I - O direito a não ser detido, preso ou total ou parcialmente privado da liberdade não é um direito absoluto.
II - À semelhança da CEDH, a CRP, no art. 27.º, n.º 2, admite expressamente que o direito à liberdade pessoal possa sofrer restrições.
III - O habeas corpus constitui uma medida expedita perante ofensa grave à liberdade com abuso de poder, sem lei ou contra a lei. Não é um sucedâneo dos recursos ordinários, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais.
IV - A liberdade condicional, consentida pelo condenado, é uma fase de cumprimento da pena de prisão superior a 6 meses.
V - Não é uma pena nova, decretada pelo TEP, diversa da fixada pelo tribunal criminal.
VI - A liberdade condicional facultativa ao meio da pena, ademais dos requisitos formais e do consentimento, depende da concorrência de dois pressupostos substanciais: a prognose de que o condenado não recairá no cometimento de crimes; que a libertação não afete o sentimento de validade comunitária do bem jurídico violado e de vigência da proteção penal conferida, ou, noutra expressão, que “possa ser comunitariamente suportada”.
A. RELATÓRIO:
1. a petição:
AA, de 34 anos, preso em cumprimento de pena no estabelecimento prisional de …, em manuscrito que datou de 30 de junho de 2020 e endereça ao/”(a) Procurador(a) da Justiça”, inconformado com a decisão de 12 de junho passado do Tribunal de Execução de Penas de … – Juiz .., que não lhe concedeu liberdade, veio “interpor recurso” pretendendo “uma reavaliação da mesma”, rematando a peticionar que lhe “seja concedida a liberdade imediata”, seja mediante “a liberdade condicional e/ou Habeas Corpus”, sem que todavia indique o quadro normativo a que arrima a pretensão libratória.
Redigiu a petição em apreço nos seguintes termos:
Exmo(a) Sr.(a) Procurador(a) da Justiça
Venho por este meio interpor Recurso, da decisão de 12/06/2020, que decide a não concessão de liberdade condicional.
Notificação de Referência …89, sendo o parecer emitido pelo Tribunal de Execução de Penas de … .
Não havendo qualquer fundamento para a não concessão, peço por isso uma reavaliação do mesmo e/ou a aprovação da liberdade condicional, pelos motivos que passo a expor:
1) É a primeira vez que estou preso, e por isso penso que é justo a concessão do ½ da pena.
Sendo que já cumpri 3 anos e 3 meses, por uma pena única, de tráfico de drogas leves (Haxixe).
2) Fui detido dia 23 de Março de 2017, sendo que aí deixei de consumir drogas, estando hoje completamente reabilitado.
Assim no ponto 10 da Fundamentação, é referido:
“O recluso é toxicodependente, estando actualmente abstinente”. O que é humilhante e ofensivo, visto que não consumo à mais de 1000 dias, quando muito sou ”Ex-Toxicodependente”, mas o mais correcto é um recluso REABILITADO. Logo apto para a vida em sociedade;
Vejamos um exemplo, se ontem ao jantar uma pessoa bebeu um copo de vinho tinto, fará dessa pessoa um Alcoólico? E o será toda a vida, porque numa época da sua vida bebeu…
3) Desde que estou em reclusão sempre trabalhei e estudei. Trabalhei quase 2 anos na Biblioteca do E.P. de … e actualmente sou faxina da cozinha.
Estou no ensino superior, Curso de …, no Instituto Politécnico de … – … .
4) Nestes 3 anos e 3 meses sempre tive um óptimo comportamento, nunca tive qualquer castigo e/ou repreensão.
5) Estou no Regime Aberto desde dia 13 de Abril de 2020.
Já beneficiei de 1 saída jurisdicional de 3 dias.
1 Saída Administrativa de 3 dias e 1 licença de saída extraordinária “covid” de 45 dias. Sendo que esta última me foi revogada ao 18º dia, sem qualquer motivo plausível. Visto que estava a cumprir escrupulosamente com os meus deveres e concerteza me seria no final concedida a liberdade condicional ou liberdade condicional com pulseira.
Assim já estive na rua 24 dias e me comportei de uma forma honesta, civilizada e dentro dos Direitos da Lei. Logo estou mais do que preparado para a liberdade.
