LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
LEGITIMIDADE DO CABEÇA DE CASAL
HERANÇA INDIVISA
ACÇÃO DE DESPEJO
Sumário

I - Por se tratar de uma situação de litisconsórcio necessário, carece de legitimidade o cabeça-de-casal que, desacompanhada dos demais herdeiros, dirige a um terceiro pedidos consubstanciados na reivindicação de bens para a herança.
II - A previsão do artigo 2078.º do Código Civil só faculta ao cabeça-de-casal, por si só e nessa qualidade, legitimidade para pedir a entrega de bens da herança e para usar de acções possessórias.
III - A instauração de despejo visando a declaração da resolução do contrato de arrendamento, respeitante a imóvel pertencente a herança indivisa, constitui acto de administração da competência do cabeça-de-casal, podendo este proceder à sua instauração se estar acompanhado dos restantes herdeiros.
IV - Legitimidade que se mantém ainda que o respectivo contrato de arrendamento tenha sido celebrado com o de cujus ou com outro herdeiro.

Texto Integral

Processo nº 5674/19.6T8VNG.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia- J3
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra

Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO
B…, residente na Rua …, nº …, 1º andar, Vila Nova de Gaia intentou a presente acção declarativa, com processo comum, contra C…, residente na Rua …, nº …, rés-do-chão, Vila Nova de Gaia pedindo que: a Ré seja condenada a reconhecer que a herança de D… e E…, por si representada é a única dona e legítima proprietária e possuidora da habitação sita no R/C do prédio urbano sito na Rua …, nº…, Vila Nova de Gaia; seja declarado inexistente, ineficaz e/ou nulo qualquer eventual contrato de arrendamento associado a esse imóvel; a R. seja condenada a restituir-lhe aquele imóvel.
Subsidiariamente, pede que seja declarada a cessação, por resolução, de qualquer eventual contrato de arrendamento associado ao imóvel, com fundamento na falta de pagamento de rendas.
Em qualquer caso, pede ainda o A. a condenação da R. no pagamento de indemnização/compensação, pela utilização do imóvel, desde o mês de Janeiro de 2013 até à efectiva entrega, encontrando-se já vencida a quantia de € 29.640,00.
Para tanto, alega que D… e E… faleceram, fazendo aquele imóvel, de que eram proprietários, parte das respectivas heranças, e sendo ele cabeça-de-casal das mesmas. Por outro lado, invoca que a R., em finais de 2012, com o seu agregado familiar, tomou posse e passou a habitar tal imóvel, facto que ocorreu sem o seu consentimento ou autorização, sendo certo que a R. vem procedendo ao pagamento de € 380,00 mensais a um outro herdeiro que não a ele.
Conclui que não existe qualquer contrato de arrendamento que legitime a ocupação do local pela R. ou, a existir, o mesmo será ineficaz relativamente à herança, ou nulo, sendo certo que, mesmo que fosse considerado válido, existiria fundamento para a respectiva resolução, com fundamento na falta de pagamento de rendas à herança.
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A R. contestou, invocando, além do mais, a ilegitimidade do A., uma vez que, tendo a R. celebrado contrato de arrendamento relativo àquele imóvel com o herdeiro F…, seria a este que caberia a legitimidade activa para a acção.
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O A. defendeu a improcedência de tal excepção, considerando que, sendo cabeça-de-casal das heranças, a legitimidade lhe adviria do disposto nos arts. 2078.º nº 2 e 2079.º do Código Civil (quanto, respectivamente, à reivindicação e ao despejo).
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Convidado pelo tribunal a fazer intervir, a seu lado, os restantes herdeiros das heranças que representa, o A. não o fez, no prazo concedido.
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Conclusos os autos foi proferido despacho saneador que julgando verificada a ilegitimidade activa do Autor absolveu a Ré da instância quer quanto ao pedido principal quer quanto ao pedido subsidiário.
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Não se conformando com o assim decidido veio o Autor interpor o presente recurso concluindo as suas alegações pela forma seguinte:
A) Para além da matéria de facto considerada provada na decisão recorrida, deve ainda ser sita em consideração a seguinte matéria de facto: - Dá-se por integralmente reproduzido o teor dos documentos nº 1 e nº 2, juntos pela Ré com a sua contestação.
