I - O art. 32.º, n.º 9, da CRP consagra o princípio do juiz natural, do qual decorre que o juiz que vai julgar um processo determinado rege-se por critérios legais objetivamente predeterminados, estando arredada a possibilidade de escolha do juiz pelos sujeitos processuais.
II - O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos/TEDH tem entendido que a imparcialidade se presume até prova em contrário; que a imparcialidade objetiva releva essencialmente de considerações formais e que o elevado grau de generalização e de abstração na formulação do conceito apenas pode ser testado numa base rigorosamente casuística, mediante análise, em concreto, das funções e dos atos processuais do juiz alegadamente impedido.
III - O impedimento do juiz não opera “ipso facto”, sem declaração expressa do próprio juiz ou se recusada ou não emitida, por decisão do tribunal hierarquicamente superior.
IV - O pedido de recusa de um Juiz com fundamento na sua relação judicante com a decisão proferida num determinado processo, não é motivo legalmente previsto para que se declare impedido de intervir em outro processo distinto.
V - Escorando-se o reclamado impedimento unicamente na recusa requerida noutro processo, carece de fundamento legal.
O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção criminal, acorda em conferência:
AA, denunciante no processo em epigrafe, inconformado com o despacho da Ex.mª Desembargadora, Juíza de instrução criminal nos autos, por despacho de 28/10/2019, que indeferiu a requerida constituição de assistente por não ter constituído mandatário forense, recorreu para este Supremo Tribunal que, por douto acórdão de 26 de fevereiro de 2020, decidiu rejeitar o recurso nos termos dos art.ºs 70º n.º 1, 414º n.º 2 e 420º n.º 1 al.ª b) do CPP, confirmando o despacho judicial recorrido.
Irresignado, por requerimento apresentado em 3/03/2020, arguiu “irregularidades” que imputou ao referido aresto.
Ao requerimento junta, como documento 1, petição apresenta em 17/05/2017, no processo 5241/11…, requerendo a recusa de intervenção nesses autos dos C.ºs Juízes Conselheiros BB e CC.
Redistribuído o processo em epigrafe a diferente coletivo, por acórdão de 20 de maio de 2020, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu indeferir, por falta de fundamento legal, as invocadas irregularidades e as nulidades que vinham arguidas.
B. REQUERIMENTO:
Renitente, invocando o disposto nos arts. 20º n.º 1, 32º n.º 7 e 202º n.º 2 da Constituição da República e 123º n.º 1 do CPP, vem arguir o que nomina de irregularidade, argumentando (em síntese) que:
- no requerimento de 3 de março de 2020 pediu ao relator do acórdão de 26 de fevereiro de 2020 que se declarasse “impedido por se encontrar recusado no” processo AUJ .15/2016;
- “os efeitos do impedimento” projetam-se sobre os atos já praticados pelo Juiz, fulminando-os de nulidade;
- a não pronúncia do próprio Juiz Conselheiro visado sobre o impedimento constitui irregularidade processual, “nos termos do art. 123º n.º 1 do CPP, determinante da invalidade do acórdão de 20-05-2020”.
- nenhuma decisão pode ser proferida nos autos enquanto não for “resolvida a questão do impedimento oposto ao Relator do acórdão de 26-02-2020”.
Argui ainda a inconstitucionalidade “da norma do artigo 41º n.º 2 do CPP, com o sentido de que a decisão sobre o pedido de declaração de impedimento pode ser proferida por outro juiz, ou substituída por decisão de outro tribunal”, porque, expende, infringe “os princípios consignados no artigo 203º da CRP”.
C. RESPOSTA DO M.º P.º:
A Digna Procuradora-Geral Adjunta, exercendo o contraditório, sustenta o indeferimento, por falta de fundamento legal, da invocada irregularidade por omissão de pronúncia, porque as questões suscitadas pelo Recorrente, no seu requerimento de 03/03/2020, foram devidamente apreciadas no acórdão proferido em 20/05/2020, pelo que nada mais há para conhecer.
D. OBJETO DA ARGUIÇÃO:
Sintetizando; o Recorrente, sem apontar qualquer vício formal ou substancial à própria decisão, pretende que se declare inválido o nosso acórdão de 20 de maio de 2020, simplesmente com o argumento de que o Tribunal ainda não podia decidir sobre as irregularidades que imputava ao acórdão de 26-02-2020, porque, previamente, o C.º Juiz Conselheiro desse aresto tinha de pronunciar-se sobre pretenso requerimento apresentado nos autos a peticionar o seu impedimento para intervir no processo.