6) Tenho o total apoio da Família, que me aceita em casa e me vão ajudar a arranjar trabalho;
E pretendo continuar o curso e constituir Família.
7) O único ponto menos favorável em todo o meu histórico, foi em crimes com mais de dez anos, em que tive pena suspensa. Sendo que em todas estas paguei já, a mina dívida à sociedade, ora através de trabalho comunitário, compensações e/ou prescreveram no tempo. E todas elas estão arquivadas.
E depois, à altura era jovem e não tinha consciência do mal que fazia, como tenho hoje em dia, com os meus 34 anos. As pessoas mudam e cultivam-se.
Então não devo ser julgado, nem condenado pelos erros do passado, pois já paguei por isso.
Sendo que na Lei Portuguesa não existe espaço legal, para a dupla condenação. Logo em termos de reclusão sou primário. É a primeira vez que estou preso e necessito duma oportunidade, para poder reconstruir a minha vida, fazer coisas boas em prol da sociedade e de demonstrar que mudei para melhor.
5) No ponto 12 é dito; “… apesar de revelar consciência crítica face à conduta delituosa e às suas consequências, adopta uma postura desculpabilizante.”
O que não é nada esclarecedor, pois eu assumi o crime desde que fui detido e julgado no Tribunal Comarca de … .
Tenho consciência dos meus erros e de que tenho de mudar de vida, para não voltar para este triste fado da carcere.
Estou totalmente livre de vícios o que de si já é demonstrativo da vontade de mudar e quando estive de licença “covid”, estava a planificar a minha vida;
Até coloquei os meus bens, duma antiga loja de …, à venda, (que tive de 2015 a 2017), estava a ter aulas on-line e tinha reatado relações com Tios, primos e vizinhos. Estava tudo a correr às mil maravilhas.
Estava a iniciar a reinserção, que entretanto foi interrompida abruptamente, sem qualquer motivo válido.
Se já estava em casa sem monitorização, não é lógico que a menos de 1 mês da Avaliação da Liberdade Condicional, me puxem de novo para a cadeia, visto que me estava a reintegrar às mil maravilhas. E do nada, me revogam a Licença Extraordinária e 1 mês depois me cortam a Liberdade Condicional. Isto está desprogramado.
Eu sempre cumpri e muito lutei e trabalhei para me melhorar como pessoa, e deste modo não considero justa tal decisão.
Peço por isso a sua Excelência que interceda, de modo a rectificar a minha situação.
Peço que me seja concedida a liberdade imediata, até porque com a ameaça do covid-19, ninguém está livre, muito menos dentro das prisões. E eu fui condenado a prisão, não à doença, nem à morte.
Peço a minha libertação e/ou Habeas Corpus se melhor se enquadrar na Jurisdição do ilustre Supremo Tribunal de Justiça.
Sendo a prolação certa, instrutiva e educativa, para que haja uma reinserção social positiva e plena de sucesso.
Pois a reclusão não se cinge à punição de quem errou e se desviou dos caminhos da Lei, sendo sim um projecto social que pretende reeducar o cidadão, para que este se torne um exemplo de superação para a sociedade.
Assim na maior parte das vezes o reforço positivo e a premiação de quem cumpriu e tem projectos, deve ser apoiado e encorajado, não deixando que as pessoas definhem em reclusão, criminalização e estigmatização social.
Ex.mo(a) Sr.(a) Procurador(a) da Justiça
Peço a liberdade condicional e/ou Habeas Corpus, pois sou mais útil em sociedade, do que apartado dela.
2. informação judicial:
O Juiz do TEP titular do processo em epigrafe, em obediência ao disposto no artigo 223.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, exarou informação sobre as condições em que se mantem a prisão do Requerente, esclarecendo:
1 – Foi instaurado o processo n.º 183/17.0TXCBR-E com vista à eventual concessão de liberdade condicional ao condenado AA.
2 – O recluso AA cumpre a pena de 6 anos e 6 meses imposta no proc. 625/16…, pelo crime de tráfico de estupefacientes.
3 – Atingiu o meio da pena em execução no dia 23 de Junho de 2020 e atingirá, respectivamente, os 2/3, 5/6 e final da pena em execução nos dias 23 de Julho de 2021, 23 de Agosto de 2022 e 23 de Setembro de 2023.