B) A acção de petição da herança e a acção de reivindicação enquadram-se no âmbito dos direitos reais e visam a defesa do direito de propriedade, com eficácia erga omnes, sendo acções estruturalmente muito próximas;
C) A diferença mais marcante entre ambas prende-se com o respectivo elemento central da causa de pedir: na acção de petição da herança este é o reconhecimento da qualidade de herdeiro (sendo a detenção por terceiro os bens da herança e o pedido respectivo uma decorrência daquele) enquanto na acção de reivindicação este é a detenção ou posse por terceiro (sendo o reconhecimento do direito de propriedade, mais do que um pedido, o objecto da acção;
D) Pela similitude das acções e, cumulativamente, por aplicação das disposições legais dos art. 1404.º e 1405.º, nº 2, do Código Civil, a interpretação necessária do nº 2 do art. 2078.º do Código Civil terá de ser a de que o cabeça de casal tem legitimidade para, através de uma acção de reivindicação, pedir, sozinho, a entrega de bens que deva administrar;
Sem prescindir,
E) Constituindo a locação um ato de administração ordinária para o locado, nos termos do art. 1024.º, nº 1, do CC, também o deve ser a acção de despejo uma vez que não vinculado o bem locado, antes o desvincula;
F) Consequentemente, tal acção de despejo para declarar a caducidade ou resolução do contrato de arrendamento pode ser instaurada pelo cabeça de casal como e enquanto administrador da herança;
G) No âmbito do exercício dos seus poderes de administração da herança, a cabeça-de-casal possui legitimidade para instaurar acções de despejo, sem necessidade de estar acompanhado dos demais herdeiros;
Além disso,
H) O artigo 1404º do CC manda aplicar as regras da compropriedade, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer direitos, sendo que o co-herdeiro, por força deste artigo, pode, tal como acontece com o comproprietário, exercer o seu direito de denúncia do contrato de arrendamento para habitação própria, relativamente a um prédio pertencente à herança indivisa de que também é herdeiro;
I) Essa solução goza de algum conforto face ao artigo 2078º-1, do Código Civil, quanto à legitimidade material do exercício da acção de restituição de todos os bens da herança por um só herdeiro;
J) Por outro lado, um entendimento diverso tornaria inviável a propositura da presente acção e a necessária a reacção contra o abuso e a ilegalidade que se mostra indiciada nos presentes autos, pois estamos perante uma situação em que um dos herdeiros arrendou, abusivamente, um imóvel integrado na herança indivisa, recebendo e fazendo suas as correspondentes rendas, com evidente prejuízo dos demais herdeiros;
K) Normas violadas pela decisão recorrida: artigo 30.º e 33.º, do CPC e artigos 1404.º, 1405.º, 2078.º, nº 1 e 1024.º, entre outros, do CC.
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Devidamente notificada, contra-alegou a Ré concluindo pelo não provimento recurso.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir:
a)- saber se se verifica, ou não, a excepção da ilegitimidade activa do Autor quer para os pedidos principais quer para os pedidos subsidiários.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:
1º)- O A. é cabeça-de-casal das heranças abertas por óbito de D… e E…, falecidos, respectivamente, em 29/10/2012 e 3/3/2010;
2º)- Da relação de bens apresentada por óbito dos referidos D… e E… faz parte a habitação sita no R/C do prédio urbano sito na Rua …, nº …, Vila Nova de Gaia;
3º)- A R. ocupa, com o seu agregado familiar, o imóvel referido em B);
4º)- O direito de propriedade sobre o mesmo imóvel encontra-se inscrito, desde 10/8/1972, a favor de D… e E…;
5º)- São herdeiros de E…: D…, o A., G…, H…, I…, F…, J… e K…;
6º)- São herdeiros de D…: o A., L…, G…, H…, I…, F…, J… e K…;
7º)- A. e a R. não celebraram qualquer contrato de arrendamento relativo ao imóvel mencionado em 2º).
A estes factos acrescenta-se ainda um ponto 8º) do seguinte teor:
“Dá-se por integralmente reproduzido o teor dos documentos nº 1 e nº 2, juntos pela Ré com a sua contestação”.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu é apena uma a questão que importa apreciar e dicidir:
a)- saber se se verifica, ou não, a excepção da ilegitimidade activa do Autor quer para os pedidos principais quer para os pedidos subsidiários.
