OFENSAS À INTEGRIDADE FÍSICA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
Sumário


1 – Tendo sido considerado provado que:

"- M… na discussão por questões de serviço (…) afirmou, dirigindo-se, a A…: “Tu serves para ser peixeira”, na presença dos demais colegas;
- Ao que A… respondeu insistentemente “olha que eu te dou”;
- M… respondeu insistentemente a A…, dizendo: “Então dá lá”;
- Nessa sequência, a arguida desferiu uma chapada leve na face da ofendida, após o que ambas agarraram mutuamente os cabelos uma da outra, até que os restantes funcionários as separaram,"

e não resultando propriamente provada a dimensão da dita leveza da chapada, a motivação decisória permite aquilatar de que se tratou de um mero “enxota moscas”, na expressão usada por quem a presenciou e, como tal, valorada pelo Tribunal, levando, pois, a inferir que até foi muito leve.

2 - Entende-se, então, aceitar que se verifica, na conduta da recorrente, falta de significado bastante para configurar afectação da integridade física da ofendida, que mereça a dignidade intrínseca ao bem jurídico protegido e justifique a intervenção do direito penal.

Texto Integral



Acordam, em conferência, na Secção Criminal
do Tribunal da Relação de Évora

*

1. RELATÓRIO

Nos autos em referência, de processo comum, perante tribunal singular, que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Sesimbra do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, na sequência de acusação deduzida pelo Ministério Público, a arguida (...) foi pronunciada pela prática, como autora material, na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1, do Código Penal (CP).
A ofendida, (...), deduziu pedido de indemnização civil contra a arguida/demandada, no valor de 6.000,00 euros englobando danos patrimoniais e danos não patrimoniais.
Foi apresentada contestação, relativamente à acusação e ao pedido de indemnização civil.
Realizado o julgamento e proferida sentença, decidiu-se:
- julgar procedente, por provada, a acusação e, parcialmente procedente, o pedido de indemnização civil;
- condenar a arguida, em autoria material e na forma consumada, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1, do CP, na pena de 90 dias multa à taxa diária de 5,00 euros, perfazendo 450,00 euros;
- condenar a demandada, (...), a pagar à demandante, (...), a indemnização na quantia de 500,00 euros;

Inconformada com tal decisão, a arguida/demandada interpôs recurso, formulando as conclusões:
I
O presente recurso tem como objecto toda a matéria de facto e de direito da douta sentença proferida nos presentes Autos em que condenou a Recorrente pela prática do crime de ofensa a integridade física simples p. e p. pelo Artº. 143º, nº 1 do C. Penal e condenou ainda a Recorrente a pagar à demandada (...) na indemnização de € 500,00 (quinhentos euros).
II