4 – Foi proferida decisão por este Tribunal, não concedendo a liberdade condicional ao recluso pelo meio da pena em execução, por se ter considerado não estarem reunidas as condições previstas no art. 61.º/2 a) e b) do Código Penal.
5 – Na sequência da decisão referida em 4), o recluso manteve-se a cumprir a pena em execução, determinando-se a renovação da instância para apreciação da liberdade condicional, nos termos do disposto no art. 180.º/1 do CEPMPL.
É quanto entendo que cumpre informar, justificando a posição face ao peticionado.
O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) é o competente para decidir a providência liberatória em referência invocando prisão ilegalmente mantida. É, pois, este o Tribunal competente para apreciar e decidir o vertente pedido de habeas corpus.
Dos elementos com que vem instruído o processo, com relevância para a decisão do vertente pedido de habeas corpus, extraem-se os seguintes:
a) factos:
1. o Requerente, mediante pronúncia, foi julgado no processo comum colético com o n.º 625/16…, no Juízo central criminal de …. – Juiz ... e, por acórdão de 20 de abril de 2018, condenado, pela prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21º n.º 1 do DL n.º 15/93 de 22 de janeiro, na pena de 6 anos e 6 meses de prisão,
2. Impugnou a decisão perante o Tribunal da Relação de … que, por acórdão de 28 de novembro de 2018, confirmou a condenação, julgando improcedente o recurso.
3. Decisão condenatória que transitou em julgado em 2 de janeiro de 2019.
4. Da liquidação judicial da execução daquela pena de prisão que o arguido atualmente cumpre resulta:
a. Ter cumprido metade em 23/06/2020;
b. Atingirá o cumprimento de dois terços (2/3) em 23/07/2021;
c. Atingirá os cinco sextos (5/6) em 23/08/2022;
d. O termo final do cumprimento da pena ocorrerá em 23/09/2023.
5. Atualmente está recluído, a cumprir a pena de prisão em referência, no estabelecimento prisional de … .
6. No TEP de … foi instaurado o processo em epigrafe com vista à eventual concessão de liberdade condicional ao recorrente, quando atingisse a execução do meio da pena de prisão que está a cumprir.
7. O Tribunal, por sentença de 12 de junho de 2020, decidiu não conceder ao Requerente a liberdade condicional com o fundamento de ser intolerável a libertação do condenado “na presente fase do cumprimento da pena” e “também porque demonstrou, ao longo da vida ter algumas fragilidades pessoais, designadamente em relação a comportamentos criminosos e problemas aditivos”
.
b) o direito:
1. direito fundamental à liberdade pessoal:
O direito à liberdade individual ambulatória é um direito fundamental da pessoa, proclamado em instrumentos legislativos internacionais e na generalidade dos regimes constitucionais dos países civilizados.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, “considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça …”, no artigo III (3º) proclama a validade universal do direito à liberdade individual.
Proclama no artigo IX (9º) que ninguém pode ser arbitrariamente detido ou preso.
No artigo XXIX (29º) admite-se que o direito à liberdade individual sofra as “limitações determinadas pela lei” visando assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da ordem pública.
O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, no artigo 9.º consagra; “todo o indivíduo tem direito à liberdade” pessoal. Proibindo a detenção ou prisão arbitrárias, estabelece que “ninguém poderá ser privado da sua liberdade, excepto pelos motivos fixados por lei e de acordo com os procedimentos nela estabelecidos”.
Estabelece também: “toda a pessoa que seja privada de liberdade em virtude de detenção ou prisão tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, com a brevidade possível, sobre a legalidade da sua prisão e ordene a sua liberdade, se a prisão for ilegal”.
A Convenção Europeia dos Direitos Humanos/CEDH (Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais), no art. 5º reconhece que “toda a pessoa tem direito à liberdade”. Ninguém podendo ser privado da liberdade, salvo se for preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente, de acordo com o procedimento legal.
Reconhece que a pessoa privada da liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal.