Concomitantemente, antecipando a prevista falência da pretensão, invoca a inconstitucionalidade da norma do art. 41º n.º 2 do CPP, interpretado no sentido de que a declaração do pedido de impedimento pode ser suprida por outro juiz ou tribunal.
1. do impedimento:
Em primeiro lugar vejamos exatamente onde e em que termos o Requerente se refere ao pretendido impedimento do C.º Juiz Conselheiro relator do acórdão de 26/02/2020.
A propósito da invocada irregularidade que, em seu entender, radicaria em o Tribunal não ter conhecido da conclusão 2ª das alegações do seu recurso - e que mais não era que a pretensão de que se certificasse que não existia o AUJ 15/2016 – acrescenta que “essa omissão é especialmente relevante em virtude de um dos subscritores do acórdão dito de fixação de jurisprudência», ser o Exmo Relator do acórdão de 26-02-2020, e encontrar-se recusado no respetivo processo, por requerimento de 17-05.2017 conforme cópia junta (doc. 1) cujo teor aqui se dá por reproduzido, ainda não decidido. Pelo que tinha de declarar-se impedido de intervir no processo.
Não o tendo feito no momento próprio, pede-se-lhe que o faça agora (cf. artigo 41º n.º 2 do CPP)
Tal omissão é determinante da invalidade do ato de 26-02-2020.
Para prova adicional da inexistência da pretensa fixação de jurisprudência, junta cópia do requerimento apresentado no processo n.º 5241/11.2…-A.S1 em 14.08.2019 (doc. 2), ainda não decidido.”
Nesse requerimento apresentado no referido processo – no qual, a fazer fé no alegado e também pelo número, foi tirado o AUJ 15/2016 – o Requerente peticionou a recusa dos Exmos Juízes Conselheiros, Drs BB e CC “subscritores do ato praticado em 10-05-2017” invocando como suporte normativo o disposto no art. 43º nºs 1 e 3 do CPP.
Das pesquisas efetuadas apurou-se que o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 10-05-2017, - com o coletivo formado pelos Juízes Conselheiros BB (relator) CC -, apreciou e julgou requerimento de recusa apresentado no Proc. n.º 5241/11… ...ª Secção, decidindo:
“I - Segundo estabelece o n.º 4 do art. 43.º do CPP a recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis, o que significa que o mero ofendido carece de legitimidade para deduzir o incidente de recusa.
II - Após o início da audiência ou da conferência, a dedução do incidente só é admissível até à prolação da respectiva decisão, conforme preceitua a segunda parte do artigo 44°, do Código de Processo Penal, sendo extemporâneo o incidente de recusa deduzido após essa data.[1]”
Requerimento a peticionar a recusa que o Requerente diz ter reiterado em 7.12.2016.
Petições de que junta cópia não certificada – numerando-as de doc. 1 e doc. 2 -, com o requerimento de arguição de “irregularidades” opostas ao acórdão de 26-02-2020, dando-as por reproduzidos.
Desconhecendo este Coletivo a tramitação do aludido processo e não fornecendo o Recorrente informação mais completa, portanto, fazendo fé unicamente no aludido requerimento e no que o Recorrente alega nestes autos, conclui-se que peticionou então, nesse processo, a recusa daqueles C.ºs Juízes Conselheiros por terem proferido o aludido acórdão de 10.05.2017. Não consta que aí tivesse requerido que algum dos Juízes Conselheiros se declarassem impedido.
A ser assim, o que como mera hipótese, ainda que aparente, se postula, a pretendida recusa, ademais da eventual ilegitimidade do requerente, sempre seria extemporânea porque apresentada manifestamente para além do prazo consagrado no art. 44º do CPP. (identicamente ao decidido naquele acórdão).
Por outro lado, o Requerente, ao mesmo tempo que afirma que o incidente de recusa ainda não foi decidido, parece dar por assente que o C.º Juiz Conselheiro relator nestes autos foi efetivamente recusado naquele processo n.º 5241/11…, pretendendo que “tinha de declarar-se impedido de intervir no processo. Não o tendo feito no momento próprio, pede-se-lhe que o faça agora.”
Desde logo não consta que ali tenha sido deferido o pedido de recusa. Deferimento ou indeferimento da reclamada recusa que, de qualquer modo, não teria efeitos fora daquele mesmo processo.
Sabemos isso sim, pela consulta do diário da República, que o C.º Juiz Conselheiro que relatou o acórdão de 26-02-2020, tal como o C.º Conselheiro Adjunto, subscreveram o AUJ n.º 15/2016, tirado pelo Pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, no Proc. 5241/11…, mediante recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto pelo Ministério Público. O acórdão ali recorrido era do Tribunal da Relação de Lisboa e o acórdão fundamento era do Tribunal da Relação do Porto.