O Tribunal “a quo” considerou provada a seguinte matéria de facto:
“1. No dia 14.05.2018, pelas 14:00 horas, no interior do estabelecimento comercial denominado (…), sito na Rua (…), onde ambas trabalhavam, a arguida, (...), e (...), adiante designada por ofendida, iniciaram discussão motivada por questões de serviço;
2. A responsabilidade das reservas de mesa era de (…);
3. A escolha do peixe cabia aos empregados de mesa, como na altura era a categoria profissional da arguida, (...);
4. (...) para além de reservar a mesa para um cliente, escolheu o peixe para a refeição daquele e grupo de pessoas que o acompanhava;
5. A mesa reservada pertencia à área, no restaurante, que cabia à arguida, (...), servir às mesas e escolher o peixe;
6. (...) na discussão por questões de serviço referida no facto provado 1., dirigindo-se a (...): “Tu serves para ser peixeira”, na presença dos demais colegas;
7. Ao que (...) respondeu insistentemente “olha que te dou”;
8. (...) respondeu insistentemente a (...) dizendo: “Então dá lá”;
9. Nessa sequência, a arguida desferiu uma chapada leve na face da ofendida, após o que ambas agarraram mutuamente os cabelos uma da outra, até que os restantes funcionários as separaram;
10. Na sequência da chapada desferida pela arguida (...), (...) não recebeu tratamento médico;
11. A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito, que logrou alcançar, de molestar o corpo da ofendida;
12. A arguida sabia ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei penal;
13. Teor do certificado de registo criminal da arguida (primária);
14. (...) sentiu dores no couro cabeludo em consequência do agarrar de cabelos;
16. O estabelecimento, naquela hora, encontrava-se com clientes a tomar as suas refeições;
17. Os clientes assistiram ao sucedido;
18. Devido ao conteúdo dos factos provados 1. e 9. 16. e 17. foi levantado processo disciplinar à demandada, (...), pela entidade patronal, assim como à demandante, (...);
19. Não tendo respeitado o aviso prévio, foram-lhe descontados dos créditos laborais 500,00 euros;
20. O vencimento base de (...) era de 500,00 euros, quantia essa que deixou de auferir mensalmente, a partir de julho de 2018;
21. A demandante soube, através de outra pessoa, que a demandada, (...), terá afirmado que quando a apanhasse “a desfazia toda”:
22. A demandada agiu com consciência e intenção de ofender o corpo e a saúde da demandante, o que conseguiu, causando-lhe dores no couro cabeludo;
23. (...) trabalhava no (...) há nove anos;
24. E acabou por ser despedida na sequência de tal processo disciplinar relativo à situação da primeira nota de culpa e de uma segunda, que foi impugnada em acção judicial de apreciação de regularidade e licitude do despedimento, que correu termos junto do Juízo de trabalho de Setúbal - Juiz 1 - Proc. nº 6684/18.6T85TB;
25. No âmbito do qual foi a arguida indemnizada pela entidade patronal representantes legais do (...), no montante de 15.000,00 euros;
26. (...) na sequência do mencionado processo disciplinar apresentou carta de demissão à então sua entidade patronal representantes legais do (...);
27. (...) trabalhou no (...) durante cerca de um ano e tal:
28. A arguida vive sozinha é solteira e não tem filhos;
29. Em casa arrendada pelo valor mensal de 330,00 euros;
30. É empregada de mesa no restaurante (…);
31. Aufere mensalmente 635,00 líquidos.
III
Da prova produzida em nºs 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 8 - factos dados como provados - ficou provado que a ocorrência dos factos e seu circunstancialismo deveu-se à demandada (...), que insistentemente provocou a Arguida e a injuriou.
IV
A Recorrente e demandante eram empregadas no Restaurante (...), em (…), tendo cada qual funções de serviço bem determinadas e que tinham de ser respeitadas para o bom funcionamento do serviço e clientela.
V
No ponto nº 3 dos factos provados competia à Recorrente a escolha do peixe para os seus clientes na mesa reservada pela demandante, que era essa a sua função, tendo esta usurpado as funções da Recorrente com a escolha do peixe para os clientes sem o seu conhecimento.
VI
A usurpação das funções pela demandante provocou uma discussão, tendo esta, perante os muitos clientes a almoçar, dito à Recorrente: “Tu serves é para ser peixeira”, o que provocou nesta um sentido de humilhação, desprezo e ofensa à sua honra e dignidade.
VII
Da prova do ponto nº 7, verifica-se que a Recorrente, a titulo de advertência retorquiu, dizendo: “Olha Que eu te dou!”, tendo a demandante respondido insistentemente: “Então dá lá!”
VIII
Da prova constante do ponto nº 9 resulta que a Recorrente desferiu uma “chapada leve” na face da demandante e agarraram mutuamente os cabelos uma da outra.
E,
IX
Resulta da prova do nº 10 que a demandante (...), não recebeu qualquer tratamento médico.
X
A douta motivação relativa à prova do ponto nº 10 pela Mª. Juiz é peremptória ao referir que não se provou que a Ofendida tenha sentido dor na parte da sua cara atingida pela “chapada leve” que fora desferida pela Recorrente e que o conceito de “chapada leve” encerra em si mesmo e perante o depoimento da única testemunha presencial dos factos da agressão – (…) - que afirmou não existir chapada ou chapadão, mas tão somente “um enxota moscas”, ou seja uma palmada leve.
XI
Resulta inequívoco da prova dada como assentem que a Recorrente não cometeu o crime de que veio acusada, não agredindo a face da Ofendida, que confessou não ter tido qualquer dor, nem recorrido a assistência médica e sem a menor das consequências.
XII
A Mª. Juiz condenou a Recorrente a pagar a indemnização de € 500,00 à Ofendida pelas dores sofridas por esta no couro cabeludo, motivado aos puxões que cada uma praticou, mas que não está no âmbito da acusação, atento o depoimento da testemunha (…) - empregado de mesa no dito (...), que separou a Recorrente e Ofendida, queixando-se esta de dores no couro cabeludo mas nunca das faces e da cara.
XIII
O Tribunal “a quo” fez incorrecta aplicação do Direito ao condenar a Recorrente, nos termos do Artº. 143º, nº 1 do C. Penal.
XIV
Da matéria de facto provada a Recorrente apenas exerceu retorsão sobre a Ofendida perante as sucessivas provocações de que foi vítima e sentir-se injuriada e enxovalhada perante os colegas e clientes presentes.
XV
Na douta motivação a Mª. Juiz refere: Recorrente fora provocada pela Ofendida e encontrava-se nervosíssima e fora de si, sem que tivesse consciência dos seus actos.
XVI
Não existiu dano moral, porque não existiu a menor gravidade com o gesto “enxota moscas” da Recorrente, nem do mesmo acto resultou a menor consequência para a Ofendida.
O Tribunal “a quo” não considera o equilíbrio, a objectividade e o sentido das proporções do dano existentes.
XVII
O Tribunal “a quo” perante a prova dos factos, deu por provado que fora a Ofendida o agente provocador e desestabilizador do normal funcionamento do trabalho e pela injuria provocada, o que ocasionou a alteração do estado psico-físico da Recorrente no direito de resposta às agressões sucessivas de que fora vítima.
O Tribunal “a quo” deveria aplicar o principio de “in dubio pro reo” e absolver a Recorrente, quer da imputação criminal, quer do pedido civil.
XVIII
A ofensa corporal de que a Arguida é acusada não atingiu dignidade penal por se tratar de um gesto “enxota moscas” e por isso não é subsumível à previsão do Artº. 143º, nº 3, alíneas a) e b) do C. Penal, por ser insignificante, considerando a objectividade da gravidade da ofensa, que foi nula.
NESTES TERMOS
E nos demais de Direito aplicáveis, deve ser dado provimento ao presente Recurso e, por via dele, ser revogada a sentença recorrida e, em consequência, ser a Recorrente absolvida de crime de ofensas corporais em que foi condenada, bem como do respectivo pedido de indemnização civil.

O recurso foi admitido.

