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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PRESCRIÇÃO
FACTOS GENÉRICOS
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
OBRIGAÇÕES/DEVERES CONDICIONANTES
Sumário
I) A convicção do Tribunal recorrido quanto à credibilidade das provas não é sindicável, mesmo no recurso que impugna a matéria de facto. II) Na averiguação do número de resoluções criminosas assume particular importância o critério da continuidade criminosa. Caso haja continuidade há um único crime, caso não haja ocorrerão tantos crimes, quantas as intenções autónomas postas em prática. III) Nos crimes habituais, reiterados ou de trato sucessivo o prazo da prescrição do procedimento criminal só se inicia, com a prática do último ato. IV) Não tendo ocorrido, na 1ª instância, nem agora no tribunal de recurso situação de dúvida, não pode aplicar-se o princípio "in dubio pro reo". V) No crime unificado, se o tipo de ilícito era ao princípio semipúblico e se, entretanto se tornou público, deve aplicar-se este último regime a toda a conduta, uma vez que os factos se consideram praticados no dia em que cessou a consumação. VI) Quando alguns dos factos constantes da acusação têm algum conteúdo genérico mas estão acompanhados de outros mais concretizados, considera-se que podem ser utilizados numa sentença condenatória. VII) Com efeito, na sua globalidade é possível conhecer da conduta do arguido e sua intensidade, sem que se ponham em causa o princípio do contraditório, ou do direito a uma justiça equitativa. VIII) No crime de violência doméstica, o bem jurídico protegido é a saúde e bem estar físico da vítima. IX) Não são penas acessórias, mas obrigações ou deveres que condicionam a suspensão, as obrigações impostas a um condenado por violência doméstica como condicionantes da suspensão da execução da pena de prisão. X) Nos mesmos termos, a obrigação de pagar determinada quantia à ofendida, nada tem de reparação oficiosa, mas de condição da dita suspensão. XII) Uma condenação no pagamento da quantia de 5 000€ no pedido cível não é recorrível, por ainda se conter no âmbito da alçada dos Tribunais de 1ª instância.
Texto Integral
1 – Relatório
Por sentença de 25 de Junho de 2 020, foi o arguido S. A. condenado, nos seguintes termos:
- pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelos arts.º 152º/1, a) e n.º 2), a), C.P., na pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão, com a execução suspensa por igual período, regime de prova e cumprimento dos seguintes deveres e regras de conduta:
- pagar no prazo de 2 (dois) anos a quantia de, pelo menos 1 500€ (mil e quinhentos euros), a título de indemnização à ofendida;
- não contactar, por qualquer meio, com a ofendida, exceto no âmbito de diligências processuais e/ou por intermédio de Advogado, Procurador ou Solicitador, no período de 3 (três) anos e 6 (seis) meses;
- não frequentar a zona de habitação destinada ao uso da ofendida, durante 3 (três) anos e 10 (dez) meses;
- apresentar-se quinzenalmente perante o Técnico de Reinserção Social da D.G.R.S.P., com vista a um acompanhamento próximo do comportamento do arguido em relação à ofendida e à orientação do mesmo, no campo do relacionamento afetivo e cumprimento do regime de prova;
- não ter em seu poder armas de fogo e armas brancas.
Foi condenado ainda no pagamento à demandante L. P. da quantia de 5 000€ (cinco mil euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos.
Discordando da decisão proferida, da mesma interpôs recurso o arguido. Apresentou no seu recurso, as seguintes conclusões:
“a) Da impugnação da matéria de facto dada como provada:
1. Considera o Recorrente que o Tribunal incorreu em verdadeiro erro de julgamento na instrução probatória dos factos vertidos nos pontos 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 (quanto ao ano aí mencionado), 11, 12, 13, 14, 15, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 26, 27, 28, 29, 30, 31 da matéria de facto provada. 2. Na verdade, da prova produzida impunha-se decisão diversa daquela que a final veio a ser proferida quanto aos supra elencados pontos da matéria de facto. 3. Além disso, jamais poderia a factualidade vertida nos aludidos pontos dos factos provados ter sido considerada provada, atentos os elementos probatórios carreados aos autos, e consequentemente mostra-se manifestamente insuficiente para imputar ao arguido a prática do crime de que vinha acusado, e pelo qual foi condenado. 4. No que concerne à motivação da decisão de facto, o Tribunal valorou sobretudo o depoimento da Ofendida, quando é certo que é parte interessada e o seu depoimento foi contraditório e parcial. 5. O que não permite formar a convicção que o Tribunal “a quo” tomou, pelo que este depoimento não pode ser valorado, por ser inconclusivo, e, portanto, insuficiente para dar como provados os factos dados como provados. 6. No que concerne à motivação da decisão de facto, o Tribunal valorou também como decisivos os depoimentos das testemunhas de acusação ouvidas em sede de julgamento (que relatam os factos de forma diferente umas das outras sendo, por vezes, contraditórios), no entanto, tal valoração não foi de encontro à realidade dos factos relatados e contraria as mais elementares regras da experiência. 7. Como resulta da sentença, a autoria dos factos imputados ao arguido resultou da conjugação do depoimento da Ofendida L. P., bem como das testemunhas M. P., M. F. e S. A. (respetivamente, irmão e cunhada da Ofendida e filho da Ofendida e do arguido) que, por um lado, se contradizem por variadas vezes durante o seu depoimento quantos aos factos que dizem ter assistido e, por outro, contradizem o que é dito por outras testemunhas. 8. Tanto assim é que relativamente à Ofendida, durante todo o seu depoimento conta “meias verdades”, prestando depoimento distinto daquele que as testemunhas que foram valoradas pelo tribunal “a quo” relatam. 9. Quanto ao ponto 4 dos factos provados, o Arguido refere que é uma pura mentira, admitindo que no meio das discussões possa ter dito algumas expressões que retiradas de contexto podem ser injuriosas, mas que as discussões e os insultos eram de parte a parte entre a Ofendida e o Arguido. 10. Quanto aos pontos 5 e 6 dos factos provados, o Arguido nega os factos, dizendo que não detém nenhuma arma ou sequer licença de uso e porte de arma. 11. Quanto ao ponto 7 dos factos provados, o Arguido confirma que deu um empurrão à Ofendida há mais de 26 anos, relatando um episódio que aconteceu no campo de futebol de ... numa festa que lá existia e que coincide com o episódio relatado pela Ofendida como tendo acontecido em 2013 e que se apresenta como facto provado no ponto 10. Por seu turno, a Ofendida relata que este episódio aconteceu há muito tempo relatando, como seria expetável, com uma versão completamente contrária à do Arguido, e quando questionada sobre se teria ido ao hospital na sequência do empurrão do Arguido a mesma afirma que sim, ao hospital de Famalicão logo no dia seguinte. 12. Porém, os relatórios médicos dos episódios de urgência do Centro Hospitalar Médio Ave – Unidade de Famalicão juntos aos autos a fls. 208 e ss, como é possível verificar, não coincidem com a data que a Ofendida alega que terá sofrido o empurrão por parte do Arguido. 13. Posto isto, é evidente que a Ofendida relata factos que não correspondem à verdade e que, apesar destas evidências o tribunal “a quo” decidiu mal ao dar como provada a agressão relatada nos pontos 10 e 11 dos factos provados, devendo, sim, dar como factos não provados, uma vez que tais factos não aconteceram conforme vêm descritos na acusação e conforme foram relatados pela Ofendida. 14. Já pela testemunha M. P. é referido que nunca presenciou nenhum episódio em que o Arguido chamasse nomes ou agredisse a Ofendida, o que corrobora o que foi dito pelo Arguido, logo nunca poderiam ser dados como provados os factos dos pontos 4, 5, 6, 7 dos factos provados. 15. Quanto ao ponto 9 dos factos provados, o Arguido refere que não se recorda de tal episódio ou de alguma vez ter empurrado a Ofendida contra o fogão de lenha. 16. Todavia, os depoimentos da Ofendida e da Testemunha S. A., filho de ambos que terá assistido à agressão, são contraditórios. A Ofendida relata que terá sofrido um empurrão por parte do Arguido e que terá embatido com as costas no fogão de lenha e a testemunha S. A. relata que o arguido/pai empurrou a Ofendida/mãe contra o fogão de lenha e que esta terá embatido com a barriga no fogão de lenha ficando magoada na zona do peito. 17. Apesar destas evidências o tribunal “a quo” decidiu mal ao dar como provada a agressão relatada no ponto 9 dos factos provados, devendo, sim, dar como facto não provado, uma vez que tal facto não aconteceu conforme vem descrito na acusação. 18. Quanto aos pontos 12 e 13 dos factos provados, o Arguido negou que alguma vez tenha atirado alguma pedra contra o braço da Ofendida, já a Ofendida refere que o Arguido lhe atirou com uma pedra, relatando com bastantes pormenores o contexto e forma como se desenrolou a agressão, contando que o cunhado J. estava presente e que o Arguido estaria em cima do muro quando lhe atirou com a pedra. 19. Acontece que, a Ofendida nunca se refere ao seu filho S. A. como estando presente nesta situação de agressão, mas este relata que esteve presente e com ele estava o seu irmão Hélder e relata de forma contrária à Ofendida mencionando que o seu pai estaria no chão e não em cima do muro como a Ofendida relata no seu depoimento. 20. Já a testemunha M. F., no seu testemunho muito confuso, contraditório, contando uma história inventada para claramente ajudar a Ofendida, mente descaradamente ao dizer que viu o Arguido atirar uma pedra à Ofendida, mas depois reformula a sua versão dos factos dizendo que não viu o Arguido a atirar a pedra. Não identifica a testemunha S. A. como estando presente, limitando-se a dizer que estava um cunhado seu, ou seja, versão que coincide com a versão apresentada pela Ofendida, mas que não coincide com a versão apresentada pelo filho da Ofendida, S. A.. 21. Claramente que estes depoimentos são completamente contraditórios, combinados de forma a protegerem a versão apresentada pela Ofendida, mas que em nada correspondem à verdade não sendo possível conferir qualquer credibilidade ao depoimento destas testemunhas. 22. Decidiu mal o tribunal “a quo” ao dar como provada a agressão relatada nos pontos 12 e 13 dos factos provados, devendo, sim, dar como factos não provado, uma vez que tais factos não aconteceram da forma como vêm descritos na acusação. 23. Quanto ao facto 14 dado como provado, o Arguido reconhece que o filho então menor possa ter assistido a alguma discussão entre o casal, mas que tal era raro. Ou seja, este facto nunca poderia ser dado como provado nos moldes em que foi, uma vez que apenas pode ser dado como provado que o filho terá assistido a algumas (diga-se poucas) discussões do casal em que tanto o pai/arguido como a mãe/Ofendida trocavam insultos, como o mesmo referiu, indicando até que lhe chama mais a atenção o pai agredir a mãe do que a mãe agredir o pai, numa clara tentativa de proteção da mãe. 24. Quanto aos factos 18, 19, 20, 21 dados como provados, denominado como “episódio da foice”, o Arguido assume que tinha uma foice nesse dia, mas que não abordou a Ofendida com a foice na mão. 25. Sobre este episódio prestaram depoimento as testemunhas da Acusação M. P. e M. F., testemunhas pouco credíveis, a corroborar a versão apresentada pela Ofendida e também a testemunha da defesa M. L., que assistiu a esta discussão, disse que ouviu o Arguido a dizer à Ofendida que esta não poderia despejar a fossa, e que a Ofendida discutiu com o Arguido, corroborando o que foi dito pelo Arguido. 26. Salvo melhor entendimento, o tribunal “a quo” decidiu mal ao dar como provada a agressão relatada nos pontos 18, 19, 20, 21 dos factos provados, devendo, sim, dar como factos não provados, uma vez que tais factos não aconteceram conforme vêm descritos na acusação. 27. Quanto aos factos 22 e 23 dados como provados, o Arguido nega ter dito aquelas palavras à Ofendida, já a Ofendida por seu turno, tendo sido a única pessoa presente contou ao irmão, a testemunha M. P., a sua versão dos factos, sendo essa a versão que foi contada pela testemunha em tribunal, ou seja, trata-se de um depoimento indireto dos factos. 28. Quanto ao facto 26 dado como provado, o Arguido assume que teve uma conversa com a Ofendida quanto à falta de ovos no seu galinheiro, mas nega tê-la chamado de ladra. 29. Posto isto, e atendendo a que as versões do Arguido e da Ofendida sobre estes factos são contraditórias e não há outras testemunhas diretas dos factos, atendendo ao princípio do in dúbio pro reo, o tribunal “a quo” decidiu mal ao dar como provados os pontos 22, 23, 26 dos factos provados, devendo, sim, dar como factos não provados. 30. Quanto aos factos 27, 28, 29 dados como provados, como ficou demonstrado até aqui, não tendo o arguido praticado os factos de que vem acusado, não podem ser dados como provados estes factos. 31. Quanto aos factos 30 e 31 dados como provados, salvo melhor opinião, a Ofendida não fez prova dos danos que alega que sofreu. Aliás, é referido pelo irmão, testemunha M. P., que a Ofendida mesmo em solteira nunca foi muito feliz, não tinha vida social fora de casa, não tendo por hábito sair, não tendo alterado aquilo que eram as suas rotinas. A Ofendida alega que ficou com sequelas no corpo, mas não apresenta provas ou perícias médicas que comprovem de que padece de qualquer sequela no corpo e mesmo existindo que se devem a agressões provocadas pelo arguido.
b) Da impugnação da matéria de facto dada não como provada:
32. Quanto à matéria de facto dada como não provada, o Arguido não pode concordar com a qualificação dada aos factos 13, 14, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23 dados como não provados. 33. Quanto aos factos 13, 14, 16, 20 não provados, o Arguido negou ter proferido aquelas expressões, ou desferido sapatadas, murros ou pontapés, ou ameaçado a Ofendida que a mataria, ou ameaçado com uma foice, apenas confessando que empurrou a Assistente há mais de 26 anos, numa festa no campo de futebol de .... 34. Quanto ao facto 17 dos factos não provados, o Arguido, a Ofendida e a Testemunha S. A. relatam que o Arguido trabalhou mais de 20 anos na Áustria, todos eles na constância do casamento do Arguido com a Ofendida, estando durante esses 20 anos, temporadas de um mês ou de quinze dias em Portugal. Ora, só se pode concluir que, pelo menos grande parte desses últimos 20 anos dos 29 anos de casamento, o Arguido passou grande parte do seu tempo ausente do país em trabalho. 35. Quanto ao facto 18 dos factos não provados, o Arguido juntou aos autos como Doc. 1 da Contestação, um recibo de vencimento do mês de Agosto de 2014. Ora, como o Arguido só recebia ordenado quando estava a trabalhar na Áustria, só se pode concluir que o Arguido se encontrava a trabalhar na Áustria em 31 de Agosto de 2014. 36. Quantos aos factos 19, 21, 22 e 23 dos factos não provados, o Arguido referiu esses factos relatando tal e qual como se desenrolaram e acrescentou que não é uma pessoa conflituosa. 37. Posto isto, quantos aos factos dados como não provados 13, 14, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, decidiu mal o tribunal “a quo” ao qualifica-los como não provados, uma vez que, no entender da defesa, do depoimento do Arguido, da Ofendida e da Testemunha S. A. é feita prova dos factos, e devem os factos supra referidos ser dados como provados. 38. Da análise dos depoimentos das testemunhas de acusação, também se conclui que as mesmas ora não tiveram conhecimento direto da autoria dos factos pelo arguido, ora relatam os factos de que possam ter tido conhecimento conforme lhes apraz, bem sabendo que a sua versão é contrária à da realidade dos factos e à versão do Arguido, pelo que não é possível imputar ao Recorrente a prática do crime, dado que não se provou a prática do crime pelo Arguido. 39. Assim, de toda a prova produzida em julgamento, ressalta que é manifestamente insuficiente para que se possa considerar, como se considerou e se deu como provado sem qualquer margem de dúvida, que o arguido foi o autor do crime. 40. Em suma, nesta sede conclui-se por falta de elementos de prova direta e ainda de elementos indiciários (que conjugados nada provam) acerca da autoria dos factos pelo arguido. 41. Os pontos da matéria de facto provada e não provada foram incorretamente considerados como provados e não provados, respetivamente, pois, como se verificou pela análise da prova, esta não permite dar os referidos factos como provados e como não provados. 42. No caso em apreço, tal como supra demonstrado, os factos em apreço não foram praticados pelo Arguido, sendo que, dos factos dados como provados e como não provados inúmeras conjeturas se levantam e podem levantar acerca da autoria dos mesmos. 43. Da prova produzida não resulta provado que tenha sido o Arguido a agredir ou ameaçar a Ofendida (se é que foi), face à inexistência de prova produzida em sede de audiência de julgamento e às inúmeras contradições dos depoimentos prestados.
