ACIDENTE DE TRABALHO
EXAME MÉDICO SINGULAR
IPATH
PARECER DO IEFP
JUNTA MÉDICA
Sumário

I - A prova pericial em que se traduzem os exames médicos efectuados no quadro nas acções emergentes de acidente de trabalho, quer de natureza singular, quer de natureza colectiva, está sujeita à livre apreciação do julgador.
II – As questões sobre que incide a junta médica são de natureza essencialmente técnica, estando os peritos médicos mais vocacionados para sobre elas se pronunciarem, só devendo o juiz divergir dos respectivos pareceres quando disponha de elementos seguros que lhe permitam fazê-lo.                                                  (Elaborado pela relatora)

Texto Integral

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa
1. Relatório
1.1. Os presentes autos emergentes de acidente de trabalho em que é sinistrado AAA, e entidade responsável a BBB, tiveram a sua origem no acidente ocorrido em 9 de Maio de 2017, quando o sinistrado exercia as suas funções laborais de “operador de processo” ao serviço da CCC e sofreu um  acidente de viação no percurso do trabalho para sua casa.
No exame médico-legal singular realizado na fase conciliatória, o Exmo. Perito do Gabinete Médico-Legal atribuiu ao sinistrado uma IPP de 20,476% com IPATH (incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual) a partir de 02 de Abril de 2019 (fls. 116).
Realizada a tentativa de conciliação perante o Digno Magistrado do Ministério Público (auto de fls. 130 e ss.), a mesma frustrou-se em virtude de a seguradora, discordar da avaliação da incapacidade efectuada pelo perito médico no exame realizado na fase conciliatória.
Foi requerido pela seguradora exame por junta médica, formulando quesitos (fls. 133).
No dia 22 de Novembro de 2019 reuniu a junta médica e foi nela decidido, por unanimidade, que o sinistrado é portador de uma IPP de 11,64% sem IPATH (fls. 137 e ss.).
A Mma. Juiz a quo determinou que o sinistrado juntasse aos autos ficha de aptidão para o trabalho posterior a 30 de Junho de 2019 e pediu ao Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) parecer sobre a questão de estar ou não o sinistrado afectado de IPATH.
O IEFP juntou aos autos o parecer técnico e estudo do posto de trabalho do trabalhador sinistrado, no qual identificou as tarefas e exigências do posto de trabalho e concluiu que as limitações funcionais do sinistrado ao nível da anca esquerda se afiguram impeditivas do desempenho da função de operador de processo – empacotamento.
Foi após convocada a junta médica, conforme determinado no despacho de 24 de junho de 2020 para, face ao parecer do IEFP, esclarecer se mantém o laudo no sentido da inexistência de IPATH.
Os peritos médicos, por unanimidade, mantiveram “a posição vertida no auto de junta médica a fls. 137.139, face ao descrito como conteúdo funcional da actividade exercida no posto de trabalho do examinado descrita no relato do IEFP, com a necessária adaptação do posto de trabalho pela Medicina do Trabalho, que, conforme fls. 66[1], 67, 142, 143, terá ocorrido, sendo aquele considerado Apto Condicionalmente”.
A Mma. Juiz do Juízo do Trabalho de Sintra (J2) proferiu em 23 de Setembro de 2020 decisão, na qual decidiu, na sua parte final, o seguinte:
«[…]
Assi[m], e considerando os factos provados à luz do direito aplicável, designadamente dos artigos 23°, b), 47°, 48°, 50° e 75° da Lei n° 98/09, de 04/09:
-Fixa-se ao Sinistrado uma IPP IPP 11,64%, com IPATH, desde da data da alta a 01.04.2019.
-Condenam-se a(s) responsável(eis) a pagar ao(à) sinistrado(a)
a) uma pensão anual e vitalícia no montante € 8.524,89 (oito mil quinhentos e vinte e quatro euros e oitenta e nove cêntimos) devida desde o dia 2.04.2019;
 b) um subsídio de elevada incapacidade no montante de 3.734,63 ( três mil setecentos e trinta e quatro euros e sessenta e três cêntimos).
c) a quantia de 20,00(vinte euros) a título de despesas de transportes.
Todas estas quantias são acrescidas de juros de mora desde os respectivos vencimentos, até integral pagamento.
Custas pela(s) responsável(eis).
