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AUDIÊNCIA PRÉVIA
DISPENSA
OMISSÃO DE NOTIFICAÇÃO
NULIDADE PROCESSUAL
Sumário
1 - Do cotejo dos artigos 591º, 592º, e 593º, todos do CPC, retiram-se três conclusões imediatas: o primeiro estabelece o princípio geral, o da realização de audiência prévia, e os dois restantes os casos em que, respetivamente, a mesma não se realiza ou pode ser dispensada. 2 – Tendo o tribunal recorrido decidido de mérito, não estando verificada nenhuma das hipóteses legalmente contempladas de dispensa ou não realização de audiência prévia, não havendo sequer um prévio despacho que, ao abrigo da gestão processual e da faculdade conferida pelos artigos 6º e 547º, do CPC, auscultasse prévia e especificadamente as partes sobre tal possibilidade, e obtivesse a concordância das mesmas, foi cometida irregularidade processual com relevância para a decisão da causa, contemplada no artº 195º, nº1, do CPC, que assim se transformou em nulidade processual. 3 – A consequência de tal nulidade processual é, neste caso, o regresso dos autos ao momento anterior à prolação da sentença recorrida, prosseguindo os autos nos termos expostos com prolação de despacho a convocar as partes para audiência prévia ou, em alternativa, proferindo despacho nos termos dos artigos 6º, e 547º, do CPC, convidando as partes a pronunciar-se sobre a possibilidade de dispensa desta diligência, sobre eventuais exceções e sobre o mérito da causa.
Texto Integral
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório:
..…, casado, natural de …, Lisboa, portador do Cartão de Cidadão n.º ……, emitido pela República Portuguesa e válido até …., residente…. veio intentar a presente ação de Anulação de Deliberações Sociais contra .……, pessoa coletiva número ……, com sede na Rua ….., freguesia de ….., concelho de …., pedindo que seja declarada a nulidade das deliberações tomadas na Assembleia Geral da ré de 20 de janeiro de 2017 (na qual não esteve presente, nem devidamente representado, não obstante constar da respetiva Ata estar o mesmo representado por procurador, e das quais apenas teve conhecimento em 6 de março de 2019 com a entrega da respetiva Ata número 34 pela ré na contestação à ação também movida pelo aqui autor para impugnar as deliberações, de 07.11.2016, Juízo de Comércio de Sintra – Juiz 1 sob o n.º …… ao abrigo do disposto no artigo 56.º, número 1, al. a) e d) CSC ou, caso assim não se entenda a anulação das mesmas deliberações por via do artigo 58.º número 1, al. b) e c) CSC.
Citada a ré, veio a mesma contestar, alegando a exceção de caducidade do direito do autor a impugnar a deliberação em questão, porquanto este esteve, no dia 20/01/2017, devidamente representado por procurador, que estava legal e plenamente mandatado para representar nas assembleias gerais da ré, sendo que tal instrumento de representação, a dita procuração, estava em vigor e era perfeitamente válido. Impugna, ainda, os factos, concluindo pela improcedência dos pedidos.
Foi proferido despacho, convidando o autor a, querendo, pronunciar-se sobre a exceção invocada.
Respondeu o autor, pugnando pela não verificação da invocada exceção de caducidade do seu direito, invocando que as partes alegaram naquela acção judicial, basicamente, os mesmos factos de sustentação e defesa que alegam na presente ação, mais especificamente sublinhando que a representação do autor na Assembleia Geral de 7.11.2016 foi, efetivamente, efetuada pelo representante da ré, alegadamente, utilizando a mesma procuração em causa nestes autos, tendo nesse processo sido dado como provado que a deliberação foi feita ao abrigo do disposto no art. 54º do CSC, na mesma não tendo estado presentes nem o autor nem a sócia ….. Assim, é de concluir que, se a sócia ……. esteve (alegadamente) presente na Assembleia Geral de 20.01.2017 ora impugnada, do que resulta da pi (e, diga-se, é reconhecido pela ré) o autor também não esteve presente na Assembleia Geral de 20.01.2017, reunida ao abrigo do artigo 54.º do CSC. Ora, discordando o autor da posição da ré , quanto à validade da procuração para o representar nesse acto, sendo, aliás, esse um dos fundamentos da presente acção, enquanto causa de nulidade da deliberação, não pode o mesmo concordar com a verificação de tal exceção.