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH/) “enfatiza desde logo que o artigo 5 consagra um direito humano fundamental, a saber, a proteção do indivíduo contra a interferência arbitrária do Estado no seu direito à liberdade. O texto do artigo 5º deixa claro que as garantias nele contidas se aplicam a “todos”. As alíneas (a) a (f) do Artigo 5 §1 contêm uma lista exaustiva de razões permissíveis sobre as quais as pessoas podem ser privadas de sua liberdade. Nenhuma privação de liberdade será compatível com o artigo 5.º, n.º 1, a menos que seja abrangida por um desses motivos ou que esteja prevista por uma derrogação legal nos termos do artigo 15.º da Convenção, (ver, inter alia, Irlanda v. Reino Unido, 18 de janeiro de 1978, § 194, série A n.º. 25, e A. e Others v. Reino Unido, citado acima, §§ 162 e 163)[1].
Interpreta: “no que diz respeito à «“legalidade” da detenção, a Convenção refere-se essencialmente à legislação nacional e estabelece a obrigação de observar as suas normas substantivas e processuais. Este termo exige, em primeiro lugar, que qualquer prisão ou detenção tenha uma base legal no direito interno”.
E que “a "regularidade" exigida pela Convenção pressupõe o respeito não só do direito interno, mas também - o artigo 18.º confirma - da finalidade da privação de liberdade autorizada pelo artigo 5.º, n.º 1, alínea a). (Bozano v. França , em 18 de dezembro de 1986, § 54, Série A n º 111, e Semanas v. Reino Unido, 2 de Março de 1987 § 42, Série A n º 114). No entanto, a preposição "depois" não implica, neste contexto, uma simples sequência cronológica de sucessão entre "condenação" e "detenção": a segunda também deve resultar da primeira, ocorrer "a seguir e como resultado "- ou" em virtude "-" desta ". Em suma, deve haver uma ligação causal suficiente entre elas (Van Droogenbroeck, citado acima, §§ 35 e 39, e Weeks , citado acima, § 42) [2].
Por sua vez a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia reconhece, no art. 6º, o direito à liberdade individual.
Não consagrando o habeas corpus, no art. 47º reconhece o direito de ação judicial contra a violação de direitos ou liberdades garantidas pelo direito da União.
Todavia, assinala E. Maia Costa, os textos internacionais relativos aos direitos humanos preveem genericamente um recurso para os tribunais com carácter urgente contra a privação da liberdade ilegal, mas tal garantia não se confunde com o habeas corpus[3].
A Constituição da República, no artigo 27º n.º 1, reconhece e garante do direito à liberdade individual, à liberdade física, à liberdade de movimentos.
O direito a não ser detido, preso ou total ou parcialmente privado da liberdade não é um direito absoluto.
À semelhança da CEDH, a Constituição da República, no artigo 27º n.º 2, admite expressamente que o direito à liberdade pessoal possa sofrer restrições. Podendo, qualquer pessoa, ser total ou parcialmente privado da liberdade em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança”.
2. a providência da habeas corpus:
A Constituição da República, em linha com CEDH, também de certo modo, na sequência das duas Constituições que a precedem (a de 1911 e a de 1933), aderindo à tradição anglo-saxónica[4], consagra no art. 31º, o habeas corpus como garantia extraordinária, expedita e privilegiada contra a prisão (e a detenção) arbitrária ou ilegal[5].
A privação do direito à liberdade por meio da prisão só não configura abuso de poder e, consequentemente, será legal, contendo-se nos estritos parâmetros do art. 27º n.ºs 2 e 3 da Constituição.
“Não é qualquer abuso de poder que justifica habeas corpus”. A providência de habeas corpus exige a verificação “cumulativa de dois requisitos: o abuso de poder; a existência de prisão ou detenção ilegal”. O “abuso de poder exterioriza-se nomeadamente na existência de medidas ilegais de prisão e detenção decididas em condições especialmente arbitrárias ou gravosas”[6].
A prisão é ilegal quando não tenha sido decretada pelo tribunal competente em decisão judicial (fundamentada) que aplica medida de coação verificados os respetivos pressupostos ou em sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou com a aplicação de medida de segurança; tiver sido ordenada por autoridade incompetente; tiver sido efetuada por forma irregular; ultrapassar a duração da medida de coação aplicada ou da pena concretamente fixada pelo tribunal; ocorra em locais ou estabelecimentos que não sejam os oficialmente destinados à sua execução; não respeite o regime jurídico da execução das medidas de coação ou as penas ou medidas de segurança privativas da liberdade.