c) Da prescrição
44. A douta sentença recorrida baseou a condenação pelo crime de violência doméstica em factos que ocorreram entre os anos de 1987 e 2016, sendo que apenas concretiza com data concretamente apurada factos em 7 de Fevereiro de 2000, depois em data não concretamente apurada do ano de 2013, data não concretamente apurada do ano de 2015, e nos dias 2 de maio, 6 de agosto, 24 de agosto e 31 de agosto de 2019. 45. Estes factos não podem ter a relevância jurídico penal que lhe foi atribuída nem poderiam ter sido unificados como o fez a douta sentença. 46. Os factos praticados entre os anos 1987 e 2009 não podiam ter relevância penal, uma vez que ocorreu a prescrição quanto a estes nos termos do previsto no art.º 118.º n.º 1 alínea b) e art.º 119.º n.º 2 alínea b) do Código Penal. 47. Retirando a relevância jurídico-penal dos factos ocorridos entre o ano de 1987 e o ano de 2009, forçosamente a medida da pena a aplicar terá que ser bastante inferior à aplicada. 48. O Arguido nunca poderia ser acusado e condenado nos termos do art.º 152.º n.º 2 alínea a) do Código Penal, uma vez que em 2009, em primeiro lugar, o filho de ambos teria 20 anos e, em segundo lugar, não estão em causa factos que tenham ocorrido no domicílio de ambos sem que estejam presentes testemunhas. 49. Assim, o bem jurídico que se pretende proteger com a agravação da pena prevista no artigo 152.º n.º 2 alínea a) do Código Penal, e conforme vem descrito no enquadramento jurídico-penal da douta sentença, não tem razão de ser, logo o Arguido nunca poderia ser acusado e condenado por um crime de violência doméstica, nos termos do artigo 152.º n.º 2 alínea a) do Código Penal.
d) Do Pedido de Indemnização Civil:
50. Não foram carreadas para os autos provas suficientes da existência de danos à Ofendida e a existirem tais danos que esses tenham sido provocados pelo Arguido. 51. Até porque, a Ofendida não fez prova dos danos físicos, pelo que não pode o Arguido ser condenado no pagamento de indemnização peticionada no pedido de indemnização civil.
e) Da Análise crítica:
52. Entendeu o Tribunal que se provaram todos os factos relevantes que são imputados na acusação, nos termos e pelas razões que consignaram na fundamentação de facto e na parte destinada à convicção. 53. Porém, salvo o devido respeito, não podemos concordar com o entendimento sufragado pelo douto Tribunal. 54. Com efeito, é preciso averiguar se as circunstâncias do caso concreto permitem, por si só, formar uma convicção segura sobre a participação do arguido nos factos que lhe são imputados, e pelo crime pelo qual foi condenado. 55. Ora, para que a prova indiciária possa transpor o limiar suposto pelo princípio da presunção da inocência, necessário é que a mesma seja objetivamente idónea a sustentar um juízo de certeza, para lá de qualquer dúvida razoável, de que o facto a provar ocorreu. 56. Aliás, fazendo uma leitura atenta pela convicção do Tribunal, verificamos que não existe prova direta (exceto a versão da Ofendida e a versão das testemunhas pouco credíveis da Acusação), mas apenas circunstancial, que permita a este Tribunal afirmar com toda a certeza de que efetivamente o Recorrente praticou o crime que lhe foi imputado. 57. Não conseguimos alcançar o raciocínio da fundamentação e motivação, sendo que, no nosso entendimento, o juízo efetuado foge largamente à razoabilidade, à lógica e à experiência comum. 58. Não alcançamos argumentos suficientes para que se conclua pela consumação do crime, sem mais. 59. Não existem outros meios de prova – a não ser a versão da Ofendida e a versão do arguido. 60. Porém, a Ofendida demonstrou que o seu objetivo era colocar o Arguido na mesma situação em que este a colocou, isto é, nas barras do tribunal, uma vez que apenas começou a apresentar queixas de violência doméstica após a propositura da ação cível feita pelo Arguido. 61. Aliás, é referido pelo Arguido que a Ofendida lhe terá dito que vale mais uma mentira sua no Tribunal do que dez verdades dele, o que só demonstra a leviandade com que a Ofendida encara o sistema judicial sem ter consciência da gravidade dos seus atos e das consequências severas que estes atos têm na esfera jurídica do Arguido. 62. Mais, a Ofendida referiu ao Arguido que não podia voltar atrás no que tinha dito ao Tribunal, apesar de saber que era mentira e que se tivesse de lhe pagar alguma coisa, por conta da condenação, que ela lhe perdoava. É óbvio que falta à verdade. 63. Verdade é que há animosidade, mau estar, sede de vingança por parte da Ofendida, que até perdoaria ao Arguido o pagamento da indemnização a que teria direito se viesse a ser fixada pelo Tribunal, o que faz transparecer que apenas queria que ele tivesse de enfrentar o processo crime em tribunal como forma de humilhação. 64. Terá de haver, portanto, uma exigência acrescida quanto à avaliação da prova. 65. E como é consabido, na dúvida, ou na ausência de certeza, cabe a absolvição do Arguido, em obediência ao Princípio "in dubio pro reo", e, inexiste a menor certeza de que o Recorrente tenha praticado a factualidade por que veio condenado na douta sentença, a revogar, por provimento do presente Recurso. 66. Pelo que, o douto Tribunal "a quo" devia ter absolvido o Arguido, ora Recorrente, em face da falta de prova bastante, segura, firme, validamente produzida, em obediência do Princípio "in dubio pro reo", uma vez que, do Julgamento, e de todo o mais, nenhuma certeza resultou de que o Recorrente tivesse praticado, ou participado na factualidade por que veio a ser condenado pelo Tribunal, não podendo concluir-se, em face dos factos, pela culpa, para cuja prova nada existe. 67. E, ao condenar o ora Recorrente, em vez de o absolver, como devia ter feito, decidindo como fez, o douto Tribunal "a quo" violou o Princípio da Presunção de Inocência – in dubio pro reo - disposto nos artigos 32. ° n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa e artigo 127.° do Código de Processo Penal, designadamente. 68. E não sendo a prova segura, havendo dúvidas, ter-se-ia sempre aplicar o princípio in dubio pro reo. 69. Pelo que, deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que absolva o arguido da prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p e p. pelo artigo 152.º n.º 1, alínea a) e n.º 2 alínea a) do Código Penal. 70. Caso assim não seja entendido, o arguido/ recorrente não pode concordar com a aplicação das referidas penas acessórias, desde logo porque as mesmas carecem de qualquer fundamentação. 71. Até porque, a referida pena acessória revela-se desadequada e exagerada face à situação dos presentes autos. 72. No caso em apreço, a aplicação das penas acessórias ao arguido/recorrente patenteia uma situação de injustiça. 73. Até porque, o Arguido acha exagerado e desadequado ser condenado no pagamento à Ofendida de uma quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) que não é justificado nem na motivação nem no enquadramento jurídico penal da douta sentença, e quando a Ofendida deduziu pedido de indemnização civil. Desconhece o Arguido a que título é aplicada esta sanção, uma vez que a Ofendida deduziu pedido de indemnização civil. 74. Mesmo assim, apesar de não constar na douta Sentença, a defesa entende que a Meritíssima Juiz condenou o Arguido no pagamento de uma quantia arbitrada a título de reparação pelos prejuízos, nos termos do art.º 82.ºA do Código de Processo Penal. 75. Acontece que, é mencionado no referido artigo que é pressuposto da aplicação da quantia a título de reparação que a Vítima não tenha deduzido pedido de indemnização civil. 76. Ora, no caso em apreço, a vítima deduziu pedido de indemnização, logo não pode, salvo melhor opinião, ser arbitrada qualquer quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos, sob pena de ser o Arguido condenado a pagar duas indemnizações pelos mesmos danos, o que apenas por mera hipótese académica se considera. 77. O Arguido também acha exagerado e desadequado ser condenado na obrigação de, durante 3 anos e 10 meses cumprir a obrigação de apresentação quinzenal ao técnico de reinserção social com vista a um acompanhamento próximo do comportamento do arguido em relação à Ofendida e à orientação do mesmo no campo de relacionamento afetivo e cumprimento do regime de prova, quando o posto dos serviços de reinserção social mais perto da área de residência do arguido fica em Santo Tirso e dista da residência do arguido aproximadamente 30 km, o que em média se cifram em deslocações de 120 km por mês, o que lhe causa grande transtorno e atendendo ao facto de que o arguido em sede de medida de coação se encontrava obrigado a apresentações bi-semanais no posto da PSP da sua área de residência e sempre cumpriu escrupulosamente com a obrigação, sendo esta mais tarde revogada, e não havendo registo de alteração de comportamento entre o Arguido e a Ofendida. 78. E considera-se que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição e a integração social do Arguido/Recorrente, impedindo-o de comportamentos de violência, satisfazendo dessa forma as exigências de prevenção geral e especiais que se fazem sentir. 79. A douta sentença violou o disposto no artigo 40.º, 65.º, 71.º e 152.º n.º 4 todos do Código Penal e, nessa conformidade, deverá ser revogada.”
Contra-alegou o M.P. Refere, em síntese, que a decisão de facto proferida pelo Tribunal “a quo” decorreu de um ato de valoração da credibilidade da prova e que decidiu de forma defensável, lógica e coerente. Não se impõe assim a prova ou não prova de factos diversos. No que se refere à prescrição do procedimento criminal, defende que as condutas não devem ser autonomizadas, visto que têm o facto comum de ocorrerem nos períodos de convivência do casal. Não estão pois em causa vários crimes, mas um único crime. Termina pedindo a improcedência do recurso e a manutenção da decisão recorrida.
Já neste Tribunal da Relação teve vista no processo o Dignm.º Procurador Geral Adjunto, que emitiu parecer. No seu entender, o recorrente não indica provas que imponham decisão diversa, da adotada. Por outro lado e no que se refere ao princípio “in Dubio pro Reo”, defende que o Tribunal nunca se debateu com qualquer dúvida, pelo que tal princípio que favorece o arguido não é aplicável. Defende, de seguida, que entre os vários factos não há continuidade temporal, pelo que devem ser autonomizados. Quanto aos que decorreram até 1 997, entende que dado que até aí o crime imputável era semipúblico e a ofendida não exerceu o seu direito de queixa, não pode agora o arguido por eles ser condenado, uma vez que o referido direito de queixa já se tinha extinto, por caducidade. Quanto aos factos posteriores a 1 997 e que ocorriam quando o arguido se deslocava da Áustria a Portugal, considera o Dignm.º Procurador Geral Adjunto que os mesmos são apontados de uma forma “genérica e imprecisa”, que não permitem a imputação de crimes ao arguido. Com a L. n.º 7/2000, de 27/5, que reviu o C.P., o anterior crime de maus tratos passou a revestir a natureza de público. Quanto aos factos de 2 013 e 2 015, assume-os não como violência doméstica, mas como crimes de injúria (de natureza particular) e de ofensa à integridade física simples (de natureza semipública). No seu entender, a ausência de queixa afasta a legitimidade do M.P. para acusar, pelo que pelos mesmos não pode o arguido ser punido. No que se refere aos factos de 2/5/2019, considera também que estarão em causa os crimes de injúria e ameaça agravada. Quanto ao primeiro, de natureza particular, entende que não tendo sido proferida acusação particular, não pode por ele o arguido ser punido. Quanto ao segundo, entende que o arguido pelo mesmo deveria ser punido, mas que ocorre o vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão (art.º 410º/2, a), C.P.P.), porque da sentença não consta suficientemente explícita a situação económico financeira do arguido, o que obsta a que possa ser concretizada a pena de multa, em que deveria ser condenado. Devem assim ser desaplicadas as penas acessórias para o crime de violência doméstica, que haviam sido aplicadas ao arguido. Termina pugnando pela improcedência do recurso do arguido quanto à matéria de facto fixada, mas também apenas pela condenação do arguido pelo crime de ameaça agravada (arts.º 153º e 155º/1, a), C.P.) ocorrido em 2/5/2019, em pena de multa, devendo porém determinar-se o reenvio parcial do processo para novo julgamento, por insuficiência de matéria de facto para a decisão (art.º 410º/2, a), C.P.P.), restrito ao conhecimento da situação económico financeira do arguido, necessária para a concretização da referida pena de multa. Notificado o arguido para responder (art.º 417º/2 C.P.P.), este não o fez. Fê-lo porém a assistente, apesar de não ter contra-alegado. Entende que não ocorreu qualquer erro de julgamento, que existe apenas um único crime, pois que existiu continuidade criminosa e um único sentido de desvalor juridico-social e que as condições sociais do arguido constam do relatório da D.G.R.S.P., ponto II e do art.º 54º dos factos provados, da sentença. Termina defendendo que o recurso deve ser julgado improcedente e que a sentença não padece do vício de insuficiência de matéria de facto para a decisão (art.º 410º/2, a), C.P.P.), pelo que não deve ocorrer qualquer reenvio do processo para novo julgamento.
O recurso vai ser julgado em conferência, nos termos do disposto no art.º 419º/3, c), C.P.P.
2 – Fundamentos
Para uma melhor apreciação da matéria em causa nos autos, transcrever-se-á de seguida a decisão em causa nos autos:
“1- Relatório.
O Ministério Público, deduziu acusação, para julgamento em processo comum com intervenção de Tribunal Singular, contra:
S. A., filho de J. R. e de E. A., natural de …, França, nascido a .. de fevereiro de 1967, divorciado, pintor metalúrgico, residente na Rua …, Vila Nova de Famalicão;
Imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a) do Código Penal;e com base nos fundamentos exarados a fls. 227 a 233e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
*
L. P. deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido e peticionado a condenação deste no pagamento da quantia de 20.000,00€ (vinte mil euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais pela mesma alegadamente sofridos, mercê da conduta do demandado, e com base nos fundamentos ali descritos (cfr. fls. 251 a 256) e aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
*
O arguido apresentou contestação escrita à acusação, oferecendo o merecimento dos autos e invocando todas as circunstâncias atenuantes que resultem da audiência de discussão e julgamento, e apresentou contestação escrita ao pedido de indemnização civil, nos termos exarados a fls. 315 v.º e ss., os quais aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
*
Procedeu-se ao julgamento com observância do formalismo legal.
*
Não existem questões prévias ou incidentais que cumpre conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.
*
II. Fundamentação. 1. De facto. 1.1. Factos provados.
Com interesse para a decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:
- Da acusação
1. A ofendida L. P. e o arguido S. A. casaram um com o outro dia - de julho de 1987, tendo-se separado em outubro de 2016.
2. Enquanto casados, estabeleceram residência em Vila Nova de Famalicão.
3. Têm um filho em comum, nascido a -.2.1993.
4. Durante o tempo que durou o casamento entre arguido e ofendida, e com frequência de duas a três vezes por semana, nos primeiros anos do casamento até que o arguido foi trabalhar para a Áustria - o que ocorreu em data não concretamente apurada mas após o ano de 1997 -, com particular incidência ao fim de semana, aquele insultou e humilhou a ofendida, chamando-lhe “puta”, e “vaca”, e dizendo-lhe para “ir apanhar no parreco e para lhe chupar/lamber a piça” (agarrando sugestivamente o seu pénis); para “ir para a via norte dar o parreco”; para “ir para o caralho”; “para se ir foder” e para “ir para a puta que a pariu”;
5. E ameaçava-a dizendo-lhe que qualquer dia a foderia e que se a apanhasse com alguém a mataria a ela e a ele;
6. Mais lhe dizia que se se queixasse de si a mataria, dando-lhe um tiro;
7. E desferiu estaladasno rosto da ofendida, bem como pontapés nas pernas da ofendida e empurrões;
8. Depois disso, o arguido emigrou para a Áustria, onde se manteve durante cerca de 20 anos, sendo que, não obstante, quando em férias - que ocorriam inicialmente semestralmente e posteriormente trimestralmente -, mantinha comportamentos agressivos idênticos aos descritos;
9. No dia 7 de Fevereiro de 2000, no decurso de uma discussão entre o casal, o arguido desferiu um empurrão na ofendida, fazendo-a embater com o corpo num fogão de lenha;
10. Em data não concretamente apurada do ano de 2013, estando ofendida e arguido numa festa em ... o arguido envolveu-se num conflito com o um terceiro;
11. A ofendida interveio e, nessa sequência, o arguido apelidou-a de filha da putae desferiu-lhe uma cotovelada no olho esquerdo.