Como se evidencia da decisão recorrida aí se entendeu ser o Autor parte ilegítima para propositura da presente acção porque, apesar de possuir a qualidade de cabeça-de-casal das heranças abertas por óbito de D… e E… [ponto 1º), da matéria de facto provada], propôs a presente acção desacompanhado dos demais herdeiros que fazem parte dessa herança (identificados nos pontos E) e F), da matéria de facto considerada provada) ainda indivisa, ou seja, estar-se-ia perante uma situação de litisconsórcio necessário passivo, em face do disposto no artigo 2091.º, do Código Civil, tendo em conta os pedidos formulados na acção de reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel descrito no ponto 1º), da matéria de facto considerada provada; da resolução de contrato de arrendamento incidente sobre esse imóvel; e, da condenação no pagamento das rendas referentes a esse imóvel.
Deste entendimento dissente o Autor recorrente para quem e dado estarmos perante um bem imóvel integrado na referida herança indivisa e que devia ser administrado por si, na qualidade de cabeça-de-casal e de conformidade com o disposto nos artigos 1404.º e 1405.º, nº 2 e 2078.º, nº 2, todos do Código Civil, a conclusão é no sentido da sua legitimidade activa para, isoladamente, propor a presente acção, em conformidade com o disposto no artigo 30.º, nº 1, do CPCivil.
Aliás, mesmo a assim não se entender, alega, sempre seria detentor de legitimidade quer para promover o despejo do locado, quer, alternativamente, para promover a cobrança das rendas inerentes ao mesmo, conforme foi peticionado a título subsidiário nos presentes autos, face ao alegado pela Ré, no sentido da existência e celebração de contratos de arrendamento referente ao imóvel que faz parte integrante da herança, a que aludem os documentos nº 1 e nº 2, juntos em sede de contestação que não foram celebrados por si.
Quid iuris?
Dúvidas não existem de que os pedidos formulados pelo Autor a título principal são os característicos de uma acção de reivindicação (cfr. artigo 1311.º do CCIvil) pois que os mesmos se reconduzem a que a Ré seja condenada a reconhecer que a herança de D… e E…, é a única dona e legítima proprietária e possuidora da habitação sita no R/C do prédio urbano sito na Rua …, nº…, Vila Nova de Gaia; seja declarado inexistente, ineficaz e/ou nulo qualquer eventual contrato de arrendamento associado a esse imóvel e que a Ré seja condenada a restituir aquele imóvel.
Como se sabe a herança indivisa, antes da partilha, não confere aos herdeiros a titularidade de parte especificada dos bens integrados no património hereditário. O herdeiro tem apenas uma quota ideal do acervo hereditário, mas na universalidade que o constitui. Só com a partilha cada um dos herdeiros é considerado, desde a abertura da sucessão, como titular dos bens que lhe forem adjudicados.[1]
Como resulta dos autos o Autor não é único herdeiro e, segundo alega, o bem pertence à herança.
Ora, em consonância com a natureza jurídica da herança indivisa, estatui o artigo 2091.º, nº 1 do Código Civil que: “Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no art. 2078.º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros”, ou seja, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros, nomeadamente os direitos relativos ao reconhecimento ou não dos bens da herança.
Portanto, a ratio do artigo 2091.º, nº 1 supra citado, deriva da circunstância de a natureza da relação controvertida exigir a intervenção dos vários interessados nesta relação, configurando um caso de litisconsórcio necessário natural, ao qual se refere o actual artigo 33.º, nº 2, do CPCivil quando estabelece que é necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.
E a decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado (artigo 33º do CPC).
A legitimidade, enquanto pressuposto processual positivo, consiste numa posição da parte perante a acção e define-se através da titularidade do interesse em litígio. É inquestionável que todos os herdeiros são titulares da relação material controvertida, a propriedade do bem reivindicado para a herança e que todos têm interesse directo em demandar.