Valor da ação:€ 139.010,53
[…]
1.4. A seguradora interpôs recurso desta decisão, tendo formulado, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões:
“1. Proferiu o Tribunal a quo Sentença, por haver considerado encontrar-se dotado de todos os elementos, os quais, no seu entendimento, eram aptos à decisão, designadamente de facto.
2. Salvo melhor opinião, foi cometido erro de julgamento, precisamente porque os elementos de que o tribunal dispunha não o aptavam à decisão que acabou por tomar.
3. Assim, considera a ora Apelante incorretamente julgados os factos que dão como provado que "pese embora o teor dos autos de junta médica e dos esclarecimentos prestados respetivos médicos, o Sinistrado se encontra afetado de uma IPATH" e consequentemente a fixação ao Sinistrado de "uma IPP 11,64%, com IPATH; desde data da alta a 01.04.2019".
4. Conclusão alicerçada no facto de, supostamente, "o fundamento apresentado pelos Senhores peritos médicos para chegarem a essa conclusão (não atribuição de IPATH) é o facto do sinistrado se considerar apto condicionalmente. (...)".
5. Afigura-se inquestionável a força probatória do auto de exame por junta médica, mesmo sujeita ao princípio da livre apreciação pelo juiz.
6. Neste sentindo, ensina-nos o Tribunal da Relação do Porto, em Acórdão de 01/09/2020, "não estando o juiz adstrito às conclusões da perícia médica (...) apenas dela deverá discordar, (...) com base em opinião científica em contrário, em regras de raciocínio ou máximas da experiência que possa extrair no âmbito da sua prudente convicção.".
7. A mera realização de junta médica pressupõe, per si, a pronúncia dos peritos sobre todo o tipo de lesões que o sinistrado pudesse padecer, tendo sempre presente todas as idiossincrasias relativas a cada posto de trabalho.
8. Já no que toca aos pareceres do IEFP, estes pretendem apenas esclarecer eventuais dúvidas sobre o emprego do trabalhador incapacitado.
9. Não só os relatórios periciais em causa se baseiam nos testemunhos prestados pelo sinistrado, sem verificação efectiva das suas capacidades e incapacidades para as tarefas,
10. Como a ser verificável, ainda estariam em falta os conhecimentos médicos do técnico do IEFP para tal avaliação.
11. No processo em crise, foi determinada a marcação de uma segunda junta médica de esclarecimentos com o fito único de "para, face ao teor do parecer do IEFP, esclarecerem se mantêm o laudo no sentido da inexistência de IPATH."
12. Conforme ficou consagrado e reiterado pelos senhores peritos médicos, por unanimidade (com a validação clínica do próprio perito médico do Sinistrado), em sede de junta médica de esclarecimentos,
13. "Mantêm a posição vertida no auto de junta médica a fls. 137-139 face ao descrito como conteúdo funcional da atividade exercida no posto de trabalho no relatório do IEFP, com a necessária adaptação do posto de trabalho pela Medicina do trabalho".
14. Quiseram os senhores peritos médicos afirmar que, tal como em qualquer caso em que é atribuída uma I.P.P., caberá à entidade patronal, em conjunto com a medicina do trabalho, apurar uma eventual adaptação do posto de trabalho.
15. Ora, se no processo em crise sentença decide unicamente com base no relatório técnico do perito do IEFP,
16. É igual a dizer que foi atribuída uma incapacidade para o trabalho habitual com base, unicamente, nas palavras do trabalhador aquando da realização entrevista no IEFP: "Análise conjugada dos elementos disponíveis, designadamente os constantes do auto de exame médico, de 13.06.2019 e do auto de exame por junta médica, de 22.11.2019, assim como os apurados na entrevista realizada com o trabalhador".
17. Ficando claro que o Sinistrado apenas se encontra desvalorizado numa I.P.P. de 11,64%, conforme resulta unanimemente das duas juntas médicas realizados,
18. Deve assim proceder a alteração da decisão nos termos do n°1 do artigo 662° do CPC, aplicável por remissão do artigo 1°, n°2 al. a), do CPT,
19. Uma vez que a sentença recorrida violou e interpretou erroneamente as normas que invoca na sentença e todo o disposto n° 5 das Instruções Gerais da TNI, devendo o sinistrado ser considerado desvalorizado numa incapacidade permanente parcial de 11,64%.”
1.5. O sinistrado respondeu a esta alegação, defendendo a improcedência do recurso, com a manutenção da sentença recorrida.