O Ministério Público apresentou resposta, concluindo:
1) No caso em apreço, a Recorrente questiona a apreciação que o Tribunal “a quo” fez da prova produzida em julgamento;
2) “(…) De entre estas circunstâncias importa-nos no caso concreto o princípio da insignificância, que Luzón Peña diz ter sido concebido por Roxin como causa de atipicidade, e que também se designa como casos de ilícito bagatela.
Significa o princípio da insignificância que não podem ser penalmente típicas ações que apesar de, em princípio, encaixarem numa descrição típica e de conterem algum desvalor jurídico, ou seja, que não se encontrem justificadas e não sejam plenamente lícitas, apesar disso no caso concreto o seu grau de ilicitude é mínimo, insignificante: porque, de acordo com o seu caráter fragmentário, as condutas penalmente típicas só devem ser constituídas por ações que sejam gravemente antijurídicas, não por factos cuja gravidade seja insignificante. O princípio da insignificância, conclui L. Peña, significa uma restrição tácita dos tipos que, no entanto, só opera quando numa conduta típica que, em princípio, é suficientemente grave, podem encaixar-se casos concretos cujo desvalor seja insignificante, o que pode suceder por ser mínimo o desvalor objetivo do facto ou do resultado ou também por ser mínimo o desvalor subjetivo da ação.
Referindo-se especificamente aos crimes de ofensa à integridade física, que aqui nos interessam, diz Paula Ribeiro de Faria que a “ofensa ao corpo ou a lesão da saúde não podem ser insignificantes”, o que é imposto por critérios de natureza constitucional, como o princípio da dignidade do bem jurídico protegido e da necessidade da intervenção do direito penal …e pelo próprio teor literal do tipo, uma vez que não se poderá considerar existente uma ofensa ao corpo ou à saúde, onde a lesão seja insignificante ou irrelevante. – Cfr Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2ª ed. p. 309, onde refere, no mesmo sentido, outros elementos doutrinários e jurisprudenciais, máxime os acórdãos da Relação do Porto citados a fls 310.(…)”[1]
3) Atenta a factualidade provada, a chapada leve, ou melhor dizendo “o enxota moscas” não pode deixar de reputar-se insignificante do ponto de vista da afectação da integridade física, enquanto bem jurídico tutelado pelo crime pelo qual a arguida, ora recorrente, foi condenada.
4) Na verdade, não resulta da factualidade provada – ponto 10, que a chapada leve – “enxota moscas” tenha afetado o bem-estar físico da demandante (...) de forma minimamente apreciável, não se provando sequer que tenha sentido qualquer dor – ponto 1 dos factos não provados.
A concreta configuração do contacto físico, que apesar de provocado voluntariamente pela arguida, ora recorrente, foi de pequena intensidade e sem consequências assinaladas,
5) bem como o contexto em que tal acção se verificou – na sequência de uma atitude consecutivamente provocatória da demandante (...) – cfr. ponto 8 dos factos dados como provados, impõem que se considere não ser a conduta da arguida suficiente para preencher materialmente o tipo legal de ofensa à integridade física, dada a insignificância do respetivo grau de ilicitude, ou seja, ao preenchimento aparente do tipo não corresponde, in casu, a concretização do juízo de ilicitude material subjacente à sua formulação, pelo que se revela atípica a conduta da arguida, ora recorrente, pelo que entendemos que a mesma deverá ser absolvida da prática do crime de ofensa à integridade física pelo qual vinha acusada.
6) A sentença condenatória não está em conformidade com a prova produzida em julgamento, e não fez uma correcta subsunção jurídica dos factos em apreciação, razão pela qual pugnamos pela sua revogação.

Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, fundamentado, em sentido idêntico à mencionada resposta, considerando que os factos não preenchem o tipo de crime, no sentido da procedência do recurso.

Observado o n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP), a arguida nada acrescentou.

Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.
*
2. FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso define-se pelas conclusões que a recorrente extraiu da motivação, em sintonia com o disposto no art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam, as previstas nos arts. 379.º, n.º 1, e 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, designadamente conforme jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do STJ n.º 7/95, de 19.10, in D.R. I-A Série de 28.12.1995) e, ainda, Simas Santos/Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 3.ª edição, pág. 48, e Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1994, vol. III, págs. 320/321.
Assim, delimitando-o, reside em apreciar:
A) - da absolvição do crime;
B) - da absolvição do pedido cível.

Note-se que, embora a recorrente refira que o recurso tem como objeto toda a matéria de facto e de direito, a motivação reconduz-se à vertente da matéria de direito.
Com efeito, não decorre que se insurja contra a matéria de facto, nem mesmo oferece argumentos que a critiquem por via de impugnação, seja por referência aos vícios da decisão previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, seja por reporte a erros de julgamento ao abrigo do art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP.
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Ao nível da matéria de facto, consta da sentença recorrida:
Factos provados:
Com interesse para a decisão da causa está provado que:
1. No dia 14.05.2018., pelas 14.00 horas, no interior do estabelecimento comercial denominado (...), sito na Rua (…), onde ambas trabalhavam, a arguida, (...), e (...), adiante designada por ofendida, iniciaram discussão motivada por questões de serviço;
2. A responsabilidade das reservas de mesa era de (...);
3. A escolha do peixe cabia aos empregados de mesa, como na altura era a categoria profissional da arguida, (...);
4. (...) para além de reservar a mesa para um cliente, escolheu o peixe para a refeição daquele e grupo de pessoas que o acompanhava;
5. A mesa reservada pertencia à área, no restaurante, que cabia à arguida, (...), servir às mesas e escolher o peixe;
6. (...) na discussão por questões de serviço referida no facto provado 1., afirmou, dirigindo-se, a (...): “Tu serves para ser peixeira”, na presença dos demais colegas;
7. Ao que (...) respondeu insistentemente “olha que eu te dou”;
8. (...) respondeu insistentemente a (...), dizendo: “Então dá lá”;
9. Nessa sequência, a arguida desferiu uma chapada leve na face da ofendida, após o que ambas agarraram mutuamente os cabelos uma da outra, até que os restantes funcionários as separaram;
10. Na sequência da chapada desferida pela arguida (...), (...) não recebeu tratamento médico;
11. A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito, que logrou alcançar, de molestar o corpo da ofendida;
12. A arguida sabia ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei penal;
13. Teor do certificado de registo criminal da arguida (primária);
14. (...) sentiu dores no couro cabeludo em consequência do agarrar de cabelos;
16. O estabelecimento, naquela hora, encontrava-se com clientes a tomar as suas refeições;
17. Os clientes assistiram ao sucedido;
18. Devido ao conteúdo dos factos provados 1. e 9., 16. e 17. foi levantado processo disciplinar à demandada, (...), pela entidade patronal, assim como à demandante, (...);
19. Não tendo respeitado o aviso prévio, foram-lhe descontados dos créditos laborais 500,00 euros;
20. O vencimento base de (...) era de 500,00 euros, quantia essa que deixou de auferir mensalmente, a partir de julho de 2018;
21. A demandante soube, através de outra pessoa, que a demandada, (...), terá afirmado que quando a apanhasse “a desfazia toda”;
22. A demandada agiu com consciência e intenção de ofender o corpo e a saúde da demandante, o que conseguiu, causando-lhe dores no couro cabeludo;
23. (...) trabalhava no (...) há nove anos;
24. E acabou por ser despedida na sequência de tal processo disciplinar relativo à situação da primeira nota de culpa e de uma segunda, que foi impugnada em ação judicial de apreciação de regularidade e licitude do despedimento, que correu termos junto do juízo de trabalho de Setúbal – Juiz 1-Proc. nº 6684/18.6T8STB;
25. No âmbito do qual foi a arguida indemnizada pela entidade patronal representantes legais do (...), no montante de 15.000,00 euros;
26. (...) na sequência do mencionado processo disciplinar apresentou carta de demissão à então sua entidade patronal representantes legais do (...);
27. (...) trabalhou no (...) durante cerca de 1 ano e tal;
28. A arguida vive sozinha é solteira e não tem filhos;
29. Em casa arrendada pelo valor mensal de 330,00 euros;
30. É empregada de mesa no restaurante (…);
31. Aufere mensalmente 635,00 líquidos.