Entre nós, é na Constituição Republica de 1911[7] que pela primeira vez surge consagrado o habeas corpus –no título II (Dos Direitos e Garantias Individuais), art. 3º n.º 31[8] –, por influência da Constituição brasileira de 1891[9], (transcrevendo o § 22º do artigo 72º[10]) que, por sua vez, se inspirou na constituição norte-americana[11] (se bem que o Código de Processo Penal do Brasil de 1832, já previa esta providência (artigo 340º)[12].
A Constituição de 1933 reafirmou o habeas corpus como providência excecional contra o abuso de poder, remetendo a sua regulamentação para lei especial[13] (remissão eliminada na revisão de 1971[14]).
Observando a imposição constitucional, o Decreto-Lei nº 35.043, de 20 de Outubro de 1945[15], estabeleceu o regime jurídico do habeas corpus.
Da exposição de motivos, pela consistência das justificações e da finalidade da providência transcreve-se que o habeas corpus:
“(…) consiste na intervenção do poder judicial para fazer cessar as ofensas do direito de liberdade pelos abusos da autoridade.
Providência de carácter extraordinário, só encontra oportunidade de aplicação, (…) quando o jogo normal dos meios legais ordinários deixa de poder garantir eficazmente a liberdade dos cidadãos.
O habeas corpus não é um meio de reparação dos direitos individuais ofendidos (…). É antes um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não haja qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade. (…) De outro modo tratar-se-ia de simples duplicação dos meios legais de recurso”.
Instituiu-se o habeas corpus liberatório em duas modalidades, um contra a detenção abusiva, o outro, diferenciado, para a prisão ilegal.
Segundo Adriano Moreira “o habeas corpus não tem nenhuma característica substancial, mas é apenas como que, entre os vários processos normais de tutela da liberdade, um processo de reserva para os casos em que não existe esse processo normal, ou de facto o indivíduo está impossibilitado de a ele recorrer”.
“O habeas corpus, na sua função normal, não é pois mais do que – um processo destinado a restituir a pessoa, ilegalmente privada da sua liberdade física pela autoridade, à tutela do processo comum”[16].
No entendimento de M. Cavaleiro de Ferreira, “diz-se providência extraordinária, porque os trâmites processuais e o mecanismo normal do funcionamento da administração devem, por si, ser salvaguarda suficiente para evitar a contingência de prisões ilegais[17]”.
Regime que, mantendo a conceção e a arquitetura[18], transitou para o Código de Processo Penal de 1929 – artigos 312º a 324º.
E transitou também para a atual Constituição da República, estabelecendo-se o prazo de 8 dias para a decisão da providência.
Na alteração do CPP de 1929 que se seguiu à proclamação da Constituição de 1976, operada pelo Decreto-Lei n.º 320/76 de 4 de maio, estatuiu-se que o esgotamento do prazo sem decisão, determinava a imediatamente restituição do detido ou preso à liberdade[19].
E, ainda que simplificado (concentrado em dois artigos substantivos, e outros dois procedimentais), o regime passou para o vigente Código de Processo Penal (de 1987), e que, na parte substantiva referente à prisão ilegal (art. 222º) não sofreu qualquer alteração.
O habeas corpus é, pois, uma garantia (“direito-garantia”), não um direito fundamental autónomo (“direito-direito”). O bem jurídico-constitucional que o habeas corpus visa proteger é o direito fundamental à liberdade[20] individual, permitindo reagir, imediata e expeditamente, “contra o abuso de poder, por virtude de detenção ou prisão ilegal”.
“No habeas corpus discute-se exclusivamente a legalidade da prisão à luz das normas que estabelecem o regime da sua admissibilidade”. “Procede-se necessariamente a uma avaliação essencialmente formal da situação, confrontando os factos apurados no âmbito da providência com a lei, em ordem a determinar se esta foi infringida. Não se avalia, pois, se a privação da liberdade é ou não justificada, mas sim e apenas se ela é inadmissível. Só essa é ilegal”.