Por outro lado, a nulidade de uma deliberação pode ser invocada a todo o tempo e por qualquer interessado, nos termos do disposto no artigo 286.º do Código Civil, conjugado com o artigo artigo 59.º, n.º 1 e 2 do Código das Sociedades Comerciais, a contrario.”, pelo que, por aí, desde logo teria de improceder tal exceção.
Pediu, ainda, a condenação da ré como litigante de má-fé.
Considerando o Tribunal que os autos já continham os elementos necessários a uma decisão de mérito, sem ulterior produção de prova, foi proferido despacho nesse sentido, dispensando a realização de audiência.
O tribunal recorrido prolatou então saneador-sentença, com o seguinte dispositivo: Pelo exposto, julgo procedente, por provada, a presente acção, e declaro a NULIDADE das deliberações tomadas na Assembleia Geral da Ré ……, pessoa colectiva número ….., com sede na Rua ….., freguesia de ……., concelho de ….., de 20 de Janeiro de 2017. Julgo improcedente, por não provado, o pedido de condenação da Ré como litigante de má fé. Custas pela Ré. Registe e notifique.
Inconformada com a decisão, a autora/recorrente …..., interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
a) Através de despacho datado de 05/03/2020, foi decidido pelo M.mo Juiz a quo que “Estando os presentes autos em condições de serem decididos nos termos do disposto no artigo 595º, n.º 1, al. b), notifique as partes para querendo, se pronunciarem, nos termos do disposto no artigo 591º, n.º 1, b), do CPC. Prazo: 10 dias.”;
b) Nos termos do estipulado a alínea b), do n.º 1, do art.º 591º do CPC, resulta que, mesmo nos casos em que o Juiz pretenda conhecer, no todo ou parte, do mérito da causa, terá, ainda assim, de convocar audiência prévia para no âmbito desta diligência facultar a discussão de facto e de direito;
c) Como se infere do exarado no despacho acima referido, o M.mo Juiz a quo decidiu-se pela não realização da audiência prévia no autos recorridos, sem que fizesse, sequer, qualquer referência à dispensa da realização de tal diligência e, por maioria de razão, sem que apresentasse qualquer fundamentação para o que assim foi decidido, e sem que desse oportunidade às partes para se pronunciarem sobre a decisão que assim, tacitamente, foi tomada;
d) Se o juiz entende, após a fase dos articulados, que os autos contêm os elementos necessários a habilitá-lo a proferir decisão de mérito que ponha termo ao processo, deverá, nos termos e para os efeitos previstos na alínea b), do n.º 1, do art.º 591º do CPC convocar audiência prévia;
e) Face ao exposto, que a prolação do saneador sentença sem a realização de audiência prévia, consubstancia-se assim na omissão de um acto que a lei impõe, com influência na decisão da causa, enquadrável na previsão do n.º 1, do art.º 195º, do CPC e que gera a nulidade da sentença recorrida;
f) A Recorrente na contestação que deduziu nos autos levantou questões diversa daquela que, exclusivamente, foi apreciada pelo Tribunal a quo;
g) Por poderem determinar decisão diversa daquela de que se recorre, deveriam ter sido tomadas em consideração pelo Tribunal a quo, fazendo-se a respectiva apreciação na douta sentença que foi proferida no presente processo;
h) A Recorrente suscitou a aplicação da teoria da relevância e da figura do abuso de direito de ação de anulação nos autos, invocando-os como motivos que obstam à procedência da ação, porquanto, conforme se alegou, apenas será de admitir o recurso a este direito, quando os vícios sejam relevantes para o sentido tomado pela deliberação;
i) E como igualmente se alegou, no caso dos autos, não eram, uma vez que,
independentemente do valor do capital social, antes ou depois da deliberação que aprovou o seu aumento;
j) Independentemente da percentagem do capital social da sociedade Recorrente que cada um dos sócios detivesse, igualmente, antes ou depois da deliberação que aprovou o referido aumento do capital social;
k) E independentemente do sentido de voto do Recorrido, que é assim, total e absolutamente irrelevante, a deliberação que aprovou a renovação das deliberações tomadas na assembleia da Recorrente, realizada em 07/11/2016, seria aprovada, (desde logo porque, em qualquer dos casos, sempre esteve presente e/ou representado a totalidade do capital social da Recorrente, como abaixo se julga irá demonstrar);
