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HERANÇA INDIVISA
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
REPRESENTAÇÃO EM JUÍZO
HERDEIRO
USUCAPIÃO
Sumário
I – A atuação em juízo de uma herança indivisa pressupõe a intervenção de todos os herdeiros, correspondendo a uma situação de litisconsórcio necessário, decorrente do artigo 2091º, nº 1, do Código Civil. II - Não sendo a qualidade de herdeiros dos réus questão jurídica nuclear no processo e não tendo aqueles, pessoal e regularmente citados, posto em causa essa qualidade que lhes é atribuída, seria excessiva a exigência imposta pelo artigo 4º do Código do Registo Civil para comprovação dessa situação. III - A confissão, ainda que tácita, daquela qualidade é suficiente, nesta ação, para se ter como assente que os réus são os herdeiros da pessoa a favor de quem se mostra inscrita a aquisição do imóvel em discussão nos autos. IV - Estando provado que a autora e os intervenientes, durante mais de 25 anos, habitaram o prédio dos autos, fazendo as necessárias obras de recuperação e reconstrução, sempre à vista de todos os vizinhos e restantes moradores da aldeia de Póvoa e Meadas, sem oposição de quem que que fosse e no convencimento de tal prédio ser seu, mostram-se preenchidos todos os requisitos para a autora e os intervenientes terem adquirido a propriedade do mencionado prédio por usucapião. (sumário do relator)
Texto Integral
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I – RELATÓRIO L… instaurou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra Jo…, Jor…, Ma…, I…, A…, R…, Lu…, J…, M…, Mar…, Jos…, MA…, C…, JG…, MA…, JC…, Is…, MG…, AR…, N…, MC…, E…, MF…, AC…, COM… e Ed…, pedindo que:
a) autora e chamados sejam declarados proprietários, com exclusão de outrem, do prédio urbano sito na Rua … Póvoa e Meadas;
b) os réus sejam condenados a reconhecer que o prédio supra identificado é propriedade da autora e dos chamados;
c) seja ordenado o registo de inscrição do prédio referido no artigo 1.º desta petição, em nome da autora e dos chamados na Conservatória do Registo Predial de Castelo de Vide;
d) seja ordenada a retificação da descrição predial n.º … – Póvoa e Meadas, por forma a que dela passe a constar que o prédio aí descrito tem a seguinte descrição: Prédio urbano composto por uma casa de habitação de três pisos, com a superfície coberta de 96m2 e a superfície descoberta de 244m2, inscrito na respetiva matriz sob o artigo …, sito na Rua …, freguesia de Póvoa e Meadas, concelho de Castelo de Vide.
Para tanto, alegou, em síntese, que é, conjuntamente com os seus filhos, I…, Ma… e J…, proprietária do referido prédio, sendo que no início do mês de abril de 1995, celebrou um contrato verbal de compra e venda com Jo… representante dos herdeiros de I…, falecida em 04.03.1995, pelo valor de 5.000.000$00, tendo o prédio sido entregue à autora e seu falecido marido, JF…., nessa data.
Mais alegou que desde aquela data a autora e os filhos fizeram as necessárias obras de recuperação e reconstrução do prédio, habilitando-o, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, convictos de que tais atos não lesavam os interesses ou direitos de ninguém e que se tratavam dos seus legítimos proprietários, sendo que tais atos têm vindo a ser praticados há mais de 20 anos.
Requereu ainda o chamamento, como intervenientes principais, dos seus filhos, justificando o mesmo pela necessidade de intervenção de todos os comproprietários para assegurar a sua legitimidade.
Os réus, pessoalmente e regularmente citados, não apresentaram contestação, nem constituíram mandatário.
Por despacho proferido em 18.06.2019, foi admitida a intervenção principal provocada de I…, ML… e J…, os quais, devidamente citados, nada disseram.
Por despachos de 14.10.2019, 15.01.2020 e 21.01.2020, foi a autora convidada a comprovar documentalmente a qualidade de herdeiros dos réus.
A autora veio juntar aos autos certidão de um processo de inventário onde se refere que o dito imóvel nunca chegou a ser partilhado.
Em 20.02.2020 foi proferido despacho no qual, além do mais, se consignou:
«(…). A não contestação dos réus implica uma situação de revelia operante, cuja consequência é a confissão dos factos articulados pelo(s) autor(es). No entanto, o artigo 568.º, alínea d) do Código do Processo Civil exceciona os factos cuja prova exija documento escrito. Assim, apenas poderão ser declarados confessados os factos cuja prova não exija documento escrito. (…).»