“De fora do âmbito da providência ficam todas as situações enquadráveis nas nulidades e noutros vícios processuais das decisões que decretaram a prisão”
“Para essas situações estão reservados os recursos penais, (…). O habeas corpus não pode ser reconvertido num “recurso abreviado”, (…) O processamento acelerado do habeas corpus não se coaduna, aliás, com a análise de questões com alguma complexidade jurídica ou factual, antes se adequa apenas à apreciação de situações de evidente ilegalidade, diretamente constatáveis pelo confronto entre os factos sumariamente recolhidos e a lei[21].
3. regime legal e procedimento:
Dando expressão legislativa ao texto constitucional [22], o art. 222º n.º 2 do CPP estabelece que a petição de habeas corpus “deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:
a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;
b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou
c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.
Tem como denominador comum configurar situações extremas de detenção ou prisão determinadas com abuso de poder ou por erro grosseiro, patente, grave, isto é, erro qualificado na aplicação do direito.
A jurisprudência deste Supremo Tribunal vai no sentido de “os fundamentos do «habeas corpus» são aqueles que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos susceptíveis de pôr em causa a regularidade ou a legalidade da prisão”[23].
Tem sublinhado que a providência de habeas corpus constitui uma medida expedita perante ofensa grave à liberdade com abuso de poder, sem lei ou contra a lei. Não constitui um recurso sobre atos de um processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade do arguido, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais
“Atento o carácter extraordinário da providência, para que se desencadeie exame da situação de detenção ou prisão em sede de habeas corpus, há que deparar com abuso de poder, consubstanciador de atentado ilegítimo à liberdade individual – grave, grosseiro e rapidamente verificável – integrando uma das hipóteses previstas no art. 222.º, n.º 2, do CPP”[24].
O habeas corpus contra a prisão ilegal por abuso de poder é um procedimento especial, no qual se requer ao tribunal competente o restabelecimento do direito constitucional à liberdade individual, vulnerado por uma prisão ordenada, autorizada ou executada fora das condições legais ou que sendo originariamente legal se mantém para além do tempo ou da medida judicialmente decretada ou em condições ilegais.
É também um procedimento de cognição limitada e instância única no qual somente é possível valorar “a legitimidade de uma situação de privação de liberdade, a que [o tribunal] pode por fim ou modificar em razão das circunstâncias em que a prisão se produziu ou se está realizando, mas sem extrair destas -do que as mesmas têm de possíveis infracções ao ordenamento- mais consequências que a da necessária finalização ou modificação daquela situação da privação da liberdade”[25].
Visa colocar perante o Supremo Tribunal de Justiça a questão da ilegalidade da prisão em que o requerente se encontra nesse momento ou do grave abuso com que foi imposta. Apreciar se foi determinada pela entidade competente, por facto pelo qual a lei a admite, se se mantem no prazo ou pelo tempo decretado e nas condições legalmente previstas. Para o que pode ser necessário equacionar da legalidade formal ou intrínseca do ato decisório que determinou a privação de liberdade, mas não mais que isto.
Não é uma via procedimental para submeter ao STJ o reexame da decisão da instância judicial que determinou a prisão ou que a manteve, nem a sindicar eventuais nulidades ou irregularidades de que possa enfermar. Não se destina a apreciar erros de direito e a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes de privação da liberdade[26].
Na conformação constitucional e no seu desenho normativo, o habeas corpos é uma providência judicial urgente. “Visa reagir, de modo imediato e urgente, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal” decretada ou mantida com violação “patente e grosseira dos seus pressupostos e das condições da sua aplicação”[27].
O Juiz decide-a em 8 dias, em audiência contraditória –art. 31º n.º 3 da Constituição.
Conhecendo da petição de habeas corpus, o STJ, nos termos do art. 223º (procedimento) n.º 4 do CPP, delibera no sentido de:
a) Indeferir o pedido por falta de fundamento bastante;
b) Mandar colocar imediatamente o preso à ordem do Supremo Tribunal de Justiça e no local por este indicado, nomeando um juiz para proceder a averiguações, dentro do prazo que lhe for fixado, sobre as condições de legalidade da prisão;
c) Mandar apresentar o preso no tribunal competente e no prazo de vinte e quatro horas, sob pena de desobediência qualificada; ou
d) Declarar ilegal a prisão e, se for caso disso, ordenar a libertação imediata.
