ACTO SEXUAL DE RELEVO
Sumário

Provando-se apenas que houver beijos na boca e carícias não concretizados, não se sabendo se os beijos eram curtos ou prolongados, se se limitaram a mero toque dos lábios ou foram acompanhados, de contacto das línguas, e se as carícias foram em alguma das partes erógenas do corpo ou se ficaram por simples toques nas costas, não se está perante "acto sexual de relevo".

Texto Integral

Acordam, em audiência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I
RELATÓRIO
1. B…….., arguido nos autos de processo comum nº …./03.5JAPRT que correm termos pelo ….º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Valongo, recorreu para esta Relação do acórdão proferido a fls. 211-232, que o condenou:
como autor material de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo art. 172º, nº 1, do Código Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, com a condição de, no prazo de 6 meses, a contar do dia imediato ao do trânsito em julgado desta decisão, pagar à ofendida a quantia de € 5.000,00;
a pagar à menor C……. a quantia de € 5.000,00, por danos não patrimoniais causados;
nas custas criminais e civis.
Extraiu da motivação do seu recurso as conclusões seguintes:
De toda a prova produzida nos autos não resultam minimamente demonstrados os factos descritos nos pontos 2.10 (o arguido sabia a idade da menor) e 2.11 (o arguido agiu ... com a intenção de, através daqueles actos descritos, satisfazer os seus desejos labidinosos, sabendo que a sua conduta era proibida e penalmente punível), pelo que os mesmos devem ser dados como não provados.
Os actos imputados ao arguido, tal como vêm provados no douto acórdão recorrido, não constituem “acto sexual de relevo”.
E mesmo que constituíssem, não é possível identificar os que foram praticados antes ou depois de a ofendida ter atingido os 14 anos de idade.
Em todo o caso, a pena aplicada nunca deveria ultrapassar o limite legal e o montante indemnizatório sempre teria de ser substancialmente reduzido, por excessivo e injustificado.
Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo violou, por erro de interpretação, o disposto nos arts. 40º, 71º e 172º do Código Penal, 483º, 562º e 496º do Código Civil, 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, e ainda o princípio in dubio pro reo.

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2. O Ex.mo magistrado do MINISTÉRIO PÚBLICO junto do tribunal recorrido respondeu à motivação do recurso, concluindo pelo seu não provimento e pela confirmação da sentença recorrida.
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3. Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu o parecer que consta a fls. 291-293, em que também se pronunciou no sentido de que o recurso não merece provimento.
Este parecer foi notificado aos demais sujeitos processuais, em cumprimento do disposto no art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, que nada disseram.
Os autos foram a visto dos Ex.mos Juízes adjuntos e realizou-se a audiência de julgamento.

II
FUNDAMENTOS DE FACTO
5. Na sentença recorrida foram considerados provados os factos seguintes:
O arguido B……. era, desde o ano 2000, amigo da assistente D…….., mãe da ofendida C……., nascida em 26/12/1987.
Pelo menos em Maio de 2001, a menor C……. andava em tratamento ortodôntico na “E……., Lda.”, no Porto.
O arguido B……. também lá andava em tratamento e ofereceu-se para acompanhar e transportar a C…….. desde a sua casa, em Valongo, até à dita Clínica e no regresso ─ o que aconteceu em datas e em número de vezes não concretamente apurados, desde aquele mês e até Julho de 2002.
Numa daquelas datas, no interior do automóvel do arguido, este beijou na boca, por duas vezes, a menor C…… .
Noutra, também no interior do automóvel, o arguido beijou-a na boca e acariciou-a com as mãos em diversas partes do corpo.
Tais beijos e carícias repetiram-se, com periodicidade aproximadamente mensal, em idênticas circunstâncias, em número de vezes não concretamente determinado, antes de 26 de Dezembro de 2001, e, depois, pelo menos, até Julho de 2002, em diferentes locais, nomeadamente na Área de Serviço de Águas Santas, na Maia, junto às Piscinas de Ermesinde e na Vila Beatriz.
No decurso do período de cerca de um ano iniciado em Junho de 2001, o arguido tirou frequentemente fotografias à menor. Para tanto, em algumas dessas ocasiões, entregava-lhe peças de roupa justa, curta, decotada e transparente, nomeadamente vestidos justos, para que ela os vestisse, o que a mesma fazia.
O arguido fotografou-a por diversas vezes, dizendo-lhe, em algumas, que se colocasse de maneira a evidenciar as zonas do seu corpo mais femininas, nomeadamente os peitos e pernas, como mostram parte das fotografias juntas aos autos.
Tais fotografias foram tiradas em diversos locais, designadamente Áreas de Serviço e Parques, como o do Norteshoping-Matosinhos, e na residência da menor.
O arguido sabia a idade da menor.
Agiu livre, voluntária e conscientemente com a intenção de, através daqueles actos descritos, satisfazer os seus desejos libidinosos, sabendo que a sua conduta era proibida e penalmente punível.
A C…….. era meiga para a mãe.
O arguido era jovem (nasceu 23/11/1976) e já com alguma experiência de vida.
Próximo do termo da relação da C……. com o arguido, aquela tornou-se nervosa e instável, desinteressada pelos estudos e pela sua higiene.
O que levou a mãe a suspeitar que algo de errado se passava com ela e a pedir ajuda aos amigos e à explicadora para se inteirar do que se passava.
A C……. sofre, sente humilhação, vergonha e revolta por aqueles actos, que tem gravados na memória.
O arguido fez crer à C……. que estava apaixonado por ela e que o único obstáculo era ela não ter ainda 18 anos.
Aproveitou-se da confiança e da amizade com a mãe da menor.
Do CRC do arguido nada consta.
O arguido confessou parcialmente os factos apurados.
Tem o 12º ano de escolaridade, fez o curso técnico-profissional de desenho da construção civil e frequentou o 3º ano do Instituto Superior de Engenharia.
Trabalha na empresa “F…….., Lda”, onde aufere o ordenado de € 1600,00/mês, ilíquido. Faz trabalhos por conta própria, auferindo com isso cerca de € 10.000,00/ano.
Embora já casado civilmente, ainda vive com os pais, professores reformados, em casa própria deles.
A C……. sentia uma “paixoneta” pelo arguido.
A sua mãe estava frequentemente ausente em serviço para fora.