12. Em data não concretamente apurada do ano de 2015, e anterior a 13.5.2015, numa ocasião em que estavam a realizar obras no telhado da habitação comum, na sequência de uma discussão, o arguido arremessou uma pedra contra a ofendida que a atingiu no braço direito, provocando-lhe uma lesão grave da qual ainda hoje padece.
13. Não obstante os actos de violência física de que foi vítima, a ofendida apenas por três daqueles actos recorreu à assistência hospitalar, dirigindo-se ao serviço de urgência do Hospital de Vila Nova de Famalicão no dia seguintes a tais actos;
14. Muitos dos referidos episódios de agressividade decorreram no interior da residência comum e quase sempre na presença do filho de ambos, então menor.
15. Já separados a violência sobre a ofendida manteve-se, nos últimos tempos por causa de um processo que corre em tribunal relacionado com a propriedade da casa onde a ofendida reside, sita na Rua …, Vila Nova de Famalicão;
16. Tal habitação é contigua à residência do arguido o que potencia os conflitos;
17. Assim, no dia 2 de maio de 2019, pelas 16h00, a ofendida encontrava-se com a cunhada, M. F., no exterior da sua residência perto de uma fossa que lhe é anexa;
18. De súbito, e de modo inesperado para esta, o arguido dirigiu-se na sua direção chamando-lhe “puta”, “vaca” e “filha da puta”;
19. De seguida, disse-lhe, em tom sério, de modo a ser acreditado, que ela não podia levantar a tampa da dita fossa, e “vais morrer com dois tiros de canos serrados”, exigindo-lhe que deixasse o lugar, sendo que, em acto contínuo, levantou no ar e dirigida à cabeça da ofendida a foice que trazia, sendo que a ofendida de imediato do mesmo se desviou;
20. O arguido serenou um pouco com a aproximação do irmão da ofendida;
21. Todavia, pouco depois, de novo exaltado, disse-lhe que ela não mandava ali e que não foi daquela vez mas que para a próxima que fosse mexer na fossa ele dava-lhe dois tiros de uma arma de canos serrados;
22. No dia 6 de agosto de 2019, quando a ofendida se dirigia desde sua casa para a via pública para ir ter com um seu irmão, o arguido, avistando-a, dirigiu-se-lhe dizendo: “este caminho não é teu se voltares a passar por aqui vais ver Braga por um canudo.”;
23. Por causa dos anteriores comportamentos do arguido, a ofendida interpretou tais palavras como expressivas de ameaça velada e por isso ficou com medo;
24. No dia 24 de agosto de 2019, o arguido dirigiu-se à habitação da ofendida tocando insistentemente na campainha;
25. A ofendida acabou por atendê-lo, logo este lhe dizendo: “a partir de segunda-feira tens que ter o portão aberto para quando eu quiser passar, senão eu passo por cima do portão”;
26. E, no dia 31 de Agosto de 2019, voltou a tocar insistentemente na campainha da habitação da ofendida, e quando esta o atendeu o arguido acusou-a de lhe furtar ovos do galinheiro, apelidando-a de “ladra”;
27. O arguido agiu com o propósito concretizado de maltratar física e psicologicamente a ofendida dirigindo-lhe imputações ofensivas da honra e consideração que especialmente, como queria e conseguiu;
28. Outrossim, actuou com a intenção de atingir a sua dignidadecomo pessoa e de lhe causar medo e inquietação, sabendo que, ao agir como descrito, a molestaria psicologicamente, afetando-lhe a tranquilidade e o sentimento de segurança, resultado que representou e quis, provocando-lhe, além disso, ansiedade e angústia;
29. Agiu o arguido deliberada e conscientemente, de forma livre, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal;
- Do pedido de indemnização civil (para além dos factos ali mencionados e também mencionados na acusação e que acima já se deram como provados)
30. Como consequência directa e necessária da conduta do arguido a ofendida sentiu-se vexada, humilhada, intranquila, desassossegada e sentiu, e ainda hoje sente, receio de que o mesmo atentasse contra a sua integridade física e/ou vida, vendo-se obrigada a alterar as suas rotinas com medo de ser perseguida pelo arguido;
31. E ficou a ofendida com sequelas no corpo, hematomas nas pernas e no braço direito, esta últimas, ainda hoje visíveis;
- Da contestação (para além dos factos ali mencionados e também mencionados na acusação e no pedido de indemnização e que acima já se deram como provados)
32. Aos 29.7.2019, aquando da realização da busca, ordenada pela Sra. Juíza de Instrução, e cujo auto se encontra junto aos autos deste processo, não foi vista nem apreendida no local qualquer arma ao arguido e o arguido não tem licença de uso e porte de arma;
33. O Arguido passou grande parte do casamento com a ofendida a trabalhar na Áustria e nunca era certa a data em que se ausentava para a Áustria nem a data em que dali regressava a Portugal;
34. No dia 02/05/2019 o Arguido encontrava-se a “esgalhar carvalhos” no seu lado do terreno;
35. No dia 24/08/2019, o Arguido quis limpar um depósito de água existente no terreno da Assistente, mas que é propriedade dos dois;
36. O Arguido é trabalhador, apesar de neste momento não lhe ser possível trabalhar de forma reiterada, continua a cumprir com as suas obrigações domésticas, zelando pelo seu domicílio com os parcos rendimentos e economias.
37. O arguido propôs uma ação cível no Tribunal de V. N. Famalicão (Proc. n.º 1694/19.9T8VNF) em 13.03.2019, contra a Assistente, o filho de ambos e o Sr. M. P..
38. - Mais se provou
39. Aos 16.9.2019, no âmbito do 1º interrogatório de arguido não detido foi aplicado ao mesmo, de acordo com o preceituado nos arts. 191º a 193º, 194º, 196º, 198º, 200º, n.º 1, alíneas a), d) e e) e 204.º, al. c), todos do C.P.P., e ao abrigo do disposto no artigo 31º, n.º 1 alíneas a), b) e d) e 35º da Lei de Violência Doméstica, as medidas de coacção: de a) Proibição de contactar, por qualquer forma ou meio, com a ofendida, excepto no âmbito de diligências processuais e/ou por intermédio de Advogado, Procurador ou Solicitador; b) Proibição de frequentar a zona da habitação destinada ao uso da ofendida; c) Obrigação de apresentações periódicas bi-semanais(esta obrigação, mais tarde, mercê da pandemia provocada pela Covid-19, veio a ser revogada);d) Proibição de adquirir e usar armas de fogo, bem como armas brancas.
40. O arguido não tem antecedentes criminais.
41. O arguido nasceu em França, onde os progenitores estiveram emigrados e contava cerca de 3 anos de idade quando os pais regressaram à localidade de origem, ....
42. O seu processo de crescimento/desenvolvimento decorreu em meio rural, no contexto de um agregado familiar numeroso, composto pelos pais e 5 filhos, sendo o arguido o mais novo;
43. O arguido ingressou no sistema de ensino em idade própria, que abandonou após a conclusão do 4º ano de escolaridade, para trabalhar com o pai na lavoura, até aos 16 anos de idade, altura em que mudou para a construção civil;
44. Com 19 anos de idade casou com a ofendida no presente processo, após cerca de 1 mês de namoro, mais velha cerca de 7 anos e com 3 filhos de um relacionamento afectivo anterior;
45. Manteve o trabalho no ramo da construção civil, designadamente por conta própria, até cerca dos 30 anos de idade, altura em que dificuldades económicas motivadas por dificuldades financeiras motivaram a decisão de emigrar para a trabalhar na Áustria, cerca de 20 anos, regressando a Portugal, inicialmente duas vezes por ano e, mais tarde, com a frequência trimestral;
46. Financeiramente, o seu rendimento era o garante da subsistência do agregado, uma vez que, a ofendida não trabalhava.
47. No meio de residência, o arguido beneficia de uma inserção social positiva.
48. O arguido regressou definitivamente da Áustria, devido a problemas de saúde que motivaram a sua baixa médica.
49. Apesar do divórcio e de terem estabelecido outras relações afectivas, mantiveram-se a residir em habitações geminadas.
50. A pendente divisão de bens e a indefinição em relação ao uso e propriedade de alguns espaços desencadeou altercações e uma animosidade crescente;
51. Altercações e uma animosidade que terão sido ultrapassados no início do presente ano, após regularização da situação, efetuada entre as partes e os respectivos advogados.
52. No presente, o arguido e a ofendida mantêm uma vizinhança;
53. O arguido é percebido como um individuo emocional e rude na comunicação, sem, contudo, qualquer indicador de envolvimento em conflitos ou altercações na comunidade;
54. Reside numa habitação que foi recebida por herança dos seus pais, subsistindo com uma pensão de reforma, desde novembro de 2019, no alegado valor de 577 euros/mês.
55. Na freguesia, residem os seus familiares de origem, com quem mantém uma relação de proximidade e entreajuda.
56. O arguido e o seu filho, que vive com a mãe, a aqui ofendida, têm uma relação distante de pouca proximidade.
57. A presente situação jurídico-penal, gerou no arguido mal-estar e revolta.
58. Relativamente à natureza dos factos subjacentes ao presente processo, o arguido revela dificuldade em efectuar, no abstrato, juízo crítico e de censura, tende a externalizar a responsabilidade nos conflitos.
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1.2. Factos não provados.
Com interesse para a causa resultaram não provados os seguintes factos:
1. Que o arguido tivesse apelidado a ofendida de “pipi”;
2. Que o arguido tivesse desferido murros no rosto da ofendida;
3. Que o arguido se tivesse mantido na Áustria apenas durante 15 anos;
4. Que na data e local referidos no número 10 e 11 dos “Factos provados” o arguido tivesse referido à ofendida “ó minha puta estás por ele” e lhe tivesse desferido um soco no olho esquerdo;
5. Que os episódios de agressividade protagonizados pelo arguido contra a ofendida tivessem sempre decorrido no interior da residência comum;
6. Que no dia 2.5.2019, pelas 16h, a ofendida estivesse a despejar uma fossa anexa à casa da mesma;
7. Que no dia 2.5.2019 o arguido tivesse tentado desferir um golpe na cabeça da ofendida com a foice que o mesmo tinha na ocasião e que apenas não tivesse desferido tal golpe por esta, a ofendida, do mesmo se ter desviado;
8. E que o arguido tivesse dito à ofendida “tu despejas a fossa aqui na piça”;
9. Que na data e local referidos no número 24 e 25 dos “Factos provados” o arguido tivesse referido à ofendida “Ouve lá, a partir de segunda-feira tens que ter o portão aberto para quando eu quiser passar andar por onde eu quero senão passo-te por cima, se não abrires a bem abres a mal”;
10. Que as sequelas nas pernas da ofendida mercê das agressões físicas que o arguido perpetrou contra aquela ainda hoje são visíveis;
11. Que mercê da conduta do arguido a ofendida andou com perturbações do sono;
12. Que os 29 anos de casamento do arguido e da ofendida sempre se pautaram de harmonia familiar;
13. Que o Arguido nunca proferiu expressões como “apanhar no parreco”, “lamber a piça”, “ir para a via norte dar a cona”, entre outras;
14. Que o Arguido, tanto durante o matrimónio como depois do divórcio, nunca desferiu sapatadas, murros, pontapés ou empurrões à Assistente.
15. Que o Arguido depois do divórcio, não quer nem nunca quis saber se a Assistente tinha ou não refeito a vida amorosa dela com alguém ou se permanecia sozinha.
16. Que o Arguido não ameaçou a Assistente que a mataria;
17. Que durante os 29 anos de casamento o Arguido passou grande parte ausente do país em trabalho na Áustria;
18. Que em 31 de Agosto de 2014 o Arguido se encontrava a trabalhar na Áustria;
19. Que no dia 02/05/2019, o Arguido, quando se encontrava a “esgalhar carvalhos” no seu lado do terreno, tivesse tido apenas uma conversa com a Assistente, encontrando-se esta no seu lado do terreno da casa e, quando a Assistente se preparava para despejar a fossa existente no seu lado do terreno, o Arguido disse-lhe que ia chamar o Delegado de Saúde porque esta não podia despejar a fossa com o calor que se fazia sentir naquele dia.
20. Que o Arguido não ameaçou a Assistente com uma foice, ou com que objeto for.
21. Que no dia 24/08/2019, o Arguido apenas quis limpar um depósito de água existente no terreno da Assistente, mas que é propriedade dos dois, mas a Assistente não permitiu;
22. Que o Arguido apesar de não ser autorizado a limpar o depósito, não ofendeu a Assistente.
23. Que o Arguido é uma pessoa tranquila.
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1.3. Motivação.
Determina o art. 374º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, além do mais, que a fundamentação da sentença contenha a enumeração dos factos provados e não provados que serão, como resulta do art. 368º, n.º 2, do mesmo Diploma, apenas os que sendo relevantes para a decisão estejam descritos na acusação, ou na pronúncia, tenham sido alegados na contestação (e, no pedido de indemnização civil), ou que resultem da discussão da causa.
Com efeito, atenta a uniformidade do entendimento que desde há muito o STJ tem vindo a adoptar sobre este ponto (1) aquela enumeração visa a exaustiva cognição do “thema probandum”, i. é, a demonstração de que o Tribunal analisou especificamente toda a matéria de prova que foi submetida à sua apreciação e que revista de interesse para a decisão da causa, pelo que a obrigação legal, de na sentença, se fazer a descrição dos factos provados e não provados, se refere tão somente “(...) aos que são essenciais à caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes, o que exclui os factos inócuos, irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação ou na contestação” (2).
Cumpre, ainda, referir que, como é consabido, em matéria de apreciação da prova, vigora o princípio de acordo com o qual o julgador formará livremente a sua convicção, objectivando-a racionalmente nos elementos produzidos ou analisados em audiência de julgamento e, com apoio, as mais das vezes, num raciocínio dedutivo ou indutivo, confrontando-a com as chamadas regras da experiência comum, entendidas como juízos hipotéticos assentes nas máximas da experimentação ordinária, independentes dos casos individuais em que se alicerçam e para lá dos quais mantêm validade - cfr. art. 127º do Cód. de Proc. Penal.
Não se duvidando, pois, da tendencial impossibilidade de, em razão da conhecida subjectividade inerente à individual percepção de acontecimentos, alcançar um conhecimento directo e esgotante da realidade fenomenológica passada com apoio em testemunhos presenciais (quando os há) convergentes ou compatíveis, impõe-se um particular esforço de racionalidade na correlativa e dialéctica apreciação da prova produzida, subordinado aos princípios da lógica e condicionado pela credibilidade que seja de reconhecer a cada uma das fontes de conhecimento em presença.
Posto isto, vejamos o percurso da motivação do Tribunal. Arguido e ofendida confirmaram, de forma credível, os factos que se deram como provados nos números 1 a 3 (e como, quanto ao casamento e ao filho de ambos, atestam, respectivamente, a certidão junta a fls. 151 e a identificação prestada por S. A., em sede de audiência de discussão e julgamento, nos termos dos arts. 348º, n.º 3, do CPP) e mais referiram que a certa altura do casamento entre ambos o arguido foi trabalhar para a Áustria e vinha a Portugal com a frequência descrita na acusação.