Cumprido o disposto no nº 2 do artigo 567º do CPC, não foram apresentadas alegações.
De seguida, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Nestes termos, pelo exposto e de harmonia com o disposto nos preceitos legais supracitados, julgo a ação improcedente, em consequência, absolvo os réus.»
Inconformada, a autora interpôs recurso desta decisão, finalizando a respetiva alegação com as conclusões que se transcrevem:
«1-) Devem ser acrescentados aos factos provados os factos alegados nos artigos 16º e 17º da Petição Inicial, ou seja:
- Convictos de que tais actos não lesavam os interesses ou direitos de ninguém;
- E que se tratavam dos seus legítimos proprietários.
2-) A Autora veio invocar um modo de aquisição originária da propriedade (artigo 1316º do Código Civil). Nos termos do artigo 7º do Código de Registo Predial, “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define. Isto consubstancia uma presunção juris tantum de que o direito registado pertence ao titular inscrito, ilidível mediante a prova da aquisição originária, através da usucapião.
3-) Dispõe o artigo 1287º do Código Civil que se entende por usucapião a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, que faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação.
4-) A usucapião surge da união de dois elementos nucleares: a posse e o decurso do tempo. A usucapião é um modo de aquisição originária de direitos reais, pela transformação de uma situação de facto, aparente, em situação jurídica, em benefício daquele que exerce a gestão económica da coisa.
5-) A usucapião assenta, assim, na posse, ou seja, no poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (artigo 1251º do Código Civil).
6-) A posse pode ser titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta (artigo 1258º do Código Civil).
7-) Os artigos 1294º a 1297º do Código Civil regulam os vários prazos, mais ou menos longos de acordo com a natureza da posse para a aquisição por usucapião de imóveis. O prazo máximo é, actualmente, de 20 anos. Com efeito, melhor dizendo, esse prazo, não havendo registo do título, nem da mera posse, é de 15 (quinze) anos se a posse for de boa fé, e de 20 (vinte) anos se for de má fé (artigo 1296º do Código Civil).
8-) Nos termos do disposto no artigo 1260º, nº 1, do Código Civil, «a posse diz-se de boa fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem».
9-) Por outro lado, a posse que pode conduzir à usucapião tem de ser pública e pacífica, sendo que as características dessa posse (ser de boa ou má fé, sendo titulada ou não, havendo registo ou não) importam para a determinação do prazo para que tenha susceptibilidade de produzir efeitos jurídicos plenos.
10-) Em Abril de 1995, o J…, procedeu à entrega do prédio nos autos à Autora e ao seu marido, que a partir desse momento habitaram no prédio fazendo as obras necessárias de recuperação e reconstrução.
11-) Os actos de exploração e de domínio em causa têm vindo a ser praticados pela Autora e Chamados na convicção de serem donos do prédio em questão, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e sem violência alguma.
12-) E o prédio em questão entrou na posse da Autora por força de um negócio estabelecido entre o anterior possuidor (J…) e a agora Autora e o seu marido.
13-) A posse em causa foi adquirida tanto por via da alínea a) do artigo 1263º do Código Civil, como pela tradição material ou simbólica da coisa efectuada pelo anterior possuidor.
14-) No caso em apreço a posse é de considerar pública, pois resultou provado que a Autora e os Chamados praticaram os actos correspondentes ao exercício do direito de propriedade à vista e com o conhecimento de toda a gente, tal como ressalta da análise dos elementos constitutivos referidos pelo artigo 1262º do Código Civil.
15-) O Código Civil, no seu artigo 1261º, nº2, considera violenta a posse quando, para obtê-la, o possuidor usou de coacção física, ou de coacção moral. A violência física ou moral na aquisição da posse é uma situação distinta da anuência e concordância com a existência da mesma. Para a existência da usucapião não é necessário a anuência de terceiros, neste caso dos Réus, bastando para tal a sua inércia ao longo do tempo. Porém, no caso concreto, a posse da Autora é de natureza pacífica, pois foi adquirida sem violência, não tendo havido oposição de quem quer que seja (artigo 1261º, nº 1, do Código Civil).