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6. E foram considerados não provados os factos seguintes:
que o arguido ainda é, presentemente, amigo da mãe da ofendida e que tal amizade provinha de há 6 anos;
que os tratamentos ortodônticos da C……. se tenham iniciado concretamente em 3/5/2001 e essa seja a data da primeira consulta;
que o arguido acompanhou a menor nas demais e precisas datas alegadas e que em 7 de Junho de 2001 tenha sido a segunda consulta;
que a repetição dos actos tenha sido “sempre” e após todas as consultas;
que o arguido mandava a ofendida pôr-se em “posições provocantes e eróticas”;
que todas as fotografias fossem tiradas nas circunstâncias relatadas pela acusação, designadamente sempre com as roupas que ele lhe entregava, e que em todas o arguido lhe dissesse para evidenciar as partes mais femininas do seu corpo;
que, mais tarde, tendo a menor completado já 14 anos de idade, o arguido praticou com ela coito oral;
que a C…….. fosse obediente e dócil para a mãe e professores;
que a C……. foi sujeita a um pesadelo pelo arguido, se transformou radicalmente, se tornou agressiva, se desinteressou pela própria vida e afirmou que queria morrer;
que a descoberta da mãe fosse “quão grave e violenta”;
que a menor não pudesse contar o que se estava a passar;
que menor tivesse vivido pânico e sinta nojo;
que o arguido usou “todas as manobras para iludir a menor”;
que fosse “saudável o contacto da criança” com o grupo de amigos e amigas da mãe;
que o arguido viva com “evidentes sinais exteriores de riqueza”;
que o arguido tenha tirado a “inocência” à menor, tenha actuado “de forma violenta e violadora” e com “mórbidos” objectivos;
que entre a menor e o arguido não existisse envolvimento amoroso, que ela não tivesse conhecimentos de sexualidade e não conhecesse o próprio arguido;
que o arguido tivesse escolhido de forma calculista o coito oral para não deixar marcas e tal represente “violência agravada”.
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7. O tribunal recorrido motivou a sua decisão sobre os factos provados e não provados nos seguintes termos:
«O tribunal, limitado apenas ao objecto do processo definido pela acusação, pelos factos penalmente relevantes e alheio ao dramatismo, empolamento e atitudes exacerbadas frequentemente experienciados neste tipo repetido de casos, abstraindo da retórica e manifestos exageros do alegado no requerimento civil, baseou a sua convicção nos seguintes meios de prova:
- Fls. 7, apenas quanto à data da queixa (14/4/2003), o que mostra só na parte final da relação e após longo período ter a C…… manifestado sinais que levaram a mãe a actuar;
- Fls. 21: fotografias alusivas ao convívio e relacionamento de amizade anteriores, mormente entre a mãe da ofendida e um grupo de jovens bastante mais novos, que se foram conhecendo do Café “……”, em Valongo, e que chegaram a fazer férias juntos, no qual a menor se integrou aos 11/12 anos, e o arguido em 2000, tendo todos estado numas férias em Sanábria ─ Espanha;
─ Fls. 22 a 28: facturação detalhada das comunicações efectuadas pelo telemóvel 962442382, usado pela C……, relativa aos meses de Julho a Setembro de 2002, este no valor de € 112,19, de que se destaca o elevado número de chamadas efectuadas por ela para o telemóvel do arguido;
─ Fls. 29 a 33: carta manuscrita pela C……., apenas para aferir da credibilidade do seu depoimento prestado na audiência;
─ Fls. 52: auto de busca realizado ao domicílio do arguido e de que resultou a apreensão das imagens de fls. 53 a 58 e das fotografias de fls. 164 a 177, relativas à C……., e das quais se destacam as que dão conta da sua aparência física em relação à idade, do seu aparente aspecto e estado de espírito do respectivo momento, mormente quando vestia as roupas, alheias e sem outro propósito que não fosse tirar as fotografias, a pedido do arguido e para posar (destacando-se a primeira de fls. 174 em que a ofendida, sem outro motivo, enverga um vestido de cerimónia da mãe, como ambas confirmaram), e, bem assim, a (primeira) de fls. 54, respeitante a um “bruxedo” (que o arguido diz que era para o “agarrar” e que a mãe da vítima diz que era promessa a um Santo), e, por último, as alusivas a convívio e férias;
─ Fls. 101: CRC do arguido (nada consta);
─ Fls. 124: Declaração passada pelo Médico Dentista, conjugada com a, entretanto, junta no decurso da audiência, exclusivamente com algum relevo possível quanto às datas das consultas da C…….., certamente registadas no seu ficheiro clínico, mas cuja disparidade de datas entre uma e outra se estranha ─ com efeito, além de não haver consonância entre as datas referidas nos dois documentos, estas não coincidem também com o que dizem o arguido, a menor e a assistente, parecendo que tal declaração é pouco criteriosa e rigorosa e passada “ao sabor” de quem a pediu e segundo as circunstâncias ou conveniências do momento;
─ Fls. 138: Certidão do Assento de Nascimento da C…….. (26/12/1987), da qual resulta que perfez 14 anos em 26/12/2001;
─ Declarações e factura juntas pelo arguido em audiência sobre a compra da máquina fotográfica, sendo que esta não implica a necessária conclusão de que as fotografias foram tiradas com ela e, portanto, só possíveis depois dessa data, e da aquisição dos veículos.
Nas suas declarações, o arguido B…… confirmou o conhecimento do grupo (em 2000), as consultas no mesmo dentista e conjuntas, embora divergindo quanto às datas e ao período, as ausências ou impossibilidades da mãe, ao número de vezes que a acompanhou, admitindo que aí umas oito vezes. Negou a maior parte dos “actos” imputados, admitindo, porém, que beijou umas quatro ou cinco vezes a menor na boca, nos locais referidos, negando as carícias mas confirmando que, pelo menos, nesses momentos a abraçava e acariciava nas costas. Argumentou que a C……. é que teve a iniciativa (ia a conduzir e ela punha-lhe a sua mão na dele), fazia “pressão”, ela gostava dele (tinha uma paixoneta), foi ela que viu as roupas lá no carro e pediu para as experimentar. O primeiro beijo aconteceu de forma fortuita. Negou que alguma vez tivesse havido coito oral. Foi ela que o convidou a “subir” à casa da mãe quando esta não estava. Confirmou que tirou as fotografias (embora divergindo quanto às datas) e que lhe entregou as roupas que ela vestiu (mas num contexto diferente proporcionado pela menor).
Apesar do afastamento por sua iniciativa em meados de 2002, refere que a C…….. continuou a pressioná-lo com telefonemas e mensagens. Questionou que soubesse a sua idade, dizendo, contudo, que ela teria uns 13 ou 14 anos.
A menor C…….., actualmente estudante do 11º.ano e com 17 anos, confirmou a sua entrada no grupo de amigos quando tinha 12 anos, quando andava no 8º ou 9º ano de escolaridade, tendo com esse grupo passado umas férias em Puebla de Sanábria ─ Espanha, cujas fotografias, gravadas com a data de 2000, identificou e relacionou, onde ele já lhe tirava algumas mas num aparente contexto normal, sendo depois disso que começou a sentir-se “atraída” por ele. Confirmou as consultas, a colocação do “aparelho” dentário, dizendo que inicialmente foi com a mãe mas depois começou a ir com o arguido B……., em consultas simultâneas. Tal teria acontecido em Fevereiro de 2000 (persistindo nesta data, mas admitindo, depois, que também possa ser 2001, explicitando, por último, que foi algumas vezes no Golf e poucas no Astra do arguido) e porque a mãe estava ausente em serviço. As consultas eram, mais ou menos, mensais, duraram pelo menos um ano. Foi o B……. que lhe começou a mandar mensagens e a dizer que gostava dela e que o problema era a idade, ele é que tomou a iniciativa e dizia que já que não podia ser a sério então seria às escondidas. Ele ia buscá-la à escola, iam ao dentista e depois regressavam, no carro dele, a Valongo. A primeira vez, foi logo à saída do dentista, pararam o carro num parque, ele deu-lhe um beijo na boca, fizeram “linguado”. A depoente não reagiu. Outras vezes, várias, paravam na área de serviço de Águas Santas, com beijos na boca, ele começou-lhe a por mão no peito, no rabo, apalpava-a por cima da roupa e nos órgãos sexuais. Uma vez aconteceu na Vila Beatriz, em Ermesinde. Depois houve “outras coisas”. Ele pediu sexo oral, mas a depoente recusou. Foi passando o tempo e ele disse-lhe que ou ela fazia ou ficavam por ali. Admite que “se calhar sentia paixão pelo B…….”, ele sempre lhe deu muita atenção, “se calhar era o pai que não tinha”. O sexo oral teria sido a primeira vez na área de serviço de Águas Santas, sendo a depoente a fazê-lo ao arguido. Depois disso, aconteceu várias vezes.