l) Sobre a validade da procuração outorgada pelo Recorrido ao seu irmão para o representar na assembleia geral da Recorrente havida em 20/01/2017, o Tribunal a quo decidiu que a procuração apresentada, não mencionando a duração dos poderes conferidos, para efeitos de representação voluntária em assembleias gerais da Recorrente, nos termos do nº3 do artº249º do Código das Sociedades Comerciais, deixou de ser válida a partir do termo do ano de 2014;
m) O Recorrido olvidou que o n.º 1 do art.º 248º do Código das Sociedades Comerciais aplica às assembleias gerais das sociedades por quotas o disposto sobre assembleias gerais das sociedades anónimas. E, portanto, como o art.º 249º do Código das Sociedades Comerciais não aponta o que se entende por instrumento de representação voluntária, será no disposto do artº373º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais que se terá que encontrar o conceito de instrumento de representação voluntário para efeitos de representação de sócios em assembleias gerais;
n) O n.º 2 do art.º 380º do Código das Sociedades Comerciais define como instrumento de representação voluntária dos acionistas nas assembleias gerais, “documento escrito dirigido ao presidente da mesa”, mais definindo que “tais documentos ficam arquivados na sociedade pelo período obrigatório de conservação de documentos”;
o) Ou seja, o que se entende como instrumento de representação voluntária nas assembleias de acionistas é a vulgarmente denominada “carta mandadeira”, na qual determinado acionista mandata outrem para em concreta e determinada assembleia geral o representar;
p) E não procurações com amplos poderes de administração civil como aquela que o Recorrido outorgou a favor do seu representante .…..;
q) De resto, sabe-se que a procuração em causa não caduca ou se esgota com o decurso do tempo, mas, antes, tem validade enquanto não for revogada;
r) E, confessadamente, esta procuração, com amplos poderes de administração civil, apenas foi revogada a partir do dia 10 de dezembro de 2018;
s) A procuração apenas foi revogada, a partir de 10 de dezembro de 2018, produzindo efeitos desde que chegada ao poder do procurador ou desde que dele seja conhecida ou suscetível de ser conhecida (cfr. Ac da RL, datado 10.05.2011, em sede do processo 168/2002.L1-7, disponível para consulta em www.dgsi.pt);
t) Por isso, deveria ter-se concluído que, em 20/01/2017, o Recorrido estava
devidamente representado na assembleia geral da Recorrente, cujas deliberações estavam em crise nos presentes autos.
u) Presume-se que, estando o Recorrido devida e validamente representado na assembleia geral, e, não tendo a procuração sido revogada, teve pleno conhecimento das deliberações agora postas em crise. Ou, pelo menos, que teve possibilidade e oportunidade de conhecer as deliberações em data anterior a ter tido conhecimento da Réplica em sede dos autos do processo n.º ……. a correr termos no Juiz 2 do Juízo Central Cível de Sintra deste Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste;
v) Pelo que, outra decisão haveria de ter sido tomada, apontando no sentido de ser válida e bastante para representar o Recorrido nas Assembleias Gerais da Recorrente a Procuração com amplos poderes de administração civil outorgada pelo Recorrido a seu irmão;
w) Devendo, portanto, e, com o devido respeito, que é muito, revogar-se a decisão aqui em crise, substituindo-se a mesma por uma outra que decida em sentido contrário e que leve à improcedência da acção
x) O que desde já requer e propugna. Nestes termos, E, nos melhores de Direito que Vª. Exas. Venerandos Desembargadores melhor suprirão, deve a douta sentença nos autos proferida, e, agora recorrida ser revogada e, em consequência, substituir-se por outra que considere a presente acção improcedente por não provada e declare a validade das deliberações tomadas na reunião assembleia geral da Recorrente de 20 de Janeiro de 2017, assim se fazendo a costumada Justiça.