Factos não provados:
Com interesse para a decisão da causa não resultou provado:
1. (...) sentiu dor na região da sua cara atingida;
2. A demandante, (...), é pessoa recatada, educada, respeitadora e respeitada, atenciosa e simpática para com todos;
3. Foi devido à conduta da demandada, (...), que a demandante, (...), não conseguiu continuar a trabalhar no (…);
4. (...) sentiu vergonha e humilhação;

5. (...) estava sempre a pensar no sucedido;
6. A demandante, que é conhecida pelos clientes, sentiu-se obrigada a dar explicações do sucedido quando era interpelada;
7. O que perturbava a demandante, fazendo-a recordar o sucedido;
8. Tentava manter a simpatia e o sorriso;
9. Ficou desempregada, situação que se mantinha na data da dedução do pedido de indemnização civil, sem direito a subsídio de desemprego;
10. A demandante tinha receio de se cruzar com a demandada na rua e que esta a voltasse a agredir;
11. (...) cravou as unhas na mão direita de (...);
12. (...) durante o período que laborou no (...), no que respeita à relação com os restantes colaboradores, tinha um comportamento provocador, conflituoso e desrespeitador, contrariamente à vítima inocente e medrosa que se quer fazer crer perante o tribunal;
13. (...) sempre demonstrou ser uma pessoa destemida e provocadora, conflituosa e sem medo de confrontos, que propositadamente incitava provocando até à exaustão vários ex-colaboradores, alguns até do sexo masculino, que em mais de uma ocasião, quase a agrediam, enquanto esta os desafiava a fazê-lo;
14. A título de exemplo, demonstrativo do caráter da demandante, no ano de 2007, o ex-colaborador de nome (…), na sequência de uma discussão iniciada por (...), em voz alta e perante os demais colaboradores e clientes, deu-lhe um safanão no braço, fazendo com que o bloco que (...) tinha na mão caísse ao chão, encostou a sua testa à testa desta com força, e disse-lhe “eu dava-te era uma cabeçada que era o que tu merecias”, ato continuo saiu do restaurante e nunca mais regressou;
15. Também outro ex-colaborador, de nome (…), que atendia às mesas no interior do restaurante, foi vítima das ofensas e provocações semelhantes por parte de (...);
16. Tal como o ex-colaborador (…), que face ao assédio diário a que se viu sujeito, por parte de (...), foi forçado a recorrer à ACT;
17. Após a carta de despedimento (...) continuou a frequentar diariamente o (...), onde deixou de trabalhar;
18. Visionando com os seus ex-empregadores e acompanhada de amigos, os jogos do Mundial de Futebol, alegremente e entusiasticamente, cercada de conhecidos e clientes.