No vertente processo, está vedado, é legalmente inadmissível apreciar a recusa peticionada no processo. n.º 5241/11… . Está fora de cogitação este Tribunal, no vertente processo, apreciar os factos ou circunstâncias que o Requerente verteu naquele requerimento de recusa porque ali nada, rigorosamente nenhuma alusão nele se faz a qualquer intervenção do C.º Juiz Conselheiro em decisão anteriormente ao recurso de 26-02-2020, proferida nos autos em epigrafe – o proc, 24/19.4TRLSB.
Sublinha-se ainda não se compreender por que artes ou razões específicas os argumentos que então serviram para simplesmente pedir a recusa, exatamente os mesmos, aparecem agora dados por reproduzidos para fundamentar o requerimento de impedimento.
A decisão sobre a peticionada recusa naquele processo, seja qual for o seu sentido, é – repete-se -, irrelevante para o presente processo.
Amparar a pretensão de inabilitação do Juiz tão-somente em petição da recusa atravessada noutro processo, ademais de não constituir motivo legal de impedimento, encerra uma manifesta e insuperável contradição. O regime dos impedimentos no processo penal não mudou nestes cinco anos.
É incontestável que, escorando-se o reclamado impedimento unicamente na recusa pedida noutro processo, carece de fundamento legal.
O regime dos impedimentos do juiz no processo penal está estruturado em função da sua relação ou qualidade:
- pessoal ou profissional com sujeitos ou intervenientes processuais –art. 39º n.º 1;
- pessoal com outros juízes intervenientes no mesmo processo– art. 39º n.º 3;
- de interveniente processual –art.º 39º n.º 1 al.ª d) e n.º 2;e
- de intervenção judicante no processo – arts. 40º, normas citadas do CPP.
O pedido de recusa de um Juiz com fundamento na sua relação judicante com a decisão proferida num determinado processo, não é motivo legalmente previsto para que se declare impedido de intervir em outro processo distinto.
As situações catalogadas no art.º 40º têm como elemento comum a intervenção anterior do juiz do processo, ou seja, a sua intervenção em decisão judicial proferida em fase anterior do mesmo processo.
As disposições legais que estabelecem impedimentos são de interpretação restrita; devem circunscrever-se, com toda a precisão, aos casos para que foram ditadas. A jurisprudência deste Supremo Tribunal é uniforme no sentido de os impedimentos em processo penal são unicamente os catalogados nas duas disposições processuais citadas. A lei tem o cuidado de especificar as situações de cumulação de intervenção processual que podem ser suscetíveis de objetivamente gerar dúvidas ou apreensões dos destinatários da decisão – são as situações enunciadas especificadamente no art. 40.° do CPP.
Interpretação conforme à jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos/TEDH que tem entendido que a imparcialidade se presume até prova em contrário, que a imparcialidade objetiva releva essencialmente de considerações formais e que o elevado grau de generalização e de abstração na formulação do conceito apenas pode ser testado numa base rigorosamente casuística, mediante análise, em concreto, das funções e dos atos processuais do juiz alegadamente impedido.
Recorda-se, ainda que sumariamente, que os impedimentos inabilitam o juiz para exercer as suas funções no concreto processo em que as relações pessoais, funcionais ou de intervenção anterior em decisão proferida no mesmo processo se verifiquem e não “erga omnes”. A declaração de impedimento num determinado processo não se projeta, sem mais, automaticamente, sobre todo e qualquer outro processo. Não opera “ipso facto”, sem declaração expressa do próprio juiz ou se recusada ou não emitida, por decisão do tribunal hierarquicamente superior. E tem validade endoprocessual, vale no processo onde foi declarado e, neste caso com efeitos desde o momento em que deveria ter sido reconhecido. A verificar-se noutro processo também algum dos motivos legalmente previstos, a inabilitação judicante só opera mediante nova declaração do impedimento para intervir nesses autos. E assim sucessivamente e sempre em cada processo concreto. O que realmente podem repetir-se são os motivos do impedimento, que origina nova declaração da inabilidade do juiz para funcionar nesse processo. Evidentemente que o pedido de recusa ou se apresenta no processo ou a nele não existe ainda que tenha sido apresentado noutro ou outros.
Acresce que os efeitos da recusa sobre os atos do processo são bem diferentes da nulidade dos atos praticados pelo juiz inabilitado por impedimento pessoal ou funcional.
