a arguida se encontra sujeita, nos termos do disposto no art.º 376.º, n.º 1 do CPP;
3. Custas pela assistente, nos termos do disposto no art.º 515.º, n.º 1, al. a) do CPP, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
B) Da parte cível:
a) Julgo procedente, por provado, o pedido cível deduzido por (...), em representação do seu filho (…) contra (...) e, ULSNA – Unidade Local de Saúde do Norte Alentejano EPE em consequência, condeno, solidariamente as demandadas no pagamento da quantia de quarenta mil euros, acrescida de juros legais vencidos e vincendos desde o trânsito em julgado da presente sentença até integral pagamento; b)
Custas, em partes iguais, pelas demandadas;
1) Vem o presente recurso interposto do despacho proferido no final da audiência de julgamento nos termos do qual a Mmª. Juiz considerou verificada uma alteração substancial dos factos descritos na acusação, dando cumprimento ao disposto no artigo 359º, nº1 e3do Código de Processo Penal, bem como da subsequente sentença proferida que, por não ter existido concordância da arguida relativamente à alteração comunicada e por falta do elemento subjectivo dos crimes que lhe eram imputados, absolveu a arguida.
2) Aceitando-se que em sede de julgamento apenas foi feita prova de uma conduta negligente por banda da arguida susceptivel de integrar a prática do crime de ofensa à integridade física grave por negligência, previsto e punido pelo art.º 148º nº1 e 3 do Cód. Penal (e não do crime de ofensa à integridade física grave previsto no artº 144º do CP); bem como com o aditamento de factos comunicado pela Mmª Juiz no despacho proferido em audiência de julgamento, o certo é que tal alteração não configura uma alteração substancial dos factos descritos na acusação.
3) A alteração de factos comunicada pela Mmª Juiz não redunda na prática de um “crime diverso” tal como definido pelo art.º 1º alínea f) do CPP.
4) Os tipos legais previstos no art.º 148º e art.º 144º do CP derivam do mesmo tipo fundamental - o crime de ofensa à integridade física simples previsto no art.º 143º nº1 do CP) - e tutelam o mesmo bem jurídico.
5) Os factos comunicados pela Mmª Juiz susceptíveis de serem configurados como alteração aos factos descritos na acusação não bulem com o contexto de espaço, tempo, nem, no essencial, com o modo de cometimento dos factos descrito na acusação, posto que estamos perante o mesmo facto histórico; o mesmo pedaço devida; o mesmo evento naturalístico.
6) A modificação factual comunicada pelo Tribunal não alterou a essencialidade da acção levada a cabo pela arguida tal como descrita na acusação pois que está em causa a mesma omissão de procedimentos por parte da arguida, enquanto médica, bem como o mesmo resultado (a perda de um órgão por parte de um menor).
7) É também incontestável que se mantém o nexo causal entre a acção/omissão do agente (a omissão da conduta exigível) e o resultado produzido.
8) Não estamos perante um crime diverso porque tanto os factos descritos na acusação como na comunicação operada pelo Tribunal se reportam à materialidade de uma mesma e única intervenção, que teve lugar num mesmo momento e local, tendo por agente a arguida e por paciente o ofendido, relativamente ao qual se descrevem as mesmas lesões típicas, infligidas pela arguida no exercício da medicina.
9) A modificação factual em causa não importa qualquer alargamento do objecto do processo, nem tem quaisquer repercussões agravativas para a arguida, pelo contrário.
10) A alteração comunicada, para além de preservar todo o contexto em termos de tempo, espaço e, no essencial, o modo da prática dos factos tal como descrita na acusação apenas comporta uma alteração da qualificação jurídica, de um crime de ofensas dolosas (Art.º 144º alínea a) e b) do CP) para um crime de ofensas negligente (Art.º 148º nº1 e 3 do CP), tendo este moldura penal muito inferior (constituindo um minus relativamente àquele).
11) Deste modo, a alteração preconizada terá por efeito, não a agravação, mas diminuição do limite máximo das sanções aplicáveis.
12) Não existe pois, qualquer prejuízo para a defesa do arguido, antes resulta um benefício, dada a menor exigência no juízo de censura a formular.
13) O presente caso não se enquadra no âmbito da jurisprudência fixada pelo acórdão 1/2015 do STJ publicado no Diário da República n.º 18/2015, Série I de 2015-01-27, porquanto no caso visado pelo douto Aresto, estava-se perante a total falta de preenchimento do elemento subjectivo do tipo legal em causa pelo que a alteração preconizada implicaria a transformação de uma conduta atípica (não punível) numa conduta típica e punível, o que não sucede no caso concreto, dado que a conduta tal como descrita na acusação já seria punível.
14) Efectivamente, no tocante ao crime de ofensa à integridade física grave a acusação descreve factos integrantes do dolo quer quanto ao tipo fundamental (art.143.º, n.º1 do Código Penal), quer relativamente às consequências que o qualificam, isto é, o resultado grave, previsto no art.º 144º do CP – cfr. teor dos pontos 16 a 25 da acusação.
15) Emsuma, o elemento subjectivo deste tipo legal encontrava-se suficientemente descrito, pelo que, considerando o Tribunal que não foi feita prova do dolo mas apenas da negligência, deveria ter comunicado a alteração factual correspondente, como aquilo que era: uma alteração não substancial tradutora de um juízo de censura menos grave do que o plasmado na acusação e logo compreendido naquela porque referente ao mesmo circunstancialismo e à mesma conduta da arguida violadora (quer seja vista à luz do dolo quer seja observada sob o prisma da negligência), do mesmo bem jurídico.
16) A modificação factual comunicada pelo Tribunal enquadra-se numa alteração não substancial dos factos constantes da acusação, uma vez que não descaracteriza o quadro factual da acusação nem belisca a identidade do processo pelo que salvaguardada que fique a comunicação à arguida da factualidade indiciada, nos termos do art.º 358º1 e 3 do CPP, dando-se a esta a possibilidade de esgrimir os argumentos e as provas que entender, não resultam minimamente comprimidos os seus direitos de defesa.
17) Da mesma modificação factual resulta ainda uma alteração da qualificação jurídica (com diminuição do limite máximo das sanções aplicáveis) pelo que apenas se impunha que houvesse lugar à comunicação prevista no artigo 358.º, n.º 1 e nº 3 do Código do Processo Penal ficando desse modo plenamente salvaguardados o exercício do contraditório e o direito de defesa da arguida.
18) Em defesa da tese de que não estamos perante crime diverso e de que a alteração preconizada não resultaria qualquer prejuízo para a defesa da arguida, formulem-se ainda as seguintes questões: a convolação do crime de ofensas dolosas no tipo negligente constitui uma surpresa com a qual a arguida não poderia contar? A alteração factual em causa faz prever que haja a mínima alteração na defesa apresentada pela arguida? Não se defenderia a arguida da mesma forma? Não procurou por todos os meios a arguida ao longo do julgamento demonstrar que não omitiu quaisquer deveres de cuidado para com o ofendido? Cremos bem que sim e isto porque ao defender-se do mais, defendeu-se do menos!
19) Ao considerar verificada uma alteração substancial dos factos descritos na acusação e ao aplicar o disposto no artigo 359º do C.P.P., violaram o despacho e a sentença recorridos o estatuído nos artigos 358º, nº 1 e 3 do Código de Processo Penal e art.º 148º nº1 e 3 do CP por referência ao art.º 144º alínea a) do Cód. Penal.
20) O entendimento de que estamos perante uma alteração substancial dos factos descritos na acusação traduz-se na materialização de um conceito de justiça que privilegia a forma em detrimento da desejável realização de uma justiça material.
21) Pelo que em consequência deve ser anulado o despacho proferido no final da audiência de julgamento nos termos do qual se considerou existir uma alteração substancial e revogada a sentença subsequente, e anular-se o julgamento, desde o momento em que finalizou a produção da prova (sem prejuízo porém para a renovação dos meios de prova, se acaso tal se revelar necessário) e determinar-se que os autos baixem à 1ª instância a fim de ser proferido novo despacho a considerar o aditamento de factos comunicado como uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, procedendo-se ao cumprimento do disposto no art.º 358.º, n.º 1 e 3 do CPP e proferindo-se nova sentença em conformidade.
a) O alterado ETAF alargou a competência contenciosa dos Tribunais Administrativos e Fiscais, conferindo-lhe competência exclusiva para conhecer e julgar a matéria de responsabilidade civil peticionada contra entidades do sector público, seja por estas cometidas, seja, pela conduta dos seus agentes/funcionários, desde que, estas últimas, não se consubstanciem em factos da vida meramente privada ainda que durante o horário e instalações de uma entidade do sector público.
b) A aqui recorrente não poderá ser condenada como consequência da atuação por omissão da arguida, sua agente/funcionária, já que como se demonstrou a mesma não cometeu qualquer facto ilícito;
c) O diagnóstico consiste na determinação de determinada patologia, na análise das suas caraterísticas e causas, com vista a alcançar um conhecimento sobre o estado do doente, o mais amplo possível, pelos sintomas e ou mediante exames diversos.
d) Ora, a arguida, atuou e concretizou um diagnóstico, adequado à sintomatologia apresentada pelo doente (…).
e) As médicas especialistas não alteraram o diagnóstico, nem agiram de outro modo, o que convalidou a atuação da médica interna.
f) O erro eventualmente verificado, enquadrasse na falibilidade da atuação médica, como refere o Ac. STA já anteriormente citado, não configurando uma conduta ilícita.
g) De outra sorte, não se logrou a qualificação do grau de culpa da agente, referindo apenas a sentença absolutória da parte criminal que a arguida não terá agido com dolo, mas com negligência.
h) A condenação relativa à parte civil não fundamenta a culpa da arguida, nem define o seu grau, ficando por descortinar se se trata de negligência leve ou grosseira, sendo que, independentemente do grau que lhe fosse atribuído, a culpa não ficou provada, em virtude da oposição à prossecução do julgamento por crime diferente, decorrente da alteração substancial dos factos, ocorrida.
i) No mesmo sentido, com as devidas adaptações, não existe nexo de causalidade entre o facto verificado e a conduta da agente.
j) Efetivamente, ainda que a agente tivesse determinado a realização de ecografia escrotal e, providenciado as diligências tendentes a uma intervenção cirúrgica urgente, não se pode afirmar que o testículo seria mantido.
k) Inexistem pois, cumulativamente os pressupostos que a lei faz depender a condenação por responsabilidade civil.
l) A sentença recorrida encerra vícios insanáveis, como supra se demonstrou, que consequentemente e necessariamente conduzirão à absolvição da arguida e por arresto da aqui recorrente.
m)O montante de quarenta mil euros, fixado na sentença condenatória da parte cível, enferma dos vícios de desproporcionalidade e falta de equidade, em virtude “da exiguidade”, com o devido respeito que nos merece a perda de um órgão, dos danos morais sofridos pelo lesado e do elenco dos não provados.
n) Com efeito, o lesado, apesar de jovem, podemos dizer, pelo que não se provou nesta matéria, que continuou o seu percurso quase normal, sem frustrações ou outros sentimentos, sem condutas defensivas ou de vergonha e/ou de complexo de inferioridade que lhe vinham sendo imputados na douta acusação desmoronada.
o) No mesmo sentido, o dano sofrido, não afetou a sua fertilidade ou virilidade, termos em que se traduz o exagero e desproporcionalidade do montante indemnizatório fixado, o qual, sem conceder quanto à justa absolvição da recorrente, incorreu a douta sentença numa fixação arbitrária, sem observação dos limites que lhe são impostos legalmente.
Termos em que, e nos demais de direito, com o douto suprimento desse Tribunal, deve, assim, revogar-se a douta sentença recorrida, nas partes em que declarou que o Tribunal a quo era detentor de competência material para conhecer e julgar o pedido cível formulado contra a ULSNA, E.P.E., bem como a parte que condenou esta entidade no pedido cível solidariamente com a arguida.
Consequentemente, deverá a mesma ser substituída por decisão absolutória.
A - A decisão recorrida e que anima o presente Recurso, ao decidir no sentido em que o fez, enveredou por errada interpretação e aplicação do direi to, mormente, no que à necessidade de notificação da Recorrente da data designada para a audiência se reporta, nos termos estatuídos nos artigos 313.°, n. 2 e 113.°, n. 10 do CPP, em leitura conjugada;
B. Da interpretação dos preceitos aflorados resulta, de modo ostensivo, que o Legislador teve como essencial a notificação do Arguido, a par da que deverá efetivar-se relativamente ao seu Mandatário ou Defensor, sendo certo que a sua ausência não pode ser suprida pela notificação destes;
C. A presunção legal de existência de notificação nos termos consagrados no artigo do CPP, enquanto presunção ilidível, admite, nos termos estatuídos no artigo 350.°, n. 2 do Cód. Civ. prova em contrário.
D. A Recorrente, como ficou demonstrado por meio idóneo e com sinais nos Autos, não foi, de facto, notificada do despacho que designou dia para a realização da audiência, pela circunstância da notificação a si dirigida não ter sido, como alegado, depositada no "receptáculo Postal Domiciliário" do Hospital (…).
E. O Tribunal a quo, por via do despacho impugnado, ao não deferir da pretensão deduzida pela Recorrente, devidamente fundamentada, no sentido de ser repetida a sua notificação do despacho que designou dia para a audiência, violou os comandos normativos expressos nos artigos 313.°, n. 2 e 113.°, n. 10 do CPP, em leitura conjugada;
F. Consequentemente, impedindo-a de oferecer a sua Contestação e rol de testemunhas, comprometeu, de modo ostensivo, o seu Direito de Defesa;
G. Decidindo como decidiu e tendo aplicado de modo erróneo o direi to no caso sub judice, impõe-se e requer-se, atento aos fundamentos aduzidos, a revogação da decisão recorrida, devendo, em consequência, ser ordenada a repetição da notificação à Recorrente do despacho que designou dia para a realização da audiência, seguindo-se os ulteriores termos do processo até final.
III. Do Pedido
Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, sempre do mui douto suprimento desse Venerando Tribunal Superior, revogada requer-se que seja a decisão recorrida e, consequentemente, seja determinada superiormente realização de nova notificação à recorrente do despacho que designou dia para a audiência de julgamento, seguindo o Processo os seus termos até final.
A. A decisão recorrida e que anima o presente Recurso, ao decidir no sentido em que o fez, enveredou por errada interpretação e aplicação do direito, mormente, no que se reporta à condenação da Recorrente no pedido cível deduzido, de modo solidário com a ULSNA, na quantia de €40.000,00, assim como em custas.