16-) Nesta medida, independentemente da natureza do negócio realizado entre o referido J… e a Autora e o marido existe um quadro de posse efectiva e plena, tanto no domínio objectivo como na componente subjectiva, que conduziu à aquisição da referida parcela por usucapião.
17-) Os actos descritos na factualidade provada não se tratam de episódios de mera administração ou simples detenção, antes reflectem uma realidade de verdadeiro, puro e exclusivo exercício do direito de pertença que, por estar acompanhados de uma intenção apropriativa e de uma tendência domini, foram, por antecipação, susceptíveis de accionar e fazer operar com êxito o instituto da usucapião.
18-) A factualidade provada demonstra que, durante o período de carência imposto por lei, de forma pública, pacífica e de boa-fé, o Autor praticou actos de posse sobre a coisa com sinais visíveis, permanentes e inequívocos de que pretendia assumir a condição de proprietário da mesma. E, adicionalmente, as condições do exercício desse direito foram inteiramente perceptíveis pela comunidade e pelos próprios titulares do direito concorrente ou conflituante.
19-) Assim, face aos factos provados, perante a circunstância de ter havido a tradição da coisa e a que se sucedeu a prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercido do direito de propriedade, a Autora e os Chamados agiram convencidos de que eram os donos do prédio e apresentaram-se sempre como proprietários do imóvel. Deste modo, a posse destes é de boa-fé e, por isso, atendendo à presunção [ilidível] estabelecida no artigo 1260º, nº2, do Código Civil apenas era necessário o decurso de um prazo de 15 (quinze) anos para a aquisição do direito de propriedade.
20-) Para além dessa intenção de domínio e da convicção de serem donos do imóvel, a Autora e os Chamados mantém-se ininterruptamente na posse do referido prédio desde há 25 anos, período esse bastante superior ao tempo superior ao período máximo de 20 (vinte) anos exigido por lei e assim há que reconhecer que adquiriu o prédio por usucapião (artigo 1296º do Código Civil).
21-) Face ao exposto, estão reunidos todos os pressupostos para a aquisição pelo Autor, por usucapião, do prédio rústico aqui em debate e esse acto aquisitivo tem eficácia plena em relação a quem quer que seja, independentemente do registo.
22-) Tratando-se de um modo de aquisição originária do direito de propriedade, ou seja, independentemente do direito do anterior titular e estando provada a aquisição da posse nos termos do disposto nas alíneas a-) e b-) do artº.1263 do Código Civil, o facto de não estar demonstrando nos autos que os Réus são herdeiros da actual proprietária inscrita no registo predial, não impede a procedência da acção.
23-) Nestes termos e nos melhores de Direito, deve a sentença recorrida ser revogada e em consequência, ser a acção julgada procedente, assim se fazendo Justiça».
Não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questões a decidir consubstanciam-se em saber:
- se deve ser alterada a decisão da matéria de facto;
- se a autora e os intervenientes devem ser reconhecidos como proprietários do prédio dos autos, por o haverem adquirido por usucapião.
Como questão prévia importa, porém, apreciar a questão da legitimidade dos réus que, no entender da decisão recorrida, por não estar demonstrada, conduziu à improcedência da ação e à “absolvição dos réus”.
III – FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. Encontra-se inscrita a aquisição - sucessão por morte - a favor de I…, do prédio urbano, sito na Rua … Póvoa e Meadas, descrito na Conservatória do Registo Predial de Castelo de Vide, sob o n.º … e inscrito na respetiva matriz sob o n.º … - artigo 1.º da PI e certidão do registo predial. 1-a) O referido prédio é composto por uma casa de habitação, com dois pisos, com a superfície coberta de 96m2 e a superfície descoberta de 244 m2.[1]
2. I… faleceu em 04.03.1995 - artigo 5.º da PI.
3. No início do mês de abril de 1995, a autora celebrou verbalmente um acordo de compra e venda com J…, tendo a autora procedido à entrega a este último da quantia de € 5 000 000$00 - artigos 7.º e 8.º da PI.
4. No mesmo dia, J…, procedeu à entrega do prédio referido no ponto 1. à autora e ao seu marido - artigo 9.º da PI.
5. Desde esse momento, a autora e os chamados habitaram no prédio, fazendo as necessárias obras de recuperação e reconstrução, sempre à vista de todos os vizinhos e restantes moradores da aldeia de Póvoa e Meadas e sem oposição de ninguém - artigos 11.º, 12.º, 13.º, 14.º, 15.º, 18.º da PI. 5-a) Convictos de que tais atos não lesavam os interesses ou direitos de ninguém – artigo 16º da PI. 5-b) E que se tratavam dos seus legítimos proprietários – artigo 17º da PI.