No mais, confrontado com os factos que na acusação lhe são imputados, o arguido admitiu, apenas, ter dito à ofendida e quando ainda viviam na mesma casa, e quando ambos discutiam um com o outro, “vai para o caralho”; que quando aquela lhe dizia “vai para a puta que te pariu” ele respondia “vai tu para a puta que te pariu”; que a empurrou por uma vez, mas no campo de futebol de ...; e, que, na ocasião descrita na acusação como ocorrida aquando das obras do telhado, atirou contra a mesma, não uma pedra, mas, sim, um “metro” em plástico, que pesava tanto quanto um maço de tabaco, e que lhe acertou no braço e porque pediu à ofendida que a mesma lhe passasse algo – o que a ofendida corrobora – mas que aquela não lhe passou tal objecto e lhe “eu passo é o carago, não sou tua empregada” – frase esta que a ofendida não admitiu -; negando, o arguido, no mais, ter protagonizado os factos em apreço nos autos, embora admitindo que nas datas em causa nos autos existiram conflitos entre ele e a ofendida, mas não como descrito na acusação.
Reportou, ainda, que este processo apenas se deveu à circunstância de ter intentado a acção cível contra a ofendida, filho de ambos e o Sr. M. P., e na qual está em causa a divisão da casa em que residem arguido e ofendida, embora tal casa esteja delimitada por zonas em que cada um deles têm acesso exclusivo – e como demonstra o acordo junto a fls. 318.
Por sua vez, e num relato que se evidenciou espontâneo, sincero, genuíno, isento e crível, embora por vezes comovido e desgostoso com a ocorrência dos factos, a ofendida L. P. reportou os factos de que foi vítima por banda do arguido e como os mesmos vieram a ser dados como assentes.
Com efeito, e embora de modo que não seguiu a cronologia dos factos tal como descritos na acusação (o que demonstra ainda mais a isenção e credibilidade da ofendida evidenciando que não “preparou” as suas declarações) a mesma relatou parte desses factos acrescentando, ainda, pormenores quanto aos mesmos, detalhando o contexto em que os factos em causa ocorreram, reputando os mesmos com detalhes e pormenores que atribuíram ainda mais credibilidade às suas declarações.
Mais referiu que não obstante os actos de violência física de que foi vítima, apenas por três daqueles actos – mormente quando foi agredida pelo arguido com um empurrão e mercê do mesmo embateu contra o fogão, quando foi agredida pelo arguido com o cotovelo na vista e com a pedra por aquele atirada contra o seu braço - recorreu à assistência hospitalar, dirigindo-se ao serviço de urgência do Hospital de Vila Nova de Famalicão no dia seguintes a tais actos – e como, de resto, se evidencia pelo teor do episódio de urgência de fls. 208, com data de admissão de 8.2.2000, no qual no quadro “observações clínicas” foi exarado, além do mais, “a doente sofreu traumatismo ontem e refere dor a nível da grade costal”, ou seja, “dor” compatível com as agressões de que referiu ter sido vítima; do teor de fls. 219 (Relatório P1 Completo), no qual, no segmento História actual, se exarou “data do início do problema:5 de Maio 2015”, porém, também ali ficou consignado “Utente apresenta dor e edema punho e braço direitos desde há mais de um mês”, queixas compatíveis com a agressão que referiu ter sido efectuada pelo arguido com a dita pedra; e do teor do relatório de urgência de fls. 224, com data de admissão em 11.11.2013, no que se refere à lesão sofrida por ela mercê da agressão perpetrada pelo arguido na vista da mesma.
Ainda acresce, e como supra exarado, que a ofendida não se limitou a descrever os factos como os mesmos vinham descritos na acusação ficando, por vezes, o seu relato aquém dos ali referidos – mormente, a título de exemplo, quando relatou o episódio descrito na acusação quanto ao segmento ali em causa referente ao portão que o arguido lhe disse para a mesma manter aberto, não referiu, em juízo, que o arguido tivesse dito “senão passo-te por cima se não abrires a bem abres a mal”; também não referiu que o arguido lhe desferiu murros - o que evidencia, igualmente, a sua objectividade, isenção e credibilidade.
E acresce, ainda, que a ofendida relatou os factos, como os mesmos vieram a ser dados como assentes, com um relato em que não se denotou qualquer pretensão vingativa e/ou retaliação em relação ao arguido, pelo contrário, a sua postura em julgamento foi de simplicidade e humildade, procurando tão-só esclarecer o tribunal quanto aos aspectos da sua vida mencionados na acusação e no pedido de indemnização civil, não procurando ampliar os factos sobre que depôs (como já referido).
Assim, a abordagem da ofendida não se revelou de maneira alguma hostil, mostrando-se comedida e contribuiu, decisivamente, para que o tribunal se convencesse da veracidade do seu relato.
E foram as declarações assim prestadas pela ofendida que decisivamente convenceram, dada a congruência dos factos que relatou, sem recorrer a qualquer exagero que se mostrasse eventualmente não consentâneo com as regras da experiência comum, e tanto mais que corroboradas, em parte, pelos testemunhos prestados por M. P., M. F. e S. A. (respectivamente, irmão e cunhada da ofendida e filho da ofendida e do arguido).
Na verdade, a testemunha M. P. referiu que a ofendida, sua irmã, nunca lhe confidenciou que era vítima de violência por parte do arguido, mas, disse a testemunha que por várias vezes via a ofendida com pisaduras nas pernas e que lhe perguntavam a razão de tais pisaduras, mas a ofendida, embora mostrando-se triste, não lhe respondia.
Mais disse que no dia 2.5.2019, a ofendida foi chamar a mulher do mesmo para ir com ela levantar a tampa da fossa em causa nos autos, e que momentos após aquelas duas se terem deslocado para tal fossa ouviu gritos dali provindos e foi de imediato ao local e ali chegado ainda viu o arguido com uma foice, por ele levantada “no ar”, perto da ofendida, e esta a desviar-se, para trás, sendo que a testemunha puxou a ofendida e, mais disse, que nesse momento o arguido apelidou a ofendida de “puta”, “vaca” e lhe disse “chupa aqui na piça”.
Referiu que se o arguido quisesse desferir um golpe com a dita foice que o podia ter feito, atenta a distância a que o mesmo estava, na ocasião, da ofendida – o que demonstra objectividade e isenção da testemunha no relato que fez dos factos por si presenciados, não os empolando de modo a prejudicar o arguido, antes pelo contrário.
Mais disse que, entretanto, o arguido apelidou a ofendida de “filha da puta” e que lhe disse que para a próxima a mesma levava com dois tiros de arma de canos serrados.
Relatou, ainda, que nesse dia e por causa de tais factos a polícia foi chamada ao local.
Referiu, ainda, que uma das vezes em que ia levar a ofendida ao dentista, por esta ter medo de andar sozinha na rua e de o arguido lhe fazer mal, a mesma foi ao seu encontro e quando chegou junto dele contou-lhe que o arguido lhe tinha dito para não mais passar por aquele caminho senão ia ver Braga por um canudo.
No mais, a testemunha deu ainda conta do padecimento, sofrimento, medo e ansiedade, vivenciados pela ofendida quer à data dos factos quer ainda hoje em dia.
A testemunha M. F., mulher da anterior testemunha, referiu que por várias vezes, na constância do casamento entre arguido e ofendida viu a ofendida com pisaduras e questionava como tais pisaduras foram feitas e que a ofendida lhe respondia “já sabes quem foi” sendo que relativamente à pisadura que a ofendida teve no braço a ofendida referiu mesmo que foi o arguido que a tinha agredido com uma pedra.
Reportou ter assistido ao episódio ocorrido aos 2.5.2019, e tal como referido pela ofendida e testemunha M. P., e corroborou, em suma e quanto ao mesmo, as declarações a propósito prestadas pela ofendida.
Também corroborou as declarações prestadas pela ofendida quanto ao episódio narrado na acusação quanto ao portão que o arguido queria que a ofendida mantivesse aberto, e presenciado pela testemunha – e aqui, igualmente, ficando o seu relato aquém do descrito na acusação, o que confere isenção e credibilidade ao seu testemunho.
No mais, a testemunha deu ainda conta do sofrimento e medo vivenciados pela ofendida, mercê das condutas do arguido, quer à data dos factos quer ainda hoje em dia.
A testemunha S. A., filho do arguido e da ofendida, num relato emocionado, mas ostensivamente credível, espontâneo e pormenorizado, relatou ao tribunal que cresceu a ver o pai a bater na mãe (ofendida), mormente nas pernas com pontapés, com vários empurrões; e a insultar, quase todas as noites de “puta”, “vaca”, “filha da puta” “vai para o caralho”, “vais para a via norte dar o cú”; precisando ter visto o arguido a empurrar, com a mão na barriga da ofendida, a ofendida contra o fogão e dizendo achar que a mesma embateu com a barriga e não com as costas no dito fogão – o que não descredibiliza o seu depoimento, pois que foi convicto a referir o dito empurrão e onde a ofendida embateu por causa de tal empurrão; referiu ter visto o arguido a atirar uma pedra contra a ofendida e que lhe acertou no braço e que por isso ela ainda hoje tem problemas no dito braço.
Relatou que quando era pequeno não defendia a mãe porque tinha medo de também ele ser agredido pelo arguido, mas quando tinha cerca de 14/15 anos defendeu a mãe quando a mesma estava a ser agredida pelo arguido, pedindo ao pai (arguido) para não a agredir mais, mas o arguido disse-lhe “que seja a última vez que fazes isto, senão eu mato-te logo” e, por isso, a testemunha “bloqueou”.
Acresce que a testemunha M. M., prima da ofendida, também referiu, e quanto aos factos em causa nos autos, que a ofendida lhe confidenciava, pesarosa, ser vítima de agressões físicas e verbais por parte do arguido, reportando ainda, a testemunha, que aquela lhe mostrou, muitas vezes, pisaduras nas pernas e no corpo referindo terem sido provocadas devido a tais agressões e que a testemunha lhe dizia para fazer queixa à polícia, mas que a ofendida dizia que não o fazia por causa do filho de ambos, mais precisamente que não tinha como sustentar o “Toninho” porque o arguido não a deixava trabalhar (fora de casa).
Referiu, ainda, que quando o arguido esteve a trabalhar na Áustria e dali regressava a casa a ofendida ficava muito nervosa e com medo, dizendo que já sabia que quando ele regressasse iria ser por ele agredida.
E, mas deu conta, a testemunha, do sofrimento, padecimento, dores, medo e ansiedade, vivenciados pela ofendida mercê das condutas do arguido.
Aqui chegados, cumpre referir que as acima mencionadas testemunhas prestaram os seus depoimentos de modo que se afigurou sempre espontâneo, isento, objectivo e, por isso, crível, não tentando empolar os factos descritos na acusação, nem referindo terem presenciado mais do que efectivamente presenciaram, não demonstrando qualquer atitude/pretensão vingativa em relação ao arguido, embora demonstrando pesar pelo cometimento de tais factos contra a ofendida.
E, aqui chegados cumpre referir que a testemunha arrolada pela Defesa, M. L., em bom rigor em nada abalouas declarações da ofendida e os depoimentos das testemunhas acima referidas.
Na verdade, a referida testemunha conviveu com o arguido, e frequentou a casa deste, apenas e já após a separação entre ele e a ofendida e, como referiu, quando presenciou discussões entre aqueles mantidas a mesma “não se metia”.
Mais relatou que no dia da discussão sobre a fossa, e em causa nos autos, o arguido não insultou nem agrediu a ofendida, dizendo, a testemunha, que os estava a ver através da janela da casa do arguido e que ali viu, com aqueles, a testemunha M. F. e o irmão da ofendida – sendo que estes, e a ofendida, e como acima relatado, e de modo que se mostrou isento, objectivo, espontâneo e credível, referiram tais factos de forma bem diferente da testemunha M. L..
No mais, referiu que para ela o arguido, com quem até manteve uma relação amorosa, sempre foi muito respeitador e carinhoso; e, mais disse que a ofendida a insultou de “puta”, referindo a testemunha em juízo, e muito prontamente e de forma assertiva, “puta é ela que já levava três filhos de cada homem para o casamento (com o arguido)” – demonstrando hostilidade para com a ofendida.
O tribunal considerou, ainda, o teor dos demais documentos juntos aos autos – mormente elementos clínicos/médicos; o Auto de notícia de fls. 4 a 8 – reportado ao episódio ocorrido aos 2.5.2019; Aditamento ao auto de notícia de fls. 113 a 116, referente ao episódio ocorrido aos 24.8.2019; Auto de interrogatório de arguido não detido, realizado aos 16.9.2019 (cfr. fls. 157 a 162); Auto de busca e apreensão, a fls. 107 e 108; promoção do Ministério Público a fls. 178 no sentido de a ofendida vir informar se o arguido estava a cumprir com as medidas de coacção impostas e informação, no sentido positivo, prestada pela ofendida (cfr. fls. 184); requerimento do arguido a fls. 260 e respectiva promoção e respectivo despacho sobre o mesmo (cfr. fls. 268 e 272), despacho, este, que revogou a medida de coacção de apresentação no posto policial.
Mais foi considerada a informação do registo criminal junta aos autos e o teor do Relatório Social.
A prova do elemento subjectivo, na ausência de confissão, é sempre indirecta e deve ser extraída dos demais elementos existentes nos autos (e já acima elencados e apreciados criticamente) e das regras de experiência comum.
Desta perspectiva pode certamente dizer-se que ao actuar da forma como actuou, contra a ofendida, o arguido agiu com o propósito, concretizado, de maltratar física e psicologicamente a ofendida dirigindo-lhe imputações ofensivas da honra e consideração que especialmente, como queria e conseguiu; outrossim, actuou com a intenção de atingir a sua dignidadecomo pessoa e de lhe causar medo e inquietação, sabendo que, ao agir como descrito, a molestaria psicologicamente, afetando-lhe a tranquilidade e o sentimento de segurança, resultado que representou e quis, provocando-lhe, além disso, ansiedade e angústia; e, agiu, o arguido, deliberada e conscientemente, de forma livre, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. Quanto aos factos não provados, cumpre referir que não se produziu em audiência de julgamento qualquer prova que permitisse dar como provados outros factos para lá dos que nessa qualidade se descreveram.
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2. De Direito.
2.1. Enquadramento jurídico-penal. 2.1.1. Do crime de violência doméstica.
O arguido vem acusado da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo art. 152º, n.º 1, al. a) e n.º 2, al. a), do Código Penal.
Nos termos do art. 152º, n.º 1, do Código Penal: “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; (…) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
E nos termos do n.º 2, al. a), do preceito citado: “No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”.
Desde logo, trata-se, o crime ora em análise, de um crime próprio ou específico, i. é, só pode ser levado a cabo por certas e determinadas categorias de pessoas – in casu pela pessoa que mantenha ou tenha mantido com a vítima uma relação de casamento.
Por seu lado, o sujeito passivo é aquele (in casu) que mantenha ou tenha mantido com o agente uma relação de casamento.
O âmbito punitivo do preceito em análise inclui, por sua vez, uma multiplicidade de comportamentos que, de forma reiterada ou não, lesam a saúde (3) da vítima e sua dignidade: maus tratos físicos, psíquicos, tratamento cruel.
O conceito de “maus tratos” é impreciso e carece por isso de concretização.
Nessa tarefa importa considerar que as situações da vida real susceptíveis de integrar este conceito são infindáveis, surgindo sempre novas formas de atentados à saúde física e psíquica.
Todavia, dentro daquilo que é razoável, parece ser correcto considerar como sinónimo de “maus tratos” aagressão física (caso de maus tratos físicos sinónimos, aqui, de ofensa à integridade física simples - como sucedeu in casu em relação à ofendida) –, a agressão psíquica (como por exemplo, quando esta se traduz em ameaças puníveis em si mesmas – e como também sucede no caso ora em apreço) – ou em humilhações, molestações, injúrias – (o que ocorreu, igualmente, no caso em questão).
Assim sendo, existirá violência doméstica a pessoa com quem o agente mantenha ou tenha mantido casamento, quando estivermos perante situações em que, reiteradamente ou não, por acção ou omissão, de uma forma grave, se ofende o direito à integridade física ou moral e psicológica da vítima e, quando, se compromete o direito ao seu integral bem-estar físico, à sua honra, à sua liberdade pessoal e dignidade.
Urge, ainda, referir que a criminalização destes comportamentos, e para o que ora importa, foi o resultado da progressiva consciencialização da necessidade de punir com dignidade penal os casos mais chocantes de maus tratos a cônjuges ou ex-cônjuges.
Destarte, o normativo em apreciação penaliza a violência na família, mas a “ratio” do tipo não está na protecção da comunidade familiar mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana.