B. Com efeito, atenta à natureza do vínculo de emprego público que a Recorrente detinha com a ULNSA, à data dos factos, enquanto médica interna de cirurgia geral, por um lado e, por outro, à alegada mera culpa com que agiu em violação das leges artis, no âmbito da intervenção clínica de que beneficiou o menor (...), nos termos estatuídos no artigo 7.º, n.º1 da L67/2007, “O Estado e as demais pessoas colectivas de direito público são exclusivamente responsáveis pelos danos que resultem de acções ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve, pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício da função administrativa e por causa desse exercício.”.
C. Em momento algum do aresto sob crítica se refere ou resultou demonstrado que a Recorrente, no âmbito da sua atuação, tenha agido com culpa grave ou negligência grosseira.
D. Considerando a matéria probatória dada como provada e acima chamada à colação, em conjugação com os factos sobre a questão considerados como inverificados e a motivação oferecida pelo Tribunal a quo no que concerne aos atos médicos praticados pela Recorrente em benefício do doente, esta não responde solidariamente em sede de responsabilidade civil extracontratual com a ULSNA, em razão do disposto no supra aludido artigo 7.º, nº1 da L 67/2007.
E. A Recorrente é, assim, como supra se advogou, parte ilegítima, nos termos estatuídos no artigo 30.º do CPC, o que gera exceção dilatória atento o disposto do artigo 577.º, al. e) do CPC, o que é de conhecimento oficioso pelo Tribunal considerando o que resulta consagrado no artigo 578.º do CPC, pelo que, consequentemente, deveria ter sido absolvida da instância, tudo aplicável ex vi artigo 4º do CPP.
F. A sentença sob crítica oferece, de igual modo, o flanco à crítica pela circunstância de evidenciar uma ostensiva contradição insanável na fundamentação no que se reporta á matéria de facto.
G. Aferindo o conteúdo dos pontos 19 e 21 dos factos provados, em contraponto com a alínea b) dos factos não provados, associado à motivação expressa pelo Tribunal a quo para sustentar aquele julgamento da matéria de facto, constata-se que as conclusões chamadas à colação são ostensivamente contraditórias e assumem especial relevância para a condenação de que a Recorrente foi objeto.
H. Por um lado, o Tribunal a quo dá como assente que a atuação alegadamente negligente da Recorrente foi causa direta e necessária da perda do testículo direito do menor e, não obstante, considera como não demonstrado que se a Recorrente agisse de modo consentâneo com a leges artis, ainda assim, o menor não teria perdido o testículo direito.
I. Concretiza o julgador de primeira instância, em sede de motivação, que “não se pode afirmar com certeza absoluta que se o ofendido tivesse sido operado o testículo ainda era teria sido recuperado, já que isso dependeria das horas de evolução da doença, ou seja do tempo durante o qual o testículo se viu privado de fluxo sanguíneo, considerando que tudo aponta para que a torção se tenha dado cerca das 22h00.” (sic).
J. Para que se possa aferir a responsabilidade civil extracontratual, têm de estar preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil, nomeadamente, tem de existir o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante a título de dolo ou mera culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano verificado [Cód. Civ. 483.º].
K. in casu, não se revela possível estabelecer um nexo de causalidade entre a alegada atuação ilícita da Recorrente e dano constatado [perda do testículo].
L. A inobservância de um dos pressupostos da efetivação da responsabilidade civil faz cair a possibilidade da sua responsabilização cível.
M. A decisão impugnada laborou, ainda, em erro notório na apreciação da prova.
N. A Recorrente agiu, em face dos elementos de prova carreados para os Autos, de modo isento de crítica, por consentâneo com as leges artis e atenta a sua condição de médica interna da especialidade de cirurgia geral.
O. O Tribunal a quo, sem qualquer fundamento percetível, com possibilidade de aferição no aresto que produziu, vem sustentar que “(...) tudo aponta para que a torção se tenha dado cerca das 22h00.”.
P. Considerando o ponto 1 dos factos provados, resulta unicamente demonstrado que, “No dia 25 de julho de 2014, a hora não concretamente apurada, mas à noite, depois do jantar, (...), criança com 12 anos de idade à data, sentiu-se mal, com dores nos testículos, dores na barriga, náuseas, vómitos e diarreia”.
Q. Analisada a fundamentação apresentada para sustentar esta factualidade esta remete para o teor da documentação de fls. 35 a 48 e 58 a 74 dos Autos, conjugada com as declarações da Recorrente.
R. Em momento algum há alusão às horas referenciadas na Sentença, nem se pode concluir naqueles termos pelo teor dos depoimentos prestados, conjugados com os documentos dos Autos.
S. A Recorrente, para além da observação que efetuou ao menor, apresentou hipóteses de diagnóstico compatíveis com os sinais e sintomas manifestados por este, na sequência dos resultados dos adequados e pertinentes exames complementares de diagnóstico que requereu.
T. Da interpretação conjugada dos elementos clínicos que obteve, resultou a impossibilidade de estar perante uma torção testicular em evolução.
U. A Recorrente manteve o menor em observação clínica especializada no Serviço de Observação Pediátrico, o que resultou de partilha de informação com a médica especialista de cirurgia geral Dra. (…), sua tutora.
V. Não realizou uma ecografia ao menor considerando a sua situação clínica, traduzida numa melhoria subjetiva relevante e, por outro lado, por não existir radiologista em presença física de serviço, estando apenas disponível a partir das 8h00 da manhã.
W. A Recorrente não dispunha da possibilidade de realizar ao menor uma ecografia de urgência em tempo útil, estando o médico radiologista a exercer a sua atividade em regime de prevenção no Hospital de Elvas.
X. No decurso do internamento em SO de Pediatria não chamou a cirurgiã de serviço pela circunstância de não ter sido também ela chamada por elementos daquele serviço e pelo facto do menor ter tido melhorias subjetivas e encontrarem-se resolvidas as queixas que o trouxeram ao serviço de urgência.
Y. A Recorrente não descansou sobre a dúvida e, com decisão partilhada com a sua tutora, colocou a criança em ambiente de apertada vigilância num Serviço com Pediatra e Enfermagem treinada em Pediatria.
Z. Considerando os elementos constantes do processo clínico sabe-se que houve uma torção testicular, mas não é possível determinar o seu início e quando se completou, se antes, durante ou após a observação clínica da Recorrente.
AA. Do teor do documento de fls. 63 dos Autos conclui-se que, aquando da passagem de turno, a Dra. (...), tutora da Recorrente e que com esta se encontrava de urgência, não sentiu necessidade de corrigir a sua decisão, validando-a.
BB. Mesmo em situação de torsão não intermitente, antes das 12 horas, havia hipótese de sucesso cirúrgico se fosse operado quando a tutora e a outra equipa cirúrgica tiveram contacto com o caso [Cfr. fls. 16 da Sentença].
CC. O facto de dois cirurgiões, a Dra. (...), que saía de urgência, e a Dra. (...), que entrava de urgência, ambas especialistas, não terem pedido ecografia quando esta já era possível ser realizada, só pode ser interpretado como, não só validar a atuação da Recorrente, como se pode inferir que não aceitaram a hipótese de diagnóstico de torsão do cordão espermático, primeira hipótese colocada por esta e que veio mais tarde a verificar-se.
DD. A Dra. (...), vem mesmo a assumir a hipótese de orquiepididimite, diagnóstico colocado pela Dra. (…), então médica interna de 6.º ano, que integrou a equipa chefiada pela Dra. (...), uma vez que medicaram o menor com antibiótico, que não trata a torsão do cordão, mas apenas a hipótese de infeção bacteriana [Cfr. fls. 62 e 65 dos Autos].
EE. A ecografia diagnostica a existência de isquemia mas não o tempo de evolução.
FF. Pelo que, revela-se impossível saber quando a situação clínica se tornou realmente irreversível.
GG. As médicas especialistas em cirurgia geral, Dra. (...) e Dra. (…), afirmaram pela inexistência de clínica sugestiva de torção testicular aquando da observação do menor.
HH. A Recorrente, considerando os conhecimentos da medicina e a sua condição de médica interna da especialidade de cirurgia geral, perante os sinais e sintomas evidenciados pelo menor aquando da realização do seu exame objetivo, conjugado com os elementos complementares de diagnóstico que requereu, agiu de acordo com as leges artis, sendo sufragada a sua conduta pelas colegas especialistas que, tendo por referência os mesmos dados clínicos que percecionaram e a posterior observação clínica em que participaram, concluíram por uma atuação correta da Recorrente, afastando, inclusive, a hipótese de torção testicular que esta apresentou com uma das hipóteses de diagnóstico.
IV. Do Pedido
Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, sempre do mui douto suprimento desse Venerando Tribunal Superior, requer-se que seja revogada a decisão recorrida no que respeita à condenação em matéria cível de que a Recorrente foi objeto, sendo substituída por Acórdão absolutório atento os fundamentos plasmados no âmbito do presente Recurso que habilitam e sustentam a pretendida decisão.
Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal.
B.1 – a) – Teor do despacho recorrido de 24-10-2018:
«Ref. 30390258:
Requer a arguida que se ordene a repetição da sua notificação do despacho que designou data para a realização da audiência e bem assim para contestar e apresentar prova. Alega, para tanto, que não recebeu a notificação realizada nestes autos.
O Ministério Público pugna pelo indeferimento da sua pretensão. Cumpre decidir.
A fls. 160 dos autos a arguida prestou TIR e indicou como domicílio a (…). Consta igualmente do TIR que a arguida ficou ciente de que “…as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada por si indicada, excepto se comunicar outra…”.
A arguida foi notificada da acusação na morada supra indicada (cfr. fls. 193). Recebida a acusação e designada data para a realização da audiência, foi a
arguida notificada para a mesma morada – cfr. 230.
Alega agora a arguida que não lhe foi entregue a notificação. Junta uma declaração, onde consta “não haver memória” de ter sido ali recebida essa notificação.
Ora, o art.º 113.º do CPP disciplina a matérias das notificações.
No caso em apreço, a notificação foi realizada por via postal simples, com prova de depósito, conforme prevê o citado art.º 113.º do CPO, pelo que a notificação produziu os seus efeitos (art.º 113.º, n.º 3 do CPP).
Efetivamente, a introdução da via postal simples, como modalidade de notificação ao arguido, foi considerada como justificada pelo legislador, atento o dever de o arguido prestar termo de identidade e residência e de desta prestação decorrer a obrigação de não mudar de residência, nem dela se ausentar por mais de cinco dias, sem comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrado.
Acresce que o Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 16/2010, ao decidir não julgar inconstitucionais “ as normas constantes dos art.113.º, n.º 9, e 313.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual o arguido não tem de ser notificado por contacto pessoal do despacho que designa data para a audiência de julgamento, podendo essa notificação ser efectuada por via postal simples para a morada indicada pelo arguido no termo de identidade e residência”, consignou, designadamente, o seguinte: « … não se pode dizer a respeito desta forma de notificação que a mesma não é idónea a transmitir o ato notificando ao conhecimento do destinatário. E muito menos se pode dizer que a notificação em questão seja realizada relativamente a arguidos que nem sequer conhecem formalmente a pendência de um procedimento criminal contra si – como, aliás, sucedeu na maioria dos casos acima referidos que foram submetidos ao crivo do TEDH. Pelo contrário, tenha-se presente que a solução legal da notificação por via postal simples pressupõe sempre o prévio contacto pessoal do arguido com o processo, consubstanciado, pelo menos, na respectiva constituição como arguido e na respectiva sujeição a termo de identidade e residência. Por outro lado, o receptáculo postal para o qual é remetida a notificação pelo funcionário judicial e no qual é realizado o depósito pelo distribuidor postal é exclusivamente escolhido e indicado pelo próprio arguido. É certo que não ficam cobertas as situações em que o arguido, por qualquer motivo (v.g. por ter mudado de residência, por se ter ausentado temporariamente, por desleixo) deixa de aceder ao referido receptáculo postal, sem que previamente comunique essa situação ao tribunal. Mas o não conhecimento pelo arguido do ato notificado nestas situações é imputável ao próprio arguido, uma vez que, a partir da prestação do termo de identidade e residência, passou a recair sobre ele o dever de verificar assiduamente a correspondência colocada no receptáculo por si indicado e de comunicar ao tribunal qualquer situação de impossibilidade de acesso a esse local. Se o Estado está obrigado a diligenciar pela notificação dos arguidos, nesta modalidade, estes também têm de tomar as providências adequadas a que se torne efectivo esse conhecimento. Este é um dever compatível com o seu estatuto de sujeito processual, não podendo esta solução ser acusada de estabelecer um ónus excessivo ou desproporcionado que seja imposto aos cidadãos suspeitos da prática de crimes, atenta a facilidade do seu cumprimento, perante a importância dos fins que visa atingir. Finalmente, e ainda que as garantias previstas para uma dada fase processual não possam ser completamente postergadas com base na invocação de garantias previstas para a fase processual subsequente, não se pode deixar de relembrar que a defesa do arguido ausente é sempre assumida pelo defensor e, que nesse caso, a lei exige a notificação da sentença ao arguido por contacto pessoal, estando assim minimamente acauteladas as garantias de defesa, incluindo o direito ao recurso (artigos 333.º, n.ºs 5 e 6, e 334.º, n.º 4, do CPP).».
Dir-se-á ainda que a jurisprudência e alguma doutrina tem considerado como válida e eficaz a notificação efectuada por via postal simples, ainda que a carta não tenha sido depositada por inexistência de receptáculo (vide a título de exemplo o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 4-06-2015, disponível em www.dgsi.pt.
Em conclusão, cumpridos os preceitos aplicáveis às notificações, tendo a arguida sido notificada por via postal simples, com prova de depósito para a morada que a própria indicou no TIR, tem-se por regularmente notificada, pelo que a sua pretensão deverá ser indeferida.
Sempre se dirá, ainda, que o I. Mandatário da arguida foi igualmente notificado, nos termos legais, pelo que também, nessa parte, foram salvaguardadas as garantias de defesa da arguida, dado que a apresentação de contestação é um acto praticado por advogado e não pela própria arguida.
Em face do exposto e ao abrigo dos preceitos legais supra citados, indefiro o requerido.
Notifique.