Foi ele que lhe propôs vestir as roupas, nomeadamente na casa da mãe quando esta não estava. Sabia a depoente que o arguido tinha namorada, mas não sabia de quem eram tais roupas. Após as fotografias, seguia-se sexo oral. Também aconteceram no Norteshoping, estando vestida com a sua roupa normal.
A assistente D……., mãe da ofendida, confirmou as circunstâncias alusivas ao conhecimento e relacionamento com o arguido, sítio onde paravam, actividade conjuntas, e que a filha começou a integrar-se no grupo pelos seus 11/12 anos. De nada de anormal se apercebeu ou teve conhecimento, havendo entre ela e filha um bom relacionamento. De repente, no início do ano lectivo de 2002, ela deixou de se arranjar, andava nervosa, desinteressada. Foi então que através da amiga G…….. tomou conhecimento de parte dos factos. Tinham estado todos de férias em Sanábria, em Agosto de 2000. O tratamento da filha no dentista começou em Dezembro de 2000. Em Fevereiro de 2001 colocou o aparelho. Terá sido nesse dia a primeira vez que o arguido foi com a filha à consulta porque a depoente estava doente. Ele marcou na dita clínica porque tinha os dentes muito mal arranjados e andavam constantemente a desafiá-lo para tratar deles. Foi o B…… que se ofereceu para levar a C……., sendo certo que a depoente muitas vezes estava ausente em Lisboa. As consultas eram mais ou menos mensais e a filha andou com o aparelho cerca de um ano, tendo as mesmas cessado quando o retirou. Nas consultas que calcula nesse período em número de 10, só a acompanhou duas vezes. Uma ou duas vezes ela foi com um colega. As restantes foi ele a levá-la. A filha, nas suas ausências, ficava ao cuidado dos avós, mas com acesso livre à própria casa.
A testemunha G……., estudante do 12º ano e com 18 anos, amiga há 3 da C….., contou que a conheceu no início do 10º ano, em Setembro de 2002. Apercebeu-se, logo aí, que ela recebia mensagens constantes no telemóvel, ela então começou a contar-lhe o passado, tendo deixado de andar com ele passadas 1 ou 2 semanas. Incentivou-a a contar à mãe.
Embora algo constrangida e sugerida, referiu que se notou nela mudança de comportamento. A C……. disse-lhe que achava que gostava do arguido.
A testemunha H……., explicadora da C……., em relação ao pedido cível, referiu-se à mudança negativa e anormal que notou no comportamento dela, às faltas à explicação, tanto que reprovou no 10.º ano, mas também por falta de estudo e de bases.
A testemunha I……., amiga da ofendida e da mãe e frequentadora do grupo em que se integrou e onde conheceu também o arguido, referiu-se à mudança de comportamento repentina da ofendida que se manifestava desiludida com a vida (“queria morrer”) e que não tinha respeito nenhum à mãe.
A testemunha J……., também amiga da ofendida, mas apenas visita de casa, igualmente se pronunciou sobre a matéria do pedido cível.
As testemunhas de defesa L……. (filha do dono do café onde o grupo parava e que disse que o arguido andava sempre com a namorada e nunca notou nada), M……. e N……. (colega e amigo) abonaram o bom comportamento do arguido, as suas qualidades de trabalho e maneira de ser, bem como afirmaram a sua surpresa perante a acusação.
Em suma: analisando a postura de cada um dos depoentes, a sua relação/interesse nos factos ou com as pessoas envolvidas, o teor de cada depoimento, designadamente as incoerências, contradições, imprecisões ou hesitações, tudo à luz do específico quadro relacional em que a ocorrência se desenvolve, mais não é possível ao tribunal convencer-se senão dos factos acima dados como provados e nos termos em que o foram, tendo por certo que alguns actos aconteceram no decurso das consultas e que tais actos, necessariamente, envolveram pelo menos os beijos e carícias, mas sem mais nada se poder concretizar de forma certa. Fica o tribunal na dúvida sobre se na verdade ocorreu o sexo oral. Apesar da persistência da vítima, ancorada na sua discordância e até repugnância e medo de que e relação terminasse, mas tendo em conta a negação do arguido, e a ausência de qualquer outra prova, estranha-se que, atenta a sua idade, conhecimento e capacidades, a ter sido verdade ela não reagisse mais cedo e não procurasse ajuda pelo menos da mãe com quem tinha boa e franca relação, só tendo desabafado e ficado triste quando a relação irreversivelmente chegou ao fim, altura em que, por vezes, quem se sente despeitado tende a vitimizar-se e fazer do outro o “mau da fita”. Quanto às fotografias, embora não haja dúvidas sobre a ocorrência, precisou-se, no entanto, a respectiva descrição, conforme a prova produzida e a coerência e sequência dos acontecimentos, notando-se que algumas delas são normalíssimas e que as posições eróticas ou provocantes não vão além do que as fotografias mostram. De resto, o facto de a própria ofendida ter lançado mão e envergado um vestido de cerimónia da mãe traduz por certo colaboração dela.
No que concerne à matéria do pedido cível, expurgou-se tudo quanto são comentários, juízos, conclusões, exageros e irrealismos, ou até especulações, reconduzindo a matéria provada à que realmente e em concreto interessa e ao que resulta da prova credível sobre ela produzida».

III
FUNDAMENTOS DE DIREITO
8. As questões que se contêm nas conclusões do recurso e que há que resolver são as seguintes:
se foi cometido erro de julgamento quanto aos factos descritos como provados nos pontos 2.10 (“o arguido sabia a idade da menor”) e 2.11 (“o arguido agiu com a intenção de, através daqueles actos descritos, satisfazer os seus desejos libidinosos, sabendo que a sua conduta era proibida e penalmente punível”), considerando o recorrente que tais factos não resultam minimamente demonstrados pelas provas produzidas em audiência e, como tal, devem ser considerados não provados;
se, não obstante, os factos provados não integram o conceito de “acto sexual de relevo” e, consequentemente, não preenchem o tipo de crime do nº 1 do art. 172º do Código Penal, por que foi condenado o arguido e de que pretende ser absolvido;
s, em todo o caso, a matéria de facto provada não permite distinguir se tais actos foram praticados antes ou depois de a menor ofendida ter atingido os 14 anos de idade, para efeitos da sua integração no tipo do nº 1 do art. 172º do Código Penal;
se, para além disso, a pena aplicada é excessiva e injustificada, e não deveria ultrapassar o limite (mínimo) da moldura legal;
se também o montante da indemnização fixada é excessivo e injustificado e deverá ser substancialmente reduzido.