O recorrido contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.
Os autos foram aos vistos das excelentíssimas adjuntas.
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II – Questões a decidir:
Nos termos do disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4, e 639º, do CPC, as questões a decidir em sede de recurso são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas que o tribunal deve conhecer oficiosamente, não sendo admissível o conhecimento de questões que extravasem as conclusões de recurso, salvo se de conhecimento oficioso.
As questões a decidir são, assim, apurar da legalidade da não realização de audiência prévia e, caso se considere validamente dispensada esta, apurar da validade das deliberações tomadas na assembleia geral, apreciando a montante a validade da procuração outorgada pelo recorrido.
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III – Factos provados:
São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância:
1. A Sociedade R. dedica-se à atividade de Administração e exploração, comercial ou agrícola, de todo o tipo de imóveis próprios ou arrendados.
2. O A. é sócio da Ré desde 1974, na qual detém uma quota no valor de € 100,00 (cem euros) do capital social da Ré.
3. O A. intentou em 19.01.2019 ação contra a Ré para impugnar as deliberações tomadas na Assembleia Geral ocorrida a 07.11.2016 (Aumento de Capital e alteração de pacto social, nessa sequência), que corre os seus termos no Tribunal de Sintra sob o n.º …….
4.O A. impugnou as referidas deliberações com base, entre outros motivos constantes da respetiva PI, no facto de a Assembleia de 07.11.2016 ter reunido ao abrigo do artigo 54.º CSC, que implica a presença (sem possibilidade de representação) da totalidade dos sócios, sem a presença dos sócios ……, aqui A. e …..
5. A sociedade R. procedeu então à junção aos autos, com a Contestação apresentada em 06.03.2019, de cópia da Ata n.º 34 da Assembleia Geral ocorrida em 20.01.2017 e que renovou as deliberações anteriormente tomadas em 07.11.2016.
6. A Contestação da R. deu entrada nos autos no dia 06.03.2019, data na qual o aqui A. tomou conhecimento da ata da referida Assembleia Geral e da deliberação renovatória que nela terá ocorrido, uma vez que não foi convocado para a mesma.
7. Na Assembleia Geral realizada em 7.11.2016, a que se refere a Ata número 33, foi a deliberado o de aumento de capital social de Eur. 13.799,92 para Eur. 230.000,00 (aumento de Eur. 216.200,08) efetuado pelo já então gerente e sócio ……. e pela sociedade ……. da qual este último é também único administrador e acionista.
8. Antes do referido aumento, estava o capital social distribuído da seguinte forma:
a) Sócio …… (Pai do A. e do representante legal da R., com cerca de 80 anos de idade em 2016 e falecido em ….2018) – 1 quota de Eur. 2.924,98 e 1 quota de Eur. 1.800;
b) Sócia ……. - 1 quota de Eur. 2.924,98 e 1 quota de Eur. 5.849,96;
c) Sócio ……., (filho) aqui A. – 1 quota no valor de Eur. 100,00;
d) Sócio ……., (filho) – 1 quota no valor de Eur. 100,00;
e) Sócia …….,(filha) - 1 quota no valor de Eur. 100,00.