6. A autora e os chamados sempre atuaram pacificamente - artigo 19.º da PI.
7. J…, marido da autora, faleceu em 22.04.2005 - artigo 10.º da PI.
8. A presente ação foi intentada pela autora em 18.12.2018.
E foi considerado não provado que:
- Os réus são herdeiros de I….[2]
FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO-JURÍDICA Questão prévia
Escreveu-se na sentença recorrida:
«No caso em apreço não restam dúvidas de que a autora deveria ter proposto a ação contra o atual proprietário do imóvel relativamente ao qual pretende que seja declarada a sua aquisição, através da usucapião [neste caso, I…, que beneficia, pois, da presunção (não ilidida) resultante do registo, pelo que é de considerar incontestada a sua qualidade de atual proprietária (artigo 7.º do Código do Registo Predial)]. Sucede que I… faleceu. Dispõe o artigo 2091.º do Código Civil que, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros. Igualmente o artigo 33.º n.º 2 do Código de Processo Civil prevê que “é igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal”. Estamos neste caso face a um litisconsórcio necessário natural, que visa salvaguardar o efeito útil que a sentença venha a ter. (…). Abordando esta situação em concreto, tendo em consideração os factos dados como não provados, o tribunal não tem ao seu dispor os necessários elementos para poder aferir que se está perante uma preterição de litisconsórcio necessário – simplesmente, não se pode avaliar se estão presentes na ação todas as pessoas que têm de estar na ação para que esta possa produzir o seu efeito útil normal [daí entendermos não poder conhecer esta questão como uma (i)legitimidade processual]. Caso fosse reconhecido o direito de propriedade da autora e não estivessem na ação todos os herdeiros da falecida (desconhecemos quem são), poderíamos ter uma sentença que não era eficaz perante terceiros, podendo dar origem a decisões contraditórias e inconciliáveis. Com efeito, não estando demostrado que os réus são herdeiros da atual proprietária do imóvel, desconhece-se se estes são titulares do direito que a autora pretende arrogar-se. Serão assim os réus absolvidos da presente ação, não devendo o tribunal conhecer dos pedidos formulados pela autora [avaliação dos pressupostos para que seja declarada e reconhecida a aquisição do direito de propriedade da autora e demais chamados através da usucapião].»
Não sofre contestação que a atuação em juízo de uma herança indivisa pressupõe a intervenção de todos os herdeiros, correspondendo a uma situação de litisconsórcio necessário, decorrente do artigo 2091º, nº 1, do CC.
O que não pode aceitar-se é que, tendo o Tribunal a quo considerado não dispor de elementos para aferir se os réus são os herdeiros da pessoa a favor de quem se mostra inscrita a aquisição do imóvel dos autos, entretanto falecida, conclua que não estamos perante um caso de ilegitimidade ad causam, e muito menos que os réus devem ser «absolvidos da presente ação, não devendo o tribunal conhecer dos pedidos formulados pela autora [avaliação dos pressupostos para que seja declarada e reconhecida a aquisição do direito de propriedade da autora e demais chamados através da usucapião]».
O entendimento expresso na sentença recorrida, que veio a culminar numa “absolvição dos réus”, sem que se tenha dito se tal absolvição era da instância ou do pedido, assenta, antes de mais, numa premissa que se afigura incorreta e que não colhe em face dos elementos existentes nos autos.
Na verdade, entendeu-se na sentença que a prova da qualidade de herdeiros dos réus «apenas pode ser feita através de documento escrito, neste caso, documento autêntico – certidões», e daí considerou-se que não obstante «os réus não tenham contestado a presente ação, terá de ser dada como não provada a factualidade relativa à qualidade de herdeiros dos réus – alínea A) dos factos não provados.»
Ora, na sequência de convite feito pelo Tribunal, a autora juntou aos autos uma certidão de um processo de inventário, na qual constam como interessados os réus, e se certifica que o imóvel dos autos “não chegou a ser partilhado” (cfr. referência 1546396).