Pretendeu-se, como refere A. Taipa de Carvalho (4), “prevenir as frequentes e, por vezes, tão “subtis” quão perniciosas – para a saúde física e psíquica e/ou para o desenvolvimento harmonioso da personalidade ou para o bem-estar – formas de violência no âmbito da família (...)”.
Na verdade, os efeitos destas actuações são gravosos a curto e a longo prazo, não sendo de esquecer que, além das enfermidades físicas, as agressões, físicas e verbais, são, a nível psicológico, extremamente traumatizantes.
Relativamente ao elemento subjectivo do tipo de crime ora em consideração, cumpre referir que estamos face a um crime cuja perfeição exige o dolo, mas, contrariamente ao n.º 1 do artigo na sua versão originária, agora só se exige o dolo genérico (5).
Importa, ainda, realçar que o crime ora em apreço quando cometido através de agressões se encontra numa relação de especialidade com o crime de ofensa à integridade física (143º do Cód. Penal) ou, sendo a agressão cometida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade com o crime de ofensa à integridade física qualificada (arts. 146º, n.ºs 1 e 2, e 132º, n.º 2, do Cód. Penal).
E, quando cometido através de ameaças e através de injúrias também se encontra na acima referida relação de especialidade com o crime de ameaças (art. 153º, do Cód. Penal) e de injúrias (art. 181º, do Cód. Penal), respectivamente.
Sendo que a especialidade é definida por Honig (6) “como aquela relação que se estabelece entre dois ou mais preceitos, sempre que numa lei (a lex specialis) se contêm todos os elementos de outra (lex generalis) e, além disso, ainda algum ou alguns outros elementos especializadores”.
E, quando uma determinada conduta realiza um tipo especial de delito não há dúvidas de que é este o aplicável, já que só ele, preenchendo o tipo geral, esgota a valoração jurídica da situação.
Posto isto, e analisando os factos dados como provados, dúvidas não há que o arguido praticou contra a ofendida, e com dolo, o crime p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, al. a), do Código Penal, pelo qual está acusado, não havendo in casu qualquer causa de exclusão de ilicitude e/ou culpa da conduta do arguido.
Aqui chegados, cumpre referir que a Lei n.º 59/2007 consagra uma agravação do limite mínimo da moldura penal nos seguintes quatro casos: (1) facto praticado contra menor de 18 anos, (2) facto praticado diante de menor de 18 anos, (3) facto praticado dentro do “domicílio comum”, isto é, no local da coabitação, e (4) facto praticado no domicílio da vítima nos casos de ex-cônjuge ou agente que “tenha mantido” relação análoga à dos cônjuges.
O propósito do legislador foi o de censurar mais gravemente os casos de violência doméstica praticados com vítimas menores ou ocorridos diante de menores, por se considerar que os menores são vítimas “indirectas” dos maus tratos contra terceiros quando eles têm lugar diante dos menores.
Por outro lado, o legislador quis também censurar mais gravemente os casos de violência doméstica velada, em que a acção do agressor é favorecida pelo confinamento da vítima ao espaço do domicílio e pela inexistência de testemunhas.
In casu ficou provado que vários dos episódios em questão nos autos foram cometidos pelo arguido contra a ofendida no interior da casa onde ambos residiam, com o filho do casal, e, também, enquanto este foi menor de idade; e, ainda, resultou provado que o arguido agiu com dolo e sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei, pelo que deve o arguido ser condenado pela prática do crime pelo qual vem acusado (e p. e p. pelo referido art. 152º, n.º 1, al. a), e n.º 2, al. a), do Código Penal.
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2.2. Determinação da pena. 2.2.1. Moldura penal.
O crime previsto no art. 152º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
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2.2.2. Determinação concreta da medida da pena.
A determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, geral e especial – cfr. art. 71º, do Código Penal.
A culpa constitui o suporte e o limite inultrapassável da pena, sendo ainda de salientar que deve referir-se ao concreto ilícito típico praticado, sendo, essencialmente uma censura dirigida ao agente em virtude da sua atitude desvaliosa documentada no facto.
As exigências de prevenção geral (que constituem o limite mínimo da moldura concreta) são dadas pela necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto, estando ainda em causa a integração e reforço da consciência jurídica comunitárias na validade e na vigência da norma violada.
Por último, dentro da moldura concreta, desta forma encontrada, a exacta medida da pena será fruto da intervenção das exigências da prevenção especial, quer na vertente de socialização, quer na de advertência individual do arguido.
Concretizando.
In casu, a culparevelada pelo arguido é, para o tipo legal de crime em consideração, e dentro dos limites da sua conduta concretamente apurados, de intensidade já elevada.
Na verdade, não pode o Tribunal olvidar o facto de a actuação maltratante do arguido em relação à ofendida se ter prolongado por muito tempo – desde 1987 até 2019 – ou seja, por cerca de 32 anos; e, ainda de tal actuação maltratante se ter manifestado em vários “maus tratos” – desde agressões físicas, agressões psíquicos/emocionais (aqui, injúrias e ameaças) - e não se ter reconduzido, por exemplo, a uma única reacção a uma determinada conduta daquela -, assim evidenciando uma culpa muito mais gravosa do que se tivéssemos perante um único momento de cometimento de violência doméstica e/ou uma reacção momentânea a determinada conduta da vítima.
Igualmente são muito acentuadas as necessidades de prevenção geral, atendendo à frequência com que vêm sendo cometidos crimes de violência doméstica, bem como o sentimento de repúdio que o mesmo provoca na comunidade em geral.
Com efeito, deve ser destacado que a experiência, apoiada em dados estatísticos, diz-nos que os crimes de violência doméstica continuam a ter uma expressão muito significativa e crescente na sociedade e acarretam consequências devastadoras de equilíbrio na família (a base da sociedade) para além de conduzirem, numa percentagem elevada, a situações extremas de morte das vítimas de violência doméstica, causando, assim, tais crimes, forte alarme social, aos quais a sociedade vem fortemente manifestando acrescida preocupação e reclamando a reacção firme dos Tribunais.
No que concerne às exigências da prevenção especial militam, desde logo, a favor do arguido a circunstância de não ter antecedentes criminais.
Todavia, neste segmento ora em apreço e militando contra o arguido há a ponderar que o mesmo, em sede de julgamento, quando prestou declarações quanto aos factos em causa nos autos admitiu, apenas, ter dito à ofendida, e quando ambos discutiam um com o outro, “vai para o caralho” e que quando aquela lhe dizia “vai para a puta que te pariu” ele respondia “vai tu para a puta que te pariu” e que a empurrou por uma vez no campo de futebol de ... e que atirou contra a mesma com um “metro” em plástico que lhe acertou no braço, negando, no mais, ter protagonizado os factos em apreço, embora admitindo que nas datas em causa nos autos existiram conflitos entre ele e a ofendida, mas não como descrito na acusação, não demonstrando assim arrependimento pela prática dos factos que resultaram provados, e, ainda, demonstrando, pois, que ainda não interiorizou o desvalor, a gravidade e censurabilidade da sua conduta.
Ainda milita contra o arguido o facto de ter actuado com dolo directo, i. é, na sua modalidade mais gravosa.
A favor do arguido milita a circunstância de ter estado profissionalmente inserido e, ainda, a circunstância de não mais ter contactado com a ofendida desde que lhe foram aplicadas as medidas de coacção no âmbito destes autos.
Por tudo o que vem sendo exposto, e de acordo com o critério legal constante do art. 71º do Código Penal, entende-se como justa, proporcional, adequada, necessária e suficiente aplicar ao arguido, pela prática do crime de violência doméstica, uma pena de 3 anos e 10 meses de prisão.
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2.2.3. - Da suspensão da execução da pena de prisão.
De acordo com o preceituado no n.º 1 do art. 50º do Código Penal: “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Sendo, ainda, que se o tribunal julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição subordina a suspensão da execução da pena de prisão ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova - cfr. arts. 51º, 52º e 53º, “ex vi” do art. 50º, n.º 2, todos do Código Penal.
E, como consabido, não são considerações de culpa que interferem na decisão que agora nos ocupa mas, apenas, razões ligadas às finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização, estas acentuadamente tidas em conta no instituto em análise, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral, ligadas à necessidade de correspondência às expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas.
Com o referido instituto da suspensão a finalidade político-criminal que a lei visa é clara: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes, e não qualquer correcção ou melhora das concepções daquele sobre a vida e o mundo.
É, em bom rigor e em suma, uma questão de “legalidade” e não de “moralidade” que aqui está em causa.
Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o “conteúdo mínimo” da ideia de socialização, traduzida na “prevenção da reincidência” – cfr. Prof. Figueiredo Dias, in ”Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, ed. 1993, págs. 343 e 344.
De salientar, ainda, que está em causa no instituto da suspensão da execução da pena não uma qualquer “certeza”, mas apenas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser conseguida.
E, o tribunal deve correr risco “prudencial” (fundado e calculado) sobre a manutenção do agente em liberdade.
Destarte, a suspensão da execução da pena de prisão assenta num prognóstico favorável relativamente ao comportamento futuro do agente, prognóstico, esse, efectuado no momento da decisão.
Tal juízo de prognose fundamentar-se-á, cumulativamente, na ponderação da personalidade do agente e das circunstâncias do facto (ainda que essas circunstâncias sejam anteriores e/ou posteriores ao facto e mesmo que já tenham sido valoradas em sede de medida concreta da pena). Isto é, no referido juízo de prognose há que ter em conta a personalidade do arguido, as suas condições de vida, a conduta anterior e posterior ao facto punível e as circunstâncias deste mesmo facto.
Revertendo ao caso destes autos, ficou demonstrado, além do mais, e com interesse para o que ora nos ocupa que:
- o comportamento atentatório do bem-estar da ofendida (crime de violência doméstica) persistiu por todo o tempo de casamento e após a separação do casal - sendo tal circunstância reveladora de uma significativa propensão por parte do arguido para a conflitualidade;
- O arguido, em sede de audiência, assumiu uma ínfima parte dos factos em causa e não revelou arrependimento e não demonstrou ter interiorizado a censurabilidade e reprovação das suas condutas;
- Sucede, porém, que o arguido sempre esteve inserido profissionalmente; ao que acresce que o arguido não tem antecedentes criminais; e, ainda, que desde que foi sujeito às medidas de coação aplicadas em 1º interrogatório judicial de arguido não detido não mais contactou com a ofendida.
Ora, assim sendo, e pese embora os factos criminosos em causa nos autos – e que são muito graves -, considerando, porém, que o arguido não tem antecedentes criminais e que sempre teve ocupação laboral e que desde tal interrogatório não mais contactou com a ofendida, entendemos que, in casu, a ameaça da pena de prisão satisfaz as necessidades de prevenção especial.
Analisando agora a questão do ponto de vista da prevenção geral, perguntar-se-á se à suspensão da execução da pena de prisão se opõem “as necessidades de reprovação e prevenção do crime”, isto é “considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico.”
Por outras palavras - o sentimento jurídico da comunidade impõe que o arguido cumpra em clausura a pena de prisão que lhe foi aplicada, por só assim se cumprirem as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico?
Ora, sem dúvida que os factos, por que o arguido foi julgado e pelos quais lhe foi aplicada a mencionada pena de prisão, são muito graves.
Importa, porém, referir, e como acima mencionado, que o arguido é primário e sempre esteve inserido profissionalmente e que desde a aplicação das medidas de coacção não mais tem contactado com a ofendida.
Acresce que a Lei n.º 59/2007 de 04.09 veio introduzir alterações profundas ao regime da suspensão da execução da pena, alargando o âmbito do pressuposto formal desta pena de substituição (“prisão aplicada em medida não superior a 5 anos”, quando anteriormente esse limite era de 3 anos) e alterando o prazo de duração da suspensão, que passou agora a ter duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano; sendo que recentemente a lei foi alterada no que tange ao período de suspensão da execução da pena.
Assim, no que concerne à prevenção geral positiva, com a atitude da própria comunidade demonstrada através da via legislativa, quando com a referida lei veio permitir a suspensão da execução da pena de prisão à pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos, já se denota que essa comunidade se conforma e aceita que a suspensão da execução à referida pena de prisão aplicada até 5 anos (o que demanda estarem em causa crimes já considerados graves) é por si suficiente para reafirmar a norma jurídica violada.
Destarte, entende este Tribunal, verificados aqueles circunstancialismos, que a prevenção geral, sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, não reclama necessariamente a imediata privação da liberdade do arguido, ficando garantida com a aplicação de uma pena de prisão suspensa na sua execução, in casu sujeita regime de prova e ao cumprimento de obrigações.
Destarte, ante este quadro, entendemos ser possível, ainda, fazer neste momento um juízo de prognose favorável em relação ao arguido e como acima já deixamos exarados, devendo, por isso, ser-lhe dada uma derradeira oportunidade para o mesmo, em liberdade, interiorizar a gravidade das suas apuradas condutas e conformar a sua personalidade ao direito, acreditando-se que a mera censura dos factos ínsita nesta decisão e a ameaça da execução da aludida pena de prisão serão suficientes para o afastar da criminalidade e satisfazer as necessidades de reprovação e de prevenção do crime.
Entendemos, pois, que é, ainda, possível formular o juízo de prognose social favorável ao arguido e necessário para este beneficie da suspensão da execução da pena de prisão pelo período de 3 anos e 10 meses.
E como referido no acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 10.5.2010 (disponível in dgsi), e com propriedade para o presente caso:
«Uma suspensão, prolongada por vários anos pode constituir um incentivo à recuperação do arguido. E a sociedade não perde o controlo sobre o arguido durante o período da eventual suspensão: a suspensão constitui como que uma espada pendente sobre a cabeça daquele. A suspensão pressupõe, sempre, algum risco, diremos mesmo, em casos como o presente, alguma ousadia. Mas talvez valha a pena correr tal risco, se se conseguir ganhar um cidadão e eliminar um criminoso.»
E, como acima referido, nos termos do art. 51º, do Código Penal: “A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente: a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado (…); 4 – O Tribunal pode determinar que os serviços de reinserção social apoiem e fiscalizem o condenado no cumprimento dos deveres impostos”.
E, nos termos do art. 52º do Código Penal: “1 – O Tribunal pode impor ao condenado o cumprimento, pelo tempo de duração da suspensão, de regras de conduta de conteúdo positivo, susceptíveis de fiscalização e destinadas a promover a sua reintegração na sociedade, nomeadamente: (…) c) cumprir determinadas obrigações; n.º 2: O tribunal pode, complementarmente, impor ao condenado o cumprimento de outras regras de conduta, designadamente: b) Não frequentar certos meios ou lugares; c) Não residir em certos lugares ou regiões; (…) 4 – É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo anterior.”.
Assim, por se julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição subordinar-se-á a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido, além do mais e como infra se verá, a regime de prova e ao cumprimento por este das seguintes obrigações/deveres/regras de conduta (cfr. art. 50º, n.º 2, 51º, n.º 1, al. a), 52º, n.ºs 1, al. b) e c) e n.º 2, als. b) e f), do Código Penal) - a) de pagar no prazo de 2 anos a quantia de, pelo menos, 1.500,00 euros, a título de indemnização (como infra se verá) à ofendida; b) – de não contactar, por qualquer forma ou meio, com a ofendida, excepto no âmbito de diligências processuais e/ou por intermédio de Advogado, Procurador ou Solicitador, no aludido período de 3 anos e 6 meses; c) de não frequentar a zona da habitação destinada ao uso da ofendida durante o referido período de 3 anos e 10 meses; d) da obrigação de, no mesmo período de tempo, 3 anos e 10 meses, cumprir a obrigação de apresentação quinzenal ao técnico de reinserção social, que para o efeito for nomeado pela DGRSP, com vista a um acompanhamento próximo do comportamento do arguido em relação à ofendida e à orientação do mesmo no campo do relacionamento afectivo e cumprimento do regime de prova; e) de não ter em seu poder armas de fogo e armas brancas.
Em conformidade, serão remetidos a este processo relatórios pela DGRSP – de três em três meses -, decidindo este tribunal, oportunamente, e com fundamento nas informações assim carreadas aos autos, da revogação ou não das obrigações e deveres supra referidas e da revogação ou não da suspensão da execução da pena de prisão.
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III. Pedido de Indemnização Civil.