Motivação:
A convicção do Tribunal gizou-se, no essencial, na testemunha que presenciou a totalidade dos factos (…), testemunha presencial, na altura ajudante de cozinha e filha da testemunha (…) que era cozinheira no (...).
Essa testemunha, (...), está de bem quer com a arguida quer com a ofendida, como afirmou, pelo que se revelou imparcial.
A testemunha (...) disse, no essencial, que tudo aconteceu na hora do almoço, a mesa pertencia ao serviço da (...) e a reserva da mesma mesa foi aceite por (...). (...) também escolheu o peixe para a referida reserva e mesa, o que não agradou a (...), pois aquela estava a “meter-se” no seu trabalho. (...) achou que o peixe escolhido por (...) não era o adequado para o número de pessoas que acompanhavam o cliente que reservou a mesma mesa. E, (...), trocou de peixe e a testemunha levou o peixe escolhido pela arguida para a cozinha. Ouviu e viu a arguida a dizer dirigindo-se a (...): “Olha que eu te dou”. E ouviu e viu (...) a afirmar, dirigindo-se a (...): “Então dá lá”. Em face do depoimento da testemunha (...) resultaram provados os factos 1., 2., 3., 4., 5., 7. e 8.
Ficou provado que (...) na discussão por questões de serviço referida no facto provado 1., afirmou, dirigindo-se, a (...): “Tu serves para ser peixeira”, na presença dos demais colegas, porque as duas, ofendida e arguida, o afirmaram (facto provado 6.).
O facto provado 10. ficou provado, porquanto a própria ofendida disse que não necessitou de assistência médica, confirmando o referido na acusação quanto a esta circunstância factual e não prejudicando a arguida dizendo o contrário, ou seja que recebeu tratamento médico ou medicamentoso.
No entanto, não se provou que a ofendida tenha sentido dor na parte da sua cara atingida com a chapada leve que lhe foi desferida pela arguida devido ao conceito que “chapada leve” encerra em si mesmo e face ao depoimento da única testemunha presencial desta agressão: (...). Sobre a dita chapada esta testemunha afirmou o seguinte:
- Foi uma chapada,
- Mas não foi um chapadão,
- Foi “um enxota moscas”.
Ora, “um enxota moscas” é comumente entendido como uma palmada leve. Palmada não é chapada que, como a própria expressão encerra, não é dada na cara. Uma palmada é desferida noutra parte do corpo, mas não no rosto. Na cara desfere-se um estalo, uma bofetada ou uma chapada, pelo que se deu como provado que a arguida desferiu uma chapada leve. Não constitui alteração dos factos descritos na acusação na medida em que beneficia a arguida em relação à factualidade descrita na acusação. Por outro lado, resultou não provado que (...) sentiu dor na região atingida (a cara), porque, para além de a chapada ter sido leve a qual não provoca dor, a testemunha (…) (alcunhado de …), empregado de mesa no (...), afirmou que (...) queixou-se de dores no couro cabeludo não na cara. Esta testemunha estava a trabalhar no local da ocorrência dos factos na hora e data mencionadas na acusação, e foi uma das pessoas que separou ambas, ofendida e arguida, quando se encontravam a puxar mutuamente os cabelos (facto não provado 1. e factos provados 14. e 22.).
A testemunha, (…), apenas arrolada ao pedido de indeminização civil, apesar de ter afirmado que presenciou a chapada foi contrariada pela testemunha (…) ou “…”, pois este afirmou que nesse momento aquela se encontrava no escritório do (…), do qual não é visível o local de tal ocorrência. Na dúvida entre os dois depoimentos, nesta parte, a mesma deve ser resolvida em desfavor da demandante que era quem tinha o ónus da prova (art. 487º e 346º, ambos do Código Civil), isto é que se desconhece se (...) viu ou não viu a chapada.
Os factos provados 11., 12. e 22., respeitantes à intencionalidade da arguida, quer ao nível criminal quer no âmbito do enxerto civil, e não obstante a mesma ter negado o desferimento da chapada em (...), foram fixados como provados devido ao circunstancialismo antecedente à chapada e puxões de cabelos consistente no teor da discussão sobre as questões de trabalho. Apesar da provocação por parte da ofendida e de a arguida estar nervosíssima, (...) quis bater em (...), o que fez com vontade sabendo que esta sua conduta era proibida por lei.
O documento correspondente ao certificado de registo criminal da arguida provou o facto provado 13., do qual resultou nunca antes ter sido julgada e condenada em processo de natureza criminal.
O estabelecimento, naquela hora, encontrava-se com clientes a tomar as suas refeições e os clientes assistiram ao sucedido, conforme o confirmado pela testemunha presencial da totalidade dos factos, (...) (factos provados 16. e 17.) e ainda pela testemunha, (…)que ajudaram a separar a arguida e a ofendida no momento em que agarravam mutuamente pelos cabelos.
Os factos provados 18. e 24., que são sobre o processo disciplinar e sua consequência que foi instaurado pela entidade patronal que explora o (...), provou-se com base na prova documental respeitante a tal procedimento interno e extrajudicial. Há que esclarecer que esta prova documental apenas pode servir para dar como provado os factos relativos ao pedido de indemnização civil. No que concerne à parte criminal do presente processo apenas pode ser valorada a prova produzida em julgamento, para além da prova documental junta aos autos. Portanto, está vedado ao juiz ter em consideração todas as declarações prestadas em sede de processo disciplinar, nomeadamente as proferidas por (...) e (...).
O facto provado 19. ficou provado pelo último recibo de vencimento de (...), conforme fls. 94 do processo, no qual se lê na linha designada por “Indemnização Aviso Prévio” que houve um desconto de 500,00 euros.
O facto provado 20. resulta da data aposta nesse último recibo de vencimento (31.07.2018.) conjugada com a data da demissão subscrita por (...) (16.07.2020.), respetivamente, doc. 2 e doc. 1 juntos com o pedido de indemnização civil.
O facto provado 21. decorreu da testemunha cabeleireira de (...), (…), que afirmou ter ouvido no seu salão profissional, na Lagoa de Albufeira, suas clientes a comentarem que (...) disse em público que “desfazia toda” a demandante. O depoimento desta testemunha não foi contraprovado nem sobre o mesmo foi feita prova do contrário.
O facto provado 23., sobre a antiguidade de serviço da arguida/demandada no (...), derivou do seu namorado de longa data, a testemunha (…), que tem conhecimento direto deste facto. Foi imparcial apesar do relacionamento emocional que mantém com a arguida, porque podia ter afirmado que estava presente no (...) quando sucederam as ofensas físicas para, eventualmente, depor a favor da sua namorada, mas não o disse.
O facto provado 25. decorreu da transação judicial, homologada pelo tribunal de trabalho de Setúbal, que tem força probatória plena porque emanada de autoridade pública, que está junto com a contestação ao pedido de indemnização civil a fls. 209.
O facto provado 26. resulta da carta de demissão da demandante civil (prova documental).
O facto provado 27. foi confirmado pela generalidade das testemunhas arroladas no pedido civil e que sobre o mesmo depuseram, sendo certo que se trata de um facto acessório e não fundamental para apreciação e julgamento da indemnização que é peticionada, pelo que as testemunhas, sem dúvida, que aqui falaram a verdade.
A factualidade relativa às condições pessoais, isto é familiares, profissionais e económicas da arguida, derivou das suas declarações pois, nesta parte, revelou-se credível dado que se trata de matéria de facto que é do seu conhecimento direto e pessoal (factos provados 28., 29., 30. e 31.).
Quanto aos factos não provados, para além dos supra já fundamentados, diga-se o infra.
Os factos não provados 2. a 8., não foram fixados como provados na medida em que (...) não se coibiu de previamente à agressão física discutir com (...) e provocar o desferimento da chapada leve, e por dizer insistentemente dirigindo-se à arguida/demandada “Então dá lá”. E agarrou os cabelos de (...), antes de tomar a atitude de sair do local e não se envolver fisicamente com a demandada/arguida. Contribuiu, assim, (...), para o sucedido perante os clientes do (...), local onde trabalhava.
A demandante não logrou fazer prova, nomeadamente documental como a apresentação do seu IRS ou IRC respeitante ao ano de 2018 e 2019 da sua situação de desemprego a partir, exclusive, de julho de 2018. Não ficou no desemprego propriamente dito, porque foi (...) que voluntariamente se demitiu do (...). Não foi despedida como consequência do processo disciplinar.
O tribunal ficou na dúvida sobre o receio que terá sentido (...) de “ser desfeita” pela demandada, na medida em que não receou se envolver mutuamente com (...), em puxões de cabelos (facto não provado 10.).
No que respeita ao facto não provado 11. apenas temos uma fotografia, que não está datada, conforme documento de fls. 153, e as declarações da arguida, o que é manifestamente insuficiente para provar que (...) cravou as unhas na mão direita de (...).
Os factos não provados 12. e 13. foi afirmado por um colega de trabalho de ambas, ofendida e arguida, que teve um problema de trabalho com (...), e as testemunhas (...) e (…) relacionam-se e estão de bem com a ofendida/demandante civil. Assim sendo, conclui-se pela falta de imparcialidade da testemunha (…). Face a esta conclusão deu-se, igualmente, como não provado o facto 16., isto é que o ex-colaborador do (...), (…), face ao assédio diário a que se viu sujeito, por parte de (...), foi forçado a recorrer à ACT.
Nenhuma testemunha afirmou o teor dos factos não provados 17. e 18.
A testemunha (…) não presenciou os factos ocorridos no (...), pois encontrava-se na sua loja sita na (…). Apenas disse que viu a arguida a chegar a casa, que se localiza nas proximidades dessa loja, muito nervosa e que desabafou com ela.
As restantes testemunhas arroladas não depuseram, porque foram prescindidas pelos intervenientes processuais que as indicaram, pelo que se não provaram o narrado nos factos não provados 14. e 15.
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Apreciando:

A) - da absolvição do crime:
A recorrente foi condenada pela prática de crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art. 143.º, n.º 1, do CP.
Contesta que assim devesse ter sido, preconizando a sua absolvição, assente, segundo transparece da sua alegação, em dois argumentos: (i) apenas exerceu retorsão sobre a ofendida e (ii) a ofensa corporal não atingiu dignidade penal.
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No âmbito do enquadramento de direito da matéria de facto provada, o Tribunal fundamentou:
«Em face da factualidade dada como provada e motivada, vemos que a arguida cometeu um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal, porquanto desferiu uma chapada leve na ofendida e puxou-lhes os cabelos.
“Para o preenchimento do crime de ofensa à integridade física apenas se exige a existência de uma ofensa no corpo (não cumulativamente a existência de ofensa à saúde), constituindo ofensa toda a acção que prejudique o bem estar físico da vítima, até independentemente de provocar ou não dor” – Acórdão da Relação de Coimbra, de 09.05.2012, in www,dgsi.pt
No seguimento de tal jurisprudência, entre outros acórdãos dos tribunais superiores nesse sentido, não é pressuposto da verificação do elento objetivo do tipo do crime em análise a existência de dor.
Mostra-se verificado o elemento objetivo.
A arguida agiu com conhecimento e vontade de praticar tais agressões físicas na ofendida, pelo que, também, se mostra preenchido o elemento subjetivo do tipo.
Não existem causas de exclusão da ilicitude ou da culpa.
E estão preenchidas todas as condições de punibilidade.».
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Vejamos.
No que respeita à questão de que (i) apenas exerceu retorsão sobre a ofendida, a recorrente invoca que esta insistentemente a provocou e a injuriou, o que ocasionou a alteração do seu estado psico-físico no direito de resposta às agressões sucessivas de que fora vítima.
Tem, assim, em vista a aplicação da alínea b) do n.º 3 do referido art. 143.º, sendo que, contudo, desde logo, sublinhe-se, caso se enverede pela sua perspectiva, a consequência não será a pretendida absolvição, uma vez que a retorsão, propriamente dita, redunda em que pode haver lugar a dispensa de pena, realidade que, manifestamente, não se confunde com a absolvição.
Feito o reparo, a retorsão implica situação em que o agente se limita a “responder” a uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido (e ao mesmo tempo agressor) empregando a força física (Paula Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial”, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 220).
Ora, o que decorre dos factos é que a ofendida se dirigiu à recorrente de modo algo inconveniente, dizendo-lhe “Tu serves para ser peixeira” (facto provado em 6), ao que a recorrente respondeu “olha que eu te dou” (facto provado em 7), tendo a ofendida respondido “Então dá lá” (facto provado em 8), na sequência do que ocorreu a ofensa (facto provado em 9).
Perante este acervo, se bem que tivesse sido a ofendida que iniciou a troca de palavras e da forma como o fez, a recorrente não se coibiu de responder em modo de ameaça física, relativamente à qual a ofendida reagiu por palavras, como que incitando-a ao que prometia, não se divisando, porém, não obstante a recorrente se pudesse ter sentido injuriada, que a ofendida, nos termos descritos, agisse com o emprego de alguma força.
Aliás, no contexto, foi a recorrente quem, de início, se reportou a algo no campo físico, o que não se pode dissociar do que veio a suceder.
Entende-se, pois, que a retorsão não se verifica.
Ainda, referindo-se a recorrente a provocação da ofendida, a eventual relevância deste aspecto só se colocaria em sede de atenuação especial da medida da pena (art. 72.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do CP) e não, também, para a sua absolvição.
Relativamente à questão de que (ii) a ofensa corporal não atingiu dignidade penal, a recorrente não avança, para além do mencionado, com específica argumentação a não ser a de se ter tratado de uma “chapada leve”, que a motivação do Tribunal faz equivaler, acompanhando o depoimento da única testemunha presencial, a “um enxota moscas”.
Ainda, resulta implícito à alegação que se provou que a ofendida não recebeu tratamento médico (facto provado em 10) e não se provou que a ofendida sentiu dor na cara (facto não provado em 1).
Afigura-se que a problemática suscitada é pertinente, justificando o cuidado de, na avaliação dos factos, não a resumir à circunstância em que o Tribunal suportou a sua posição, diga-se, tendencialmente correcta, pois no sentido de que a lesão no corpo ou na saúde, subjacente ao tipo legal, prescinde de que, necessariamente, exista dor ou sofrimento.
Não apenas, todavia, essa circunstância deve relevar como o Tribunal a mencionou, como também a exigência de que a ofensa não poderá ser insignificante.
Por ofensa no corpo poder-se-á entender todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem estar físico de uma forma não insignificante e Sob o ponto de vista do bem jurídico protegido não será de ter como relevante a agressão, e ilícito o comportamento do agente, se a lesão é diminuta (neste sentido de uma cláusula restritiva de inadequação social” cf. Figueiredo Dias, Sumários 1975 153) - Paula Ribeiro de Faria, ob. cit., p. 205 e 207.
Ora, a situação vertente comporta sérias reticências quanto ao significado da “chapada leve” que a recorrente desferiu na face da ofendida, para o efeito da sua conduta se dever ter por penalmente ilícita.