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9. Quanto à primeira questão enunciada, discorda o recorrente da decisão que considerou provados os seguintes factos, descritos sob os pontos 2.10 e 2.11:
2.10 ─ o arguido sabia a idade da menor;
2.11 ─ o arguido agiu com a intenção de, através daqueles actos descritos, satisfazer os seus desejos libidinosos, sabendo que a sua conduta era proibida e penalmente punível.
Quanto ao primeiro, fundamenta o recorrente que o único meio de prova que versou sobre este ponto de facto foram as declarações prestadas pelo próprio arguido, o que também é reconhecido na motivação do acórdão, que apenas se refere às declarações do arguido. Todavia, diz que, diversamente do que aí se conclui, o arguido não confessou que tinha conhecimento da idade da menor nos termos aí descritos, nem sequer afirmou, como certamente por lapso aí se refere, que “ela teria uns 13 ou 14 anos”. O que afirmou, a pergunta do Sr. Juiz Presidente, foi que “tinha a ideia que tinha 14 anos”. Acrescenta ainda que, se tivermos em conta as fotografias juntas aos autos, delas se vê que, à data dos factos, a menor apresentava um desenvolvimento físico muito mais compatível com uma idade superior a 14 anos.
Quanto ao segundo ponto de facto impugnado, diz que, não se provando que o arguido sabia que a menor tinha menos de 14 anos, também não podia saber “que a sua conduta era proibida e penalmente punível”, ficando prejudicada a prova da consciência da ilicitude. Para além disso, nem das declarações do arguido nem das fotografias juntas aos autos se pode extrair tal conclusão, porquanto, o arguido nada de relevante declarou a esse propósito e, quanto às fotografias, nenhuma apresenta imagens de cariz erótico, minimamente sensual ou excitante, susceptíveis de despertar ou satisfazer desejos sexuais ou libidinosos. E também não resulta da própria natureza dos actos praticados, que se limitaram a beijos na boca e carícias, os quais, mesmo entre pessoas adultas, podem ser trocados com variadíssimas intenções, libidinosas ou não. Apenas a ofendida fez declarações reveladoras dessa eventual intenção libidinosa, mas o tribunal não acolheu na matéria de facto provada essas suas declarações, o que leva a concluir que tais declarações não lhe mereceram credibilidade.
Vejamos se assiste razão ao recorrente.
O tribunal recorrido, embora não fundamentando especificamente cada ponto de facto (nem tal é exigido por lei), refere, na motivação da decisão de facto, alguns aspectos da prova que se reportam a estes dois pontos.
Assim, quanto ao primeiro ponto, sobre o conhecimento pelo arguido da idade da menor, refere, em síntese, que este conheceu e passou a acompanhar com o grupo de amigos da mãe da menor e com esta desde o ano de 2000, e em 2001 acompanhou a menor, várias vezes, ao dentista. Refere ainda que o próprio arguido, perguntado sobre este facto, respondeu que “ela teria uns 13 ou 14 anos”.
Contrapõe o arguido dizendo que não proferiu em audiência esta expressão.
O Ministério Público, na sua resposta, diz que o arguido, num primeiro momento, declarou que pensava que a menor tinha 14 anos, mas, na parte final do seu depoimento, precisamente a pergunta do seu defensor, declarou que “pensava que ela teria 13 ou 14 anos”.
Da leitura do seu depoimento que se encontra transcrito (contendo, no entanto, muitas omissões, por deficiência de gravação, sobretudo no que respeita às respostas dadas pelo arguido, muitas delas consideradas “imperceptíveis” ou “fora do alcance do microfone”), consta a fls. 15 do respectivo apenso que, a pergunta do Sr. Juiz Presidente, o arguido respondeu: “tinha a ideia de que teria 14 anos”. A fls. 23 consta que o sr. Juiz Presidente perguntou ao arguido: “Portanto, o senhor conhece-a desde os 13 anos?”, tendo o arguido respondido: “Sim ... mais ou menos ... desde os 13 anos”. A nova pergunta do sr. Juiz Presidente: “E dá ideia aqui pelas fotografias que ela era assim uma rapariguinha já, enfim, já dava nas vistas?”, respondeu: “Claro que sim, não era propriamente ... (imperceptível)”. A fls. 34 consta que o seu defensor sugeriu a seguinte pergunta: “Em primeiro lugar, o arguido disse que quando conheceu a C……. sabia que ela tinha 13 anos”, respondendo o arguido: “Sim”. O seu defensor sugeriu nova pergunta: “Queria que me explicasse melhor qual era o conhecimento que ele tinha em relação à idade dela, em que ela fazia anos, da idade concreta? Quando ocorreram os beijos se ele tinha a noção de que idade é que ela tinha?”, respondendo o arguido: “Portanto, na altura não teria ... não sabia se ela teria 13, se teria 14, não tinha a ideia exacta. Hoje em dia ... (fora do alcance do microfone) sei a data de ... sei que ela nasceu em 87 ... (fora do alcance do microfone), está ali nos papéis”. A fls. 35, insistindo na mesma pergunta “Quando ocorreram os beijos que noção tinha da idade dela?, respondeu: “Se calhar que teria 14, penso eu ... (fora do alcance do microfone)”. A fls. 37 consta que um dos srs. Juízes adjuntos insistiu na pergunta sobre a noção que tinha da idade da menor, mas a resposta dada pelo arguido é de todo imperceptível.
Assim, do que é possível perceber do seu depoimento (tendo em conta, apenas, as respostas que a gravação conseguiu captar), o arguido não terá afirmado que sabia que a menor tinha 13 ou 14 anos quando ocorreram os beijos e as carícias. O que diz é que ela tinha 13 anos quando a conheceu. O que, todavia, não parece exacto, já que, em meados do ano 2000, quando o arguido conheceu a menor e a sua mãe (segundo declarou), a menor tinha apenas 12 anos, só tendo feito os 13 anos em 26/12/2000 e os 14 em 26/12/2001. O que sugere que o arguido estaria a atribuir à menor um ano a mais do que ela na realidade tinha.
Importa, todavia, considerar que todas as respostas dadas pelo arguido sobre este facto não são peremptórias, afirmativas, mas meramente indicativas, opinativas (“penso que teria ...”; “se calhar teria ...”; “talvez tivesse ...”). E, portanto, não podem ser interpretadas à letra.
Para além disso, mantendo o arguido convivência com a mãe da menor e com esta desde meados do ano 2000, com o nível de confiança que levou a mãe da menor a permitir que o arguido acompanhasse a menor ao dentista, uma vez por mês, ao longo de cerca de um ano, é de todo plausível, segundo as regras da experiência comum, que o arguido se tenha informado da idade correcta da menor, tanto mais que, segundo diz, a partir de determinado momento, esta passou a manifestar-lhe gestos de especial afectividade (diz que, quando a levava no seu veículo, ela punha a sua mão sobre a dele e fazia pressão) e apercebeu-se de que ela tinha criado por ele uma “paixoneta”.