4. pressuposto da atualidade:
Na arquitetura traçada pela Constituição da República e na conformação normativa do CPP, a providência em apreço pressupõe a efetividade e atualidade da prisão ilegal. A doutrina vai maioritariamente neste sentido[28], havendo, contudo quem sustente que a nossa Magna Carta não exclui o denominado habeas corpus preventivo[29].
A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem sido unânime[30] na exigência da verificação do pressuposto da atualidade da prisão ilegal. No Ac. de 18/07/2014[31] sustenta-se: “A procedência do pedido de habeas corpus pressupõe, além do mais, uma actualidade da ilegalidade da prisão aferida em relação ao tempo em que é apreciado aquele pedido”.
E no Ac. de 11/02/2016[32] entendeu-se que: “A viabilidade do habeas corpus, como meio direccionado exclusivamente para a tutela da liberdade, exige uma privação de liberdade actual, não servindo, por isso, como mecanismo declarativo de uma ultrapassada situação de prisão ilegal. Do mesmo modo, também o habeas corpus não pode ser utilizado como meio preventivo de uma eventual futura prisão ilegal. Só a efectiva privação de liberdade pode fundamentar aquela providência”.
Entende-se que é esta a interpretação que melhor se conjuga com a evolução desta providência na nossa ordem constitucional. Como se referenciou, a Constituição de 1911 previa expressamente o habeas corpus preventivo, estabelecendo: “Dar-se-á o habeas corpus sempre que o individuo sofrer ou se encontrar em iminente perigo do sofrer violência, ou coacção, por ilegalidade, ou abuso de poder”. Modalidade que a Constituição de 1933 não manteve: E que a Constituição de 1976 também não adotou. Seguramente que o legislador constituinte não desconhecia o texto e, consequentemente, as modalidades daquela primeira inscrição constitucional do habeas corpus e também não ignorava a modificação conformada pela Constituição de 1933. Neste quadro histórico-constitucional certamente que, se a sua vontade tivesse sido a de admitir o habeas corpus preventivo, ter-se-ia servido de uma fórmula igual ou equivalente aquela que era dada à providência na Constituição da primeira República. Mas não adotou, nem na versão de 1976, nem nas quatro subsequentes alterações. pelo que não existe base constitucional, para sustentar o referido entendimento.
É também essa a interpretação que o legislador ordinário fez daquele comando constitucional. Como alguns autores reconhecem, no regime do Código de Processo Penal, a providência dirige-se contra a prisão ilegal, isto é, a efetiva privação da liberdade, pois que somente a atualidade da prisão ilegal pode justificar qualquer dos atos que podem decorrer do seu deferimento: mandar colocar imediatamente o preso à ordem do STJ; mandar apresentar o preso ao juiz em 24 horas; ordenar a libertação imediata.
Evidentemente que só pode libertar-se quem já está encarcerado, privado da liberdade ambulatória, seja porque a ilegalidade da prisão resulta de ter sido ordenada ou executada por entidade incompetente, seja porque o foi por facto que não admite essa medida de coação ou essa sanção, seja porque foi mantida para além do prazo legal ou judicialmente fixado ou fora das condições legalmente estabelecidas.
A colocação do preso à ordem do Supremo Tribunal de Justiça, tal como a apresentação do preso ao juiz determinado, somente tem sentido (jurídico e prático) se a pessoa está efetivamente privada da liberdade ambulatória. Não sendo assim, o habeas corpus requerido em favor da conservação da sua liberdade era-lhe penosamente prejudicial. Nessa situação (se está em liberdade), deferida que fosse a providência – e estando fora de causa a libertação imediata pela simples razão de não estar encarcerado -, tinha de ser preso para, nessa situação, ser colocado à ordem do STJ ou para ser apresentado em 24 horas ao juiz determinado. A lei não prevê, nem teria qualquer sentido, que o requerente ou beneficiário da providência seja colocado em liberdade à ordem do STJ, ou que em liberdade se apresente perante o juiz em 24 horas.