Tanto mais que não se alheia de que a ofendida não recebeu tratamento médico e que não se provou que tivesse sentido dor, sem descurar o contexto de discussão em que tudo ocorreu, entre colegas de trabalho e por questões de serviço, em momento de exaltação.
Aliás, o Ministério Público, na sua resposta ao recurso (e identicamente o Digno Procurador-Geral Adjunto no seu parecer) foi sensível a essas particularidades, sublinhando que A concreta configuração do contacto físico, que apesar de provocado voluntariamente pela arguida, ora recorrente, foi de pequena intensidade e sem consequências assinaladas, bem como o contexto em que tal acção se verificou – na sequência de uma atitude consecutivamente provocatória da demandante (...) – cfr. ponto 8 dos factos dados como provados, impõem que se considere não ser a conduta da arguida suficiente para preencher materialmente o tipo legal de ofensa à integridade física, dada a insignificância do respetivo grau de ilicitude, ou seja, ao preenchimento aparente do tipo não corresponde, in casu, a concretização do juízo de ilicitude material subjacente à sua formulação, mormente, apoiando-se no que se consignou no Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora de 22.09.2015, no proc. n.º 1157/10.8PBFAR.E2 (rel. António Latas e sendo adjunto o agora relator).
Colhe-se, então, deste Acórdão:
«O caso concreto, porém, convoca, ao nível do preenchimento do tipo de ilícito, a temática das chamadas causas de atipicidade ou de exclusão da tipicidade, ou seja, na definição de Luzón Peña (Diego-Manuel Luzón Peña, Causas de Atipicidade in AAVV, Problemas Fundamentais de Direito Penal. Homenagem a Claus Roxin, Universidade Lusíada Editora-2002, p. 111 e sgs) (que seguimos de perto nesta matéria), circunstâncias que, por razões materiais, excluem a tipicidade da conduta apesar de esta formalmente encaixar-se na descrição legal, supondo, portanto, a negação do tipo.
Partindo da distinção de Luzón Peña entre causas de exclusão do tipo indiciário e causas de exclusão da tipicidade penal ou do ilícito penal, verificam-se estas últimas quando concorrem circunstâncias que operam como causas, tacitamente subentendidas no sentido dos tipos penais, de restrição e portanto de exclusão da tipicidade penal: embora haja uma perturbação ou lesão de bens jurídicos que em princípio é juridicamente relevante, no entanto não é grave o suficiente para considerar-se jurídico-penalmente relevante; portanto, a conduta será de algum modo ilícita, mas não é penalmente típica e ilícita (idem, p. 119)
Assim entendidas, as causas de atipicidade penal são uma parte negativa de qualquer tipo penal, podendo considerar-se como tal, sem exaustividade, o princípio da insignificância, a tolerância social, alguns casos de adequação social, certos casos de consentimento não plenamente válido ou a inexigibilidade penal geral – cfr L.Peña, est. cit. p. 120.
De entre estas circunstâncias importa-nos no caso concreto o princípio da insignificância, que Luzón Peña diz ter sido concebido por Roxin como causa de atipicidade, e que também se designa como casos de ilícito bagatela.
Significa o princípio da insignificância que não podem ser penalmente típicas ações que apesar de, em princípio, encaixarem numa descrição típica e de conterem algum desvalor jurídico, ou seja, que não se encontrem justificadas e não sejam plenamente lícitas, apesar disso no caso concreto o seu grau de ilicitude é mínimo, insignificante: porque, de acordo com o seu caráter fragmentário, as condutas penalmente típicas só devem ser constituídas por ações que sejam gravemente antijurídicas, não por factos cuja gravidade seja insignificante. O princípio da insignificância, conclui L. Peña, significa uma restrição tácita dos tipos que, no entanto, só opera quando numa conduta típica que, em princípio, é suficientemente grave, podem encaixar-se casos concretos cujo desvalor seja insignificante, o que pode suceder por ser mínimo o desvalor objetivo do facto ou do resultado ou também por ser mínimo o desvalor subjetivo da ação».
Transpondo tais considerações para o caso aqui em análise, reconhece-se que a situação de facto dos autos não é coincidente com aquela que foi ali avaliada (ter o arguido desferido um empurrão no peito de agente da autoridade quando este se colocou à sua frente).
Tem, pois, de admitir-se que uma “chapada”, embora “leve”, tem inevitavelmente um maior desvalor.
Ainda assim, não resultando propriamente, provada a dimensão dessa dita leveza da chapada, a motivação decisória permite aquilatar de que se tratou de um mero “enxota moscas”, na expressão usada por quem a presenciou e, como tal, valorada pelo Tribunal, levando, pois, a inferir que até foi muito leve.
Entende-se, então, perante todos os apontados factores, de tolerar e aceitar que se verifica, na conduta da recorrente, falta de significado bastante para configurar afectação da integridade física da ofendida, que mereça a dignidade intrínseca ao bem jurídico protegido e justifique a intervenção do direito penal.
Não se revela concretizado o juízo de ilicitude material subjacente ao tipo legal, motivo por que a sua conduta, ainda que não lícita, não impõe, dada a sua insignificância nos termos descritos, que se considere que incorreu no crime de ofensa à integridade física simples, por que foi condenada.
Em conformidade, a absolvição da recorrente é a solução que melhor reflecte adequada avaliação e equilíbrio.