A ofendida/demandante peticionou a condenação do arguido no pagamento de uma indemnização pelos danos não patrimoniais decorrentes do comportamento do mesmo.
Nestes termos importa averiguar do preenchimento de todos os pressupostos da obrigação de indemnizar com base na responsabilidade civil por factos ilícitos e previstos no art. 483º do Código Civil - cfr. art. 129º do Código Penal.
Nos termos daquela disposição legal é necessário que se verifique, antes de mais, um comportamento ilícito do agente, numa das modalidades aí previstas.
Já vimos que o arguido praticou um crime de violência doméstica na pessoa da ofendida/demandante.
E este comportamento é ilícito na medida em que viola direitos de outrem - o direito subjectivo à integridade física, liberdade e honra - não se verificando qualquer causa de exclusão da ilicitude.
Todavia, não basta que o comportamento do agente seja ilícito; é necessário também que seja culposo - a título de dolo ou mera negligência -.
Ora, já resulta do exposto que o arguido agiu com dolo, na modalidade de dolo directo.
Por último, é necessário que este comportamento ilícito e culposo do agente tenha causado um dano; e, assim, entramos na análise do último pressuposto da obrigação de indemnizar com base na responsabilidade civil por factos ilícitos: a existência de um nexo de causalidade entre o facto do agente e o dano verificado, conforme os ensinamentos da teoria da adequação - cfr. art. 563º do Código Civil.
Face à matéria de facto assente e a tese jurídica subjacente à nossa lei dúvidas não restam dúvidas que o comportamento do arguido/demandado foi causa directa, necessária e adequada dos danos não patrimoniais apurados, sendo certo que estes últimos também se revelam graves para os efeitos do art. 496º, n.º 1, do Código Civil.
Resta, assim, proceder à quantificação dos aludidos danos.
Destarte, e em conformidade com o que se deixou dito e considerando os factos provados e as condições económicas e pessoais do arguido, e de acordo com os critérios da equidade, julga-se adequado condenar o mesmo a pagar a quantia de 5.000,00 euros à demandante civil.
No respectivo pedido a demandante não pede a condenação do arguido no pagamento de juros pelo que, em obediência ao princípio do pedido não se condena o arguido nos mesmos.
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IV. Da Recolha de ADN
O Ministério Público requereu, ainda, que atenta a gravidade dos factos, no caso de ser o arguido condenado com pena de prisão igual ou superior a 3 anos, deverá proceder-se à recolha de amostra de ADN, nos termos do artigo 8º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 5/2008 de 12 de Fevereiro.
Ora, uma vez que no presente caso não se procedeu à recolha de amostras nos termos do art. 8º, n.º 1, da Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro e que ficou demonstrada a prática pelo arguido de um crime doloso, tendo sido aplicada ao mesmo, a título principal pena não inferior a 3 (três) anos de prisão, não se vislumbrando razões que desaconselhem ou torne desnecessária a ordem de recolha de amostra, será determinado que, após trânsito em julgado da presente decisão condenatória, seja efectuada ao arguido a recolha de vestígios biológicos de origem humana destinados a análise de ADN.
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V. Decisão.
Pelo exposto:
1. Condeno o arguido, S. A., pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo art. 152º, n.ºs 1, al. a), 2, al. a), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão;
2. Nos termos do art. 50º, do Código Penal, suspendo a execução da pena de 3 (três) anos e 10 (dez) meses de prisão pelo período de 3 (três) anos e 10 (dez), subordinando a mesma a regime de prova e ao cumprimento, pelo arguido, dos seguintes deveres e regras de conduta – a)de pagar no prazo de 2 anos a quantia de, pelo menos, 1.500,00 euros (mil e quinhentos euros), a título de indemnização (como infra se verá) à ofendida; b) – de não contactar, por qualquer forma ou meio, com a ofendida, excepto no âmbito de diligências processuais e/ou por intermédio de Advogado, Procurador ou Solicitador, no aludido período de 3 anos e 6 meses; c)de não frequentar a zona da habitação destinada ao uso da ofendida durante o referido período de 3 anos e 10 meses; d) da obrigação de, no mesmo período de tempo, 3 anos e 10 meses, cumprir a obrigação de apresentação quinzenal ao técnico de reinserção social, que para o efeito for nomeado pela DGRSP, com vista a um acompanhamento próximo do comportamento do arguido em relação à ofendida e à orientação do mesmo no campo do relacionamento afectivo e cumprimento do regime de prova; e) de não ter em seu poder armas de fogo e armas brancas – E, em conformidade, serão remetidos a este processo relatórios pela DGRSP – de três em três meses -, decidindo este tribunal, oportunamente, e com fundamento nas informações assim carreadas aos autos, da revogação ou não das obrigações/regras de conduta/deveres supra referidos e da revogação ou não da suspensão da execução da pena de prisão;
3. Condeno, ainda, o arguido no pagamento das custas do processo que fixo em 3 U´sC e nos demais acréscimos legais que fixo no mínimo;
4. Condeno o arguido/demandado civil, S. A., a pagar à demandante civil, L. P., a quantia de 5.000,00 euros (cinco mil euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais por esta sofridos mercê da conduta daquele;
5. Condenado a demandante e o demandado civil no pagamento das custas cíveis sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
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Atenta a condenação do arguido, verifica-se que os pressupostos que determinaram a aplicação, em sede de 1º interrogatório de arguido não detido, e posteriormente a sua manutenção, das medidas de coacção se mostram ainda mais reforçados, razão pela qual se mantêm estas medidas de coacção - a) Proibição de contactar, por qualquer forma ou meio, com a ofendida, exceto no, e no âmbito de diligências processuais e/ou por intermédio de Advogado, Procurador ou Solicitador com a vítima; b) Proibição de frequentar a zona da habitação destinada ao uso da ofendida; c) Proibição de adquirir e usar armas de fogo, bem como armas brancas, nos termos dos artigos 191º a 193º, 194º, 196º, 198º, 200º, n.º 1 alíneas a), d) e e) e 204º, al. c), todos do CPP, e ao abrigo do disposto no artigo 31.º, n.º 1 alíneas a), b) e d) e 35.º da Lei de Violência Doméstica, e até ao trânsito em julgado desta decisão, com excepção do TIR que só se extinguirá com a extinção da pena (cfr. arts. 214º, n.º 1, als. d) a contrario, e) e 218º, n.º 2, do CPP) ou em caso de recurso com decisão absolutória.
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Notifique.
Deposite.
Após trânsito:
- remeta boletins à D.S.I.C.
- Comunique à DGRSP solicitando a elaboração do plano de reinserção social (arts. 50º, n.º 2, 53º, n.ºs 1 e 2, 54º, do Código Penal e 494º do CPP) e dos relatórios de fiscalização do cumprimento do regime de prova e dos deveres e das obrigações aplicados ao arguido, e solicite relatórios sobre a execução do regime de prova e o cumprimento e os resultados das obrigações e deveres, com frequência de três em três meses, salvo se houver necessidade de comunicação imediata ao Tribunal devido a incumprimento por banda do arguido de tais deveres e obrigações;
- Uma vez que, no presente caso, não se procedeu à recolha de amostras nos termos do art. 8º, nº 1, da Lei nº 5/2008, de 12 de Fevereiro, que ficou demonstrada a prática de crime doloso, tendo sido aplicada, a título principal, pena parcelar não inferior a 3 (três) anos de prisão (embora substituída), não se vislumbrando razões que desaconselhem ou torne desnecessária a ordem de recolha de amostra, ordena-se que, após trânsito em julgado da presente decisão condenatória, seja efectuada ao arguido a recolha de vestígios biológicos de origem humana destinados a análise de ADN, a efectivar, em duplicado, sempre que possível, por profissionais diferentes, através de método não invasivo, que respeite a dignidade humana e a integridade física e moral individual, designadamente pela colheita de células da mucosa bucal ou outro equivalente, devendo o arguido ser previamente informado nos termos do art. 10º, n.º 1, da Lei de Protecção de Dados Pessoais e 9º da Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro, com a entrega do documento constante do Anexo III do Regulamento de funcionamento da base de dados de perfis de ADN (cfr. Deliberação n.º 3191/2008, de 15.07.2008 do Instituto Nacional de Medicina Legal IP, in Diário da República, II Série, n.º 234, de 03.12.2008, pág. 48881 e ss.), a fim de o perfil de ADN a obter a partir das amostras recolhidas e os correspondentes dados pessoais ser introduzido na Base de Dados de Perfis de ADN a que alude o art. 15º, n.º 1, al. e), da Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro (cfr. arts. 8º, n.º 2, 10º e 18º, n.º 3, da referida Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro e arts. 7º e 8º, do Regulamento de funcionamento da base de dados de perfis de ADN), ficando desde já dispensada a recolha caso não tenham decorrido cinco anos desde a primeira a que eventualmente tenha aquele sido sujeito e, em qualquer caso, quando a mesma se mostre desnecessária ou inviável (cfr. art. 8º, n.º 6, da Lei nº 5/2008, de 12 de Fevereiro).
As amostras recolhidas deverão ser destruídas imediatamente após a obtenção do perfil de ADN (cfr. arts. 34º, n.º 1, da Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro e 13º do Regulamento de funcionamento da base de dados de perfis de ADN).
- Comunique, enviando certidão da decisão condenatória, com nota de trânsito em julgado, e do presente despacho, ao Instituto Nacional de Medicina Legal IP (cfr. arts. 5º da Lei nº 5/2008, de 12 de Fevereiro e 7º do Regulamento de funcionamento da base de dados de perfis de ADN, dando conta do paradeiro actualizado do arguido e da identidade e endereço profissional do ilustre mandatário daquele.
- Fica o arguido advertido que não se pode eximir a ser submetido à dita recolha, sob pena de, caso se recuse a se submeter à dira recolha, ser compelido à mesma pelo uso da força física estritamente necessária para o efeito (cfr. arts. 6º, n.º 1 e 7º, n.º 2, da Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro e 4º do Regulamento de funcionamento da base de dados de perfis de ADN, que apenas impõem o consentimento livre, informado e escrito no caso das recolhas de amostras em voluntários ou em pessoas para fins de identificação civil, designadamente em parentes de pessoas desaparecidas, o que não é o caso dos autos; 172º, nº 1, do C.P.P. ex vi art. 10º da Lei nº 5/2008, de 12 de Fevereiro).
- Os custos da recolha deverão ser oportunamente adiantados pelo Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça IP, entrando em regra de custas (cfr. art. 8º, n.º 1, n.º 5 e 6, do dito Regime jurídico das perícias médico-legais e forenses.”
2.1. – Questões a Resolver
2.1.1.– Da Impugnação da Matéria de Facto 2.1.2. – Da Prescrição do Procedimento Criminal 2.1.3. – Do Direito de Queixa e dos Factos Genéricos 2.1.4. – Da Qualificação Jurídica 2.1.5. – Da Aplicação das Penas Acessórias 2.1.6. – Do Recurso na Parte Cível
2.2. – Da Impugnação da Matéria de Facto
Começa o recorrente por impugnar a matéria de facto, fixada na sentença. Dirige a sua discordância, quer relativamente aos factos provados, quer aos não provados. Concretiza, referindo estarem em causa os factos 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10 (quanto ao ano), 11, 12, 13, 14, 15, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 26, 27, 28, 29, 30 e 31 dos factos provados e os factos 13, 14, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22 e 23 dos factos não provados.
Considera o recorrente que a prova dos factos se baseou nas declarações da assistente L. P. e nos depoimentos das testemunhas M. P., M. F. e S. A. (respetivamente irmão, cunhada e filho da ofendida e do arguido) que alega contradizerem-se por várias vezes e por outro, entram em contradição com outras testemunhas.
Ora, logo de esta declaração genérica perpassa que o arguido pretende contrariar a convicção do Tribunal, mas exatamente tão-só quanto a isso, que se baseia no princípio da livre apreciação da prova (art.º 127º C.P.P.).
Parece que o arguido apenas pretende substituir a convicção do Tribunal pela sua versão, que considera mais credível, sem que porém aponte provas concretas no sentido de que só a sua versão é a possível (art.º 412º/3, b), C.P.P.).
Deve porém desde já esclarecer-se que em Processo Penal, só no julgamento em 1ª instância se está em ótimas condições para fixar os factos, por só entãao se beneficiar em pleno dos princípios da oralidade e imediação. Assim e por princípio, o Tribunal da Relação só deve alterar os factos quando se aperceber de qualquer erro nítido de julgamento, ilogicidade de raciocínio ou utilização de provas proibidas que tenha ocorrido em 1ª instância. Não se trata pois, de um segundo julgamento para pesar argumentos, quanto à solução ideal do pleito.Com efeito, só a 1ª instância analisou com imediação e oralidade os factos em julgamento – linguagem não verbal, reações corporais, expressões e tantos outros fenómenos que escapam a uma simples gravação – pelo que, em princípio é o Tribunal mais apto, a bem conhecer dos factos.
Aliás, o recorrente é obrigado a fazer referência às provas que impõem decisão diversa da recorrida (art.º 412º/3, b), C.P.P.), o que é bem diferente de se referir a provas que podem conduzir a uma decisão diferente.
Como se disse no Acórdão da Relação de Coimbra de 12/9/2 012, Proc.º 245/09, em www.dgsi.pt,
“O controlo da matéria de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode subverter ou aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída, dialecticamente, na base da imediação e oralidade. Por outro lado, a reapreciação só pode determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.”
A questão da mera opinião ante as provas produzidas não faz parte da dupla jurisdição em matéria de facto, pois o Tribunal de recurso não beneficia dos mesmos princípios da imediação e oralidade, de que beneficiou o Tribunal da 1ª instância, nem pode pôr questões ao arguido/testemunhas sobre dúvidas que se lhe suscitem.
Assim e quanto aos pontos 4º, 5º e 6º da matéria de facto provada, limita-se o recorrente a falar no que o arguido disse, sem o contrapor a quaisquer outras provas ou sequer referir porque as referidas declarações implicavam, necessariamente, resolução de facto diferente.
Quanto ao ponto 7º, o simples facto de o arguido apenas referir que empurrou a ofendida em 2 013, no campo de futebol de … – o que equivale ao dado como provado no ponto 10º - não significa que só isso tenha acontecido. Aliás e mais uma vez, o arguido não faz a crítica da decisão do Tribunal, nem explica por que razão os elementos que invoca levam necessariamente a decisão diversa. Também aqui não pode pois proceder, a alteração peticionada.
O facto 9º terá ocorrido em 7 de Fevereiro de 2000 e o arguido terá desferido um empurrão na ofendida durante uma discussão, fazendo-a embater com o corpo num fogão de lenha. Refere o recorrente ter havido contradição entre as declarações da assistente e o depoimento de seu filho, S. A.. Isto, porquanto a primeira referiu que bateu com as costas no fogão de sala, enquanto o seu filho acha que terá batido com a barriga. Há, de facto, alguma contradição, quanto à zona do corpo embatida. Porém, entre a data dos factos e a de tomada de declarações/depoimento decorreram mais de vinte anos.
Trata-se de tempo suficiente para que surjam esquecimentos ou falsas memórias, em factos não essenciais.
Nestas condições e na ausência de preparação de depoimentos, normal é que surjam este tipo de divergências que não implicam uma diminuição de credibilidade. Pelo contrário, repara-se antes que não houve conformação de depoimentos, o que até aumenta a credibilidade dos mesmos.
Aliás, di-lo a sentença recorrida e reitera-se agora depois de ouvida toda a prova, que quer a ofendida, quer o seu filho e do arguido, também S. A., não denotaram qualquer interesse em prejudicar o arguido. Pelo contrário, falaram com emoção e sofrimento sobre os factos, como se os estivessem a reviver.
Assim, a citada contradição não lhes retira qualquer credibilidade. Não há pois qualquer razão, para retirar este facto dos provados.
No que se refere ao art.º 10º, invoca o recorrente o facto de a assistente não ter concretizado no tempo a data dos factos, ter dito que tinha ido ao Hospital e não constarem dos autos quaisquer elementos clínicos sobre aas lesões, apesar de solicitados. Porém, consta de fls. 224/225, que a ofendida foi ao serviço de urgência do Hospital de Famalicão, onde se apresentava com um episódio de hipertensão para que foi medicada, tendo-lhe também sido diagnosticada “hemorragia subconjuntival à direita”. No art.º 10º da sentença os factos são referidos com referência “a data não concretamente apurada do ano de 2013”, o que +e compatível com a citada observação médica. Não há pois, que fazer qualquer alteração.