1.6. Mostra-se lavrado despacho de admissão do recurso.
1.7. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto Parecer em que opina pela improcedência do recurso. Ambas as partes foram notificadas do mesmo e nenhuma delas se pronunciou no exercício do contraditório.
Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.
2. Objecto do recurso
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, aplicável “ex vi” do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho –, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste tribunal prendem-se com saber:
1.ª – se pode considerar-se o sinistrado afectado de IPATH a partir de 1 de Abril de 2019.
2.ª – em caso negativo, quais as prestações a que tem direito para reparação do acidente de trabalho por ele sofrido.
3. Fundamentos
3.1. Os factos materiais relevantes para a decisão do recurso emergem do relatório antecedente e, ainda dos factos que a sentença assentou do seguinte modo:
1. No dia 09.05.2019, quando exercia a sua profissão de Operador de Processo, por conta sob orientação e direção CCC Sinistrado(a), sofreu - acidente de viação no percurso do trabalho para casa.
2. Em consequência sofreu - fractura do íleon + ramos isquiopúbico + acetabular esquerda.
3. Em consequência da lesão sofrida resultaram sofreu as incapacidades temporárias fixadas pela Seguradora que se mostram já indemnizadas.
4. Encontrando-se o(a) Sinistrado(a) afetada de uma IPP 11,64%, desde da data da alta a 01.04.2019.
5. À data do acidente o(a) Sinistrado(a) auferia a remuneração anual de € 16.291,26 (965,08€ x 14 meses, acrescido de subsídio de alimentação de 114,14€ x 11 meses, e de outras remunerações no valor de 127,05€ x 12 meses).
6. A Entidade Empregadora tinha a responsabilidade emergente do acidente de trabalho transferida para a(s) seguradora(s) supra referida.
7. Na ficha de aptidão para o Trabalho relativa ao Sinistrado datado de 4.07.2019, o Trabalhador foi considerado apto condicional mente com as seguintes observações: MANTÉM A CATEGORIA DE [OPERADOR DE] PROCESSO NO SECUNDÁRIO. NÃO DESEMPENHANDO TAREFAS QUE OBRIGUEM A LEVANTAMENTO DE PESOS, TRANSPORTES DE CARGAS NEM ESTAR SUJEITO A POSTURAS DE ORTOSTATISMO PROLONGADO. ESTAS RESTRIÇÕES DECORREM DAS SEQUELAS DO ACIDENTE DE TRABALHO IN ITINERE E O TRABALHADOR AGUARDA DECISÃO DO TRIBUNAL DE TRABALHO"
8. Em sede de exame por junta médica o Sinistrado apresentava: "limitação da mobilidade da anca esquerda - flexão 90º, rotação externa a metade da amplitude (rotação interna limitada de forma simétrica, a cerca de 20º), adução de 15º, abdução de 40º, mobilidade dolorosa em todos os movimentos, marcha claudicante
9. Para o exercido das funções de Operador de processo da Tabaqueira é exigido:
"(..)
· Quanto às exigências físicas, relativamente à posição de trabalho, o trabalhador deve poder adotar durante longos períodos de tempo a posição de pé, mas também, as posições curvado, agachado, de cócoras, de joelhos e até deitado para realizar as tarefas de abastecimento, desbloqueio e limpeza das máquinas. Necessita, ainda, de conseguir trabalhar em posições de equilíbrio instável para poder proceder à limpeza das máquinas, em cima de escadotes, manipulando mangueira de ar comprimido e aspirador industrial. No desenvolvimento da atividade o trabalhador deve ser igualmente capaz de efetuar flexões frontais e torsões laterais do pescoço e do tronco, assim como trabalhar com os braços estendidos em frente e acima do nível dos ombros.
· -Em termos de locomoção, a função de operador de processo - empacotamento, requer que o trabalhador possa deslocar-se, persistentemente, no piso plano de cerca de 75m2 da seção da fábrica para assistir ao nível de abastimento, desbloqueio, retirada e esvaziamento de caixotes de rejeição, as diversas máquinas em constante operação (único operador de processo por turno). Requer, ainda, que o trabalhador seja capaz, com frequência, de subir e descer escadotes (de 4 a 8 degraus), assim como baixar-se e erguer-se para levantar do chão os caixotes com os produtos rejeitados pelas diversas máquinas e retirar do carrinho onde estão colocadas bobines de papel de reforço dos maços de tabaco para abastecer a máquina X3.