Donde se conclui que a decisão quanto a este ponto de facto é possível e plausível face às provas produzidas. Nenhuma prova impondo outra decisão diferente, como exige o nº 3 do art. 412º do Código de Processo Penal. A que acresce que o tribunal do julgamento está em melhores condições para apreciar e decidir esta matéria, por poder dispor de elementos que só a oralidade e a imediação da prova proporcionam e a que este tribunal de recurso não pode ter acesso.
Com efeito, a decisão formada apenas com base em provas sujeitas ao regime da livre apreciação, “segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador”, a que alude o art. 127º do Código Penal, só é possível de ser modificada desde que as provas especificadas pelo recorrente levem a concluir que aquela decisão não é possível ou não é razoavelmente plausível, ou quando afrontar as regras da experiência comum. É por isso que a lei exige que o recorrente especifique, em concreto, não só quais os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, mas também quais as provas que impõem decisão diversa da recorrida (art. 412º, nº 3, do CPP). “Impor decisão diversa da recorrida” não significa “admitir uma decisão diversa da recorrida”. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo. No sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade.
É também este o entendimento generalizado da jurisprudência, que vem considerando que sempre que o recorrente se limita a confrontar a convicção do julgador, motivada e objectivada nas provas produzidas, com outra convicção também possível perante as mesmas provas, deve acolher-se a opção do julgador, até porque beneficiou das vantagens da oralidade e da imediação da recolha da prova, que o tribunal de recurso não consegue alcançar (cfr. os acs. do STJ de 18/01/2001, proc. 3105/00, e de 17/02/2005 e 16/06/2005, em www.dgsi.pt/jstj.nsf/ procs. nº 05P058 e 05P1577, respectivamente, e ac. desta Relação de 12/05/2004, em www.dgsi.pt/ jtrp.nsf/ proc. 0410430, entre muitos outros.
Não impondo as provas especificadas pelo recorrente decisão diferente da recorrida quanto a este pondo de facto, deve manter-se aquela decisão que o considerou provado.
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10. No que respeita ao segundo ponto de facto impugnado, sobre as intenções libidinosas do arguido, consta da motivação do acórdão recorrido que o arguido admitiu que “beijou umas quatro ou cinco vezes a menor na boca, nos locais aí referidos, negando as carícias mas confirmando que, pelo menos, nesses momentos, a abraçava e acariciava nas costas, argumentando que a C…….. é que teve a iniciativa”. E que “o primeiro beijo aconteceu de forma fortuita”.
Contrapõe o arguido dizendo que nem das declarações do arguido nem das fotografias juntas aos autos se pode extrair tal conclusão, porque o arguido nada de relevante declarou a esse propósito e, quanto às fotografias, nenhuma apresenta imagens de cariz erótico, minimamente sensual ou excitante, susceptíveis de despertar ou satisfazer desejos sexuais ou libidinosos. E diz ainda que também não resulta da própria natureza dos actos praticados, que se limitaram a beijos na boca e carícias, os quais, mesmo entre pessoas adultas, podem ser trocados com variadíssimas intenções, libidinosas ou não. Apenas a ofendida fez declarações reveladoras dessa eventual intenção libidinosa, mas o tribunal não acolheu na matéria de facto provada essas suas declarações, o que o leva a concluir que tais declarações não lhe mereceram credibilidade.
Parece-nos, salvo melhor opinião, que neste ponto assiste razão ao recorrente.
Com efeito, a “intenção libidinosa” consiste na “intenção do agente de despertar ou satisfazer, em si ou em outrem, a excitação sexual” (Prof. Figueiredo Dias, em Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 447).
O agir o arguido com a intenção de satisfazer os seus desejos libidinosos, a que alude o item 2.11 dos factos provados, só pode reportar-se ou aos beijos na boca e às carícias a que aludem os itens 2.4, 2.5 e 2.6., e/ou às fotografias referidas nos itens 2.7, 2.8 e 2.9, que constam dos autos.
Quanto às fotografias que constam dos autos, em nenhuma delas surge a menor em imagens obscenas ou poses eróticas ou sexualmente excitantes, ou que realce alguma das partes do corpo mais conotadas com a sexualidade, susceptíveis de poderem despertar desejos ou intenções libidinosas ou de induzir ter sido a menor levada a praticar ou a suportar actos daquele cariz. Nenhuma das ditas fotografias ultrapassa o limite da decência, da vulgaridade, que não pudesse ser vista, com normalidade, por qualquer pessoa, sem que em alguma delas se possa descobrir sentimentos ou intenções de cariz sexual ou libidinoso.
Portanto, não é admissível que o agir com a intenção de satisfazer desejos libidinosos se reporte às fotografias.
Por certo referir-se-á aos beijos na boca e às carícias. Mas, como refere o recorrente, dar beijos na boca e fazer carícias pode corresponder a intenções libidinosas ou não, seja entre adultos, entre jovens e adultos, ou entre jovens. Dependendo do tipo de beijo e do modo e lugar onde se fazem as carícias.
Diz o recorrente, com razão, que o beijo na boca, sem mais, designadamente sem se esclarecer se os beijos eram prolongados e repetidos, se houve contacto de línguas ou troca de fluidos, e/ou se eram acompanhados de outros actos de cariz erótico e sensual, não podem ser associados à libido.
Quanto a este aspecto, o arguido declarou em audiência que “os beijos não eram prolongados, eram beijos como o chamado «chocho», só com os lábios” (fls. 25 do apenso da transcrição). Por sua vez, a menor declarou que chegaram a “fazer o linguado”, o que quer dizer, a ser verdade, que teria havido contacto com as línguas.
Sucede que não se sabe qual destas versões foi a acolhida na decisão, de que apenas consta que “o arguido a beijou na boca”. Mas beijar na boca pode não passar de um mero cumprimento, sem que daí se possa retirar, objectiva e subjectivamente, qualquer intenção de cariz sexual.
É certo que, para além disso, o tribunal considerou ainda provado que o arguido também a “acariciou com as mãos em diversas partes do corpo”. Sem, contudo, esclarecer se as carícias ocorreram ao mesmo tempo e em conjunto com os beijos. Mesmo admitindo que as carícias tenham sido feitas em acto conjunto com os beijos, impõe-se sempre questionar em que consistiram essas carícias e quais as partes do corpo que foram tocadas.
Fora da relação familiar mais próxima (entre cônjuge e entre pais e filhos), abraçar e acariciar as pessoas quando se beijam não é tido, segundo as regras da experiência comum, como uma forma normal de cumprimento entre pessoas amigas. Muito menos entre um homem adulto e uma menina de menor idade. Há implícito nessa conduta um sentimento de afectividade, de intimidade, que vai além do mero cumprimento de amizade.
Não pode, porém, esquecer-se que, ao que flui da matéria de facto provada e, mais precisamente ainda, da respectiva fundamentação, a relação da mãe da menor e desta com o arguido (bem como com “o grupo de jovens bastante mais novos que se foram conhecendo do Café ……, em Valongo”, que se reuniam frequentemente e passavam férias em conjunto) era uma relação com alguma intimidade, que ia além da mera relação de amigos. De tal modo que foi a mãe da menor que pediu ao arguido que a levasse ao dentista, uma vez por mês, na sua ausência em serviço.