Ora, este documento afigura-se idóneo a comprovar a qualidade de herdeiros dos réus e, se dúvidas houvesse, devia o Tribunal a quo ter diligenciado pela remoção das mesmas junto do Tribunal que emitiu tal certidão, ao abrigo do dever de gestão processual consagrado no artigo 6º do CPC.
Ademais, não sendo a qualidade de herdeiros dos réus questão jurídica nuclear no processo e não tendo aqueles, pessoal e regularmente citados, posto em causa essa qualidade que lhes é atribuída, seria excessiva a exigência imposta pelo artigo 4º do Código do Registo Civil para comprovação dessa situação.
A confissão, ainda que tácita, daquela qualidade é suficiente, nesta ação, para se ter como assente que os réus são os herdeiros da pessoa a favor de quem se mostra inscrita a aquisição do imóvel em discussão nos autos[3].
Está, pois, assegurada a legitimidade ad causam passiva[4], pelo que, ao invés do decidido, nada obsta ao conhecimento das questões atinentes ao mérito da causa.
Da impugnação da matéria de facto
Como resulta do artigo 662º, nº 1, do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa.
Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto: confissão tácita ou presuntiva dos factos alegados pela autora, regulada no artigo 567º, nº 1, do CPC e prova documental.
Entende a recorrente que deve ser dada como provada a matéria alegada nos artigos 16º e 17º da petição inicial, por a mesma não ser conclusiva e se dever ter por confessada pelos réus, que não contestaram a ação.
A matéria em causa é a seguinte:
- Convictos de que tais atos não lesavam os interesses ou direitos de ninguém;
- E que se tratavam dos seus legítimos proprietários.
Escreveu-se na sentença recorrida que «[n]ão se consideraram os demais «factos» insuscetíveis de prova pela sua natureza conclusiva, probatória ou de direito».
Entendemos, porém, que a matéria em causa deve constar do elenco dos factos provados. Senão vejamos.
Afinal do que se trata, concretamente, é de considerar se realidades de natureza psicológica podem ou não integrar realidades de facto. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem dado resposta positiva a esta dúvida em termos que se encontram explanados no acórdão de 07.05.2015[5], cuja fundamentação aqui se transcreve na parte relevante:
“Na formulação de Alberto dos Reis, «a) É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior; b) É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei» (Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 4.ª ed., Coimbra Editora, 1985, págs. 206-207). Para Miguel Teixeira de Sousa, «A selecção da matéria de facto não pode conter qualquer apreciação de direito, isto é, qualquer valoração segundo a interpretação ou aplicação da lei ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica» (Estudos sobre o Processo Civil, Lex, p. 312). Na expressão de A. Varela, M Bezerra e Sampaio e Nora, factos são as ocorrências concretas da vida real, os acontecimentos concretos da realidade (Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1985, p.406). Como faz notar Anselmo de Castro, para o efeito de distinguir facto e direito “é indiferente a natureza do facto: são factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os factos reais, como os simplesmente hipotéticos. Do conteúdo que deve revestir decidirá apenas a norma legal” (Direito processual Civil Declaratório, vol. III, Almedina 1982, p. 268). Também a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem considerando que a intenção, o convencimento, enquanto realidades do mundo psicológico, fazem parte das realidades de facto. Como se assinala no Acórdão deste Supremo Tribunal de 16.10.2012, Proc. nº 649/04.2TBPDL.L1.S1, (acessível em www.dgsi.pt/jstj) «já no Assento de 19-10-1954 se escrevia que “averiguar a intenção dos outorgantes ou do testador é averiguar um fenómeno psicológico o que, à evidência, não constitui matéria de direito, mas pura matéria de facto” (R.L.J., Ano 87º, n.º 3035, pág. 224); assim se entendeu no Ac. do S.T.J. de 4-10-2001 (Simões Freire), revista n.º 2485/01- 2ª secção [2] que "são quesitáveis os actos de foro interno e os juízos de facto, entendidos estes como dirigidos ao "ser", ontologicamente concebido, e não ao dever ser normativo" e, no âmbito de acção de simulação, considerou -se no Ac. do S.T.J. de 7-3-2002 (Ferreira de Almeida), revista n.º 4129/01- 2ª secção que "a determinação da intenção dos contraentes, designadamente do animus decipiendi, integra matéria de facto cujo apuramento é apanágio exclusivo das instâncias e cujo ónus de dedução e de prova impende sobre o demandante - arguente". De igual modo se considerou no Ac. do S.T.J. de 18-12-2003 (Ferreira de Almeida) P. 3794/2003 que a determinação da intenção dos contraentes, designadamente o intuito de enganar terceiros, bem como a questão de saber se o declaratário conhecia a vontade real do declarante constitui matéria de facto cujo apuramento é da exclusiva competência das instâncias, satisfeitos que sejam - é claro - o ónus da alegação e da prova da banda do demandante. O Supremo, como tribunal de revista, só conhece, em princípio, de matéria de direito, limitando-se a aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido». Factos são não só os acontecimentos externos, mas também os estados emocionais, os eventos do foro interno, psíquico. Realidades como dores, sofrimento moral, conhecimento da vontade real do declarante ou a intenção do testador integram o conceito de matéria de facto processualmente relevante, sendo passíveis de prova.”[sublinhado nosso]
Aplicando esta orientação ao caso dos autos, considera-se que os enunciados relativos à convicção da autora e dos intervenientes de não lesarem os direitos de terceiros e de serem os proprietários do prédio dos autos, revestem a natureza de proposições de facto, integrantes de factos essenciais ou nucleares, os quais devem constar da matéria de facto provada.