O mesmo se diga quanto ao art.º 11º, refutado nos mesmos termos, que mais não é do que a concretização da agressão e injúria praticadas pelo arguido. O facto de a testemunha M. P. referir que nunca presenciou o arguido a injuriar a ofendida, não quer dizer que estes factos se não tenham passado, na sua ausência. Aliás e ouvido o seu depoimento – tal como toda a prova produzida – o mesmo é explícito ao referir que não assistiu a qualquer episódio, apenas tendo visto a sua irmã “pisada nas pernas e nos olhos”, sendo que apenas assistiu aos factos ocorridos em 2 de Maio de 2019, junto da fossa. Nenhum problema decorre pois, de esta testemunha não ter assistido a qualquer injúria da parte do arguido, a sua irmã. Aliás, foi bem notório que a testemunha não teria muito contacto pessoal com o arguido.
Quanto aos pontos 12º e 13º dos factos provados. Está em causa o arremesso de uma pedra contra a ofendida, no ano de 2015 e em data anterior a 13 de Maio de 2015. É verdade que a assistente nunca falou na presença do seu filho S. A., na altura do cometimento dos factos e que este afirma que os viu.
Só que, isso também não foi claramente perguntado, à mesma.
Não se concretizam também as alegadas contradições, entre as declarações da primeira e o depoimento do seu filho.
As contradições que assinala no depoimento da testemunha M. F. e deste depoimento com os anteriores são também de pormenor, para factos já passados há cerca de 5 (cinco) anos. Aliás e por exemplo, nada tem de estranho, nestas condições dizer-se que o arguido atirou uma pedra à ofendida, para a seguir melhor se concretizar, referindo-se que afinal não viu o arguido atirar a pedra, mas ouviu a ofendida berrar depois de ter levado com a pedra.
Ou seja: a testemunha concluiu que assim terá acontecido e isso começou por dizer, para depois melhor concretizar o que efetivamente viu. Trata-se até de um comportamento perfeitamente compreensível, em quem não é “testemunha profissional”.
Deve manter-se pois, a versão dos factos dada pelo Tribunal.
O facto 14 refere-se ao facto de os referidos episódios de agressividade decorrerem no interior da residência e quase sempre na presença do filho de ambos, então menor. O recorrente baseia-se apenas nas declarações do arguido, para referir que o filho terá assistido a apenas alguns episódios. Porém, como basear-se nas declarações do arguido quando estas têm vindo a ser refutadas e afastadas?
Aliás, se está em causa atividade reiterada e habitual durante mais de 30 (trinta) anos (cfr. arts.º 4º a 8º dos factos provados), ocorrida em contexto familiar, o normal é que isso tenha acontecido várias vezes.
E isso mesmo confirmou a testemunha S. A., filho de ambos. Já a meio do seu depoimento diz o mesmo que as agressões ocorriam “basicamente, todos os dias”. E, logo no início do seu depoimento esta testemunha, que é filho de ambos, tinha dito que a “relação dos meus Pais não era muito boa.” Ao nível físico e psicológico.
O argumento do recorrente em nada infirmou pois, o juízo do Tribunal.
Mantém-se pois, a versão dada como provada.
Segue-se a impugnação dos factos considerados provados nos arts.º 18º, 19º, 20º e 21º dos factos provados. Invoca os depoimentos de M. P. (irmão da assistente) e de M. F. (cunhada da assistente e Mulher da testemunha M. P.). O recorrente considera estes depoimentos pouco credíveis.
Mais uma vez sindica a convicção do Tribunal baseada no princípio da livre apreciação da prova, o que não cabe na sindicância da decisão recorrida, pois é o Tribunal recorrido o que maior imediação tem com a prova produzida podendo pois fazer um juízo de credibilidade mais completo.
Aliás, descredibilizar o depoimento do primeiro porque ele não se lembra se fazia frio ou calor não faz qualquer sentido, pois trata-se de uma questão secundária ou pouco importante e que assim pode não ser memorizada. Aliás, foi visível que a testemunha apenas esteve presente e viu este episódio, tendo estado com a ofendida logo a seguir ao de 6 de Agosto de 2 019, quando a foi buscar para ir ao Dentista. Mas neste, a própria testemunha referiu não ter visto os factos, tendo apenas estado com a sua irmã a seguir. Aliás, a testemunha apenas referiu, quanto a outros factos, que viu várias vezes a sua irmã “pisada nas pernas e nos olhos”. Foi pois comedida e resulta até do seu depoimento que não queria intrometer-se na vida da irmã, sendo pois o seu depoimento especificamente sobre estes dois pontos da matéria de facto. Por isso e ao invés do invocado, o seu depoimento é até bastante credível.
Quanto à testemunha M. F. diz o recorrente que a mesma não é credível, porquanto terá referido que o arguido não se deslocou de onde estava no terreno, para tentar agredir a ofendida. Porém e ouvido o seu depoimento, o que a mesma diz é que o arguido apontou a foice à ofendida, lhe chamou “vaca”, “puta”, “taurina” e disse que lhe lambesse “a piça” e que então o marido os desapartou. O depoimento é pois e até, em sentido contrário ao referido pelo assistente, não sendo pois contraditório com qualquer outro.
Ou seja: contrariamente ao referido pelo recorrente não há qualquer razão para descredibilizar estes depoimentos, não havendo pois qualquer argumento para alterar também aqui, os factos provados.
Os factos 22º e 23º referem-se ao dia 6 de Agosto de 2 019, quando a ofendida ia ao Dentista como o irmão M. P. e o arguido lhe disse “este caminho não é teu se voltares a passar por aqui, vais ver Braga por um canudo”. Afirma o recorrente que estes factos deveriam ter sido dados como não provados, uma vez que o depoimento de M. P. é indireto por não ter assistido aos factos e os mesmos lhe terem sido contados pela irmã, ora ofendida.
E, com efeito, a testemunha M. P. referiu não ter assistido aos factos, embora tenha acorrido ao local para levar a sua irmã ao Dentista. Que não viu os factos, mas a irmã lhos contou logo de seguida a terem-se passado. Não serve como meio de prova (art.º 129º/1 C.P.P.), mas o certo é que a ofendida e assistente L. P. os confirmou, sendo a exaltação do arguido motivada por entender que ela não podia usar o caminho por onde passava – já depois de Divorciados.
Mais uma vez se realça a credibilidade da própria assistente.
O facto de ser sujeito processual e de se tratarem as suas declarações do único meio de prova disponível não impede a sua valoração positiva, ultrapassada que está há muito a regra “unis testis, nullus testis”.
Nada pois, a alterar aos factos provados.
Entende depois o recorrente que não deve ser considerado como provado, o facto 26º.
Refere-se este ao facto de o arguido ter chamado “ladra” à assistente, acusando-a de lhe furtar ovos do galinheiro.
O arguido refere ter falado no tema, mas nega ter proferido a expressão “ladra”.
A assistente confirmou ter sido injuriada. Com efeito e nas suas declarações, referiu que o arguido a acusou de lhe ter roubado dois ovos e a seguir lhe chamou “ladra”.
Mais uma vez o arguido recorrente tenta substituir a convicção do Tribunal pela sua, não demonstrando que se impõe conclusão diversa (art.º 412º/3, b), C.P.P.).
Ora e como já se realçou por várias vezes, a dupla jurisdição em matéria de facto não concede o direito a um segundo julgamento ou opinião. Constitui apenas um mecanismo de superação de erros patentes. Erro que o recorrente não conseguiu evidenciar.
Nem se invoque o princípio “in dubio pro reo”, por haver uma declaração num sentido e outra em sentido contrário. A questão tem antes a ver com a credibilidade das declarações e o Tribunal fundamentou porque deu credibilidade à assistente e não deu ao arguido.
E não decorre que o Tribunal tenha tido qualquer dúvida, na fixação deste facto como provado.
Dúvida que o recorrente também não consegue agora incutir, neste Tribunal de recurso.
Não ocorrendo situação de dúvida não pode aplicar-se o citado princípio, que favorece o arguido.
Nada pois também a alterar, quanto à decisão proferida quanto a este facto.
Os factos 27º, 28º e 29º dizem respeito ao elemento subjetivo do ilícito praticado e respetivo conhecimento da ilicitude.
O recorrente resume-se a referir que estes factos devem ser dados como não provados, uma vez que os respetivos ilícitos em termos objetivos deveriam também ser dados como não provados.
Resultando o contrário, é evidente que este argumento também não pode proceder. Devem pois tais factos continuar como factos provados, não devendo alterar-se a decisão proferida.
Seguem-se os factos 30º e 31º, que se referem aos danos físicos e psicológicos sentidos pela assistente, por via da atuação do arguido.
O facto de o seu irmão M. P. referir que a assistente nunca foi muito feliz, nem teve muitos contactos sociais não inibe as sequelas psicológicas decorrentes das agressões físicas e psicológicas, a que foi sujeita.
Tal como não apresenta provas no sentido de a mesma não ter sofrido as sequelas médicas, referidas nos autos.
O Tribunal bastou-se fundamentadamente na prova produzida, por declarações da assistente, testemunhal e documental, com elementos médicos, que o recorrente não consegue contrariar.
Também estas alegações só podem pois, improceder.
Ataca também o recorrente os factos dados como não provados.
Começa por falar nos factos 13º, 14º, 16º e 20º referem-se à versão negativa dada pelo arguido, quanto a alguns dos factos provados. Ora, mantendo-se os mesmos como provados, têm estes de se manter também como não provados, independentemente da versão do arguido, que como já vimos foi considerada não credível.
Quanto ao facto 17º. Refere-se neste que, durante os 29 (vinte e nove) anos de casamento, o arguido passou grande parte ausente do País, a trabalhar na Áustria. Ora, ficou provado que o arguido só se deslocou para a Áustria algum tempo depois de ter casado e durante cerca de 20 (vinte) anos. Mesmo assim, vinha a Portugal trimestral ou semestralmente (art.º 8º dos factos provados). As provas apresentadas pelo arguido confirmam o dito art.º 8º e não o que consta deste art.º 17º dos factos não provados. Assim, se deve o mesmo manter.
No que se refere ao art.º 18º dos factos não provados, refere o arguido que juntou aos autos com a contestação, o Doc. n.º 1, referente a um mês do seu vencimento na Áustria, em 31 de Agosto de 2014. Dos autos consta efetivamente um recibo de vencimento com tal data e em nome do arguido, referente ao dito Agosto. No mesmo não são porém visíveis nem a assinatura, nem o nome e morada do emitente. Logo, o referido documento nada prova quanto à matéria referida neste art.º. Não deve pois, por via do mesmo, a matéria de facto ser alterada.
No que se refere aos factos 19º, 21º, 22º e 23º dos factos não provados, o simples facto de o arguido os ter referido durante as suas declarações é nitidamente insuficiente para que sejam agora considerados como provados.
Quanto aos factos não provados 13º, 14º, 16º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, 22º e 23º limita-se o recorrente a dizer que, no entender da defesa devem os mesmos ser considerados como provados, dadas as declarações de arguido e assistente e o depoimento da testemunha S. A..
Não fundamenta ou concretiza porém o seu juízo, o que impede também este Tribunal de fazer a crítica da sua argumentação. Ou seja, sem se conhecerem os seus argumentos está o Tribunal impedido de ajuízar sobre a validade dos mesmos.
Também nesta parte não devem pois tais factos passar a constar dos factos provados.
Verifica-se pois que a questão nos autos é a de se optar por uma ou outra das versões dos factos, com base no princípio da livre apreciação da prova – art.º 127º C.P.P.
Não ocorrem raciocínios ilógicos, com base em provas proibidas ou nitidamente errados, pelo que está este Tribunal impedido de decidir em sentido contrário ao já decidido. É que, não há outra decisão que se imponha perante as provas apresentadas, como previsto no art.º 412º/3, b), C.P.P.
Improcede pois na íntegra, a impugnação ampla da matéria de facto feita pelo arguido recorrente quer quanto aos factos provados, quer quanto aos não provados.
2.3. – Da Prescrição do Procedimento Criminal
Basicamente, considera o recorrente que os ilícitos praticados não devem ser unificados num único crime, porquanto não há neles qualquer continuidade temporal. Assim, devem ser autonomizados em concreto e declarada a prescrição dos ocorridos entre os anos de 1987 e 2009, nos termos do disposto nos arts.º 118º/1, b) e 119º/2, b), C.P.P.
Ou seja, teríamos tantos crimes quantos os ilícitos praticados, o que determinaria a extinção do procedimento criminal por prescrição, quanto aos mais antigos – em lugar de um só crime de violência doméstica.
Isto porque, ainda no entender do recorrente, não foram praticados quaisquer ilícitos até ao ano de 2000, entre os anos de 2000 e 2013, 2013 e 2015 e entre os anos de 2015 e 2019.
A questão tem pois a ver com a conhecida questão da unidade ou pluralidade de infrações.
Sobre esta questão podemos ter três realidades distintas: a do crime unificado, a do crime continuado e a dos vários crimes.
Tem a mesma base legal no art.º 30º C.P. Nos termos do respetivo n.º 1), o número de crimes é determinado pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos (pluralidade de tipos de ilícito – concurso heterogéneo) ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido (quando se comete um único tipo de ilícito – concurso homogéneo no caso de vários ilícitos).
Como diz Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, “Universidade Católica”, 2008, pág.138, “as violações plúrimas devem ser objecto de distintas resoluções criminosas”.
Ora, o referido pelo arguido não corresponde aos factos provados, pois se provou também que:
- art.º 4º dos factos provados – “Durante o tempo em que durou o casamento entre arguido e ofendida e com a frequência de duas a três vezes por semana, nos primeiros anos do casamento até que o arguido foi trabalhar para a Áustria – o que aconteceu em data não apurada mas após o ano de 1 997 – com particular incidência ao fim de semana, aquele insultou e humilhou a ofendida, chamando-lhe “puta” e “vaca” e dizendo-lhe para “ir apanhar no parreco e para lhe chupar/lamber a piça” (agarrando sugestivamente o seu pénis)”;
-art.º 5º - “E ameaçava-a dizendo-lhe que qualquer dia a foderia e que se a apanhasse com alguém a mataria a ela e a ele”;
- art.º 6º - “Mais lhe dizia que se se queixasse de si a mataria”;
- art.º 7º - “E desferiu estaladas na cara da ofendida, bem como pontapés nas pernas da ofendida e empurrões”;
- art.º 8º - “Depois disso, o arguido emigrou para a Áustria, onde se manteve durante cerca de 20 anos, sendo que, não obstante, quando em férias – que ocorriam inicialmente semestralmente e posteriormente trimestralmente -, mantinha comportamentos agressivos idênticos aos descritos”.
Ou seja: nos autos há imputações relativamente a datas concretas e outras, relativas a períodos por vezes longos, mas também concretas. Aliás, e mesmo quando o arguido estava a trabalhar na Áustria, os atos de agressividade física e verbal mantinham-se, sempre que arguido e ofendida estavam juntos, primeiro semestralmente e depois trimestralmente.
Ora, na averiguação do número de resoluções criminosas assume particular importância o critério da continuidade criminosa. Caso haja continuidade há um único crime, caso não haja ocorrerão tantos crimes, quantas as intenções autónomas postas em prática.
Ora e como para nós, bem refere o M.P. nas suas alegações em 1ª instância, “nos períodos de convivência, a postura do arguido em nada se alterou”. O que estava em causa era uma postura reiterada sempre que os arguidos estavam a viver em comum, nunca tendo havido mais de 6 (seis) meses de hiato, nos comportamentos agressivos por o arguido ter ido trabalhar para o estrangeiro. E, esse hiato ou espaço temporal apenas decorria de, nesse tempo não estarem juntos, por o arguido estar a trabalhar na Áustria.
Relativamente à ofendida o propósito do arguido é comum e anterior, repetindo-se sempre que estavam juntos e decorrendo os hiatos, do facto de o arguido estar ausente em trabalho.
Aliás, na própria decisão recorrida nunca se fala de renovação de intenções criminosas ou de surgimento de alguma nova resolução.
Daí que se concorde com a decisão recorrida, no sentido de não autonomizar qualquer das condutas como crime autónomo, estando-se antes perante um crime habitual, reiterado ou de trato sucessivo.