No caso a recusa, que o aqui denunciante possa ter requerido noutro qualquer processo penal do C.º Juiz Conselheiro Relator, está completamente à margem do objeto da impugnação que apresentou nestes autos. Decidida – ou não admitida – os seus efeitos circunscrevem-se ao referido processo e a mais nenhum.
Assim e em conclusão, sublinha-se a recusa do C.º Juiz Conselheiro para intervir no Proc. 5241/11… é motivo irrelevante para que pudesse declarar-se impedido de intervir no julgamento do recurso apresentado nestes autos.
O acórdão de 26-02-2020 aplicou a jurisprudência fixada no AUJ 15/2016. Mas, como se decidiu no aresto agora visado pelo Requerente, a intervenção na uniformização de jurisprudência não impede os Juízes Conselheiros de apreciar e julgar qualquer recurso de decisão em que tenha sido aplicada ou em que tenha sido afrontada. Salvo discordância fundamentada com base em novos argumentos não ponderados na fixação da jurisprudência, devem segui-la. A participação na fixação de jurisprudência num determinado processo, não se subsume à previsão do art.º 40º do CPP.
2. da irregularidade:
Dúvidas não subsistindo de que não há impedimento legalmente estabelecido que pudesse inabilitar os C.ºs Juizes Conselheiro relator e adjunto de julgar o recurso interposto pelo denunciante nestes autos. Nenhum dos dois tinha de declarar-se inábil para, funcionalmente, proferir o acórdão de 20 de fevereiro de 2020. Que, como se decidiu no aresto de 20 de maio de 2020, não enferma das irregularidades nem das nulidades arguidas pelo Recorrente.
Rememora-se que o aresto visado, apreciou detalhadamente a questão do impedimento e indeferiu-a com os fundamentos ali aduzidos e acima corroborados.
Não mais havendo a decidir, como bem salienta a Digna Procuradora-Geral Adjunta.
De conformidade com exposto, conclui-se que o aresto visado, não enferma das arguidas irregularidades, nem de qualquer outra que deva suprir-se.
3. da alegada inconstitucionalidade:
O Recorrente pretende que no aresto visado foi aplicada a norma do artigo 41º n.º 2 do CPP. E que foi interpretada e aplicada com o sentido de que a decisão sobre o pedido de declaração de impedimento pode ser proferida por outro juiz, ou substituída por decisão de outro tribunal.
Entende que essa interpretação infringe “os princípios consignados no artigo 203º da CRP”.
Realçou-se que nos autos foi requerido que o C.º Juiz Conselheiro relator do acórdão de 26-02-2020, em razão da recusa com que tinha sido visado no proc. n.º n.º 5241/11.2….-B.S1, “tinha de declarar-se impedido de intervir no processo. Não o tendo feito no momento próprio, pede-se-lhe que o faça agora”,
Sublinhou-se que o requerimento a peticionar a recusa – mas também que o juiz se declare inábil para intervir num processo -, tem efeitos no próprio processo onde foi apresentado. Verificando-se motivo de impedimento em outro ou outros terá de ser declarado ou requerido em cada um destes.
O artigo 32º n.º 9 da Constituição da República consagra o princípio do juiz natural, do qual decorre que o juiz que vai julgar um processo determinado rege-se por critérios legais objetivamente predeterminados, estando arredada a possibilidade de escolha do juiz pelos sujeitos processuais.
O aresto visado não se substituiu ao C.º Juiz Conselheiro relator do acórdão de 26 de fevereiro de 2020, nem podia substituir-se.
Limitou-se a conhecer, especificadamente, como lhe competia e não podia deixar de apreciar e decidir, de irregularidades (e nulidades) que o Recorrente imputou ao referido acórdão.
E decidiu que não enfermava da imputada irregularidade porque nem o Relator, nem o Tribunal tinham omitido o dever de conhecer questão que lhes tivesse sido direta e regular submetida no recurso que tinham que julgar e decidir. Tão incontestável assim é que a já referida cópia do requerimento apresentada no processo Pº 5241/11… só foi junta aos presentes autos depois de ter sido proferido o acórdão de 26 de fevereiro de 2020 e como reação contra a rejeição do recurso.
E não se olvide que o processo foi, depois, redistribuído.
Não foi, pois, aplicada a norma do art.º 41º n.º 2 do CPP, com o sentido indicado ou outro qualquer.
Acresce que a norma da Lei Fundamental que o Recorrente convoca não tem relevância alguma para poder suportar a invocada inconstitucionalidade.
O art. 203º (independência”) da Constituição da República consagra a independência dos tribunais, que “apenas estão sujeitos à lei”.
A independência dos tribunais e dos seus juízes é garantida pela inamovibilidade e irresponsabilidade dos juízes, nos termos do seu artigo 216º da Constituição da República.