· § No que respeita ao tipo e intensidade do esforço o trabalhador necessita de força dinâmica e estática ao nível dos membros inferiores, superiores e tronco, designadamente, para subir/descer escadotes e para abastecer com matérias primas as máquinas. Necessita, também, de poder levantar e deslocar cargas, com frequência entre 5Kg a 10 Kg e, ocasionalmente, ascendendo a 20Kg. Quanto às exigências sensoriais o desempenho da atividade requer que o trabalhador possua adequadas acuidades visual e auditiva para percecionar os sinais luminosos e sonoros emitidos pelas máquinas quando a respetiva matéria prima está a chegar ao fim.
· Ao nível das exigências psicomotoras o trabalhador necessita possuir para o desenvolvimento das tarefas agilidade física e coordenação motora, em especial, coordenação ombro-braço-mão e coxa-perna-pé.
· Em termos percetivo/cognitivos o trabalhador deve possuir capacidade de atenção distribuída para, em simultâneo, vigiar a operação das várias máquinas, detetar os sinais sonoros e luminosos emitidos por algumas delas e intervencionar outras.
10. O(A) Sinistrado(a) despendeu € 20,00 (vinte euros) em transportes, com a deslocação a este Tribunal.    
3.2. A questão essencial a decidir na presente apelação consiste em saber se a sentença sob recurso incorreu em erro de julgamento ao decidir que o sinistrado se mostra afectado de incapacidade permanente absoluta para a actividade profissional habitual (IPATH).
A incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual consiste numa “incapacidade de 100% para a execução do trabalho habitual do sinistrado, no desempenho da sua específica função, actividade ou profissão, mas que deixa uma capacidade residual para o exercício de outra actividade laboral compatível, permitindo-se alguma capacidade de ganho, todavia, uma capacidade de ganho, em princípio diminuta[2].
A decisão recorrida, em fundamento da sua afirmação de que o sinistrado se encontrava afectado de uma IPP de 11,64 % com IPATH, exarou o seguinte:
«[…]
Considera-se que, pese embora o teor dos autos de junta médica e dos esclarecimentos prestados respetivos médicos, o Sinistrado se encontra afetado de uma IPATH.
Repare-se que o fundamento apresentado pelos Senhores peritos médicos para chegarem a essa conclusão é o facto do Sinistrado, em sede de medicina de trabalho, se considerar apto condicionalmente. Por seu turno resulta da ficha de aptidão que o Sinistrado aguarda a decisão do tribunal, contudo estabelece que o Autor não pode efetuar levantamento de pesos, transportes de cargas nem estar sujeito a posturas de ortostatismo prolongado.
Ora estes impedimentos são incompatíveis com as exigências físicas, relativamente à posição de trabalho, à locomoção e ao tipo e intensidade do esforço que das funções inerentes á profissão de operador de processo.
Logo, tendo em conta as tarefas que o Autor teria que realizar no exercício das suas funções, ou seja o seu conteúdo funcional, e as inerentes exigências motoras, face às sequelas resultantes do acidente, que limitam a mobilidade da anca esquerda do Sinistrado, sendo que este apresenta dores em todos os movimentos e uma marcha claudicante, sendo certo que o mesmo está impedido de se manter em pé durante muito tempo e de movimentar pesos, necessariamente que se terá que considerar que o mesmo não pode continuar a exercer a profissão que vinha exercendo, pelo se mostra afetado de uma IPATH.
[…]»
3.2.1. O acidente sub judice ocorreu em 09 de Maio de 2017, na vigência da Lei dos Acidentes do Trabalho (LAT) actualmente em vigor, aprovada pela Lei n.º 98/2009 de 4 de Setembro.
À tramitação do processo que visa a sua reparação aplica-se o Código de Processo de Trabalho aprovado pelo Decreto-Lei n.º 295/2009, de 13-10, com as alterações subsequentes, sendo a última introduzida pela Lei n.° 107/2019, de 09 de Setembro.
Nos termos do preceituado no artigo 138.º, n.º 2 do Código de Processo do Trabalho, uma vez finda a fase conciliatória do processo de acidente de trabalho, sem que tenha havido acordo quanto à natureza da incapacidade e grau de desvalorização de que o sinistrado esteja afectado, a parte que se não conformar com o resultado do exame médico realizado pelo perito médico do tribunal requererá a realização de junta médica para efeitos de fixação de incapacidade para o trabalho.