Daí que, para se aferir do seu carácter libidinoso, haveria que concretizar em que consistiram essas carícias e identificar as partes do corpo que foram acariciadas: se em zonas erógenas ou marcadamente conotadas com a actividade sexual (tais como os peitos e os órgãos genitais), ou se em zonas de conotação afectiva e carinhosa mas sexualmente inócuas (como a face, as mãos, a cabeça).
Ora, quanto a estes aspectos, é o próprio tribunal recorrido que declara, na motivação da decisão de facto, que “mais não é possível ao tribunal convencer-se senão dos factos acima dados como provados e nos termos em que o foram, tendo por certo que alguns actos aconteceram no decurso das consultas e que tais actos, necessariamente, envolveram pelo menos os beijos e carícias, mas sem mais nada se poder concretizar de forma certa”. Se o tribunal reconhece que não pode concretizar as carícias, como pode ter concluído que o arguido as fez com fins libidinosos?
Inequivocamente, esta intenção libidinosa tem que ser aferida em função do modo, do tipo e do lugar das carícias. Subsistindo uma dúvida que impede a sua concretização, parece-nos, salvo o devido respeito, que aquela intenção não pode considerar-se provada. O que decorre do princípio in dubio pro reo.
Consequentemente, altera-se nesta parte a matéria de facto provada, quanto ao ponto descrito no item 2.11, considerando não provado que “o arguido agiu com a intenção de, através daqueles actos descritos, satisfazer os seus desejos labidinosos, sabendo que a sua conduta era proibida e penalmente punível”.
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11. A alteração na matéria de facto provada anteriormente referida não impõe, por si só, a absolvição do arguido. Desde logo porque tem-se entendido que esta conotação subjectiva, traduzida na intenção libidinosa do agente, não faz parte dos elementos constitutivos do crime tipificado no art. 172º do Código Penal. Que se basta, ao nível do elemento subjectivo, com o dolo genérico, em qualquer das três modalidades definidas no art. 14º do Código Penal, ou seja, a realização voluntária do facto típico (acto sexual de relevo), com conhecimento ou representando como possível a idade da menor inferior a 14 anos. Independentemente da motivação subjectiva por que o faz, isto é, fazendo-o ou não com intenções libidinosas. Neste sentido se pronuncia o Prof. Figueiredo Dias, em Comentário Conimbricense ao Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 447-448 e 548).
Alega, no entanto, o recorrente, que os actos que lhe são imputados, nos precisos termos que constam dos factos provados, para além de não revelarem a dita intenção libidinosa, também não integram o conceito de “acto sexual” e muito menos “acto sexual de relevo”, e, por isso, não preenchem o tipo objectivo do crime de abuso sexual de crianças, da previsão do nº 1 do art. 172º do Código Penal, por que foi condenado.
Cremos que as considerações feitas anteriormente, a propósito da motivação libidinosa, também já apontam no sentido de que os actos que o arguido praticou com a menor, tal como estão descritos nos factos provados, não contêm, necessariamente, conotação sexual e muito menos de relevo.
Assim, prescreve o nº 1 do art. 172º do Código Penal que “quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos”.
Face a esta descrição legal, o elemento objectivo que caracteriza, por excelência, o tipo de ilícito é constituído pelo “acto sexual de relevo” praticado com ou em menor de 14 anos de idade. O que quer dizer que o acto tem que ter cariz sexual e tem que assumir significado de relevo.
Sobre o conceito de “acto sexual de relevo”, o recorrente afirma concordar e aceitar todas as posições doutrinárias e jurisprudências expostas na decisão recorrida. Mas diverge quanto à integração nesse conceito dos actos imputados ao arguido, isto é, que os beijos na boca e as carícias que fez à menor, tal como estão descritos nos factos dados como provados, constituam acto sexual de relevo.
Quanto ao conceito de “acto sexual de relevo”, o acórdão recorrido, condensando as posições dominantes na Doutrina e na Jurisprudência, definiu-o do seguinte modo:
«Como se refere na obra dirigida pelo Prof. Figueiredo Dias [Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 447], (acto sexual de relevo) é “todo o comportamento activo (só muito excepcionalmente omissivo) que, de um ponto de vista predominantemente objectivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de determinação sexual de quem o sofre ou o pratica”.
Não se torna necessário o seu acompanhamento consciente pela vítima e muito menos se exige a compreensão por ela do significado sexual do acto e ainda menos a apreensão do seu carácter sexualmente “imoral”.
Ora, recuando um pouco:
Os crimes sexuais foram objecto, no âmbito da revisão do Código Penal operada pelo Decreto-Lei 48/95, de 15/3 (entrado em vigor em 1/10/95), de particular atenção. Não só se procedeu à deslocação, do ponto de vista sistemático, do capítulo relativo aos crimes contra valores e interesses da vida em sociedade para o título dos crimes contra as pessoas, abandonando-se a concepção moralista em favor da liberdade e autodeterminação sexuais, bens eminentemente pessoais, como se procedeu à agravação das penas, especialmente no caso de menores de 14 anos – cfr. Preâmbulo daquele diploma.
Embora, de certo modo, tal tipo de crime seja um sucedâneo do atentado ao pudor, introduz-se nele um conceito novo, significativamente indeterminado e carente de concretização pela Jurisprudência – o de acto sexual de relevo.
Quis-se depurar os chamados crimes sexuais de referências éticas e assentando-se na ideia de que a sexualidade é uma manifestação de auto-realização pessoal, na concreta dimensão da autodeterminação sexual.
Assim, sem deixar de se reconhecer a dificuldade de definir a noção do que sejam “actos sexuais de relevo”, tem-se dito que são aqueles que constituam uma ofensa séria e grave à intimidade e liberdade do sujeito passivo e invadam, de uma maneira objectivamente significativa, aquilo que constitui a reserva pessoal, o património íntimo, que no domínio da sexualidade é apanágio de todo o ser humano.[M. Leal Henriques e M. Simas Santos, C. P. Anotado, 2ª. ed., 1996]
E, ainda, que como tal só pode ser considerado o acto que tem relação com o sexo (relação objectiva) e em que, além disso, haja por parte do seu autor a intenção de satisfazer apetites sexuais.[Maia Gonçalves, C. P. Anot., 8ª ed., p. 624]
O limiar da relevância poderá determinar-se com menos dificuldade com base nos padrões de comportamento socialmente vigentes, valendo, para o efeito, todos os actos sexuais – adianta-se, por seu turno, no Relatório da Comissão Parlamentar. [In Reforma do Código Penal – Trabalhos Preparatórios – Assembleia da República, vol. I, p. 143, e vol. IV, p. 128].

Pesem embora essas dificuldades, certo é que tal inovação mereceu aplausos. [Rui Carlos Pereira, na mesma obra, Vol. II, pág. 39]
Buscando Jurisprudência entretanto publicada, destacam-se dela as seguintes referências:
“O conceito de acto sexual de relevo não é dado pela lei. O conceito de «atentado ao pudor» era-nos dado pelo nº 3 do art. 205º do Código, antes da última revisão. Já nas actas de revisão daquele diploma consta que o autor do Projecto referiu que «a intenção foi limitar a aplicação deste artigo (então era o 247º) a actos que ofendam em grau elevado os sentimentos gerais de pudor e de moralidade sexual. Ficam de fora atitudes anódinas, como, por exemplo, um simples beijo, que não tem dignidade criminal».