Portalegre, 24 de Outubro de 2018
«Discutida a causa, e com interesse para a decisão a proferir indiciam-se, para além do que consta da acusação, os seguintes factos:
1) Se a arguida Dra. (...) tivesse actuado para que a situação do (...) fosse tratada com a urgência que merecia, permitindo, assim, a aplicação terapêutica adequada – tratamento cirúrgico urgente – a perda do testículo direito poderia não se ter verificado;
2) Ao não ter diligenciado para que o menor fosse operado com urgência, causou a arguida a perda do testículo direito do menor, resultado que não previu, mas devia ter previsto;
3) A arguida actuou com desconsideração e violação das regras pelas quais se pauta o exercício da profissão médica, não tendo ministrado ao doente, atempadamente, a terapêutica adequada – tratamento cirúrgico urgente – e também não tendo chamado a médica-cirurgiã de serviço nessa noite para que esta pudesse realizar a cirurgia de urgência, já que a arguida era interna;
4) A perda do testículo direito do (...) foi consequência directa e necessária das omissões por parte da arguida das precauções e cautelas elementares das legis artis – confirmar ou descartar a hipótese de diagnóstico mais urgente -, de que resultou a perda do testículo direito do menor, e que só ocorreu por via dessas omissões;
5) A arguida sabia que ao não encaminhar o menor para cirurgia urgente, para reparar a torção testicular, o resultado poderia ser a perda do testículo do menor, uma vez que sabia que a consequência de uma torção testicular não tratada é a perda do testículo;
6) A perda do testículo poderia não se produzir caso o comportamento da arguida fosse cauteloso e tivesse diligenciado pela realização dos exames complementares de diagnóstico que estavam indicados para o quadro clínico apresentado pelo doente, como fosse a ecografia, bem como diligenciado pela realização da cirurgia que se impunha, em face do diagnóstico por si equacionado.
Os factos supra descritos, conjugados com os demais que constam da acusação poderão configurar a prática pela arguida do crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art.º 148.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal.
A acusação imputada à arguida a prática de dois crimes dolosos (cfr. art.º 150.º, n.º 2 e 144.º, al. a) e b), ambos do Código Penal, fazendo-se igualmente referência ao disposto no art.º 14.º, n.º 3 do Código Penal. Sucede que a verificação do dolo traduzir-se-á na alegação de factos concretos susceptíveis de o demonstrar. Segundo GERMANO MARQUES DA SILVA, pode definir-se o dolo como a vontade consciente de praticar um facto que preenche um tipo de crime, constando a vontade dolosa de dois momentos: a) A representação ou visão antecipada do facto que preenche um tipo de crime (elemento intelectual ou cognoscitivo); e b) A resolução, seguida de um esforço do querer, dirigido à realização do facto representado (elemento volitivo). Não basta o conhecimento de que o facto preenche um tipo de crime, sendo necessária a própria consciência da ilicitude, pois nos expressos termos do art. 16°, a falta de consciência da ilicitude exclui o dolo (in Direito Penal Português, vol. II, p. 162).
Mas o dolo do tipo exige ainda a verificação no facto de uma vontade dirigida à sua realização (in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, pp. 334 e ss). O dolo deve, assim, abarcar todos os elementos objectivos do tipo.
Na acusação sub judice consta no seu ponto 24 que “a arguida sabia que ao não proceder à operação com urgência do menor, ou não encaminhar o menor para cirurgia urgente, para reparar a torção testicular, que o resultado seria a perda do testículo do menor, uma vez que o resultado de uma torção testicular não tratada é a perda do testículo.” E no ponto 25, “A arguida sabia que a sua actuação, nos termos supra descritos, era proibida e punida por lei penal.”.
Conclui-se que a acusação é omissa quanto ao elemento volitivo do dolo, no que concerne ao crime de ofensas. E totalmente omissa quanto ao crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos com violação das legis artis, pois que deveria ali ter consignado uma formulação do género: “A arguida agiu de forma livre, voluntaria e conscientemente, omitindo procedimentos que a boa prática médica impunha, o que bem sabia, representando como possível que com tal conduta criava um perigo para a integridade física do menor, como seja a perda do testículo, conformando-se com a verificação desse perigo”.
Faltando na acusação a descrição de factos consubstanciadores do dolo, tem a doutrina e a jurisprudência indicado dois caminhos possíveis: o recurso ao mecanismo da alteração de factos (quando da discussão da causa resultem provados esses factos); a absolvição.
Contudo, no caso em apreço, entende-se que da discussão não resultaram esses factos, mas tão somente os que se elencaram supra, os quais são consubstanciadores da negligência. Daí que se tenha deixado expresso que, em nosso entender, poderá estar indiciada a prática pela arguida, não dos crimes imputados na acusação, mas sim o crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art.º 148.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal.
Ora, se da alteração de factos resultar a imputação de crime de diverso, atento o previsto no art.º 1.º, al. f) do CPP, estamos perante uma alteração substancial, sujeita ao regime previsto no art.º 359.º do CPP. Acresce que os factos supra elencados não são autonomizáveis do objecto do processo. Efectivamente, os factos são autonomizáveis quando podem, por si só, e portanto independentemente dos factos que formam o objecto do processo, serem susceptíveis de fundamentar uma incriminação autónoma em face do objecto do processo (FREDERICO ISASCA, Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância no Processo Penal Português, Coimbra, Almedina, 1992, p. 203). Por outras palavras, os factos são autonomizáveis quando podem constituir objecto de novo processo, independentemente do resultado do processo em curso. Pelo contrário, os factos não são autonomizáveis quando formam juntamente com os constantes da acusação ou da pronúncia, quando a houver, uma tal unidade de sentido que não permite a sua autonomização (FREDERICO ISASCA, ob. e loc. cit.).
No caso concreto, os factos enunciados constituem factos não autonomizáveis, pois a negligência (ou o dolo) não pode, por si só, constituir objecto de um processo penal autónomo (cfr. CRUZ BUCHO, Alteração Substancial dos factos em Processo Penal, in www.trg.mj.pt).
Assim sendo, tendo por base o regime jurídico supra exposto comunica-se ao Ministério Público, à arguida e à assistente a alteração substancial de factos enunciada, para que, em dez dias, declarem se estão de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos (cfr. art.º 359.º, n.º 3 do CP).
Para continuação da presente audiência de discussão e julgamento designo o próximo dia 09 de Julho de 2020, pelas 14 horas.-
Do antecedente despacho foram todos os presentes notificados do que disseram ficar cientes.»
«(…) No despacho proferido em audiência de julgamento no dia 25.06.2020 a Mm.ª Juiz concluiu, além do mais que “a acusação é omissa quanto ao elemento volitivo do dolo, no que concerne ao crime de ofensas. E totalmente omissa quanto ao crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos com violação das legis artis, pois que deveria ali ter consignado uma formulação do género: “A arguida agiu de forma livre, voluntaria e conscientemente, omitindo procedimentos que a boa prática médica impunha, o que bem sabia, representando como possível que com tal conduta criava um perigo para a integridade física do menor, como seja a perda do testículo, conformando-se com a verificação desse perigo”.
Nesse seguimento, considerou ainda que da discussão da causa resultaram indiciados factos que poderão integrar, não os crimes imputados na acusação, mas sim o crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art.º 148.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal.
Entendeu-se ainda que a alteração de factos daí decorrente resulta na imputação de crime de diverso, atento o previsto no art.º 1.º, al. f) do CPP, pelo que tratando-se de uma alteração substancial, relativa a factos não autonomizáveis, foi dado cumprimento ao disposto no art.º 359.º nº3 do CPP.
Vejamos,
Salvo o devido respeito, afigura-se que a acusação imputa factos concretos que permitem o preenchimento do elemento cognoscitivo e volitivo do tipo subjectivo de ambos os ilícitos pelos quais a arguida vinha acusada, a saber:
- 1 crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos com violação das leges artis, por omissão, previsto e punido pelo artigo 150.º, n.º 2 e com referência aos artigos 10.º, 14.º, n.º 3, 26.º, todos do Código Penal e
- 1 crime de ofensas à integridade física, por omissão, previsto e punido pelo artigo 144.º al. a) e b), com referência aos artigos 10.º, 14.º, n.º 3, 26.º, todos do Código penal;
Salvo melhor opinião, no tocante ao crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos com violação da legis artis, estão descritos factos que consubstanciam uma conduta dolosa por banda da arguida, quer relativamente à violação das leges artis, quer relativamente à criação do perigo de ofensa grave à integridade física.
Já no tocante ao crime de ofensa à integridade física grave estão também descritos factos integrantes do dolo quer quanto ao tipo fundamental (art.143.º, n.º1 do Código Penal), quer relativamente às consequências que o qualificam, isto é, o resultado grave, previsto no art.º 144º do CP.
E tal entendimento assenta na leitura do teor dos pontos 16 a 25 da acusação que por economia processual se dão aqui por integralmente reproduzidos.
Não se desconhecendo a jurisprudência fixada pelo AUJ nº 1/2015, do STJ, o certo é que entendemos que no caso não se verifica nenhuma omissão do elemento subjectivo dos referidos tipos legais, uma vez que constam da acusação factos suficientes para preencher os respectivos requisitos, como se alcança da leitura dos mencionados art.ºs 16º a 25º, de onde se extrai quer o elemento intelectual (conhecimento do carácter ilícito da conduta) quer volitivo (vontade de realização dos tipos de ilícito).
Efectivamente, afigura-se que o dolo quanto a ambos os tipos de crime se encontra suficientemente descrito ainda que de forma não individualizada e sem recurso às fórmulas convencionais (ex: “agiu a arguida de forma deliberada, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal).
De facto, como também se escreveu no Acórdão do STJ de 28.03.2019 – Proc. 373/15.0JACBR.C1.S1: “….não há fórmulas sacramentais sendo possível transmitir o "dolo de culpa" ou "tipo-de-culpa dolosa" de diferentes formas desde que inequivocamente signifiquem uma atitude, revelada no facto, de contrariedade ou indiferença do agente perante o dever-ser jurídico-penal”.
Pelo que em suma entendemos que não se verifica a mencionada ausência/insuficiência na descrição do elemento subjectivo dos crimes imputados.
Noutro passo do despacho proferido conclui a Mmª Juiz que da discussão da causa resultaram indiciados factos que poderão integrar, não os crimes imputados na acusação, mas sim o crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art.º 148.º, n.ºs 1 e 3 do Código Penal.
Entendeu-se ainda que a alteração de factos daí decorrente resulta na imputação de crime de diverso, atento o previsto no art.º 1.º, al. f) do CPP, pelo que tratando-se de uma alteração substancial, relativa a factos não autonomizáveis, foi dado cumprimento ao disposto no art.º 359.º nº3 do CPP.
Salvo o devido respeito por opinião diversa, não vislumbramos qualquer alteração substancial dos factos descritos na acusação.
Alteração substancial é aquela de que resulta a imputação de crime diverso ou o agravamento das sanções penais aplicáveis – art.º 1º, alínea f) do CPP.
Nas doutas palavras expendidas no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto , proferido em 04.03.2020, no Processo 127/18.2GAVFR.P1: “A alteração substancial dos factos pressupõe, pois, uma diferença de identidade,de grau, de tempo ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual , e que determine a imputação de crimediverso ou a agravação dos limites máximos as sanções aplicáveis.»
À luz destes ensinamentos, entendemos que no caso concreto, a alteração de factos comunicada pela Mmª Juiz não comporta qualquer alteração substancial.
Desde logo, porque os factos comunicados pela Mmª Juiz susceptíveis de serem configurados como alteração aos factos descritos na acusação não bulem com o contexto de espaço, tempo ou modo de cometimento dos factos descrito na acusação, já que estamos perante o mesmo facto histórico; o mesmo pedaço de vida; o mesmo evento naturalístico.
Por outro lado, o bem jurídico protegido por ambos os ilícitos é o mesmo.
Não havendo modificação do bem jurídico protegido que constava da acusação, nem derivando da alteração de factos preconizada um facto naturalístico diferente do constante da acusação, não se verifica a perda da “imagem social” do facto primitivo, ou seja, não se verifica a perda da identidade do objecto do processo.
Na verdade, a modificação em causa não importa qualquer alargamento do objecto do processo, pelo contrário.
De facto, a jurisprudência vem entendendo que “Uma alteração substancial dos factos significa uma modificação estrutural dos factos descritos na acusação, de modo a que a matéria de facto provada seja diversa, com elementos essenciais de divergência que agravem a posição processual do arguido ou a tornem não sustentável, fazendo integrar consequências que se não continham na descrição da acusação” - cfr. ac S.T.J. de 21-3-2007, www. dgsi.pt (negrito e sublinhado nosso).
Assim, não há alteração substancial sem repercussões agravativas para o arguido.
Ora tal agravamento também não se verifica no caso concreto, considerando que a alteração comunicada, para além de preservar todo o contexto em termos de tempo, espaço e modo da prática dos factos tal como descrita na acusação apenas poderá importar uma alteração da qualificação jurídica de um crime de ofensas dolosas (Art.º 144º alínea a) e b) do CP) para um crime de ofensas negligente (Art.º 148º nº1 e 3 do CP), tendo este moldura penal muito inferior.
Deste modo, a alteração preconizada terá por efeito, não a agravação, mas diminuição do limite máximo das sanções aplicáveis.
Não existe pois, qualquer prejuízo para a defesa do arguido, antes resulta um benefício.
A nosso ver, a modificação factual comunicada enquadra-se numa alteração não substancial dos factos constantes da acusação, uma vez que não descaracteriza o quadro factual da acusação nem belisca a identidade do processo.
Da mesma modificação factual resulta ainda uma alteração da qualificação jurídica (com diminuição do limite máximo das sanções aplicáveis) pelo que apenas se impunha que houvesse lugar à comunicação prevista no artigo 358.º, n.º 1 e nº3 do Código do Processo Penal ficando desse modo plenamente salvaguardados o exercício do contraditório e o direito de defesa da arguida.
Ao prosseguimento dos autos nos moldes referidos não obstaria sequer a falta de queixa tempestiva por parte do assistente (considerando a convolação de um crime público num crime semi-público - Neste sentido veja-se a jurisprudência constante do Ac. da Relação de Coimbra de 2016-05-11 (Processo n.º 771/13.4GCVIS.C1) cujo sumário dispõe: “: II- Iniciado o processo penal para investigação de um crimepúblico (furto qualificado), não se torna necessária a dedução de queixa pelo titular desse direito se, após o julgamento, os factos apurados de gradarem o referido ilícito em concurso efectivo de dois crimes semi-públicos(furto simples e violação de domicílio)”.
Assim requer-se seja julgada não verificada a alteração de factos substancial comunicada, por não estarem verificados os seus pressupostos legais, havendo antes lugar à comunicação a que alude o art.º 358º nº1 e 3 do CPP.»