A perícia por junta médica nas acções emergentes de acidente de trabalho é constituída por três peritos, tem carácter urgente, é secreta e presidida pelo juiz (art 139º nº 1 do CPT). O juiz pode nela formular quesitos quando a dificuldade ou complexidade da perícia o justificar (artigo 139.º, n.º 6, do CPT) e determinar a realização de exames e pareceres complementares ou requisitar pareceres técnicos, se o considerar necessário (artigo 139.º, n.º 7 do CPT), o que implica uma intervenção activa do juiz na realização da perícia, dirigindo os seus trabalhos e possibilitando-lhe o conhecimento mais rigoroso da perspectiva da junta médica para melhor o habilitar a proferir decisão.
Este regime, que não é inteiramente coincidente com o previsto no Código de Processo Civil para os exames periciais (aí o juiz não preside à perícia e só assiste à mesma quando o considerar necessário nos termos do artigo 480.º, n.º 2 do CPC), justifica-se atendendo à natureza oficiosa das acções emergentes de acidente de trabalho (artigo 26.º, do CPT) e à centralidade da prova pericial na fixação dos factos subjacentes à definição dos direitos emergentes de acidente de trabalho.
Uma vez realizada a junta médica, e juntos os pareceres complementares que considere necessários, o juiz profere decisão sobre o mérito, fixando a natureza da incapacidade e o grau de desvalorização do sinistrado, nos termos do n.º 1 do artigo 140º do Código de Processo do Trabalho.
3.2.2. A prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos que os julgadores não possuem, ou quando os factos relativos a pessoas não devam ser objecto de inspecção judicial (cfr. o artigo 388.º do Código Civil e o 591.º do Código de Processo Civil agora revogado, a que corresponde o artigo 489.º do NCPC).
Nos termos do artigo 389.º do Código Civil, que estatui sobre a prova pericial e a sua força probatória, “[a] força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal”, pelo que a prova pericial, em que traduzem os exames médicos efectuados no quadro nas acções emergentes de acidente de trabalho, quer de natureza singular, quer colectiva, está sujeita à livre apreciação do julgador. Como defendem Pires de Lima e Antunes Varela, “o princípio da prova livre (por contraposição à prova legal: prova por documentos, por confissão e por presunções legais) vigora no domínio da prova pericial (ou por arbitramento), da prova por inspecção (artigo 391.º) e da prova por testemunhas (artigo 396.º)”[3].
Prova livre não quer dizer prova arbitrária, «mas prova apreciada pelo juiz segundo a sua experiência, a sua prudência, o seu bom sendo, com inteira liberdade, sem estar vinculado ou adstrito a quaisquer regras, medidas ou critérios legais»[4].
Assim, sem prejuízo da necessidade de fundamentação da sua discordância – como, aliás, relativamente a qualquer decisão judicial (cfr. o artigo 154º do CPC) –, quando o juiz não acompanha o parecer dos peritos que integram a junta médica, a lei não coloca qualquer entrave a tal distanciamento ou divergência, ainda que total[5].
Tem é que haver razões fundadas para tal discordância.
Com efeito, as questões sobre que incide a junta médica são de natureza essencialmente técnica, estando os peritos médicos mais vocacionados para sobre elas se pronunciarem, só devendo o juiz divergir dos respectivos pareceres quando disponha de elementos seguros que lhe permitam fazê-lo.
Além disso, como se escreveu no Acórdão da Relação do Porto de 2013.10.07[6], “em princípio, a abordagem técnico-científica das questões médico-legais controvertidas, efectuada por três peritos médicos, tem a virtualidade de permitir uma mais segura aproximação à verdade material, desiderato primacial do processo civil, conduzindo a uma mais sólida formação da convicção do julgador”.
É esta a razão de ser da intervenção da junta médica nas acções emergentes de acidente de trabalho – cfr. os artigos 138.º e ss. e 145.º, n.º 5 do Código de Processo do Trabalho – em que os mesmos factos já apreciados no primeiro exame “voltam agora à apreciação de outros peritos mais numerosos[7]. E é também a lógica da realização da segunda perícia no processo civil como se infere do disposto no artigo 487.º, n.º 3 do CPC, nos termos do qual “[a] segunda perícia tem por objecto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexactidão dos resultados desta”.
3.2.3. No caso sub judice a seguradora não se conformou com o resultado do exame médico efectuado pelo perito médico nomeado na fase conciliatória e requereu a realização de exame por junta médica.