9. Após o aumento, contudo, a distribuição passou a ser a seguinte:
a) Sócio ……., (Pai) – 1 Quota de Eur. 2.924,98 e 1 Quota de Eur.1.800,00;
b) Sócia …….., (administrador único: …….) - 1 Quota de Eur. 2.924,98, 1 Quota de Eur. 5.849,96 e 1 Quota de Eur. 150.000,00;
c) Sócio ……., – 1 Quota de Eur. 100,00 e 1 Quota de Eur. 66.200,08;
d) Sócio …….,, aqui A. – 1 Quota de Eur. 100,00;
e) Sócia ……., – 1 Quota de Eur. 100,00.
10. Pelo que o gerente único e sócio da R. ……., passou, por via do referido aumento, a gerir sozinho e controlar, direta e indiretamente, cerca de 97% do capital da R..
11. A R reuniu novamente em Assembleia Geral a 20.01.2017 para efetuar uma deliberação renovatória das deliberações tomadas em 07.11.2016.
12. Na Assembleia Geral realizada em 20.01.2017, reuniram e votaram os sócios com as titularidades de quotas referidas no artigo 9. dos factos provados, tendo em conta o aumento de capital resultante das deliberações tomadas na Assembleia Geral de 07.11.2016.
13. O gerente e agora sócio maioritário da sociedade R., ……. (irmão do aqui A.), atuou e surge na Assembleia Geral de 20.01.2017:
a) ……., por si, como sócio;
b) ……., como representante do Pai de ambos, sócio …….;
c) …….,, como representante do irmão, aqui A., sócio;
d) ……., como administrador único da ……., sócia maioritária.
e) ……., como Presidente da Mesa da Assembleia Geral.
14. O gerente ……., reuniu, discutiu, conduziu os trabalhos e deliberou, como havia sucedido na Assembleia Geral anterior de 07.11.2016.
15. As representações dos sócios ……., e do aqui A. na Assembleia Geral de 20.01.2017 foram, de acordo com a Ata de deliberação renovatória, efetuadas mediante procuração cuja cópia ficou arquivada na sociedade R..
16. O A. não emitiu qualquer procuração ou instrumento de representação que permitisse, nem autorizou expressamente, seja por que via for, ……. a discutir e/ou votar, enquanto seu procurador/representante, quaisquer renovações das deliberações de 7.11.2016.
17. O A. passou uma procuração ao seu irmão ……. em 2014 por ocasião da sua ida para o Brasil em busca de trabalho e melhores condições de vida.
18. Tal instrumento de representação outorgado em maio de 2014 conferiu, sem indicação de validade, poderes ao gerente ……., para representar o A. nas Assembleias Gerais da R., mas não conferiu poderes específicos para votação de quaisquer deliberações em qualquer Assembleia Geral e muito menos para as que se pudessem reunir ao abrigo do artigo 54.º CSC, ou seja, com preterição das formalidades prévias legalmente necessárias.
19. O A. regressou a Portugal em abril de 2016, conforme bem sabia o seu irmão ……., pelo menos desde 27.10.2016, quando lhe remeteu uma carta em para morada em Portugal.
20. O. não recebeu qualquer convocatória para a Assembleia Geral de 20.01.2017 ou qualquer informação sobre a deliberação que veio a ser discutida e aprovada.
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IV – Do Mérito do Recurso:
A recorrente começou por se insurgir contra a não realização de audiência prévia por não ter feito qualquer menção à dispensa de realização de tal diligência e sem apresentar qualquer fundamentação e sem dar oportunidade às partes de se pronunciarem sobre a decisão que assim, tacitamente, foi tomada.
O despacho do tribunal recorrido, prolatado em 7 de março de 2020, com a referência 124245859, tem a seguinte redação: Estando os presentes autos em condições de serem decididos nos termos do disposto no artº 595º, nº1, alínea b), notifique as partes para, querendo, se pronunciarem, nos termos do disposto no artº 591º, nº1, b), do CPC. Prazo: 10 dias.
O supracitado artº 595º, nº1, b), do CPC, tem a seguinte redação:
1. O despacho saneador destina-se a:
(…)
b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.