«(…) reconhecendo a existência de uma alteração substancial dos factos, considerando os que, originariamente, foram plasmados na Acusação, classificando-os como sendo não autonomizáveis, sufragar a mesma tese, atenta a fundamentação aduzida naquele âmbito, declarando que não dá a sua anuência para a continuação do Julgamento pelos novos factos.»
«Unidade Local de Saúde do Norte Alentejano E.P.E., demandada nos autos à margem referenciados, notificada do douto despacho proferido acerca da alteração substancial dos factos verificada após produção de prova, vem, no uso da faculdade que lhe foi conferida, dizer que não pode concordar com a prossecução do julgamento pelos novos factos.
Com efeito a acusação encontra-se nos precisos termos descritos pelo Tribunal no despacho em análise, competindo exclusivamente ao Ministério Público conduzir a investigação e deduzir a acusação, delimitando e fixando o objeto do processo. Extrai-se pois da doutrina e jurisprudência que os poderes de cognição do juiz se encontram limitados, tendo este que se ater aos factos que concretamente consubstanciam a narrativa do libelo acusatório.
Caberia pois, ao Ministério Público, uma adequadae competente descrição da peça processual da sua competência, situação que não alcançou.
Motivos que sustentam a posição da demandada ULSNA, E.P.E. de não concordância com a alteração substancial dos factos que ora decorreu da produção de prova em sede de audiência de discussão e julgamento.»
«Pese embora as razões aduzidas pelo Ministério Público, mantemos o entendimento manifestado no despacho prolatado em sede de audiência de discussão e julgamento.
Considerando que não foi obtido o acordo para a continuação da audiência para apreciação dos novos factos comunicados através do citado despacho, mantenho a data já designada para a leitura da sentença.
Notifique.»
***
1) No dia 25 de Julho de 2014, a hora não concretamente apurada, mas à noite, depois do jantar, (...), criança com 12 anos de idade à data, sentiu-se mal, com dores nos testículos, dores de barriga, náuseas, vómitos e diarreia;
2) Deu entrada no Hospital de (…) à 1 hora e 57 minutos do dia 26 de Julho de 2014;
3) Na triagem, pelas 2 horas e 5 minutos, apresentou como queixas “dor testicular à direita, segundo o pai o testículo apresenta-se mais tenso. Refere também dor na fossa ilíaca com vómitos desde esta noite”;
4) O (…) foi atendido pela arguida que no relatório de urgência escreveu, após ter conversado e procedido ao exame físico do menor, “Vem ao SU por quadro de dor testicular direita, dor abdominal a nível da FID, náuseas e vómitos, iniciados após o jantar de forma relativamente súbita. A criança terá estado a brincar durante o dia sem qualquer traumatismo testicular ou abdominal. Após o jantar iniciou dor testicular à direita, de forma súbita, associada a edema e endurecimento do testículo, e concomitantemente iniciou dor abdominal a nível da FID, do tipo moinha, sem irradiação, factores de alívio ou de agravamento. Não fez qualquer tipo de medicação. Associado a este quadro álgico iniciou também náuseas e vómitos repetidos, e teve uma dejecção diarreica”;
5) Quanto ao exame físico, a arguida escreveu no relatório de urgência “- Abdómen: não distendido, RHA (+); mole, depressível, doloroso à palpação no FID mas sem reacção peritoneal franca; - Testículo direito edemaciado, tenso, muito doloroso à palpação, assim como a porção distal do cordão espermático, que no restante trajecto mais proximal não está edemaciado nem doloroso.”;
6) Como hipóteses de diagnóstico, considerou a arguida o seguinte: “# torção testicular direita? # Apendicite aguda?”;
7) A arguida receitou ao (...) os medicamentos Metoclopramida; Paracetamol de 500 mg; Metamizol de 1g;
8) A arguida ordenou a realização de análises clinicas (HG + Coag + BQ) e ordenou a realização de um raio-x ao tórax e manteve o (...) internado em SO pediátrico para ser reavaliado de manhã;
9) A arguida não ordenou a realização de uma ecografia escrotal para confirmar ou descartar a hipótese de torção testicular, nem chamou a cirurgiã de serviço, atendendo a que a arguida, à data dos factos, era interna de especialidade do 4.º ano;
10) O Hospital de (…) não dispõe de serviço de radiologista 24 horas, sendo que nessa madrugada, quem estava de serviço em regime de prevenção era uma médica que não se encontrava fisicamente no Hospital de (…);
11) Assim, e como suspeitava de uma torção testicular, devia a arguida ter chamado a médica-cirurgiã, para que o (...) pudesse ser operado, no mais curto período de tempo, e se resolver a questão da torção testicular, que apenas se resolve com cirurgia no espaço de 6 horas após o início da dor;
12) No dia 27 de Julho de 2017 foi efectuada Ecografia Escrotal que apurou que o “testículo direito de dimensões ligeiramente aumentadas, contornos regulares e eco estrutura heterogénea com zonas hipo e hiperecogénicas e sem vascularização mesmo no power doppler, salienta-se localização superior do testículo direito na bolsa escrotal e imagem sugestiva de torção do cordão espermático. Aspectos imagiológicos de torção do cordão espermático direito com consequente ausência de vascularização do testículo direito, a merecerem integração no contexto clinico do examinado.”;
13) Como a evolução da torção tinha mais de 48 horas, foi dada alta ao (...), com analgésicos e indicação para ser acompanhado por médico de família;
14) O (...) fez nova ecografia escrotal a 30 de Julho de 2014, já no Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, na Amadora, que voltou a confirmar o diagnóstico de torção testicular, tendo o mesmo sido alvo de cirurgia para retirar o testículo direito e colocação de prótese de 30cc no dia 10 de Dezembro de 2014;
15) Por não ter sido operado na noite de 26 de Julho de 2014, data em que foi observado pela arguida, o testículo do (...) sofreu um extenso enfarte hemorrágico, atrofiou por não ter fluxo vascular e teve de ser retirado;
16) A arguida deveria ter começado por descartar a hipótese de diagnóstico de torção testicular, que ela própria admitiu como possível que o menor estivesse a sofrer;
17) A arguida Dra. (...), em obediência ao cuidado a que estava obrigada e de que era capaz tinha a obrigação, em face à suspeita que tinha do menor estar a desenvolver uma torção testicular, de ter determinado a realização de uma ecografia escrotal, ou, caso não houvesse tempo útil para tal, tinha a obrigação de ter chamado a médica-cirurgiã para efectuar cirurgia de urgência ou encaminhar o menor para Hospital onde se pudesse realizar a cirurgia de urgência;
18) Se a arguida Dra. (...) tivesse actuado para que a situação do (...) fosse tratada com a urgência que merecia, permitindo, assim, a aplicação terapêutica adequada – tratamento cirúrgico urgente – a perda do testículo direito poderia não se ter verificado;
19) Ao não ter diligenciado para que o menor fosse operado com urgência, causou a arguida a perda do testículo direito do menor;
20) A arguida actuou com desconsideração e violação das regras pelas quais se pauta o exercício da profissão de medicina, não tendo ministrado ao doente, atempadamente, a terapêutica adequada – tratamento cirúrgico urgente – e também não tendo chamado a médica-cirurgiã de serviço nessa noite para que esta pudesse realizar a cirurgia de urgência;
21) A perda do testículo direito do (...) foi consequência directa e necessária das omissões por parte da arguida das precauções e cautelas mais elementares das leges artis – confirmar ou descartar a hipótese de diagnóstico mais urgente e grave -, de que resultou a perda do testículo direito do menor, e que só ocorreu por via dessas omissões;
22) A arguida sabia que ao não proceder à operação com urgência do menor, ou não encaminhar o menor para cirurgia urgente, para reparar a torção testicular, que o resultado poderia ser a perda do testículo do menor, uma vez que sabia que o resultado de uma torção testicular não tratada é a perda do testículo;
23) (...), no período de admissão do lesado nas urgências, desempenhava a sua actividade técnico-profissional nas instalações da ULSNA;
24) A ULSNA é um estabelecimento público dotado de autonomia administrativa, financeira e patrimonial com natureza empresarial, integrado no Serviço nacional de Saúde, que, na data supra indicada, facultava à arguida (...) os recursos técnicos, económicos e organizacionais para a prática da medicina, exercendo poderes de autoridade, direcção ou fiscalização sobre a actividade praticada no recinto hospitalar;
25) Uma torção do testículo ocorre quando este retorce sobre o seu cordão espermático, interrompendo-se assim o fluxo sanguíneo, tendo como sintomas gerais e primários as náuseas, vómitos e dores abdominais, com uma consequente dor no escroto, acompanhada de aumento do volume do testículo;
26) Perante um diagnóstico de torção testicular, mesmo que não confirmado, impõe-se a imediata submissão do paciente a cirurgia que deverá ser realizada no prazo máximo de seis horas após o início dos sintomas;
27) A torção testicular configura um caso de emergência cirúrgica, na medida em que só com uma intervenção cirúrgica se pode restabelecer a circulação sanguínea e evitar a necrose dos tecidos que leva de 6 a 8 horas a suceder e a consequente extirpação do testículo;
28) A arguida referiu à demandante que, confirmando-se a torção testicular, haveria que proceder, de imediato, a uma intervenção cirúrgica;
29) Se a cirurgia tivesse sido realizada nas primeiras seis horas, após o início da dor, o lesado tinha 90% de probabilidade de conservar o testículo, percentagem que desceria para 50% após as primeiras doze horas e para 10% após as primeiras vinte e quatro horas;
30) Desde o dia 25 de Julho de 2014 até à data em que foi intervencionado, o lesado sofreu dores físicas na zona testicular afectada, que o deixaram dependente da toma de analgésicos para não as sentir;
31) Quando recebeu a notícia de que a única forma de debelar o seu mal passava pela amputação do testículo direito, o lesado foi tomado por uma grande ansiedade, transtorno, revolta e irritação que se apoderaram dele tanto no período que antecedeu a realização da cirurgia como no que se lhe seguiu;
32) No pós-alta da cirurgia a que foi sujeito, o lesado sentiu fortes dores físicas na região intervencionada, que se prolongaram pelos trinta dias subsequentes, necessários à sua recuperação;
33) Dores estas que o lesado teve de superar com a toma de analgésicos, como Paracetamol 1000 mg ou Ibuproferno 600 mg;
34) No mês de recuperação, o lesado sentiu grandes dificuldades de adaptação à prótese, a qual alterou a sua rotina e liberdade de movimentos;
35) Por recomendação clínica, durante esse período, teve de ficar de repouso em casa e sem realizar exercícios físicos;
36) A remoção do testículo causou a diminuição da autoconfiança, decorrente da amputação ao que foi sujeito;
37) Nas dores físicas e desconforto/incómodo que sente quando se enta em determinadas posições e quando a prótese toca na sua roupa interior;
38) No desconforto que sente, em tempo frio, na zona amputada, onde se encontra colocada a prótese;
39) O lesado resguarda-se e protege-se na prática desportiva escolar, com receio de uma pancada na zona testicular, existindo o risco acrescido de infertilidade se o lesado sofrer algum acidente ou doença no outro testículo;
40) A perda do testículo também limitou o lesado ao nível da prática desportiva, estando-lhe interditas, nomeadamente, as artes marciais, a equitação, o motocross e desportos com bicicletas;
41) No período situado entre 26-07-2014 e 27-07-2014 e 09-12-2014 e 10-12-2014 o demandante (...) sofreu incapacidade temporária geral total, estando ainda impedido de desempenhar actividades escolares;
42) Nos períodos situados entre 28-07-2014 e 08-12-2014 e 20-01-2015, o demandante (...) sofreu uma incapacidade temporária geral parcial, limitativa também em relação às actividades escolares, ainda que parcialmente;
43) Entre a data em que foi observado pela arguida e 20-01-2015 (data da cura), o demandante (...) sofreu um quantum doloris de grau 3;
44) O demandante (...), em consequência da perda do testículo sofreu uma incapacidade permanente de 5 pontos, não sendo de admitir a existência de dano futuro;
45) O demandante (...), em consequência da perda do testículo sofreu um dano estético permanente de grau 1;
46) Por força da perda do testículo, o lesado teve de apartar algumas profissões dos seus projectos profissionais, estando, por exemplo, impedido de seguir a carreira militar, por si idealizada antes da amputação;
47) A arguida não tem antecedentes criminais registados.
a) A arguida não fez nada para confirmar ou descartar a hipótese de diagnóstico de torção testicular;
b) Caso tivesse actuado para que a situação do (...) fosse tratada com a urgência que se impunha, o menor não teria perdido o testículo direito;
c) A arguida sabia que a sua actuação era proibida e punida por lei penal;
d) A remoção do testículo direito do lesado traduziu-se na diminuição da fertilidade do lesado;
e) Na redução de sensibilidade na virilha direita;
f) Na preocupação, angústia e transtorno que serão uma constante em todas as cirurgias previstas e/ou necessárias até ao fim da puberdade do lesado para ir adequando a morfologia e tamanho da prótese ao crescimento do mesmo;
g) No complexo de inferioridade que o lesado não tinha e adquiriu com a amputação do testículo direito, por se ter tornado deficiente físico e dependente de uso de prótese para que o dano estético provocado tenha o lesado impacto psicológico e social possíveis na sua vida;
h) Complexo esse que é acompanhado de sentimentos de tristeza, vergonha, insegurança e inibição do lesado, na sua nudez e em conversas ligadas à sua condição física;
i) E faz o lesado esconder-se, tapar-se, evitar situações em que possa ser visto sem roupa interior e isolar-se e resguardar-se o mais possível, sempre que tenha necessidade de se despir;
j) Sempre que a prática de desporto envolva a necessidade de se expor nos balneários masculinos, o lesado inibe-se de os praticar;
k) Sentimentos de inquietação instalaram-se na psique do lesado de que as pessoas se apercebam da sua amputação e teçam comentários de qualquer índole, designadamente jocosos ou de pena, ou o questionem sobre a situação, devassando a sua intimidade;
l) Estes sentimentos têm acompanhado o lesado desde a cirurgia e perdurado até à data, sendo previsível que se mantenham ao longo de toda a sua vida;
m) E esses sentimentos têm tido e estão a ter impacto na vivência de uma adolescência normal pelo lesado, pois fazem dele um jovem excessivamente tímido, introvertido, reservado e cheio de angústias e dúvidas sobre a sua virilidade;
n) Angústias e dúvidas essas que, depois da cirurgia, deixaram o lesado demasiado inseguro e retraído para querer e ter uma namorada;
o) Bem como para iniciar a sua vida sexual;
p) E o fazem sentir-se em desvantagem em relação aos seus pares, por se sentirem fisicamente completos e “normais”, tiveram a segurança e autoconfiança necessárias para não recearem, como sucedeu com o lesado, experimentar, viver e desfrutar da sua sexualidade com outrem;
q) Ao longo dos anos e cada vez mais, o lesado demonstra grande preocupação e ansiedade no tocante à sua vida sexual;
r) Desde que fez a cirurgia para a remoção do testículo, o lesado não arranjou namorada;
s) Antes da amputação do testículo, o lesado era pessoa expansiva, que já havia despertado interesse por namoros e inclusivamente tido namoradas, conquistas entretanto interrompidas e abandonadas pelo complexo de inferioridade masculina e incertezas que a cirurgia lhe incutiu, em relação ao seu corpo e capacidade e desempenhos sexuais futuros.