Nesta perícia colegial, os Exmos. Peritos, por unanimidade, concluíram que o sinistrado se mostrava afectado de uma IPP de 11,64% em virtude das sequelas resultantes das lesões sofridas no acidente de trabalho (divergindo do perito singular).
Considerando a Mma. Julgadora a quo que devia munir-se de mais elementos a fim de emitir decisão sobre a eventual IPATH, pediu a emissão de parecer ao Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) e ficha de aptidão profissional mais actualizada ao sinistrado, vindo depois a convocar nova junta médica para de novo se pronunciar sobre a questão da IPATH.
E nessas circunstâncias, a mesma junta médica perante tais novos elementos, entre os quais assumia relevância o Parecer do IEFP constante de fls. 144 e ss., entendeu manter o seu anterior parecer pericial no sentido de que o sinistrado não se mostra afectado de IPATH, mais uma vez por unanimidade dos três Peritos que a compunham, incluindo a Exma. Perita Médica nomeada pelo sinistrado.
É certo que a descrição das exigências físicas do posto de trabalho de “operador de processo” relativamente à posição de trabalho, em termos de locomoção e no que respeita ao tipo de intensidade e de esforço necessárias ao exercício das funções de operador de processos (facto 9., em conformidade com o parecer do IEFP) parece ser incompatível com a impossibilidade do sinistrado de efectuar levantamento de pesos e transportes de cargas, bem como de estar sujeito a posturas de ortostatismo prolongado, tal como ficou descrito na ficha de aptidão para o trabalho datada de 4 de Julho de 2019 (facto 7., em conformidade com a ficha de fls. 142).
Mas é igualmente certo que dessa ficha de aptidão constante de fls. 142 (a mais recente que consta dos autos) resulta que o sinistrado mantinha em 24 de Julho de 2019 a categoria profissional de “operador de processo” e não desempenhava tarefas que obriguem àqueles levantamento, transportes e posturas que se mostra impossibilitado de efectuar. Enquadramento profissional este que poderá compreender-se por se ter verificado a sua adaptação ao posto de trabalho em conformidade com a obrigação do empregador prescrita nos artigos 44.º, n.º 1 e 155.º, n.ºs 1 e 2 da LAT.
Deve atentar-se, ainda, em que da declaração médica de fls. 143 junta pelo sinistrado se mostra dito, igualmente, que o mesmo “foi colocado no mesmo posto de trabalho anterior ao acidente, não executando tarefas impossibilitadas pela incapacidade decorrente do referido AT".
O que tudo demonstra que o sinistrado continua no mesmo posto de trabalho de “operador de processo”, ainda que não execute as tarefas que ficou impossibilitado de efectuar, o que pode compreender-se como efeito da incapacidade laboral permanente “parcial” que lhe foi reconhecida e tem o evidente significado de que o mesmo se não mostra com incapacidade permanente e “absoluta” para o seu trabalho habitual de “operador de processo”. 
Acresce que, sem prejuízo do contributo essencial do parecer técnico emitido pelo IEFP, na parte em que procede ao estudo do posto de trabalho (tarefas e exigências), aquele tem que ser adequadamente ponderado na parte em que esteja em causa a atribuição, ou não, ao sinistrado de IPP ou IPATH, maxime havendo uma junta médica unânime.
Assim, e tendo em consideração que os Exmos. Peritos do sinistrado, da seguradora e do tribunal responderam de forma clara e consensual aos quesitos formulados pela seguradora (a única parte que apresentou quesitos) e, perante os novos elementos trazidos pelo sinistrado e pelo IEFP e em resposta ao esclarecimento pedido pela Mma. Julgadora a quo, reuniram de novo e reiteraram, também por unanimidade, o seu consenso no sentido de que o sinistrado se não acha afectado de IPATH, não vemos razões objectivas para discordar destes laudos periciais.
E decidimos, nesta instância, que o sinistrado não ficou afectado de IPATH em consequências das lesões sofridas no acidente de trabalho de que foi vítima em 9 de Maio de 2019, sendo de alterar a sentença que assim o considerou.
3.3. Em consequência do ora decidido, cabe calcular a pensão devida ao sinistrado pela seguradora, tendo presente o disposto nos artigos 23.º, alínea b), 47.º, n.º 1, alínea c), 48.º, n.º 3, alínea c), 50.º e 75.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro.