Por seu turno, o invocado artº 591º, nº1, b), do CPC estatui o seguinte:
1.Concluídas as diligências resultantes do preceituado no nº2 do artigo anterior, se a elas houver lugar, é convocada audiência prévia, a realizar num dos 30 dias subsequentes, destinada a algum ou alguns dos fins seguintes:
(…)
b) Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar as exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa.
Do cotejo dos artigos 591º, 592º, e 593º, todos do CPC, retiram-se três conclusões imediatas: o primeiro estabelece o princípio geral, o da realização de audiência prévia, e os dois restantes os casos em que, respetivamente, a mesma não se realiza ou pode ser dispensada.
Como resulta da Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XII (PL 521/2012, de 22 de novembro de 2012), na génese da Lei nº 41/2013, “Há um manifesto investimento na audiência prévia, entendida como meio essencial para operar o princípio da cooperação, do contraditório e da oralidade. Tem-se presente que a audiência preliminar, instituída em 1995/1996, ficou aquém do que era esperado, mas há também a convicção de que, além da inusitada resistência de muitos profissionais forenses, certos aspetos da regulamentação processual acabaram, eles próprios, por dificultar a efetiva implantação desta audiência no quotidiano forense. (…) A audiência prévia é, por princípio, obrigatória, porquanto só não se realizará nas ações não contestadas que tenham prosseguido em regime de revelia inoperante e nas ações que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma exceção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados. (…) Numa perspetiva de flexibilidade, mas nunca descurando a assinalada visão participada do processo, prevê-se que o juiz, em certos casos, possa dispensar a realização da audiência prévia. Nessa hipótese, o juiz proferirá despacho saneador, proferirá despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas de prova, programando e agendando ainda os atos a realizar na audiência final, estabelecendo o número de sessões e a sua provável duração.” - vide AcRL 06-06-2019, processo nº 21172/16.7T8LSB.L1-2, disponível em www.dgsi.pt, tal como os demais infra citados.
Nos presentes autos, o tribunal recorrido decidiu de mérito, não estando verificada nenhuma das hipóteses legalmente contempladas de dispensa ou não realização de audiência prévia, não havendo sequer um qualquer despacho que, ao abrigo da gestão processual e da faculdade conferida pelos artigos 6º e 547º, do CPC, auscultasse prévia e especificadamente as partes sobre tal possibilidade. E só com a concordância das partes a gestão processual poderia ser feita, sendo certo que sempre deveriam ser debatidas as questões (ou dada às partes a possibilidade de o fazerem) à luz das diversas soluções em direito plausíveis.
E a questão que então se coloca é a de saber se o referido despacho acima transcrito, prolatado em 7 de março de 2020, com a referência 124245859, ainda que não fazendo menção expressa à adequação do processado e auscultando as partes sobre a sua concordância, não poderá ser entendido tacitamente como tal. E a resposta é negativa. Como se refere no AcRP de 27/09/2017, processo nº 136/16.6T8MAI-A.P1, “São aspetos distintos a intenção de conhecer de imediato do mérito e o ato em que esse conhecimento tem lugar. Se a lei permite expressamente que se conheça imediatamente do mérito na própria audiência prévia, o anúncio espúrio da intenção não pressupõe necessariamente a afirmação do local e/ou ato em que a intenção vai ser concretizada, isto é, que o vá ser na audiência prévia ou fora desta.”.
Ou seja, e em tese, há que admitir a possibilidade de o julgador, pese embora a sua intenção de num primeiro momento conhecer do mérito da causa, na sequência da auscultação das partes vir depois a ser confrontado com uma posição jurídica que não havia considerado, suscetível de o fazer infletir a sua opinião, nomeadamente quanto à possibilidade de conhecimento imediato do pedido. E sempre, no mínimo, teria de haver prévia concordância das partes para a adequação formal.
Assente a postergação de uma formalidade, importa extrair as consequências da mesma.
O regime sobre a nulidade dos atos está contido na Secção VII, Capítulo I do CPC, concretamente nos artigos 186º a 202º.