***
B.2.1 – O objecto do recurso
As balizas do objecto do recurso encontram-se, como se sabe, no teor das suas conclusões, por isso que as questões suscitadas sejam as seguintes:
Pelo Ministério Público:
- A comunicação efectuada pela Mmª não transmitiu uma alteração substancial dos factos constantes da acusação mas apenas uma alteração da qualificação jurídica desses factos – conclusões 3ª a 13ª;
- A alteração dos factos comunicada implica apenas o cumprimento do disposto no art. 358º, nsº 1 e 3 do C.P.P. – conclusões 16ª 20ª.
Pela Unidade Local de Saúde do Norte Alentejano E.P.E.:
- A competência material do tribunal de Portalegre para conhecer dos autos;
- A condenação cível.
Pela arguida no recurso interlocutório:
- A regularidade da notificação para julgamento, para contestar e oferecer prova.
Pela arguida no recurso da decisão final:
- A condenação cível.
Postas as questões desta forma, simples parece ser o objecto dos recursos. No entanto tal simplicidade é apenas aparente. Não só por as questões em si poderem ser discutíveis, também porquanto o julgamento pode não estar, ainda, concluído. Impõe-se, pois, clarificar a ordem de conhecimento das questões colocadas pelos quatro recursos.
Apesar de corrermos o risco de antecipar juízos antes da definição clara da necessidade de concluir que o julgamento está finalizado/não finalizado, nada obsta e tudo aconselha a que se comece pela questão da competência material para conhecer dos presentes autos, depois tornar clara a situação face ao discutido no recurso interlocutório da arguida (...), surgindo a questão da condenação cível como aquela que tem que ficar para final e em função da solução a dar às questões colocadas pelo recurso do Ministério Público.
Assim seguir-se-á o seguinte roteiro:
- A competência material do tribunal de Portalegre para conhecer dos autos;
- A regularidade da notificação para julgamento, para contestar e oferecer prova.
- A comunicação feita pela Mmª Juíza e a alteração substancial dos factos;
- A condenação cível.
A Unidade Local de Saúde do Norte Alentejano, E.P.E., demandada nos autos veio interpor recurso da decisão proferida, arguindo em sede de excepção de incompetência nas suas duas conclusões iniciais que:
«a) O alterado ETAF alargou a competência contenciosa dos Tribunais Administrativos e Fiscais, conferindo-lhe competência exclusiva para conhecer e julgar a matéria de responsabilidade civil peticionada contra entidades do sector público, seja por estas cometidas, seja, pela conduta dos seus agentes/funcionários, desde que, estas últimas, não se consubstanciem em factos da vida meramente privada ainda que durante o horário e instalações de uma entidade do sector público.
b) A aqui recorrente não poderá ser condenada como consequência da atuação por omissão da arguida, sua agente/funcionária, já que como se demonstrou a mesma não cometeu qualquer facto ilícito.»
E nas motivações em remissão para o já afirmado em contestação invoca as seguintes razões para sustentar o seu entendimento:
“O Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002 de 19 de Fevereiro, no seu artigo 4.º, ao precisar a competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, na alínea a) do seu n.º 1 prescreve que compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação dos litígios que tenham por objeto a tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrente de atos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal. E na alínea h) do mesmo preceito se estipula que compete à mesma ordem de tribunais a apreciação de litígios que tenham por objeto a responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos. “
Em contrapartida, o artigo 64.º do novo Código de Processo Civil e os artigos 38.º, n.º 2 e 80.º, n.º 1 da nova Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), estipula que aos tribunais judiciais cabe julgar todas as causas que não estejam especialmente atribuídas a outras espécies de tribunais. Já assim se estipulava no artigo 18.º, n.º 1 da antiga Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), aprovada pela Lei n.º 3/99 de 13/01.
Atendendo a que os factos alegados, que fundamentam a indemnização aqui peticionada ocorreram no Hospital Dr. José Maria Grande de Portalegre, o qual se integra no Serviço Nacional de Saúde (SNS), integrado na Unidade Local de Saúde do Norte Alentejano, E.P.E., pessoa coletiva de direito público de natureza empresarial, criada pelo Decreto-Lei n.º 50-B/2007, de 28 de Fevereiro e atentando que a conduta imputada à arguida e demandada, deve ser considerada integrada na função administrativa do Estado, ficam preenchidas as previsões das alíneas a) e h) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, pelo que a competência para conhecer deste litígio pertence aos tribunais administrativos e fiscais e não aos tribunais comuns dado que estamos em presença de uma relação jurídico-administrativa.
Em consequência, deve ser julgada verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta, em conformidade com o disposto nos artigos 64.º, 96.º, alínea a), 97.º, n.º 1, 98.º, 99.º, n.º 1, 577.º, alínea a), e 578.º, todos do NCPC, e em consequência declarar materialmente incompetente este tribunal para o conhecimento do pedido de indemnização, com a consequente absolvição dos demandados da instância.”
Ora, este ponto de inconformidade é de fácil resolução pois que a recorrente não indica a norma administrativa, civil ou processual civil que afirma que a competência dos tribunais administrativos se alarga para conhecer dos crimes praticados por agentes de serviços públicos em “território administrativo” de pessoas colectivas públicas.
Assim, enquanto tal norma de cariz claramente medieval não ressurgir no ordenamento jurídico português, eventualmente repristinada das defuntas ordenações, teremos que nos ater à circunstância de se estar a julgar um crime e, logo, a tratar da responsabilidade criminal de um “agente do Estado”, cujos factos e responsabilidades criminais, caso se provem, dão lugar a condenação civil decorrente da condenação criminal.
Não se trata, pois, de conhecer da responsabilidade “civil” contratual ou extracontratual por acto ilícito simplesmente civil ou administrativo. Trata-se de conhecer de responsabilidade criminal que, a provar-se, gera responsabilidade civil extracontratual por acto ilícito que é simultaneamente acto criminal.
E tal matéria é da exclusiva competência e deve ser julgada nos competentes tribunais comuns que detenham competência criminal, como o tribunal recorrido claramente tem. E o pedido cível correspondente deve ser deduzido e conhecido no mesmíssimo processo onde é conhecida a matéria crime, como bem salienta o tribunal recorrido.
Nisso é expresso o artigo 71.º do C.P.P. sob a epígrafe “Princípio de adesão” ao determinar que «o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei».
Improcedente, portanto, a invocação de incompetência material do tribunal recorrido para conhecer da matéria cível.
Aquí regem os artigos 313º, nº 2 e 3, 2ª parte, e 196º, n. 1, al. c) do CPP que determina que após a prestação de TIR “as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada no n.º 2, excepto se o arguido comunicar uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrem a correr nesse momento”.
No caso concreto a notificação foi feita para a morada constante do TIR pelo que foi correctamente efectuada.
O que não impede, naturalmente, que a arguida possa fazer prova de que a notificação não foi ali entregue, dessa forma, afastar a presunção legal. E tentou através da entrega da declaração do Hospital de que “não tinham memória” de que a carta lá tenha sido entregue.
Ora, afirmarem que “não tinham memória de ter sido entregue” é diverso de afirmar “não foi entregue”. Pode perceber-se que a entrega de uma só carta a uma determinada pessoa seja acto de difícil memorização, para mais em local de presumível grande afluência de pessoas e correio.
Mas também é certo que incumbe à arguida fazer prova que afaste a presunção legal, não apenas que lance suspeitas sobre a ocorrência do acto. Essa seria a melhor forma de minar o sistema legal vigente se uma simples suspeita pusesse em causa todo o sistema de notificações.
A circunstância de a arguida afirmar não a ter recebido apenas a ela a poderá prejudicar, sendo certo que se trata de prejuízo com origem em acto seu, através da indicação de local muito frequentado e de presumível grande número de comunicações postais, que podem dificultar a recepção do correio através de um menos cuidado tratamento administrativo do mesmo.
Assim se conclui que a arguida foi regularmente notificada para julgamento e se declara improcedente o recurso interlocutório da arguida.
Recordemos que a arguida foi acusada pela prática de
- um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos com violação das leges artis, por omissão, previsto e punido pelo artigo 150.º, n.º 2 e com referência aos artigos 10.º, 14.º, n.º 3, 26.º, todos do Código Penal e
- um crime de ofensas à integridade física, por omissão, previsto e punido pelo artigo 144.º al. a) e b), com referência aos artigos 10.º, 14.º, n.º 3, 26.º, todos do Código penal.
Este teor suscita questões várias, a iniciar na integração do primeiro tipo imputado. Isto porquanto o primeiro tipo penal imputado, o previsto no artigo 150.º, intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, é de um âmbito de aplicação muito discutível (e discutido).
Também porquanto o teor da acusação quanto a tal crime não corresponde bem a um crime doloso clássico e a decisão judicial não é clara quanto ao elemento doloso em falta no caso concreto e para este tipo de crime. Ainda porquanto a acusação já dispõe de factos que bem ficariam num crime negligente, a violação do dever de cuidado e a medida do seu cuidado, designadamente – factos 16 a 21.
E a simples análise da posição da Mmª Juíza dá bem conta das dificuldades práticas das questões abordadas. A uma pensada alteração factual com um inerente crime negligente segue-se a respectiva – mas não inesperada – oposição, com o consequente abandono da alteração proposta e o consequente retorno à matéria da acusação e respectivos crimes dolosos - para mais numa pretendida forma omissiva - e o fim do processo como dependência da acusação pré-existente.
E, a considerar-se que a acusação negligente posterior viola o princípio ne bis in idem, segue-se a impossibilidade dessa acusação e a total impunidade por absolvição crime com uma inexplicável condenação cível já transitada.
Por isso que a acusação nos presentes autos seja o ponto de partida e de chegada de um processo que, também por ela, se tornou “interessante”. Interessante porquanto nasce a qualificar a conduta como se de dois crimes dolosos se tratasse, em clara situação de concurso aparente ou de normas – a regra da consunção seria de límpida aplicação, mas a regra da subsidiariedade contida no nº 2 do art. 150º não nos deixa dúvidas – acusados em concurso efectivo.
E já veremos razão que torna impossível a existência de um concurso efectivo com tais crimes! Sem esquecer que ambos os crimes tutelam o mesmo bem jurídico, a vida e a integridade física.
E, note-se, só disso a arguida foi absolvida, da imputação dolosa, da comissão por omissão. O que, em termos práticos e algo criativos, se reduziria a uma «absolvição da instância» dolosa omissiva, não fora o possível ne bis in idem.
Hipótese dolosa pura ou clássica que dificilmente seria imaginável pois que se já é difícil idealizar na situação dos autos a prática de um crime contido no art. 150º, nº 2 do Código Penal - «Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos» – tão só com o dolo clássico de ofensas corporais via artes médicas, numa situação de facto em que o/a médico/a interveniente se comporta de forma “normal”, com intenção de tratamento, e não agindo como uma personagem de Robert Louis Stevenson, um "Jekyll e Hyde" nacional, a ausência de dolo reconduz-nos para a conduta que habitualmente ganha na vida e na prática judiciária contornos negligentes.
Mas antes de desembrulhar estes enigmas haverá que ter noção de outras realidades. A primeira das quais é que sendo um crime doloso não o é numa visão clássica, a que se siga um resultado, uma ofensa corporal dolosa. Foi seguindo esta visão clássica que nos presentes autos se construiu um crime doloso omissivo em concurso efectivo. Mas nem o crime omissivo se pode construir a partir do art. 150º, nº 2, nem – consequentemente – pode existir concurso efectivo de tais crimes enquanto crimes omissivos.
Observe-se o desenvolvimento do referido artigo 150º do C.P. a partir da vigência do Código Penal de 1982 (salientando que entre o projecto Eduardo Correia – art. 162º - e o Código Penal de 1982 houve alteração do paradigma):
(Intervenções e tratamento médico-cirúrgicos)
2 - Se da violação das leges artis resultar um perigo para o corpo, a saúde ou a vida do paciente, o agente será punido com prisão até 2 anos.
3 - O procedimento criminal depende de queixa.
O nº 1 deste preceito percebe-se se recordarmos o paradigma anterior ao Código Penal de 1982 (Código Penal de 1886):
«A doutrina de longe dominante e a jurisprudência praticamente unânimes, anteriores à entrada em vigor do novo Código Penal, eram no sentido de que todas as intervenções e tratamentos médicos, qualquer que fosse o seu tipo, constituíam tipicamente ofensas corporais. A não punibilidade do médico só podia pois ficar a dever-se à intervenção, no caso, de uma causa de justificação. E porque o velho Código Penal afirmava, no seu artigo 29º, nº 4, que o consentimento do ofendido só justificava o facto nos casos especificados na lei e nada dizia sobre aquele em matéria de ofensas corporais, considerava-se que a justificação da intervenção médica residia verdadeiramente no exercício de um direito (artigo 44º, nº 4) - o direito do médico exercer medicina -, de que todavia era pressuposto indispensável, de acordo com as próprias regras deontológicas, o consentimento (real ou presumido) do paciente ou de quem, por ele, estivesse autorizado a prestá-lo.
Não faltava já, porém, quem levantasse as maiores dúvidas à exactidão dogmática de uma tal posição e à sua adequação à realidade da vida.» [2]
Tanto assim que em 1995 (alteração de 1995 pelo Dec-Lei n.º 48/95, de 15/03) o “tipo” penal “desaparece” mantendo-se o preceito esclarecedor da mudança de paradigma:
Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos
Em 1998 nova alteração – a 4ª versão do Código Penal 1995, introduzida pela Lei n.º 65/98, de 02/09 - vem a consagrar de novo o tipo penal:
Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos
2 - As pessoas indicadas no número anterior que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos violando as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde são punidas com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhes não couber por força de outra disposição legal.