Nesta tipologia de crimes, o prazo prescricional do procedimento criminal só se inicia com a prática do último ato (art.º 119º/1, b), C.P.).
O crime de violência doméstica previsto e punido nos termos do disposto no art.º 152º/1, a) e n.º 2), a), C.P., o prazo prescricional é de 10 (dez) anos – art.º 118º/1, b), C.P.
O último facto praticado pelo arguido ocorreu em 31 de Agosto de 2019, só a partir daí estando pois a correr o dito prazo prescricional de 10 (dez) anos.
É pois ostensivo que o referido prazo está longe de ter já decorrido.
Pelo que, improcede também o argumento da prescrição do procedimento criminal, utilizado pelo arguido recorrente.
2.4. – Do Princípio “In Dubio oro Reo”
No sentido da alteração dos factos provados e não provados, invoca ainda o recorrente o princípio “in dubio pro reo”, no sentido de alterar a matéria de facto, nos termos já por si preconizados.
E, com efeito, tal princípio tem plena aplicabilidade em Processo Penal, como decorrência da presunção de inocência que favorece o arguido (art.º 32º/2 C.R.P.). Posto é, que ocorra uma situação de dúvida.
Esta dúvida deve manter-se, nesta instância de recurso.
A argumentação do recorrente baseia-se no facto de estarem em clara oposição, as versões do arguido e da ofendida, o que na sua opinião deveria gerar um estado de dúvida.
Sem razão, porém.
É que o Tribunal “a quo” nunca revelou estar perante situação de dúvida, nem a mesma se suscita fundadamente, após a leitura do recurso apresentado. Se o recorrente não indica provas que demonstrem ter o Tribunal recorrido errado, não pode também agora o Tribunal de recurso pôr em causa o juízo judicial já feito. É que a impugnação ampla da matéria de facto não constitui o direito a um novo julgamento, mas apenas ao sancionamento de erros de julgamento cometidos, conclusão a que só se pode chegar após alegação de provas concretas, pelo recorrente.
Assim e não tendo ocorrido, nem devendo ocorrer qualquer situação de dúvida, não pode aplicar-se o princípio “in dubio pro reo”, que poderia favorecer o arguido recorrente.
Improcede também pois e neste vetor, o recurso apresentado.
2.5. – Do Direito de Queixa e dos Factos Genéricos
O M.P. invoca ainda dois outros tipos de questões.
Por um lado, o facto de a revisão ao C.P. operada pelo D.L. n.º 48/95, 15/3, ter alterado a natureza a natureza do anterior crime de maus tratos a cônjuge, de público para semipúblico (art.º 152º C.P.).
Natureza que veio a ser posteriormente também alterada com a nova revisão ao C.P., operada pela L. n.º 7/00, 27/5, que o tornou novamente público, natureza que permanece até hoje.
No seu entender pois e uma vez que entendeu não haver continuidade criminosa, devendo cada um dos ilícitos ser autonomizado.
Em sua opinião existem pois vários grandes núcleos factuais, dos quais se devem destacar:
- os ocorridos entre 1987 e 1997, altura em que o arguido foi trabalhar para a Áustria; :
- os ocorridos entre 1 997 e 2000, ocorridos quando o arguido trabalhava na Áustria, nos períodos em que vinha a Portugal, altura em que o referido tipo de “maus tratos a cônjuge se mantinha como semipúblico e em que considera que as imputações factuais são meramente genéricas não podendo pois gerar uma condenação por essa imprecisão afetar os direitos de defesa do arguido, protegidos pelo art.º 32º C.R.P.
Ora, deve dizer-se que no ponto anterior já este Tribunal entendeu que, entre todos os factos há uma relação de continuidade criminosa e temporal, o que obsta às referidas autonomizações.
No caso dos crimes habituais ou permanentes, consideram-se os mesmos praticados desde o dia em que cessa a sua consumação – neste sentido, de entre todos, Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal”, “Universidade Católica Editora”, Lisboa, 2 008, pág. 54. No caso dos autos, o último ato de consumação do crime de violência doméstica ocorreu em 31 de Agosto de 2 019, pelo que é essa a data relevante para aplicação da lei penal.
A esta data o crime é público.
Tratando-se de crime único e sendo esta a data relevante para verificar da lei aplicável, não há qualquer problema sobre a aplicação de leis penais no tempo. É aplicável a lei vigente em Agosto de 2019, nos termos da qual o crime de violência doméstica é público (art.º 152º C.P.).
Pelo que e em nossa opinião, as condutas ilícitas do arguido ocorridas entre 1987 e 2000 podem ser conhecidas, não obstante sobre as mesmas não ter incidido queixa.
Invoca ainda o Dignm.º Procurador Geral Adjunto a generalidade dos factos imputados após 1 997, que no seu entender, já na acusação não cumpriam o disposto no art.º 283º/3 C.P.P. por não existir uma completa narração dos factos.
Considera que a alusão a “comportamentos agressivos” sem que haja a sua destrinça e caracterização, não possui relevância penal”.
Importa então verificar o que consta efetivamente da sentença, para depois se concluir.
Refere-se então que, depois de o arguido ter emigrado para a Áustria e quando voltava a Portugal, de início semestralmente e depois trimestralmente mantinha comportamentos agressivos idênticos aos descritos no período anterior.
Aqui, se dizia:
- que o arguido chamava à ofendida “puta”, “vaca”, dizia-lhe que “fosse apanhar no parreco”, para lhe “chupar/lamber a piça” agarrando sugestivamente no pénis”, dizia-lhe para “ir para a via Norte dar o parreco”, para “ir para o caralho”, para “se ir foder” e para “ir para a puta que o pariu”;
- que o arguido ameaçava a mesma dizendo-lhe que “qualquer dia a foderia” e que se a “apanhasse com alguém a mataria a ela e a ele”;
- que o mesmo mais lhe dizia que se se “queixasse de sai a mataria, dando-lhe um tiro”;
- que o arguido “desferia estaladas no rosto da ofendida, bem como pontapés nas pernas da ofendida e empurrões”;
- desferiu-lhe “estaladas no rosto, bem como pontapés nas pernas e empurrões”.
Ou seja: conhecem-se os atos praticados e, se bem que por aproximação e referência a período de tempo, os momentos em que foram praticados.
O conceito de abstração é porém em si, também muito relativo, podendo-se sempre concretizar mais ou menos determinada atuação.
Importante é que se perceba a conduta que está em causa, tal como que o arguido a entenda, para a poder contraditar.
O arguido cita o Acórdão do S.T.J. de 2/7/2 008, Raul Borges, acessível em “www.dgsi.pt”, que considerou efetivamente que quando todos os factos provados são genéricos não podem eles gerar uma condenação, por com isso ficar afetado o princípio do contraditório. Nesse caso, apenas se dizia que em determinado período, o arguido por vezes agredia o arguido com bofetadas. Isto é, não se diziam as datas das agressões, as respetivas consequências, nem a sua intensidade.
Ora, embora estes factos sejam de facto bastante genéricos, o certo é que, porque concretizados no tempo permitem ainda o contraditório e, conjuntamente com os demais permitem analisar a intensidade da conduta do arguido, que é una.
Considera-se pois, que podem ser utilizados.
Como se disse no Acórdão da Relação de Coimbra de 17/1/2 018, Olga Maurício, em www.dgsi.pt, entende-se que a questão da generalização ou opacidade dos factos provados deve ser vista, caso a caso.
Já constavam da acusação. Quanto a eventual nulidade desta, nos termos do disposto no art.º 283º/3, b), C.P.P., o certo é que não se trata de nulidade insanável, enquadrável no art.º 119º C.P.P., pelo que deveria ter sido arguida 5 (cinco) dias após o despacho de acusação (art.º 120º/3, c), C.P.P.). Dela também poderia o Juiz que recebeu a acusação conhecer (art.º 311º/1 C.P.P.), mas não tendo sido arguida ou declarada nesses momentos, forçoso é reconhecer-se que ficou sanada.
Aliás, também aí, esses factos estariam acompanhados de outros, mais concretizados.
No seu todo, a atuação do arguido é pois, suficientemente concretizada, pelo que não põe em causa o princípio do contraditório (art.º 32º C.R.P.) ou o direito a uma justiça equitativa (arts.º 6º C.E.D.H. e 20º/4 C.R.P.).
Considera-se pois, não haver qualquer nulidade a declarar, podendo esses factos, integrados com os demais, gerar um juízo condenatório.
Improcedem pois, estes dois argumentos suscitados pelo M.P., já neste Tribunal da Relação.
2.6. – Da Qualificação Jurídica
Tendo-se já optado pela unificação criminosa de toda a conduta do arguido não faz sentido autonomizarem-se condutas, no sentido de impor a cada uma a sua qualificação jurídica – como o fez o Dignm.º Procurador Geral Adjunto, quanto às condutas concretas ocorridas em 7/2/2000, data não determinada de 2013, data de 2015 anterior a 13/5/2015, 2/5/2019.
Ora, analisada a conduta do arguido na sua globalidade, há-de ter-se a mesma como inserida no crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º/1, a) e n.º 2), a), C.P.
No tipo de crime de violência doméstica cabem várias condutas subsumíveis a vários tipos de crimes, como os de injúria, ameaça, ofensa à integridade física simples ou alguns crimes sexuais.
Como decorre do art.º 152º/1 C.P., no crime de violência doméstica o bem jurídico protegido é a saúde e bem estar físico da vítima. Que estão em causa, sempre que o arguido inflija à vítima “maus tratos físicos ou psíquicos” e se faça sentir uma imparidade, subjugação ou subalternidade de um deles.
Ora, como se diz no citado Acórdão da Relação de Coimbra de 17/1/2 018, Olga Maurício, em www.dgsi.pt,
“No crime de violência doméstica, o conceito de maus tratos de que fala a norma exige o desprezo, humilhação, especial desconsideração pela vítima e a gravidade destas manifestações”
Não está pois e apenas em causa apenas a vontade de injuriar, bater ou molestar, mas algo mais denso no seio de uma vivência em comum, que passa por humilhar ou tornar degradante, a vida vítima. Isto, através de maus tratos físicos ou psíquicos.
Ora e no caso dos autos, o arguido ofendeu a assistente corporalmente, injuriou-a e ameaçou-a durante cerca de 32 (trinta e dois) anos, de forma grave e reiterada, o que lhe causou sequelas físicas permanentes e psicológicas.
Assim, pôs em causa a saúde e bem estar físico da vítima de forma grave, o que justifica que se vá além das meras punições pelos crimes de ofensa à integridade física simples, ameaça e injúria, justificando-se pois a sua punição pelo crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º/1, a), C.P.
Porque alguns destes atos foram praticados na residência de ambos e na presença do filho dos dois, então menor, S. A., o crime é punível na forma agravada, prevista no n.º 2), a), do art.º 152º C.P.
Sendo o crime só punível em pena de prisão e não com pena de multa, considera-se suficiente a matéria pessoal relativa ao mesmo que consta da sentença e, nomeadamente a situação económica esboçada no art.º 54º da sentença. Surge assim como desnecessário o reenvio parcial dos autos por insuficiência de matéria de facto para a decisão, como propugnado pelo Dignm.º Procurador Geral Adjunto, nesta instância.
Considera-se pois correta, a qualificação jurídica dos atos praticados pelo arguido, feita em 1ª instância, improcedendo pois a argumentação do M.P. nesta instância.
2.7. – Da Aplicação das Penas Acessórias
Percorrendo as conclusões do recurso apresentado, que fixam o objeto do processo e em termos lógicos surge de seguida a aplicação ao arguido das penas acessórias.
Argumenta em primeiro lugar o recorrente que a mesma não foi fundamentada e em segundo lugar, que as mesmas são desadequadas e exageradas, fazendo surgir uma situação de injustiça.
Porém, analisada quer a fundamentação da decisão recorrida, quer a sua parte dispositiva é bem claro que as determinadas proibição de contactos, de apresentação quinzenal perante Técnico de Reinserção Social, de proibição de uso e porte de armas e pagar determinada quantia à ofendida surgem não como penas acessórias, mas como deveres e regras de conduta que condicionam a suspensão da execução da pena de prisão.
Aliás, a sua aplicação fundamentou-se nos arts.º 50º/2, 51º/1, a), 52º/1, b) e c) e 2), b) e f), C.P. e não nos arts.º 152º/4 e 5), C.P., que estes sim tratam das penas acessórias.
Acrescentaremos nós, que as obrigações de afastamento da residência e local de trabalho da vítima e proibição de contactos, como deveres ou obrigações que obrigatoriamente condicionam a suspensão da execução da pena de prisão por crime de violência doméstica decorrem obrigatoriamente do disposto no art.º 34º-B, L. n.º 112/09, 16/9.
Não estando em causa penas acessórias, mas obrigações que condicionam a suspensão da execução da pena de prisão naturalmente que é improcedente a argumentação do recorrente, já que esta se baseou no pressuposto de que se tratariam de penas acessórias.
Uma última palavra quanto à obrigação de o arguido pagar, no prazo de 2 (dois) anos, a quantia de 1 500€ (mil e quinhentos euros) à ofendida. Contrariamente ao referido pelo recorrente não está em causa a atribuição de qualquer reparação oficiosa nos termos do disposto no art.º 82º-A, C.P.P., mas a imposição de uma condição de suspensão, nos termos do disposto no art.º 51º/1, a), C.P. Aliás, em nada desadequada ou desproporcionada, ante a gravidade dos factos para a ofendida, sua reiteração e condição económica do arguido.
2.8. – Do Recurso na Parte Cível
Pretende também o arguido recorrente recorrer da condenação, na parte cível.
Nesta parte, o arguido/demandado foi condenado no pagamento à assistente/demandante da quantia de 5000€ (cinco mil euros).
Ora, nos termos do disposto no art.º 400º/2 C.P.P., só é possível recorrer da decisão proferida em enxerto cível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do Tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente, em valor superior a metade desta alçada.
A alçada em termos civis do Tribunais de 1ª instância é de 5 000€ (cinco mil euros) – art.º 44º/1 L.O.S.J. (L. n.º 62/13, 26/8). Ou seja: até este valor de condenação não é admissível recurso, tal como o não é, se o valor da sucumbência for inferior a 2 500€ (dois mil e quinhentos euros).
Ou seja: em condenações até à quantia de 5000€, inclusive, não é possível o recurso. O que tem a ver com a dignidade dos Tribunais Superiores e também com a necessidade de não os inundar de questões de pouca ou reduzida importância ou valor.
A presente condenação foi justamente no valor de 5000€ (cinco mil euros), importância ainda abrangida na alçada dos Tribunais de 1ª instância. Não é pois a mesma recorrível, em função do valor.
Termos em que e ao abrigo do disposto nos arts.º 400º/2 C.P.P. e 44º/1 L.O.S.J., se não admite o recurso interposto pela arguida, nesta parte – matéria cível. Pelo que, não podem ser apreciadas as questões cíveis suscitadas, no referido recurso.
**
Termos em que,
3 – Decisão
a) se não admite, por falta de alçada, o recurso do arguido/demandado S. A., no enxerto cível.
b) se julga totalmente improcedente o recurso do mesmo arguido na parte crime, por via disso se mantendo a decisão recorridana íntegra.
c) Custas pelo arguido S. A., com 4 (quatro) U.C.`s de taxa de justiça e sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia – arts.º 513/1 C.P.P., 8º/9 e tabela 3), R.C.P.
d) Notifique.
Guimarães, 22 de Fevereiro de 2 021
(Pedro Cunha Lopes) (Fátima Furtado)
1. Cfr. por todos os acs. STJ de 3.4.91 e de 5.2.98, CJ, 1991, t 2, 19 e CJ t2, 245, respectivamente.
2. Cfr. ac. STJ de 15.1.97, CJ, Ac. STJ, 1997, t 1, 181.
3. Bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental.
4. Comentário Conimbricense do Cód. Penal, Parte Especial, I, nota ao art. 152º, pág.329.
5. Na sua redacção originária, a perfeição do crime em apreço exigia a verificação do dolo específico – actuação por malvadez ou egoísmo – cfr. art. 153º, do CP, na versão de 1982.
6. Citado por Eduardo H. S. Correia, ‘A Teoria do Concurso em Direito Penal’, pág.127.