E dentro dos modernos conceitos da criminalidade sexual, «há que erradicar do direito criminal todo o dogmatismo moral, ficando no âmbito dele somente condutas sexuais que ofendam bens jurídicos fundamentais das pessoas no que concerne à sua livre expressão do sexo», como anota Maia Gonçalves.[No C. P. anotado, 8ª edição]
E terá sido precisamente porque se acentua agora sobretudo essa liberdade e autodeterminação sexual, o direito de cada um ter a livre disposição do seu sexo, que se abandonou a expressão «atentado ao pudor», já que esta estava relacionada com a moral sexual.
O acto sexual de relevo a punir será, assim, todo o acto que viole intensamente a liberdade de expressão sexual da vítima”.[Ac. R. Coimbra, de 12/1/96, in CJ-XXI-Tomo I-37]
“Simplesmente, a expressão atentado ao pudor deixou de ser usada devido ao seu relacionamento com a moral sexual, perfilhando-se a de acto sexual de relevo, que a lei, no entanto, não define. (...) Com efeito, acto sexual de relevo terá de ser entendido como acto que, tendo relação com o sexo (relação objectiva), se reveste de certa gravidade e em que, além disso, há da parte do seu autor a intenção de satisfazer apetites sexuais.”
Todo o acto que constitua «uma ofensa séria e grave à intimidade e liberdade do sujeito passivo e invada, de uma maneira objectivamente significativa, aquilo que constitui a reserva pessoal, o património íntimo, que, no domínio da sexualidade, é apanágio de todo o ser humano» integra, sem dúvida, o conceito de acto sexual de relevo.
Por outras palavras, acto sexual de relevo será «todo o comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais (ainda que não comporte o envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes), que ofenda, em grau elevado, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas»[Acs. S.T.J. de 17/10/96 e de 24/10/96, in CJ (S)-IV-Tomo III-173 e 176, respectivamente].
«Acto sexual de relevo é aquele que, não sendo de cópula ou de coito anal, esteja relacionado com o sexo, perturbe seriamente a autodeterminação sexual de uma criança e, objectivamente, ocasione, pelo menos, tanto ou mais perturbação que o «acto exibicionista» (perante menor de 14 anos) ou mesmo a mera «conversa obscena», «escrito, espectáculo de objecto pornográfico», referidos no nº 3 do art. 172º do CP/revisto» [Ac. R.L. de 26/5/97, in CJ-XXII-Tomo III-148]. Neste aresto se estudam os antecedentes aspectos doutrinários, relação com o «atentado ao pudor», finalidades da reforma, e se refere que «em todos os ilícitos se pune a prática de actos sexuais contra a vontade daquele que os sofre, daqueles que, em razão de enfermidade, inexperiência, dependência hierárquica, carecem de capacidade para avaliarem o sentido crítico do acto de consentimento ou entrega sexual. É o caso das crianças, relativamente às quais o legislador presume «juris e de jure» a falta de vontade, a ausência de consentimento, pois ainda que manifesto é irrelevante. Combate-se a sua natural impreparação para aquela necessária avaliação. A prática de actos sexuais nas suas pessoas é perturbadora e, por isso, se persegue aquela», sublinhando, ainda, das actas da reforma, que «há quem dê um outro passo, distinguindo os crimes sexuais dos crimes contra menores, onde o bem jurídico seria a protecção do menor enquanto tal» e que «embora exacta esta ideia, não há grande prejuízo em associá-los num mesmo capítulo».
“Comete o crime do art. 172º, nº 1, do C.P. (acto sexual de relevo) aquele que, com intenção de satisfazer os seus apetites sexuais, se dirige a uma menor de 9 anos de idade e lhe ordena que mostre os órgãos sexuais, depois de ele próprio lhe ter afastado as pernas com a mãos”.[Ac. R. Porto de 21/10/98, in CJ-XXIII-Tomo IV-233]
“O elemento objectivo é integrado por alguma actividade que constitua acto sexual de relevo. (...) A vontade da vítima não é elemento do tipo; este completa-se, haja ou não consentimento da criança. O elemento subjectivo é constituído pela consciência e vontade de praticar o acto abusivo, com conhecimento da idade da pessoa ofendida. (...) Na primeira infância, a criança ainda não tem personalidade formada, não faz sentido falar-se então de autodeterminação. (...) O bem protegido é a criança como criança”.[Ac. S.T. J. de 1/4/98, in CJ(S)-VI-T.II-177/8]
“No crime de abuso sexual de menores, o bem jurídico tutelado visa proteger a autodeterminação sexual de uma forma muito particular: condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima podem, mesmo sem coacção, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade”».[Ac. STJ de 5/4/2001, in CJ(S), Tomo II, p. 178]
Como se vê, qualquer das posições doutrinárias e jurisprudências referenciadas orientam-se pela ideia de que o “acto sexual” a que alude a previsão típica do art. 172º do Código Penal é o que tem, de um ponto de vista predominantemente objectivo, natureza e conteúdo directamente relacionados com a sexualidade e assume o significado “de relevo” quando constitua ofensa séria e grave à intimidade e liberdade do sujeito no domínio da sexualidade.
Quer isto dizer, como acentua o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/07/2005 (em www.dgsi.pt/jstj.nsf/, proc. nº 05P2442) [Citando Simas Santos e Leal-Henriques , Código Penal, vol. II, pág. 368-369], que não é qualquer acto de natureza, conteúdo ou significado sexual que se integra naquele conceito e serve ao espírito da previsão normativa, “mas apenas aqueles actos que constituam uma ofensa séria e grave à intimidade e liberdade sexual do sujeito passivo e invadam, de uma maneira objectivamente significativa, aquilo que constitui a reserva pessoal, o património íntimo, que no domínio da sexualidade, é apanágio de todo o ser humano”.
Concretizando este conceito pela positiva, o acórdão em referência considera estarem aí abrangidos, por exemplo, “os actos de masturbação, os beijos procurados nas zonas erógenas do corpo, como os seios, a púbis, o sexo, etc., parecendo-nos que também se deve incluir no conceito de acto sexual de relevo a desnudação de uma mulher e o constrangimento a manter-se despida para satisfação dos apetites sexuais do agente”. Tratam-se, pois, de actos conotados objectivamente com a sexualidade ou que respeitem às partes do corpo objectivamente relacionadas com a actividade sexual.
Delimitando o conceito pela negativa e citando o Prof. FIGUEIREDO DIAS (em Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 448/449) acentua que é de excluir do conceito de “acto sexual de relevo” não apenas os actos «insignificantes ou bagatelares», mas também aqueles que não representem «entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima», como por exemplo, os «actos que, embora “pesados” ou em si “significantes”, por impróprios, desonestos, de mau gosto ou despudorados, todavia, pela sua pequena quantidade, ocasionalidade ou instantaneidade, não entravem de forma importante a livre determinação sexual da vítima».