Comecemos por uma constatação simples: no caso sub iudicio não houve “tratamentos e intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos” que causassem dano ou perigo de dano. Foi a sua ausência que causou danos. Assim, o cerne dos factos e da razão jurídica no caso concreto é a culpa na omissão do tratamento adequado segundo as leges artis, porquanto, no caso concreto, as “intervenções e tratamentos” não foram realizados.
Tenhamos presente o nº 1. Se as “intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física”.
Esta opção – a tal mudança de paradigma - feita para o Código Penal de 1982 manteve-se no chamado Código Penal de 1995.
Não se tratava, nem se trata, neste nº 1, de um tipo penal, sim de uma “descrição de um conjunto de actividades que não se consideram típicas”, no dizer do prof. Figueiredo Dias. Ou seja, trata-se de um “não-tipo” ou de uma norma de exclusão da tipicidade penal com quatro requisitos ou pressupostos.
E com dois sentidos essenciais expressos nos nsº 1 e 2 do preceito: «(…) em primeiro lugar, a proclamação da atipicidade das intervenções médico-cirúrgicas na direcção dos crimes de Ofensas corporais e de Homicídio; em segundo lugar, a punição dos tratamentos arbitrários como um autónomo e específico crime contra a liberdade. Na síntese de MEZGER: “as intervenções tratamentos que correspondem ao exercício consciente da actividade médica não constituem quaisquer ofensas corporais, mas podem ser punidos como tratamentos arbitrários”». [3]
Enfim e quanto ao nº 1 do preceito, não se considera existir ofensa à integridade física se a “intervenção e o tratamento” forem indicados, forem realizados por pessoa “legalmente autorizada”, não forem violadas as leges artis e se realizados com intenção de tratamento (“prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental”).
A norma – o nº 1 do art. 150ª - é expressa “no sentido da atipicidade” no dizer do Prof. Manuel da Costa Andrade, e deve ser «lido numa relação de integração sistemática e de complementaridade normativa com os arts. 156º (Intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários) e 157º (Dever de esclarecimento). Três preceitos que, no seu conjunto, dão corpo positivado ao regime jurídico-penal das intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos. » [4]
"Cláusula de exclusão da tipicidade ou um contratipo”, assim o designa Teresa Quintela de Brito, adiantando:
«O Código Penal constrói o conceito de intervenção e tratamento médico-cirúrgico sobre dois elementos subjectivos e dois outros objectivos.
Todos de verificação cumulativa. Os subjectivos referem-se à qualificação do agente (tem que tratar-se de médico ou pessoa legalmente autorizada a praticar tais actos) e à intenção terapêutica, Os objectivos correspondem à indicação médica e à realização de acordo com as leges artis.
Estando presentes estes elementos no momento da intervenção médica, esta jamais será considerada como um crime contra a integridade física ou, eventualmente, contra a vida do paciente. Ainda que aquela venha a fracassar, não debelando ou minorando a doença ou, até, provocando a morte do doente, Precisamente porque, como bem nota ENGISCH, «a valoração da intervenção médica terá de fazer-se ex ante, não podendo ficar dependente da álea dos resultados» (pags. 371-372).» [5]
Em breve: não são crime se cumpridos os requisitos deles constantes.
E então como se constrói a existência de um crime doloso omissivo face ao tipo penal contido no art. 150º, nº 2 do CP? Uma dúvida que não se coloca a partir do momento em que o papel do nº 2 seja esclarecido.
Mas com os factos provados nestes autos a penalização da conduta da arguida nunca poderia passar por este nº 2 do art. 150º, introduzido pela Lei n.º 65/98, de 02/09, tendo presente a simples literalidade da norma [“2 - As pessoas indicadas no número anterior que, (…) realizarem intervenções ou tratamentos violando as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde são punidas (…)”] pois que se deve concluir existir aqui um tipo penal muito específico, contra o qual se insurgiu o Prof. Costa Andrade [6] mas pelo qual se bateu o Prof. Rui Caros Pereira.
O que está suposto neste número 2 – que já é um tipo penal - é que o médico o seja legalmente, a “intervenção e o tratamento” sejam indicados e haja animus curandi. E o tipo será preenchido, isto é, só é penalizada a conduta, se ocorrer violação das leges artis e, por isso, se crie “um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde”.
Trata-se, como defende Rui Carlos Pereira – com a anuência de outros tratadistas, mesmo do Prof. Costa Andrade – de um crime de perigo concreto. E caracteriza-se no lado objectivo como um crime específico, próprio e de perigo concreto. No lado subjectivo o dolo tem que necessariamente incluir uma intervenção com violação das leges artis e o perigo para a vida, corpo ou saúde do paciente – v. Prof. Costa Andrade, “Comentário…”, pag. 313, § 29.
Claro que pode ocorrer crime praticado fora desta tipologia pela integração no crime de ofensas corporais, designadamente os crimes de resultado. Por isso que a acusação só deduzida pelo art. 144º sempre deveria ser considerada, mantendo-se a conduta dolosa mesmo que omissiva.
Mas nada melhor a este respeito do que transcrever Figueiredo Dias e Sinde Monteiro: [7]
«(…). Reconhecendo certamente o valor decisivo destas dificuldades e objecções, o novo Código Penal modificou radicalmente a óptica jurídicopenal sob a qual devem ser encaradas as intervenções cirúrgicas. E assim não concedendo sequer relevo à distinção, hoje corrente v. g. numa parte da doutrina alemã-ocidental, entre intervenções que tiveram êxito e intervenções que falharam a finalidade terapêutica visada -, o artigo 150.° considera que as intervenções médicas não constituem em princípio ofensas corporais. Posto é que tais intervenções e tratamentos:
a) Sejam medicamente indicados (isto é, nas palavras da lei, «que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrem indicados»);
b) Sejam «levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou outra pessoa legalmente autorizada a empreendê-los»;
c) Possuam finalidade terapêutica no mais amplo sentido, isco é, sejam empreendidos «com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar uma doença, um sofrimento, uma lesão ou fadiga corporal ou uma perturbação mental».
Por contraposição ao que fica fito já constituirão ofensas corporais, só podendo então a sua justificação derivar - se puder - da eventual relevância nos termos gerais de uma concreta causa de justificação, maxime do consentimento do ofendido ou do estado de necessidade:
a) As intervenções que ocorram em campos ainda não cobertos pelos conhecimentos e experiência da medicina, sobretudo intervenções terapêuticas de carácter experimental ou ainda não suficientemente comprovado - mesmo quando sejam levadas a cabo por forma técnica e cientificamente irrepreensível;
b) As intervenções que não sejam levadas a cabo por um médico ou pessoa legalmente autorizada (enfermeiro, parteira, dentista, protésico, etc.) ou que, sendo-o, não sejam conduzidas por forma técnica e cientificamente correcta;
c) As intervenções empreendidas com finalidades que nem imediata nem mediatamente possam relacionar-se com a terapêutica no mais amplo sentido, v. g. operações puramente cosméticas ou intervenções com finalidades exclusivas de estudo ou de experimentação (pags. 76-69).
(…)
Se, pois, do error artis não derivar uma ofensa no corpo ou na saúde do paciente, a conduta do médico não será, por causa daquele erro, criminalmente punível (ressalvada, é claro, a hipótese de punibilidade da tentativa). Se derivar uma tal ofensa, o médico será punível, havendo então a distinguir consoante o crime foi cometido com dolo ou com negligência. No primeiro caso - dolo -, haverá ainda que determinar, para efeitos de punição, se se tratou de ofensa corporal simples (141), grave (142), com dolo de perigo (143), qualificada pelo resultado (144), privilegiada (145), ou de envenenamento (146). No segundo caso negligência - (147), o juiz poderá isentar o médico da pena, se da ofensa não resultar doença ou incapacidade para o trabalho por mais de 8 dias.
Um caso existe, todavia, em que a violação das leges artis pode ser punida mesmo que não cause, em definitivo, uma ofensa no corpo ou na saúde de outrém. Isso sucederá quando de uma violação dolosa das leges artis resultar, nos termos do artigo 150º, nº 2, «um perigo para o corpo, a saúde ou a vida do paciente». Trata-se aqui de uma justificada manifestação de rigor do Código Penal para com actividades que, sendo imprescindíveis à vida comunitária, devem desenvolver-se com estrito respeito pelas leges artis, atenta a alta potencialidade do risco para com as pessoas que o seu incorrecto exercício comporta (pag. 73).»
É que o crime neste tipo penal só se consuma se esses tratamentos existirem e forem (1) realizados por pessoa “legalmente autorizada”; (2) realizados com intenção de tratamento (animus curandi): (3) eram indicados; (4) e violaram as leges artis causando um perigo.
Assim, pela positiva, se tais intervenções ou tratamentos forem praticados por aquelas pessoas, com animus curandi, violarem dolosamente as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde, temos o tipo penal do nº 2 preenchido. Se não, teremos um qualquer outro crime. Ou seja, o crime contido no nº 2 do art. 150º do C.P. só se preenche quando na prática das intervenções e tratamentos, mesmo com intenção terapêutica, existir violação dolosa das leges artis e daí resultar «um perigo para o corpo, a saúde ou a vida do paciente».
O que levou Rui Pereira a afirmar em 1995, face ao desaparecimento da norma e defendendo a manutenção do tipo penal, que:
«E a violação das leges artis só acarreta a prática de um crime quando dela resultar perigo para a vida ou saúde (artigo 150º, nº 2).
O desaparecimento desta norma elimina uma solução correcta e gera uma dúvida: entendendo-se rigidamente a delimitação típica do nº 1, deve concluir-se que qualquer violação das leges artis passa a constituir crime de ofensas corporais? Em nosso entender, seria preferível manter o regime, passando a referir, apenas, a criação do perigo e não o resultado perigoso, para transformar a conduta, inequivocamente, num crime de perigo concreto doloso.» [8]
Em 1998 explicitará, esclarecendo que a norma tem carácter subsidiário face às que prevêm um crime de dano:
Entendo, igualmente, que deveria subsistir o crime de violação das regras da ciência médica. Esta incriminação terá sido suprimida para clarificar o regime de exclusão da tipicidade das intervenções e dos tratamentos médico-cirúrgicos, que depende da reunião de três requisitos: fim curativo, autorização legal e observância das leges artis. A eliminação terá sido ditada pelo desígnio de subordinar ao regime geral as intervenções e os tratamentos: eles passarão a constituir ofensas quando as leges artis não forem a acatadas. Porém, esta forma de colocar o problema não é satisfatória. Se, por exemplo, um médico salvar um doente através de uma intervenção cirúrgica empreendida sem observância das leges artis porque não foi precedida de um electrocardiograma, nem por isso se deve concluir que a intervenção cirúrgica constitui, em si, uma ofensa.
Apenas o fim curativo é, verdadeiramente, condição de exclusão da tipicidade. A violação das leges artis adquire um significado próprio, que justifica a criação de um crime específíco". [9]
Será Teresa Quintela de Brito a tentar explicitar de forma mais clara o campo de acção deste tipo penal: [10]
O art. 13.° obriga-nos a concluir que o art. 150.°, n. 2, prevê um crime doloso. Portanto, exige-se dolo quanto à violação das leges artis e dolo quanto ao perigo para a vida ou de verificação de uma lesão grave da integridade física, em consequência da inobservância das leges artis.
À primeira vista, a hipótese de criação dolosa de um perigo para a vida do paciente por via do desrespeito das leges artis já está confiada no art. 144.°, alínea d). A verdade, porém, é que assim não sucede. Em regra, à intervenção médica violadora das leges artis falta o dolo de ofender o corpo ou a saúde do paciente e a provocação efectiva de uma lesão simples da sua integridade física, em que se estribe a subsequente criação de um perigo para a vida, como exige o art. 144.°, alínea d).
Falta o dolo de ofender o corpo ou a saúde do paciente, porque o art. 150.°, n. 2, pressupõe que o agente forme a sua vontade de desrespeitar as leges artis a partir de um preponderante móbil terapêutico.
Falta a ofensa simples à integridade física, na base da criação dolosa de um perigo para a vida do paciente, porque, na parte em que respeita as regras da medicina, a intervenção do agente não constitui uma lesão típica da integridade física, conforme o disposto no art. 150.°, n. 1. E, normalmente, não resulta fácil - ou sequer possível - separar a parcela da intervenção médica que desrespeita as leges artis.
Nem é legítimo, com base nela, remeter toda a actuação clínica para o âmbito dos crimes contra a integridade física.
Portanto, o art. 150.°, n. 2, pune as intervenções médicas com violação das leges artis que não sejam graves ao ponto de excluir a própria finalidade terapêutica e de impossibilitar a parcial recondução da conduta do agente a uma intervenção médico-cirúrgica, nos termos do art. 150.°, n. 1.
Por um lado, o desrespeito das leges artis pode atingir tal gravidade que, na realidade, exclui toda a finalidade terapêutica ou - o que é o mesmo - converte-a num móbil longínquo e enfraquecido, que, inelutavelmente, coabita com um dolo necessário ou eventual de dano ou de perigo para a integridade física ou para a vida do paciente. A favor desta conclusão aponta o próprio art. 150º, n. 2, ao estabelecer que a violação das leges artis deve ser compatível com a finalidade terapêutica.
Por outro, a gravidade da inobservância das regras da medicina pode inviabilizar qualquer identificação - ainda que só parcial - da actuação do agente com uma intervenção médico-cirúrgica, impondo antes a sua qualificação em bloco como uma lesão típica da integridade física do doente.
Se - como parece - esta construção for correcta, então, não é verdade que o art. 150.°, n. 2, constitui «a incriminação que vem punir os tratamentos médicos que não respeitarem» as regras da medicina.
Casos há de tratamento médico violadores das leges artis puníveis ao abrigo dos arts. 143.° e ss. Ponto é que se verifiquem os respectivos elementos típicos, designadamente, o dolo de dano da integridade física do paciente e a efectiva ocorrência de um evento de dano ou de perigo.
Assim, para que se preencha tal crime é necessário que seja praticada uma intervenção ou um tratamento com finalidade terapêutica com dolosa violação das leges artis de que resulte um doloso perigo concreto para a vida ou de verificação de uma lesão grave da integridade física.
Não é o que se passa nos autos porquanto falha a base factual. Não há tratamento.