Assim, decide-se aditar ao elenco dos factos provados a seguinte matéria:
«5-a) Convictos de que tais atos não lesavam os interesses ou direitos de ninguém – artigo 16º da PI. 5-b) E que se tratavam dos seus legítimos proprietários – artigo 17º da PI.»
Deve também aditar-se à matéria de facto, com o nº 1-a) que o prédio em causa é composto por uma casa de habitação, com dois pisos, com a superfície coberta de 96m2 e a superfície descoberta de 244 m2, conforme foi alegado pela autora no artigo 1º da petição inicial e resulta da caderneta predial junta como “Doc. 1”.
Deve ainda retificar-se o artigo da matriz constante do ponto 1 dos factos provados, pois tal como alegado no artigo 1º da petição inicial e resulta da referida caderneta predial, esse artigo é o … e não ….
Assim, no ponto 1 dos factos provados, onde se lê “inscrito na respetiva matriz sob o n.º …”, deve ler-se “inscrito na respetiva matriz sob o n.º …”.
Por último e pelas razões acima expostas na questão prévia, deve ser eliminado o único facto dado como não provado: «[o]s réus são herdeiros de I…».
Da aquisição originária do direito de propriedade (usucapião)
A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição a cujo exercício corresponde a sua atuação – é o que se chama usucapião – artigo 1287º do CC.
A verificação da usucapião depende de dois elementos: da posse e do decurso de certo período de tempo, variável conforme a natureza móvel ou imóvel da coisa.
A posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma corresponde ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real – artigo 1251º do CC.
À luz desta disposição, combinada com a do artigo 1253º, al. a), segundo a qual são havidos como detentores ou possuidores precários “os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito”, a grande maioria da jurisprudência[6], bem como parte considerável da doutrina[7], vem entendendo que é subjetivista a conceção da posse acolhida entre nós, no sentido de que esta se integra por dois elementos: o corpus (elemento material), consistente na relação material com a coisa, no exercício atual ou potencial de um poder de facto sobre ela, e o animus (elemento psicológico), que se traduz na intenção de agir com a convicção de se ser titular do direito correspondente aos atos praticados.
Não deixa de haver, porém, quem sem pôr em causa o rigor desta conceção, entenda ser possível face aos textos legais superar de algum modo a oposição entre as conceções subjetivistas e objetivistas do instituto, sustentando que a noção dada pelo artigo 1251º não afasta de modo algum o entendimento de que na posse existe uma ligação, um nexo tal entre os dois elementos referidos que só do ponto de vista conceitual, teórico, se torna viável a sua separação[8].
Ora, no caso em apreço, atenta a matéria de facto dada como provada, não pode deixar de concluir-se pela posse da autora e dos intervenientes sobre o prédio a que se alude no ponto 1 dos factos provados, quer se defenda uma ou outra conceção de posse, sendo manifesta a existência de atos materiais de relacionamento da autora e dos intervenientes com o dito prédio, bem como a intenção de agir por parte daqueles como titulares do direito correspondente a tais atos.
Porém, para conduzir à usucapião, a posse tem de revestir sempre duas características: pública e pacífica, pois os restantes caracteres (boa ou má fé, titulada ou não) influem apenas no prazo[9].