Como se sabe a causa de pedir corresponde ao núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material que o Autor visa alcançar. E este integra a estatuição normativa pela alegação de factos concretos e ocorrências da vida que integram o núcleo essencial da previsão da norma (artigo 1311º do Código Civil) e pugna pelo reconhecimento do direito de propriedade dos falecidos sobre o imóvel e móveis reivindicados.
A exigência da intervenção de todos os herdeiros na acção não se destina a proteger especificamente a Ré, a essência do litisconsórcio necessário é, pois, a impossibilidade de compor definitivamente o litígio, declarando o direito ou realizando-o, sem a presença de todos os interessados, definindo o interesse em causa de forma parcelar.
O recorrente defende a integração do quadro factual que descreve na previsão do artigo 2078.º do Código Civil, segundo o qual, no que tange à herança indivisa e se forem vários os herdeiros, qualquer deles tem legitimidade para pedir, separadamente, a totalidade dos bens em poder do demandado, sem que este possa opor-lhe que tais bens lhe não pertencem por inteiro, tal como o cabeça-de-casal pode pedir a entrega dos bens que deva administrar.
Todavia, nem a referida norma nem o artigo 2088.º do CCivil têm aqui aplicação, pois que o herdeiro separadamente só tem legitimidade para pedir a entrega da totalidade dos bens em poder do demandado ou dos bens que deva administrar e para usar de acções possessórias.
Trata-se do poder conferido a cada co-herdeiro de pedir aos detentores ou possuidores de bens hereditários, através da petição de herança, a entrega dos bens que a integram.[2]
Tendo a Autor formulado o pedido de restituição, ao acervo hereditário, de determinado bem, pode parecer, dada a proximidade dos fins visados, que a acção deve qualificar-se como acção de petição de herança.
À acção de petição de herança reporta-se o artigo 2075.º do Código Civil que estatui do seguinte modo: “O herdeiro pode pedir judicialmente o reconhecimento da sua qualidade sucessória, e a consequente restituição de todos os bens da herança ou de parte deles, contra quem os possua como herdeiro, ou por outro título, ou mesmo sem título”.
Nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela[3], o que é essencial à petição de herança “(…) é o duplo fim que ela visa: por um lado, o reconhecimento judicial do título ou estatuto (de herdeiro) que o autor se arroga; por outro, a integração dos bens que o demandado possui no activo da herança ou da fracção hereditária pertencente ao herdeiro”, distinguindo-se da acção de reivindicação “(…) por virtude do carácter universal dela, visto visar, não uma coisa determinada, mas o universum jus defuncti”.
Como refere Rodrigues Bastos[4] a petição da herança “é a acção por meio da qual aquele que pretende ser chamado a uma herança reclama o reconhecimento da sua qualidade de herdeiro. Esta acção não tende tanto à entrega das coisas como ao reconhecimento da qualidade de herdeiro, com o propósito de recuperar, no todo ou em parte, o que constituir o património hereditário” (negrito e sublinhados nossos).
Já Cunha Gonçalves[5] ao tratar da natureza desta acção, opinava que ela não era pessoal, nem real, mas mista: “é pessoal, quanto ao reconhecimento da qualidade de herdeiro; é real, quanto à entrega do quinhão de herança, pertencente a este herdeiro”.
De acordo com a nossa jurisprudência, aquilo que verdadeiramente distingue a acção de petição de herança da acção de revindicação é o facto de a primeira ter como pedido principal o reconhecimento judicial da qualidade sucessória do herdeiro enquanto que a segunda tem como pedido principal o reconhecimento do direito de propriedade, sendo que, em ambas as acções, a pretensão de restituição da coisa é um pedido derivado daqueles pedidos principais.[6]
Portanto, a atinência desta acção com a acção de reivindicação determina a equivocidade aqui controvertida, mas as duas acções têm nítidos traços de distinção. Para além da diversidade de pedidos, que já acentuámos, na petição da herança a causa de pedir é a sucessão mortis causa enquanto na reivindicação o autor tem de demonstrar a ineficácia do título existente e invocado pelo adversário.[7]
Mesmo neste cotejo das acções que o herdeiro pode dirigir aos demais ou a terceiro possuidor de bens da herança, cremos que os concretos pedidos formulados pelo Autor, a título principal contextualizados pela causa de pedir, nos remetem para a acção de reivindicação e, por isso, os direitos relativos à herança devem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros.