No caso concreto está assente que a arguida é pessoa legalmente autorizada a praticar “intervenções e tratamentos” médicos e teve intenção de tratamento (e não dolo de ofensas corporais) mas não praticou o acto que as legis artis impunham. Ou seja, as intervenções e tratamentos que se impunham não foram realizados, o que altera o panorama factual e afasta desde logo a aplicação do art. 150º, nº 2 do CP, que supõe a existência dessas intervenções e tratamentos.
Por outro lado, a decisão judicial que imputa à acusação ausência de caracterização dos elementos subjectivos do dolo, designadamente o elemento volitivo, não é suficientemente explícita para sabermos como se deveria apresentar tal dolo - num tipo penal que se pretende ser omissivo - que se constrói em dois “momentos” lógicos distintos, o primeiro quanto à violação das leges artis (como se constrói aí o dolo para o caso concreto?), o segundo quanto à criação de perigo, necessariamente concreto, “para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde”.
Dito de forma mais clara: como é que as condições e finalidades excludentes da tipicidade contidas no nº 1 (“por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental”) e supostas na previsão do nº 2 (“As pessoas indicadas no número anterior que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem…”) se compaginam e sobrevivem juntas com um dolo de violação das leges artis na forma omissiva que supõe a existência de um facere?
E, no segundo momento, como sobrevivem harmoniosamente juntas com o dolo de perigo? Ou, como é que alguém que viola dolosamente as leges artis age comissivamente com animus curandi na forma omissiva?
Dito de forma clara, a construção deste tipo penal como um tipo doloso preenche um pequeno espaço de realidade social incompatível com uma acusação onde impera um concurso efectivo com um crime de ofensas corporais graves. E essa pequena janela social da actuação médica limita-se a ser comissiva com intuito terapêutico e violação das leges artis, a que tem que acrescer um dolo de “perigo para o corpo, a saúde ou a vida do paciente” – (posição de Figueiredo Dias e Sinde Monteiro na obra já citada [11]).
Ou seja, não é possível configurar o crime contido no art. 150º, nº 2 do CP como um crime doloso omissivo.[12]
E esse foi o pecado capital da acusação, ter sido expressis verbis deduzida por … «um (1) crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos com violação das leges artis, por omissão, previsto e punido pelo artigo 150.º, n.º 2 e com referência aos artigos 10.º, 14.º, n.º 3, 26.º, todos do Código Penal», em concurso efectivo.
Assim, já sem necessidade de recurso à regra da subsidiariedade contida no art. 150º, nº 2 do CP, a acusação só se sustenta juridicamente porque foi expressa na referência ao crime de ofensas corporais contido no art. 144º, als. a) e b) (a ou b?) do mesmo diploma.
Passamos, é bom de ver, para o campo da negligência como forma de culpa in omittendo. A arguida não terá agido com o cuidado que se impunha para evitar ou reduzir o perigo. E, sendo assim, bem andou a Mmª Juíza em excluir a hipótese dolosa e em propor a alteração de factos para o crime negligente.
Só que, assunção básica, quem acusa por crime doloso não inclui nessa acusação “factos” (a sua expressão linguística) correspondentes a crimes negligentes. Por isso que seja natural a inexistência da totalidade de factos negligentes numa acusação por crime doloso. O contrário seria encarado como um erro técnico.
Para casos como este os artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal surgem como um permissivo alargar do objecto do processo e da extensão da cognição, mas com balizas substantivas e sujeição a apertados pressupostos de controlo e, em parte, na disponibilidade do arguido no âmbito de um determinado processo onde já tenha sido deduzida acusação.
Daqui decorrem duas inferências no caso de se decidir pela alteração factual:
- a primeira, que ao tribunal incumbe proceder à alteração da matéria de facto para a adequar ao novo cenário, a negligência, na sequência do cumprimento do princípio da unidade ou indivisibilidade (os factos devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade, unitária e indivisivelmente) e da noção de que o “objecto do processo” - tendo em vista a obtenção de decisões que regulem o “pedaço de vida” que o processo espelha – “fixa-se deduzida que seja a acusação, com as variáveis que podem ser introduzidas pelos demandantes cíveis, pela defesa e pelo poder de investigação do tribunal, balizado pelos arts. 358º e 359º do Código de Processo Penal” (de anterior relato nosso com citação do Desemb. Cruz Bucho do TRG);
- a segunda, que ao tribunal incumbe indicar a factualidade correspondente ao crime negligente de forma completa, exaustiva, nunca inacabada.
Por isso que não possa ser aceite o raciocínio de que – aceite a alteração factual de crime doloso para crime negligente e concretizada essa alteração em factos acrescentados – depois se perspective a absolvição da prática deste novo crime (negligente) por falta de um elemento factual da negligência. É um contra-senso que tornaria inútil a prévia alteração factual.
Mas esse é um desenvolvimento logicamente posterior, pois que antes disso importa esclarecer se existe alteração factual ou meramente jurídica e, na primeira hipótese, se ela é substancial ou não.
E qual a natureza desta alteração? Primo, é de facto ou de direito? Secundo, é substancial, não substancial, ou nem isto?
A alteração é, parece-nos evidente, de facto e, depois, inevitavelmente de direito!
De facto, pois, como é por demais evidente, não se transmuta um acervo de factos dolosos para um acervo de factos negligentes sem alguma adequação na redacção factual. E, no caso concreto, a adequação factual é limitada.
E isto qualquer que seja a nossa opção teorética sobre o conceito de culpa nos crimes negligentes, seja numa visão clássica como uma das formas de culpa, seja na neo-clássica como censurabilidade pessoal da falta de cuidado de que era capaz, ou na dualidade actual que exige uma complexa factualidade necessária ao seu completamento (no caso atenuada).
Realmente a doutrina hoje encara o dolo e a negligência como realidades complexas que se não limitam à culpa mas se estendem à ilicitude.
No campo da ilicitude a negligência é vista como a violação de um dever de cuidado objectivo (negligência-do-tipo) e no campo da culpa, enquanto culpa menos grave (em contraponto com o dolo), como atitude pessoal leviana ou descuidada perante a conduta exigível.
O que significa que o acervo de factos necessários à negligência deverá acompanhar a previsão do igualmente necessário dever de cuidado e sua violação. Isto é a realidade “negligência” a impor-se onde ainda não tinha sido pensada e projectada na acusação. E tem que ser agora pensada e projectada na peça judiciária, a sentença.
Segue-se, naturalmente, a deslocação de tais factos para o acervo factual da sentença - como provados ou não - com a sequente integração desse acervo parcialmente novo no (novo) tipo penal negligente, operação de subsunção jurídica que aqui surge como mera consequência da operação factual anterior. Longe, pois, da mera diversa qualificação jurídica dos mesmos factos que já constavam da acusação num (novo) tipo jurídico.
Assente que se trata ab initio de alteração factual, será ela substancial ou não?
A resposta também nos parece clara, pois que se a negligência é encarada meramente como uma das formas da culpa (sendo a outra o dolo), os factos apenas revelam uma das formas possíveis, facilmente alterada sem prejuízo para os direitos da arguida.
O mesmo se diga na mais moderna construção da negligência, seja com a exigência de uma violação do cuidado objectivamente necessário – a integrar na ilicitude – seja com a censurabilidade pessoal da falta de cuidado de que a arguida era capaz – a integrar nos factos como elemento da culpa.
É claro que a exigência de acrescento factual é hoje maior do que seria face a uma teoria clássica da culpa, pois que o tribunal tem que prever aqueles dois factos novos, a violação do dever objectivo de cuidado e a censurabilidade pessoal da falta de cuidado de que era capaz. Isto reflecte uma realidade que hoje é inultrapassável e que não nos parece alterar os dados da questão, que quer o dolo quer a negligência ostentam e exigem hoje uma dupla valoração, no campo da ilicitude e no campo da culpa (pelo menos no que assevera parte relevante da doutrina).
Como é claro, haverá que acrescentar o comportamento que era objectivamente devido na situação concreta de forma a evitar o resultado indesejado e, na vertente subjectiva, se esse comportamento poderia ser exigido à arguida face às suas capacidades.
Mas não só. Também o elemento cognoscitivo opera uma diferença entre tipos de negligência que deve ser atendida, a diferença entre negligência consciente e negligência inconsciente: em concreto, a arguida teve consciência, previu, a possibilidade de realização do tipo; ou não?
Serão estes os factos, ao menos, que se sugere o tribunal recorrido deverá ponderar transferir para a sentença e sopesar na apreciação probatória, juntamente com os factos já por si propostos, com eventual adequação de alguns dos factos.
E a alteração factual a incluir no acervo de factos provados/não provados é substancial, não substancial, ou nem isto?
Esta última hipótese é, obviamente, de afastar já que reservada à alteração de factos quase irrelevantes. Veja-se a propósito o caso relatado no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18-04-2007 (proc. 0711082, sendo relator o Desemb. Joaquim Gomes):
I - A comunicação prevista no art. 358º do C. P. Penal apenas tem lugar quando se tratar de uma alteração não substancial relevante, o que sucede quando essa modificação divirja do que se encontra descrito na acusação ou na pronúncia e a subsequente comunicação se mostre útil à defesa.
II - Tal não ocorre quando a factualidade dada como provada no acórdão condenatório consiste numa mera redução daquela que foi indicada na acusação ou na pronúncia, por se não terem dado como assentes todos os factos aí descritos, ou quando apenas existam alterações de factos relativos a aspectos não essenciais, manifestamente irrelevantes para a verificação da factualidade típica ou da ocorrência de circunstâncias agravantes.
E não pode qualificar-se como “irrelevante” uma alteração factual que implica uma passagem de um crime doloso para um crime negligente.
Assim a questão posta nos autos está dependente de saber se na contraposição que sobra estamos perante uma «alteração substancial dos factos» pois que o conceito contrário define-se pela exclusão dos requisitos deste.
A al. f) do nº 1, do art. 1º do CPP é explícita na definição daquele conceito de «alteração» como «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis»
Será, pois, a definição de «crime diverso» a dar a pedra de toque da distinção pois que o crime negligente, por natureza, é menos gravemente punido que o respectivo crime comissivo doloso (Aqui o confronto entre o art. 144º, al. a) e o art. 148º, nº 3 do C.P.). É claro que não encaramos aqui os tipos penais possíveis para este confronto, os meramente teóricos no balanço crime doloso/crime negligente, pois que a acusação reduziu tal confronto prático ao crime doloso acabado de referir e nós excluímos deste balanceamento o tipo do art. 150º, nº 2 do CP.
Mas em termos úteis a opção sempre será irrelevante pois que – e aqui o Digno recorrente também tem razão – não pode definir-se como “crime diverso” um dos “sub-tipos” penais resultantes do mesmo tipo penal que é a matriz de toda a família de crimes de que estamos tratando. Apenas o tipo contido no art. 150º, nº2 do CP destoava neste entorno familiar.
Por alguma razão o art. 1º, nº 1, al. f) do CPP apresenta duas alternativas, sendo uma a da gravidade das sanções aplicáveis. Certo é que ambos os critérios nos permitem a passagem à conclusão de que é possível a transmutação dolo/negligência, já que o segundo critério nos proíbe o inverso, a passagem negligência/dolo.
No caso concreto, e em função do que consta da acusação, sempre haverá que recordar que a pena do inusual crime contido no art. 150º, nº 2 e a do negligente são idênticas o que, ao menos, não criaria “agravação” da pena – pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias – (arts. 150º, nº 2 versus 148º, nº 3). Questão que se mostra ultrapassada.
Assim, se «crime» é o «conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena (…)» e a doutrina e a jurisprudência vêm a reduzir tal generalização a um “pedaço de vida” muito mais terreno, localizado no espaço e no tempo, temos que convir que aqui o dito “pedaço de vida” se limita à presença do lesado num banco de urgência hospitalar, às horas de consulta e espera no mesmo local, à referência ao mesmo acto médico que deveria ter sido praticado e não o foi em devido tempo e a cirurgia lesiva posterior já praticada em momento inadequado para evitar o dano, como prescrevem as leges artis.
Ou seja, a fita do tempo neste episódio hospitalar não necessita de ser encarada, mesmo na perspectiva da acusação, com qualquer acrescento de facto, de pequena história, de diversa intervenção da arguida, de qualquer acrescento de facto que ganhe relevo no “pedaço de vida”. Quase se diria que nada necessita de ser alterado no mundo da “natureza” social, no realmente acontecido, para que o processo possa prosseguir.
O facto real do quotidiano hospitalar, melhor se diria, a linguística do facto real, só necessita de ser “alterada” por exigência normativa por forma a permitir que a conduta imputada seja encarada noutra perspectiva jurídica. Por sinal menos grave e com menores consequências pessoais e profissionais para a arguida. Um considerável minus, portanto.
Os mesmos factos ocorridos – e que não são alterados - necessitam de assumir a veste de uma conduta que a ordem jurídica qualifica como negligente, essa a natureza da alteração, uma adaptação nos factos por exigência normativa, formal.
Concluímos, pois, que não estamos face a uma alteração substancial dos factos.
E o critério de “autonomização de factos” altera este entendimento?
As mais sucintas e claras definições do conceito de “facto autonomizável” dão-nos como os susceptíveis de fundamentar uma “incriminação autónoma em face do objecto do processo” (F. Isasca), os que “podem constituir objecto de novo processo” (Germano M. da Silva), os que constituem “um quadro fáctico completamente distinto do que consta da acusação” (Vinício Ribeiro) e “os que podem ser desligados daqueles que já constituem o objecto do processo permitindo iniciar novo processo sem violação do ne bis in idem” (Paulo de Sousa Mendes). [13]
Como os factos “novos” que devem ser acrescentados à sentença são apenas os que faltam à completa caracterização da negligência (já há alguns desses factos), os mesmos não são autonomizáveis já que não se diferenciam do “objecto do processo” nestes autos pelo que não têm qualquer valor ou préstimo se isoladamente considerados. Não servem para fundamentar uma incriminação autónoma.
Por isso bem foi utilizado este critério pelo tribunal recorrido.
Mas daí não decorre a natureza da alteração nem o cumprimento do disposto no art. 359º do CPP.
Só decorre que os factos isoladamente considerados – sem a plena imersão no “pedaço de vida”, a dor, a ida ao hospital, o diagnóstico preliminar acertado, a ausência de acção cirúrgica – nada valem. Só valem se servirem para completar o cenário de actuação negligente já constante dos autos mas de forma incompleta. Em síntese, os “factos novos” só vêm completar o “objecto do processo” que já consta dos autos mas de forma imperfeita.
Os critérios determinantes para entender a natureza da alteração são o “crime diverso” e a agravação das sanções aplicáveis, como se afirmou supra.