 In casu o sinistrado auferia a retribuição anual de € 16.291,26, pelo que, tendo em atenção os aludidos preceitos legais e o grau de incapacidade permanente parcial de 11,64% atribuído ao sinistrado pela junta médica e plasmado no facto 4., tem direito nos termos do disposto no artigo 48.º n.º 3, alínea c) da Lei nº 98/2009, de 04 de Setembro, ao recebimento o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia, correspondente a 70% da redução sofrida na capacidade geral de ganho (cfr. o artigo 75º nº 1 da LAT).
Ascende tal pensão anual ao valor de € 1.327,41 (€16.291,26 x 70% x 11,64%), devida desde o dia 02 de Abril de 2019 (dia seguinte ao da alta).
A pensão é acrescida de juros de mora à taxa anual de 4% desde o dia seguinte ao da alta e até integral pagamento, posto que corresponde a uma forma unitária de pagamento da pensão anual e vitalícia (art.º 135.º do Código de Processo do Trabalho e Portaria n.º 291/03, de 8 de Abril)[8].
Uma vez que não se verificam os pressupostos previstos no artigo 67.º da LAT, não é devido o subsídio de elevada incapacidade permanente, sedo neste ponto de revogar a decisão contida na sentença.
Merece provimento o recurso.
3.4. Uma vez que ficou vencido no recurso, e não se encontram demonstrados os fundamentos para uma eventual isenção de custas do sinistrado – cfr. o artigo 4.º, n.º1, alínea h) do Regulamento das Custas Processuais aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro – é o mesmo responsável pelas custas (art. 527.º do Código de Processo Civil). Mostrando-se paga a taxa de justiça e não havendo encargos a contar neste recurso que, para efeitos de custas processuais, configura um processo autónomo (artigo 1.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais), a condenação é restrita às custas de parte que haja.
4. Decisão
Em face do exposto, concede-se provimento à apelação e, em consequência:
4.1. revoga-se a sentença na parte em que decidiu que o sinistrado ficou afectado de IPATH;
4.2. condena-se a apelante BBB a pagar ao apelado AAA o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia no montante de € 1.327,41, devida desde 02 de Abril de 2019, acrescida de juros, à taxa legal desde a data do vencimento da pensão até à efectiva entrega do capital.
4.3. revoga-se a sentença na parte em que condenou a apelante no pagamento ao apelado do subsídio de elevada incapacidade permanente.
No mais, mantém-se o decidido em 1.ª instância.
Fixa-se o valor da causa em € 21.080,69.
Condena-se o recorrido nas custas de parte que haja.

Lisboa, 24-02-2021
Maria José Costa Pinto
Manuela Bento Fialho
Sérgio Almeida
_______________________________________________________
[1] Diz-se 67 por evidente lapso (o número é repetido a seguir e o laudo convoca a anterior junta médica em que se referem as fls. 66 e 67) .
[2]  Vide Carlos Alegre, in "Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais", 2.ª edição, Coimbra, 2001, p. 96.
[3] In Código Civil Anotado, I Volume, 3.ª Edição, 1982, Coimbra, pp. 338 e 339, em anotação ao artigo 389.º
[4] Vide o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 1997.12.30, in BMJ 271/185.
[5] Vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa 2012.02.08, Processo: 270/03.2TTVFX.L1-4, in www.dgsi.pt, de que a ora relatora foi 1.ª adjunta e, bem assim, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 2006.05.02, in Colectânea de Jurisprudência, Tomo III, página 229 e do Tribunal da Relação de Évora, de 2004.06.22 in “Acidentes de Trabalho - Jurisprudência 2000-2007”, Colectânea de Jurisprudência Edições, coordenação de Luís Azevedo Mendes e Jorge Manuel Loureiro, p. 336.
[6] Processo n.º 9217/10.9TBVNG-A.P1, in www.dgsi.pt.
[7] Vide Leite Ferreira, in Código de Processo do Trabalho Anotado, 4.ª edição, Coimbra, 1996, p. 626.
[8] Neste sentido, os acórdãos da Relação de Coimbra, de 02 de Maio de 2014, processo n.º 121/12.7TTFIG-A.C1, da Relação do Porto, de 29 de Fevereiro de 2016, processo n.º 1272/15.1T8MTS.P1 e da Relação de Lisboa, de 04 de Maio de 2016, processo n.º 675/14.3T8TVD-.L1-4, todos in www.dgsi.pt.