A imparcialidade do juiz é uma garantia essencial dos cidadãos. Para questionar a imparcialidade do juiz natural e este poder apartar-se do processo exige-se a verificação dos impedimentos legalmente estabelecidos. Sustenta-se no Ac. de 21-03-2013, deste Supremo Tribunal que não é “suficiente um qualquer motivo que impressione subjetivamente o destinatário da decisão relativamente ao risco da existência de algum prejuízo ou preconceito que possa ser tomado contra si, mas, antes, que o motivo invocado tem de ser de tal modo relevante que, objetivamente, pelo lado não apenas do destinatário da decisão, mas também de um homem médio, possa ser entendido como suscetível de afetar, na aparência, a garantia da boa justiça, por poder ser visto externamente («encarado com desconfiança», …) e ser adequado a afetar (gerar desconfiança) sobre a imparcialidade.
A gravidade e a seriedade do motivo hão-de revelar-se, assim, por modo prospetivo e externo, e de tal sorte que um interessado – ou, mais rigorosamente, um homem médio colocado na posição do destinatário da decisão – possa razoavelmente pensar que a massa crítica das posições relativas do magistrado e da conformação concreta da situação, vistas pelo lado do processo (intervenções anteriores), seja de molde a suscitar dúvidas ou apreensões quanto à existência de algum prejuízo ou preconceito do juiz sobre a matéria da causa ou sobre a posição do destinatário da decisão.
Neste aspeto, a lei tem o cuidado de especificar as situações de cumulação de intervenção processual que podem ser suscetíveis de objetivamente gerar dúvidas ou apreensões dos destinatários da decisão – são as situações enunciadas especificadamente no art. 40.° do CPP.[2]”
No caso, o Recorrente não concretiza e não se consegue perceber de que maneira pode a independência dos tribunais e a exclusiva sujeição à lei pode ter sido violada com a interpretação adotada no aresto visado, e aplicada nos termos supra enunciados.
Pela sua perfeita adequação ao caso concreto, transcrevem-se o seguinte trecho do Ac. n.º 427/2013, do Tribunal Constitucional: “Ora, no presente caso, é manifesto que o objeto da primeira questão de constitucionalidade colocada não corresponde a um verdadeiro critério normativo ou sentido interpretativo, extraído da conjugação dos preceitos indicados pelo recorrente, não existindo um mínimo de correspondência entre a enunciação de tal objeto, construída pelo recorrente, e a literalidade dos preceitos indicados.
Na verdade, a formulação do objeto de recurso, plasmada no requerimento de interposição respetivo, é construída com base na menção de casuísticas circunstâncias concretas - selecionadas pelo recorrente de acordo com o seu juízo subjetivo, quanto à relevância das mesmas para apoio da tese que defende – deixando transparecer que o recorrente pretende, não a sindicância de constitucionalidade de um verdadeiro critério normativo – enquanto regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica - cujo conteúdo seja reconhecível na literalidade das disposições legais que invoca, mas a sindicância da decisão do Tribunal (…), que, analisando as circunstâncias do caso, concluiu que a situação concreta não se subsumia à previsão legal (…) do artigo 40.º do Código de Processo Penal.
Pelo exposto, face à ausência de natureza normativa do objeto desta primeira questão do recurso, conclui-se, desde já, pela inadmissibilidade do mesmo, nesta parte”[3].
Está, pois, deslocada a invocada inconstitucionalidade. E, de qualquer modo, a norma do art. 203º da CRP e os princípios nela consagrados não se mostram violados por qualquer interpretação do direito infraconstitucional adotado e aplicado no aresto de 20 de maio de 2020 proferido nestes autos.
Improcede a suscitada inconstitucionalidade.
F. DECISÃO:
Termos em que, o Supremo Tribunal de Justiça, 3ª sessão decide, por falta de fundamento legal, indeferir:
a) a irregularidade invocada;
b) a inconstitucionalidade suscitada.
*
Paulo Ferreira da Cunha (Juiz Conselheiro adjunto)
________________
[1] Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Secções Criminais, Boletim anual – 2017, pag. 230.
[2] Proc. 19/13.1YFLSB, 3ª secção, in www.dgsi.pt.
[3] Ac. de 15/07/2013, Processo n.º 121/13, 3.ª Secção
[4] Artigo 15.º-A: (Recolha de assinatura dos juízes participantes em tribunal coletivo)
A assinatura dos outros juízes que, para além do relator, tenham intervindo em tribunal coletivo, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 153.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual, pode ser substituída por declaração escrita do relator atestando o voto de conformidade dos juízes que não assinaram.