A este propósito, SÉNIO ALVES (em Crimes Sexuais, p. 8 e ss.) questiona sobre o conceito de acto sexual de relevo: “Em bom rigor, a dificuldade começa logo na definição de acto sexual. Um beijo é um acto sexual? O acariciar dos seios é um acto sexual? E se sim, é de relevo?”. E acrescenta: “Numa noção pouco rigorosa (diria sociológica) de acto sexual têm cabimento actos como os supra referidas (o acariciar dos seios e de outras partes do corpo, que não só dos órgãos genitais). São aquilo que vulgarmente se designa como “preliminares da cópula” e, por isso, são actos de natureza sexual ou, se se preferir, actos com fim sexual». Para concluir que «o acto sexual de relevo é, assim, todo o comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais (ainda que não comporte o envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes) que ofende, em grau elevado, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas», sendo certo que «a relevância ou irrelevância de um acto sexual só lhe pode ser atribuída pelo sentir geral da comunidade”, a qual «considerará relevante ou irrelevante um determinado acto sexual consoante ofenda, com gravidade ou não, o sentimento de vergonha e timidez (relacionado com o instinto sexual) da generalidade das pessoas».
Das considerações expostos pode retirar-se a conclusão de que os beijos e as carícias podem constituir “acto sexual de relevo”, para efeitos da previsão normativa do nº 1 do art. 172º do Código Penal, desde que realizados nas zonas erógenas do corpo, objectivamente conotadas com a sexualidade das pessoas, ou quando praticados como preliminares de outros actos sexuais típicos, como a cópula ou o coito anal, ainda que estes não tenham chegado a realizar-se.
Tratando-se apenas de beijos na boca e de carícias não concretizadas, sem se esclarecer se os beijos eram curtos ou prolongados, se se limitaram a mero toque dos lábios ou eram acompanhados de contacto das línguas, e se as carícias foram realizadas em alguma das partes erógenas do corpo, tais como órgãos genitais, púbis, peitos, ou se limitaram a meros toques nas costas, como diz o arguido que aconteceu, não pode, em nossa opinião, concluir-se pela existência de “acto sexual de relevo”.
Aliás, parece resultar que o tribunal recorrido, ao fazer a transposição do conceito que desenvolveu de “acto sexual de relevo” para a análise do caso concreto, desviou-se, claramente, da vertente objectiva e sociológica que ora subjaz ao conceito para se deter em considerações de ordem subjectiva e moralista que estavam implícitas no anterior conceito de “atentado ao pudor” e que a revisão de 1995 do Código Penal erradicou da tipificação dos crimes sexuais. E, assim, para concluir pela verificação do tipo objectivo do crime argumentou do seguinte modo:
«Os beijos e as carícias, no contexto e segundo a postura subjectiva (intenção libidinosa) com que foram praticados, em criança de 13 anos por homem então com 24 anos, obviamente não têm outro sentido, pese embora a passividade, aceitação que fosse, da queixosa.
E, segundo os mesmos critérios, penalmente relevante, na medida em que a comunidade jurídica (e mesmo o próprio arguido que frequentemente lembrava a barreira da idade, e a ofendida, que escondia tal relacionamento) o integra facilmente numa sua compreensão, já sedimentada, em que assentam padrões de comportamento e representações colectivas que facilmente lhe permitem distinguir o que é normal manifestação sexual da que constitui abuso.
Mesmo num quadro de relacionamento grupal e de valores progressistas potenciador de tais experiências e de uma educação liberal, aberta ou mesmo permissiva a relacionamentos mais precoces, e ainda que o desenvolvimento físico e a capacidade pessoal decisória da vítima facilitem o seu acolhimento, o certo é que a autodeterminação sexual exige uma maturidade sedimentada no tempo, pressupondo o legislador que uma jovem, ainda que com 13 anos e da condição da ofendida, mesmo tendo a “paixoneta” pelo arguido, não é capaz ainda de decidir e escolher livremente os seus actos com tal cariz e muito menos comportar-se, em tal campo, com plena liberdade ante um homem na altura com 24 anos.
E mesmo que a C…… tenha contribuído para o sucedido com a sua “paixoneta”, não pode, por isso, concluir-se que ela já não era uma criança e que tudo decorre da sua livre expressão e autodeterminação sexual, especialmente antes de ter perfeito os 14 anos».
Como se nota, relevante para esta decisão não foi o eventual conteúdo de cariz sexual que pudesse ser atribuído aos beijos e às carícias, mas sim “a postura subjectiva com que foram praticados”, extraída da dita “intenção libidinosa”, sem esclarecer de que factos objectivos tal intenção emerge, e ainda a diferença de idades entre o arguido e a menor (“em criança de 13 anos por homem então com 24 anos”). O que leva a questionar: se, então, o arguido tivesse apenas concluído 16 anos de idade a mesma conduta seria interpretada no sentido de não constituir “acto sexual”?
Acresce que, para justificar o carácter penalmente relevante daqueles actos, o acórdão fá-lo, não com base nos factos provados, mas em considerações relativas a aspectos dos depoimentos prestados pelo arguido e pela ofendida que, contraditoriamente, não têm correspondência nos factos provados. Diz-se aí que os beijos e as carícias constituem acto sexual penalmente relevante “na medida em que a comunidade jurídica (e mesmo o próprio arguido que frequentemente lembrava a barreira da idade, e a ofendida, que escondia tal relacionamento) o integra facilmente numa sua compreensão, já sedimentada, em que assentam padrões de comportamento e representações colectivas que facilmente lhe permitem distinguir o que é normal manifestação sexual da que constitui abuso”.
Ora, das duas uma: ou os depoimentos do arguido e da ofendida permitiam concretizar os factos que conotavam os beijos e as carícias com motivações sexuais e haveria que transpor esses factos para a matéria de facto provada, pela sua relevância para essa caracterização e, consequentemente, para a decisão; ou, como é dito na motivação da matéria de facto, o tribunal só conseguiu apurar “que tais actos envolveram, pelo menos, beijos e carícias, mas sem mais nada se poder concretizar de forma certa”, e, sendo assim, não há que fazer apelo, na fundamentação de direito, a considerações de facto que não têm expressão nos factos provados.
Por tudo quanto exposto ficou, é de concluir que os actos praticados pelo recorrente com a menor, nos precisos termos que estão descritos nos factos provados, não integram o conceito de “acto sexual de relevo” e, consequentemente, não preenchem o tipo objectivo ilícito do crime de abuso sexual de crianças, da previsão do nº 1 do art. 172º do Código Penal. De que, por isso, o arguido deve ser absolvido, bem como do pedido civil.

IV
DECISÃO
Por tudo o exposto, acorda-se em conceder provimento ao presente recurso e, revogando o acórdão recorrido, absolve-se o arguido B…… do crime de abuso sexual de criança, da previsão do nº 1 do art. 172º do Código Penal, bem como do respectivo pedido civil.
Nos termos dos arts. 515º, nº 1, al. a), e 523º do Código de Processo Penal, 446º do Código Civil e 85º, nº 1, al. a) do Código das Custas Judiciais, pelo seu decaimento na acusação condena-se a assistente a pagar a taxa de justiça de 5UC, e pelo seu decaimento no pedido civil, as respectivas custas inerentes ao enxerto cível, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido.
Sem custas do recurso.
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Porto, 21 de Junho de 2006
António Guerra Banha
Jaime Paulo Tavares Valério
Joaquim Arménio Correia Gomes
José Manuel Baião Papão