Analisados os referidos preceitos, verifica-se que nenhum deles comina a omissão da realização de audiência prévia como nulidade. Significa isto que somos reconduzidos para o regime geral supletivo do artº 195º, do CPC, segundo o qual “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
Nesta sequência, importa então saber o que se deve entender por irregularidade com influência no exame ou na decisão da causa.
Na ausência de uma definição legal, e socorrendo-nos da doutrina, verifica-se que Alberto dos Reis[1] ensinava que “Os atos de processo têm uma finalidade inegável: assegurar a justa decisão da causa; e como a decisão não pode ser conscienciosa e justa se a causa não estiver convenientemente instruída e discutida, segue-se que o fim geral que se tem em vista com a regulação e organização dos atos de processo está satisfeito se as diligências, atos e formalidades que se praticaram garantem a instrução, a discussão e o julgamento regular do pleito; pelo contrário, o referido fim mostrar-se-á prejudicado se se praticaram ou omitiram atos ou deixaram de observar-se formalidades que comprometem o conhecimento regular da causa e, portanto, a instrução, a discussão ou o julgamento dela” – vide as bem desenvolvidas considerações sobre esta temática em AcRP de 23/03/2020, processo 16238/15.3T8PRT-A.P1.
Constitui jurisprudência praticamente pacífica, e com ligeiras variações, que a circunstância de não serem as partes auscultadas sobre a intenção de adequar o processado, permitindo a possibilidade de aquelas anteciparem os atos que poderiam praticar em sede de audiência prévia, ou de pura e simplesmente realizar esta fora dos casos em que o CPC permite a sua dispensa ou em que esta não tem de se realizar, consubstancia uma irregularidade que pode influir no exame ou decisão da causa e que, por isso, se converte numa nulidade processual – vide AcRP de 27/09/2017, processo nº 136/16.6T8MAI-A.P1; AcRL de 08/10/2020, processo nº 2246/18.6T8FNC-A.L1-2; AcRL de 06/06/2019, processo nº 21172/16.7T8LSB.L1-2; AcRP de 12/11/2015, processo nº 4507/13.1TBMTS-A.P1; AcRL de 21/05/2020, processo nº 4282/18.3T8OER-A.L1-2; AcRL de 04/06/2019, processo nº 214/16.1T8MFR.L1-7; AcRL de 10/10/2019, processo nº 1970/15.0T8CSC-A.L1-2; AcRG de 01/03/2018, processo nº 9217/15.2T8VNF.G1; e AcRG de 10/07/2018, processo nº 910/13.5TBVVD-L.G1.
Nos presentes autos, não se tendo realizado a audiência prévia, fora dos casos em que a lei permite a sua dispensa ou não realização, e não tendo sido feita adequação do processado com prévia auscultação das partes sobre a sua concordância com a mesma e subsequente não realização da audiência prévia, tem de se considerar cometida nulidade processual. Esta implica a anulação dos atos que dela dependam absolutamente (artº 195º, nº2, do CPC), no caso, o saneador sentença-proferido.
Por força dessa nulidade, fica prejudicado o conhecimento das demais questões, como impõe o artº 608º, nº2, ex vi artº 663º, nº2, do CPC.
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V – Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes desta 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso interposto e declarar nulo o processado correspondente à prolação do despacho saneador-sentença, revogando-o. Mais se delibera o regresso dos autos ao momento anterior à sua prolação, prosseguindo os autos nos termos expostos com prolação de despacho a convocar as partes para audiência prévia ou, em alternativa, proferindo despacho nos termos dos artigos 6º, e 547º, do CPC, convidando as partes a pronunciar-se sobre a possibilidade de dispensa desta diligência, sobre eventuais exceções e sobre o mérito da causa.
Custas pelo recorrido.
Notifique.
Lisboa, 28-06-2021
Fernando Barroso Cabanelas
Paula Cardoso
Ana Grácio
[1] Comentário ao Código de Processo Civil, volume II, 1945, Coimbra Editora, página 486.