B) - da abolvição do pedido cível:
Na vertente cível, foi condenada a pagar à demandante a indemnização de 500,00 euros, a título de danos não patrimoniais.
Refere a recorrente que não está no âmbito da acusação e não existiu dano.
Ora, tendo em conta que aquele valor da indemnização, apesar do pedido ter sido formulado pelo montante de 6.000,00 euros, é inferior a metade da alçada do tribunal recorrido (a alçada é de 5.000,00 euros, nos termos do art. 44.º da Lei n.º 62/2013, de 26.08), o recurso não se mostra admissível, como resulta do art. 400.º, n.º 2, do CPP.
Contudo, a tanto não obsta que se retirem da procedência na parte criminal, que ficou decidida para si favoravelmente, as consequências que se justifiquem em sede cível (art. 403.º, n.º 3, do CPP).
Mas, também, tem de considerar-se, nos termos do art. 377.º do CPP, que da absolvição-crime não resulta necessariamente a absolvição-civil, sendo que, não obstante aquela, a condenação civil permanece sempre que o pedido respectivo se revelar fundado.
Assim, extrai-se da sentença que o Tribunal referiu que Do que está provado apenas há as dores no couro cabeludo devido aos puxões de cabelos praticados pela demandada sobre a cabeça da demandante e, mais adiante, Ocorre até culpa do lesado, nos termos do artigo 570º do Código Civil, na medida em que a demandante incitou a demandada a dar-lhe uma chapada, que acabou por ser leve, e a puxar-lhe os cabelos causando-lhe dores no couro cabeludo.
Sustentou-o, pois, no facto provado em 22 - “A demandada agiu com consciência e intenção de ofender o corpo e a saúde da demandante, o que conseguiu, causando-lhe dores no couro cabeludo” -, ainda que reconhecendo a contribuição da lesada, aliás, patente em que não se descurará que se provou, também, que “ambas agarraram mutuamente os cabelos uma da outra”, como provado em 9.
Deste modo, ainda que aparentemente aquele facto provado em 22 não contenda com a absolvição, o mesmo tem de ser integrado na realidade global reflectida em matéria de facto, motivo por que, em rigor, acaba por não se autonomizar no sentido de fundamentar a responsabilidade civil da recorrente, por maioria de razão quando é manifesta a culpa da lesada como ficou assinalado, comportando, por um lado, a exclusão da indemnização (art. 570.º, n.º 1, do Código Civil) e, por outro, que a gravidade dos danos em causa não merecem, afinal, a tutela do direito (art. 496.º, n.º 1, do mesmo Código).
Assim, consente-se que se retire, em matéria cível, conclusão consentânea com o acervo factual que justificou a absolvição no âmbito criminal, o mesmo é dizer que, na vertente cível, falece fundamento para que o pedido seja considerado como fundado.
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3. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se:
- conceder provimento ao recurso interposto pela arguida/demandada e, em consequência,
- revogar a sentença recorrida que a condenou pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples e no pagamento da indemnização e, em substituição, determinar que vai absolvida do crime por que foi pronunciada e do pedido de indemnização civil contra si deduzido.

Sem custas (art. 513.º, n.º 1, do CPP a contrario sensu).

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Processado e revisto pelo relator.

23.Fevereiro.2021
Carlos Jorge Berguete
João Gomes de Sousa
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[1] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 22/09/2015 – Processo n.º 1157/10.8PBFAR-E2, in www.dgsi.pt