Portanto, sob este conspecto, nada temos a censurar à decisão recorrida.
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Improcedem, assim, as conclusões A) a D) formuladas pelo recorrente.
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Mas será que para os pedidos subsidiários o Autor não terá legitimidade activa?
A resposta, respeitando-se entendimento diverso, é afirmativa.
Como se sabe a administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça-de-casal (artigo 2079.º do Código Civil).
A lei qualifica a locação como acto de administração ordinária, excepto quando for celebrada por prazo superior a 6 anos (artigo 1024.º, nº 1 do Código Civil).
Instaurar acção de despejo constitui acto de administração?
Poder-se-ia entender que não, por se tratar de um acto de defesa do património.
No entanto, nos poderes de administração incluem-se aqueles que visam a valorização e protecção do património que são os objectivos principalmente visados com a acção de despejo, meio processual que não se destina à defesa de agressões contra o património.
A lei, aliás, atribui, embora limitadamente, poderes ao cabeça-de-casal que vão para além da mera administração: tais são os poderes de reivindicar os bens que deva administrar ou de exercer as competentes acções possessórias (artigo 2088.º do Código Civil), ou o de vender frutos ou outros bens deterioráveis ou mesmo os frutos não deterioráveis para satisfação de encargos da herança ou despesas do funeral e sufrágios (artigo 2090.º do Código Civil) ou ainda o de cobrar dívidas (artigo 2089.º do Código Civil).
Como assim, a acção de despejo apenas se justifica enquanto acto de administração no âmbito dos poderes gerais conferidos pelo artigo 2079.º do Código Civil.
Ora, desde sempre se tem reconhecido ao cabeça-de-casal o poder de propor acções de despejo contra os arrendatários dos bens da herança, mesmo quando o contrato de arrendamento foi celebrado pelo inventariado ou por outro herdeiro como é o caso dos autos.[8]
E, diga-se, que outra solução mal se compreenderia.
Efectivamente, como refere Lopes Cardoso[9] “(…) a lei defere o cabeçalato não em função da competência para o seu exercício mas com respeito por uma ordem que tem ínsito o parentesco, a proximidade de grau com o falecido, critérios de razão afectiva, sentimental, quiçá de relativo interesse pessoal, tudo factores sem relevância no tocante à administração que atribui e impõe ao titular assim designado. Conclui-ir-se-á, portanto, que, colocado numa situação temporária de administração de bens em que tem mera parte ideal (e até em que não tem parte alguma), o cabeça-de-casal deverá praticar os actos que sejam indispensáveis à conservação do património em partilha, exercer aquele conjunto de direitos que a lei lhe outorga especificamente com vista a essa conservação e cumprir as tarefas que diplomas vários lhe impõem em atenção à qualidade em que investido ou a que tem potencial direito”.
É que, como noutro passo já se referiu enquanto não se fizer a partilha, “os herdeiros são titulares de um direito indivisível”, ou seja, desde a morte dos proprietários-D… e E…-o imóvel locado passou a ingressar no património, em regime de contitularidade de todos os herdeiros, em conformidade com o disposto no artigo 1057.º do CCivil, ou, com mais rigor, com a morte dos proprietários passou o bem locado a ter também como titular da relação jurídica de locador, a par do senhorio inicial, a herança indivisa.
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Daqui resulta, que não obstante o contrato de arrendamento não tenha sido celebrado com o Autor na qualidade de cabeça-de-casal, mas por um outro herdeiro, não deixa aquele de ser parte legítima para instaurar a presente acção e formular os referidos pedidos subsidiários, onde avulta a resolução do referido contrato por falta de pagamento de rendas.[10]/[11]
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Procedem, assim, as conclusões E) a K) formuladas pelo recorrente e, com elas, em parte, o respectivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta parcialmente procedente por provada e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, declara-se que o Autor tem legitimidade para instaurar a presente acção na qualidade de cabeça-de-casal, mas limitada à formulação dos pedidos subsidiários, devendo, pois, a mesma prosseguir, se outra causa a isso não obstar, para que os mesmos sejam apreciados.