Ora, in casu não resta a menor dúvida que a posse da autora é uma posse pública e pacífica, porquanto resultou provado que as obras de recuperação e construção realizadas, foram feitas à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que fosse.
E tais atos de posse são praticados de forma contínua há mais de 25 anos, pelo que decorreu já o tempo necessário para a autora e os intervenientes terem adquirido a propriedade do mencionado prédio por usucapião[10].
Por conseguinte, procede o recurso.
As custas são a cargo a autora, nos termos do artigo 535º, nºs 1 e 2, al. a), do CPC.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar a apelação procedente, revogando a sentença recorrida e decidindo:
a) declarar a autora L… e os intervenientes Is…, M… e J… proprietários do prédio urbano sito na Rua … Póvoa e Meadas, descrito na Conservatória do Registo Predial de Castelo de Vide, sob o n.º … e inscrito na respetiva matriz sob o n.º …
b) condenar os réus a reconhecer que a autora e os intervenientes são titulares do direito de propriedade sobre o referido prédio;
c) ordenar o registo de inscrição do mesmo prédio, em nome da autora e dos chamados na Conservatória do Registo Predial competente;
d) ordenar a retificação da descrição predial n.º … – Póvoa e Meadas, por forma a que dela passe a constar que o prédio aí descrito tem a seguinte descrição: Prédio urbano composto por uma casa de habitação de três pisos, com a superfície coberta de 96m2 e a superfície descoberta de 244m2, inscrito na respetiva matriz sob o artigo …, sito na Rua …, freguesia de Póvoa e Meadas, concelho de Castelo de Vide.
*
Custas do recurso e da ação a cargo da autora.
*
Évora, 25 de fevereiro de 2021
(Acórdão assinado digitalmente no Citius)
Manuel Bargado (relator)
Tomé Ramião (1º adjunto)
Francisco Xavier (2º adjunto)
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[1] Este facto, assim como os que constam dos pontos 5-a) e 5-b), foram aditados por esta Relação nos termos infra expostos.
[2] Este facto foi eliminado nos termos abaixo referidos.
[3] Cfr., neste sentido, o acórdão do STJ de 10.12.2009, proc. 1499/07.0TVLSB.L1, in www.dgsi.pt, a propósito da prova do casamento numa ação em que se discutia o proveito comum do casal.
[4] Como, aliás, foi declarado tabelarmente na parte da sentença sob a epígrafe “Saneamento”.
[5] Proc. 9713/05.0TBBRG.G1.S1, in www.dgsi.pt.
[6] Cfr., inter alia, o Ac. do STJ de 05.06.2012, proc. 4944/04.2TVPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[7] Menezes Cordeiro, in A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais, pp. 51 e ss., faz uma análise pormenorizada da questão.
[8] Cfr. o acórdão do STJ de 13.09.2011, proc. 1027/06.4TBSTR.E1.S1, in www.dgsi.pt, no qual se cita o acórdão daquele mesmo Tribunal de 09.01.1997, publicado e anotado favoravelmente pelo Prof. Manuel Henrique Mesquita na RLJ, Ano 132º, nº 3898, p. 20 e ss., e onde se convoca o ensinamento do Prof. Orlando de Carvalho, de que não existe corpus sem animus, nem animus sem corpus, havendo na posse uma relação biunívoca entre os dois elementos que a enforma, sendo o corpus “o exercício de poderes de facto que intende uma vontade de domínio, de poder jurídico-real”, e animus “a intenção jurídico-real, a vontade de agir como titular de um direito real, que se exprime (e hoc sensu emerge ou é inferível) em (de) certa actuação de facto” – Introdução à Posse, RLJ 122º, p. 105 e 124º, p. 261.
[9] Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1967, p. 112.
[10] Não sendo a posse da autora e dos intervenientes titulada, presume-se de má fé (art. 1260º do CC). Porém, in casu, face ao que resultou provado (cfr. pontos 3, 4 e 5), temos como seguro que foi ilidida tal presunção, pelo que o prazo para a usucapião é de 15 anos, prazo esse que se mostra largamente ultrapassado em virtude da posse da autora e dos intervenientes durar há mais de 25 anos (o que seria também suficiente para a usucapião, caso a posse fosse de má fé, visto o prazo neste caso ser de 20 anos).