Mas esses critérios legais de aparentemente fácil dissecação apresentam uma complexidade doutrinal de monta. [14]
Também se impõe esclarecer que optamos decididamente por assentar a nossa opção numa base naturalista por aí estarmos em completo acordo com a Drª. Teresa Beleza quanto à incontornabilidade de uso desse critério, a que deverão acrescer outros de carácter normativista. [15]
O único que nos parece – na doutrina portuguesa – não ser aceitável reside na consideração de que com os mesmos factos “sociais”, ou seja “aquele pedaço de vida” ocorrido no Hospital – logo, factos naturalistas – se afirme que a passagem à negligência seja, “uma outra coisa”, um “outro facto” diverso, diferente do mesmo tipo por ser negligente.
E o critério não é aceitável por reduzir a realidade social a um mero conceito de carácter normativo que reconduz a decisão judicial para muito longe da realidade quotidiana. Parece-nos ser função dos tribunais não permitir tal afastamento.
Por isso, a questão de saber se há identidade do objecto entre a acusação e a sentença tem que atentar nos ensinamentos do Prof. Giuseppe Bettiol que, de tão distantes no tempo, nos parecem extremamente actualizados nestes tempos de distanciamento teórico das realidades sociais: [16]
«O que o juiz não pode é modificar o facto. Tal redundaria efectivamente numa violação dos direitos de defesa do arguido com graves repercussões na sua esfera de liberdade.» (…)
Não ficam com isto resolvidos todos os problemas. Estes voltam a surgir, graves e difíceis, a propósito do conceito de identidade do facto: quando muda o facto? Quando permanece idêntico? Eis duas interrogações a que a doutrina tem dado respostas altamente divergentes a revelarem horizontes: metodológicos e culturais muito díspares. É evidente que numa perspectiva poIitico-cultural desinteressada das posições defensivas do arguido, o problema da mutatio libelli (para usar a terminología dos autores medievais) é de importância secundária e pode r resolvido nos termos mais elásticos; se domina uma concepção assente na liberdade já, pelo contrário, se impõe, como absolutamente necessário, um particular rigor. O problema não pode ser resolvido com o recurso à lógica abstracta, porque em direito há identidade mesmo para além dos casos em que é aplicável a proposição lógica a = a'. Se a partir duma acusação por peculato é possível a condenação por apropriação indevida, isso significa a superação da relação lógica de identidade dos factos, pois as duas condutas em análise não são logicamente idênticas se bem que o sejam na óptica do processo. Não parece melhor fadado o recurso à lógica formal. Também ela é impotente para oferecer um contributo decisivo para a solução do problema, apesar de ser um caminho tão insistentemente explorado pela doutrina. Com efeito, já nesta linha se afirmou que o facto é idêntico desde que permaneça idêntica a acção, apesar de se alterar o evento ou vice-versa; quando, mantendo-se todos os momentos objectivos, muda apenas o título subjectivo de imputação (ex. negligência em vez de dolo); quando, mudando embora os momentos formais de facto, permanece idêntica a lesão do bem jurídico; e assim por diante. (pag. 293-294). (…)
O problema deve antes solucionar-se equacionando-o numa consideração finalística, teleológica. Se é certo que a alma que anima e inspira o princípio da comunicação da acusação é a tutela efectiva e eficaz do direito de defesa do arguido, há que concluir que, quando na base da valoração de um elemento ou facto vier a ser violado um direito ou uma garantia de defesa do arguido, se está perante um facto diverso e que o juiz realizou uma ilegítima transposição de fronteiras. Entra assim em jogo, como critério decisivo e determinante, o critério da defesa. De nada vale insistir na nota da essencialidade ou não do momento de facto alterado, na sua objectividade, na sua índole formal ou substancial. O que efectivamente releva é a agressão às garantias de defesa do arguido. Este é o autêntico telos, a luz que ilumina todo o problema. Qualquer outra solução é esquemática e mecânica. Tanto pode levar a bom porto como a naufrágio. A objecção de que esta renúncia a um critério geral de solução remete para a decisão do magistrado que, caso por caso, será chamado a decidir, é uma objecção inócua.» (pag. 294).
Destarte a conclusão útil permite asseverar que estamos face a uma alteração não substancial dos factos, havendo apenas que dar cumprimento ao disposto no art. 358º, nº 1, in fine, do CPP. [17]
Aliás a jurisprudência publicada vai neste mesmo sentido. É ver:
- o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05-02-1997:
I - Tendo o arguido sido acusado pela prática de um crime de ofensas corporais com dolo de perigo, a circunstância de se ter apurado que « agiu com falta de cuidado: naturalmente omissa naquela peça e também não referida na contestação, não constitui obstáculo a que seja condenado pelo crime de ofensas corporais por negligência.
II - «A negligência verificada considera-se inserida no desenvolvimento da factualidade apurada, resultante da acusação. (Relator o Desemb. Costa de Morais, proc. 9610928);
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17-10-2005:
I – Vindo a arguida acusada pelo crime de receptação na sua forma dolosa e tendo sido condenada pelo mesmo crime, mas na forma negligente, não se verifica uma alteração substancial dos factos constantes da acusação, pois da qualificação jurídica dos factos feita, resultou incriminação num crime menos gravoso, como se pode constatar pelas molduras penais constantes nos nºs 1 e 2 do artº 231º do C. Penal.
II – E, conforme refere Dr. Marques Ferreira, - in “Alteração dos Factos objecto do processo Penal, RPCC, Ano I, n° 2, pág. 221 e segs. – “ Se no decurso da audiência se fizer prova de factos que representem uma alteração da acusação ou pronúncia, mas contudo sem qualquer relevo para a alteração do crime ou do máximo das penas, haverá então lugar aplicação do artº 358° do C.P.P., cujos dispositivos são um imperativo do princípio contraditório e da salvaguarda de uma defesa eficaz por parte do arguido”. (Relator o Desemb. Tomé Branco, processo n.º 1335/05-1).
- o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27-09-2006:
I. Há alteração não substancial dos factos descritos na acusação quando, no decurso da audiência, se entende que o crime indiciado afinal não foi cometido a título de dolo, mas sim de negligência. (Relator o Desemb. Joaquim Gomes, processo n.º 0515840)
- o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22-05-2013:
I - A transposição, na sentença, de um crime doloso para um crime negligente importará sempre alteração factual (não mera redução), porque não são coincidentes os factos que traduzem o elemento subjectivo da infracção penal casuisticamente aplicável.
II - A questão primeira é, pois, a de alteração dos factos que conduz, por sua vez, à modificação da qualificação jurídica.
III - Consequentemente, a falta de comunicação da alteração, quer dos factos quer da qualificação jurídica, nos termos do artigo 358.º do CPP, determina a nulidade da sentença, conforme prevê o artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do mesmo compêndio legislativo. (Relatora a Desemb. Maria Pilar de Oliveira, proc. 387/10.7PBAMD.C1)
Em função do que se acabou de expor somos a concluir que a alteração a efectuar pelo tribunal recorrido para adequar a matéria de facto ao crime negligente previsto no artigo 148º do Código Penal é uma mera alteração não substancial dos factos.
Que o tribunal recorrido deverá incluir na matéria de facto, ao menos, os sugeridos factos negligentes, a que poderão acrescer outros que o tribunal entenda convenientes à completa previsão do comportamento negligente: ilicitude, culpa, cognoscibilidade.
A que se seguirá o cumprimento do disposto no art. 358º do Código de Processo Penal, se necessário com produção de prova eventualmente apresentada pela defesa e a ser apreciada, em termos de necessidade, pelo tribunal recorrido, lavrando-se sentença em conformidade.
Tal sentença terá que dar destino à afirmação da acusação quanto aos dois crimes imputados em função do aqui decidido e fundamentado, designadamente quanto ao crime contido no artigo 144.º al. a) e b) do Código Penal, já que a posição aqui assumida quanto ao art. 150º, nº 2 do mesmo diploma será definitiva.
A não afirmação da existência de negligência crime implica necessariamente a afirmação de inexistência de negligência cível, com o mesmo fundamento.
O pedido cível formulado nos presentes autos tem como escopo o conhecimento e eventual ressarcimento da responsabilidade civil resultante da prática de um crime. Não se provando de forma clara e assertiva a prática de um crime que responsabilize o agente, nem se pode manter a sua responsabilidade civil, nem a responsabilidade civil de outros eventuais obrigados.
Os critérios de aferição das responsabilidades penais e civis não se diferenciam em função do maior ou menor rigor de apuramento teórico das ditas diversas responsabilidades.
O rigor será diferente apenas num juízo probatório e, a final, um naturalmente diferente juízo probatório sobre a ocorrência dos factos que integram a fonte da responsabilidade criminal. Aqui os factos negligentes que tanto levam à condenação crime como cível, consequentemente.
Se os factos negligentes criminais não se provam, sequentemente resultam não provados os factos que levam à condenação cível. O inverso também é verdadeiro. Provando-se factos que integram a negligência criminal provada fica a negligência civil.
Inaceitável é a situação dos autos em que não se dando – por razões substanciais ou processuais, é irrelevante – como provada a negligência criminal, daí se infere a existência de negligência cível, por um suposto juízo negligente menos exigente.
Daqui decorre que, não resolvida ainda a questão criminal, as condenações cíveis da arguida e da Unidade Local de Saúde do Norte Alentejano se não possam manter e deve ser relegado o conhecimento do pedido cível para a sentença que venha a conhecer das questões criminais ainda pendentes.
Assim, os recursos da duas demandadas cíveis não podem ser conhecidos quanto aos seus aspectos substanciais enquanto se não concluir o julgamento total dos factos crime nos presentes autos.
Por tudo o que vai exposto são procedentes os recursos do Ministério Público e das demandadas cíveis, estes parcialmente e por razões diversas das invocadas quanto às condenações cíveis.
***
Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em:
a) - negar provimento ao recurso interlocutório interposto pela arguida;
b) - negar parcialmente provimento ao recurso interposto pela Unidade Local de Saúde do Norte Alentejano quanto à invocada incompetência material para conhecer dos autos;
c) - conceder provimento parcial aos recursos interpostos pela arguida (...) e Unidade Local de Saúde do Norte Alentejano por razões diversas das invocadas;
d) - conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e em determinar:
- que o tribunal recorrido deverá incluir na matéria de facto os factos negligentes que entender adequados e suficientes;
- seguindo-se o cumprimento do disposto no art. 358º do Código de Processo Penal, se necessário com produção de prova eventualmente apresentada pela defesa;
- lavrando-se sentença em conformidade.
Sem tributação.
(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).
Évora, 23 de Fevereiro de 2021
João Gomes de Sousa
Nuno Garcia
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[1] - Desde já convém salientar que o art. 150º do CP é tudo menos simples e evidente, por isso que indiquemos referências bibliográficas essenciais à análise do seu desenvolvimento e alterações: “Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal - Parte Especial”, Associação Académica, Lisboa, 1979, pags. 70-71; “Código Penal - Actas e Projecto da Comissão de Revisão”, “Actas da Comissão de Revisão do Código Penal”, Ministério da Justiça, Rei dos Livros, 1993, pag. 228. Ver também Prof. Costa Andrade em anotação ao artigo 150º do “Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte Especial”, Tomo I, pags. 302-313, in “Responsabilidade Médica em Portugal”, Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, BMJ 332, 1984, pags. 21-79, para além da bibliografia indicada no texto.
[2] - In “Responsabilidade Médica em Portugal”, Figueiredo Dias e Sinde Monteiro, BMJ 32, 1984, pag. 67 (pp. 21-79).
[3] - Prof. Costa Andrade em anotação ao artigo 150º do “Comentário Conimbricense ao Código Penal – Parte Especial”, Tomo I, pag. 302, § 1.
[4] - Aut. ob. e loc. cit.
[5] - «Responsabilidade penal dos médicos: análise dos principais tipos incriminadores», in RPCC, ano 12, 2002, nº 3, pags. 371-409.
[6] - Obra cit., pag. 305, § 7.
[7] - “A responsabilidade médica em Portugal”, in BMJ, 332, Jan. 1984, 21-79, principalmente 67-69 e 73:
[8] - Rui Carlos Pereira, “O dolo de perigo, (Contribuição para a dogmática da imputação subjectiva nos crimes de perigo concreto)”, Lex, Lisboa, 1995, pag. 151, nota 28.
[9] - Prof. Rui Carlos Pereira, “Os crimes contra a integridade física na revisão do Código Penal”, in «Jornadas sobre a revisão do Código Penal», org. Prof. Maria Fernanda Palma e Cons. Teresa Pizarro Beleza, Associação Académica da FDL, Lisboa, 1998, pag. 198 (183-205).
[10] - In «Responsabilidade penal dos médicos: análise dos principais tipos incriminadores», citado, pags. 378-379.
[11] - Secundada por Maria da Conceição Ferreira da Cunha, “Algumas considerações sobre a responsabilidade penal médica por omissão”, in «Liber Discipolorum – Jorge de Figueiredo Dias», pag. 8331-836 (809-854) e, como vimos, por Costa Andrade.
[12] - Igualmente neste sentido Maria da Conceição Ferreira da Cunha, “Algumas considerações sobre a responsabilidade penal médica por omissão”, pag. 832 (809-854).
[13] - Ter presente o estudo “Alteração substancial dos factos em processo penal”, José Manuel Saporiti Machado da Cruz Bucho - Comunicações apresentadas no Colóquio “Questões Práticas na Reforma do Código Penal”, organizado pelo Centro de Estudos Judiciários e realizado em Lisboa no dia 13 de Março de 2009 no Fórum Lisboa, e no Tribunal da Relação de Guimarães, no dia 2 de Abril de 2009, no 7º aniversário deste Tribunal. Disponível in “http://www.trg.pt/info/estudos.html”.
[14] - A este respeito a obra de Ivo Miguel Barroso “Objecto do Processo Penal”, AAFDL, 2013, que faz uma análise sobre os contributos doutrinais.
[15] - “Dizer e contraditar o Direito: a qualificação jurídica dos factos em processo crime”, in Scientia Iuridica, Janeiro-Junho de 1999, Tomo XLVIII, nsº 277-279, pag. 88, apud Ivo Miguel Barroso, in “Objecto do Processo Penal, AAFDL, Lisboa, 2013, pag. 90, nota 188.
[16] - “Instituições de direito e processo penal”, Coimbra Editora, Ldª, Coimbra, 1974, pags. 292-294.
[17] - A tal conclusão se não opõe o facto de a possível impunidade da arguida ser o resultado anormal de se considerar a existência de uma alteração de facto substancial.