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Custas pela parte vencida a final e na proporção em que o for (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 8 de Fevereiro de 2021.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
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[1] Como refere Pires de Lima e A. Varela, C. Civil, Vol. VI, paga. 184 “ (…) é um dos casos de comunhão que não cabe na figura da compropriedade, distinguindo-se desta pelo facto de o direito dos contitulares não incidir directamente sobre cada um dos elementos (coisa ou crédito) que constituem o património, mas sobre todo ele, concebido como um todo unitário. Significa isto que aos membros da comunhão, individualmente considerados, não pertencem direitos específicos (designadamente uma quota) sobre cada um dos bens que integram o património global”.
[2] Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada pág. 134.
[3] Obra citada pág. 131.
[4] In Direito das Sucessões, 1981, pág.158.
[5] In Tratado, Vol. X, pag. 479.
[6] Cfr. Acórdãos do STJ de 29/10/2009 e 02/03/2004, processos nºs 577/04.1TVLSB e 04A126, respectivamente, e Acórdãos da Relação do Porto de 27/02/1996 e 09/04/1992, com os nºs convencionais JTRP00017588 e JTRP00004508, respectivamente, todos em http://www.dgsi.pt.
[7] Cfr. Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, II, Coimbra Editora, 1980, pág. 41 e nota 598.
[8] Cfr. Partilhas Judiciais, Lopes Cardoso, Almedina, 1979, Vol. I, pág. 315 e jurisprudência citada sendo a mais antiga de 1904 e a mais recente de 1950; veja-se ainda: Ac. da Relação de Lisboa de 14-12-1982 (Ribeiro de Oliveira) B.M.J. 328-617, Ac. da Relação do Porto de 7-1-1986 (Mário Ribeiro) C.J., 1, pág. 155, Ac. da Relação de Coimbra de 14-10-1986 (Castanheira da Costa) B.M.J. 360-663, Ac. da Relação de Évora de 19-6- -1997 (Gaito das Neves) C.J., 3, pág. 276. Já em anotação concordante ao Ac. do S.T.J. de 18-3-1949 (Jaime de Almeida Ribeiro) escrevia o Prof. Alberto dos Reis: “ é evidente que o cabeça-de-casal tem poderes para dar de arrendamento os bens que administra; se pode arrendar, pode, logicamente, fazer cessar o arrendamento quando haja fundamento legal para isso e pedir, consequentemente, o despejo do prédio arrendado. Dar de arrendamento e pedir o despejo são manifestamente actos de administração; estão dentro da legítima esfera de acção do cabeça-de-casal” (R.L.J., 82º Ano, pág. 332).
[9] Obra citada na nota anterior pag. 305.
[10] Cfr. neste sentido, para além dos arestos citados na nota 8, os Acs. da Relação de Lisboa de 13/11/2003 e de 27/04/2006, da Relação de Coimbra de 22/06/1999 e de 03/10/2006 e da Relação do Porto de 26/11/2011 todos in www.dgsi.pt.
[11] Sobre a legitimidade para o recurso ao procedimento especial de despejo refere Rui Pinto (O Novo Regime Processual do Despejo; Coimbra Ed., 2.ª Ed., 2013, pp. 35 e 37-38) que “é entendimento pacífico de que têm legitimidade activa e passiva, respectivamente, as partes que à data da instauração da acção–i.e., do recebimento da petição inicial não recusada ou beneficiando do art. 476.º CPC, após primeira recusa–estão nas posições de senhorio e de arrendatário nos termos contratuais (…).
Havendo compropriedade ou contitularidade do lado do senhorio qualquer comproprietário tem legitimidade para intentar sozinho a acção de despejo, pois o arrendamento é tido, em regra, como acto de administração ordinária – sem prejuízo da necessidade de consentimento por força do art. 1024.º, n.º 1, CC–actividade que qualquer comproprietário pode levar a cabo, ao abrigo do art. 1407.º, n.º 1, CC. Contudo, isso não sucederá se tiver havido acordo diferente quanto à administração, como o mesmo art. 1407.º CC prevê. (…).
Por outro lado, se existir cabeça de casal de herança aberta por óbito do senhorio, tem aquele legitimidade para, desacompanhado dos restantes herdeiros, intentar acção de despejo relativamente a um imóvel da herança arrendado pelo falecido” (negrito e sublinhados nossos).