Consequentemente, se a pessoa não está presa, não se verifica um dos pressupostos nucleares da providência de habeas corpus.
5. a liberdade condicional “facultativa”:
O Cód. Penal no art. 61º (“pressupostos e duração”) nos n.ºs 2 a 4, consagra duas modalidades de liberdade condicional:
- uma, vulgarmente denominada de facultativa, aplicável a todas as penas privativas da liberdade superiores a 6 meses de prisão – n.ºs 2 e 3;
- a outra, dita obrigatória, também apelidada de automática, aplicável a penas superiores a 6 anos de prisão ou a penas em execução sucessivas que somadas, ultrapassem aquela medida (situação que não interessa ao vertente caso) – n.º 4.
A concessão da liberdade condicional dita facultativa, carece da verificação dos pressupostos legalmente estabelecidos – nos n.ºs 1 a 3:
- dois meramente formais:
- que a pena - ou penas sucessivas em execução sucessiva - ultrapasse 6 meses de prisão efetiva;
- o outro, exige o cumprimento de determinada parte da pena de prisão:
- que a parte já cumprida ultrapasse, em qualquer caso, 6 meses – n.ºs 2 e 3;
- que se tenha atingido o cumprimento de metade da pena aplicada, ou das penas em execução sucessiva - n.º 2 e 63º n.º 2;
- se encontrem cumpridos dois terços da execução da pena ou penas em execução sucessiva – n.º 3 e 63º n.º 2.
- um, voluntário, exigindo o consentimento do condenado – n.º 1;
- outros, substanciais, consistentes em que o tribunal possa:
- ao meio da pena – n,º 2:
- prever que o condenado está preparado para, em liberdade, conformar o comportamento de modo a não cometer crimes; e
- a libertação não é incompatível com a finalidade da pena aplicada consistente na defesa do ordenamento jurídico e da paz social.
- aos dois terços – n.º 3:
- prever (apenas) que o condenado está preparado para, em liberdade, conformar o seu comportamento de modo a não cometer crimes.
A natureza jurídica deste instituto do direito penal tem ocupado a doutrina que se divide entre considera-la um incidente da execução, uma modalidade de execução da pena de prisão, uma medida de segurança, uma fase de transição entre a reclusão e a vida comunitária, ou conferindo-lhe natureza híbrida.
A doutrina mais ouvida considera-a “como uma verdadeira fase de transição entre a prisão e a liberdade”[33].
Também assim o legislador, como se extrai da “Exposição de Motivos” do Código Penal (parte geral):
“É no quadro desta política de combate ao carácter criminógeno das penas detentivas que se deve ainda compreender o regime previsto nos artigos 61.º e seguintes para a liberdade condicional. Definitivamente ultrapassada a sua compreensão como medida de clemência ou de recompensa por boa conduta, a libertação condicional serve, na política do Código, um objectivo bem definido: o de criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão.
Com tal medida - que pode ser normalmente decretada logo que cumprida metade da pena (artigo 61.º, n.º 1) - espera o Código fortalecer as esperanças de uma adequada reintegração social do internado, sobretudo daquele que sofreu um afastamento mais prolongado da colectividade. Assim se compreendem, por um lado, a fixação de mínimos de duração para o período da liberdade condicional (artigo 61.º, n.º 3) e, por outro, a obrigatoriedade da pronúncia dela, decorridos que sejam cinco sextos da pena, nos casos de prisão superior a 6 anos (artigo 61.º, n.º 2). Por outro lado, a imposição de certas obrigações na concessão da liberdade (artigo 62.º, com referência aos n.ºs 2 e 3 do artigo 54.º) e a possibilidade do apoio de assistentes sociais (artigo 62.º, com referência ao artigo 55.º) atenuarão, certamente, a influência de várias "componentes exteriores da perigosidade", com o que melhor se garantirá o sucesso de uma libertação definitiva.
Com notável precisão, sustenta-se no AUJ n-º 9/2019 deste Supremo Tribunal que a liberdade condicional, incluindo a obrigatória, é uma forma de cumprir a parte final da pena de prisão efetiva.
Efetivamente, no nosso regime penal, a liberdade condicional não emerge por si mesma, originariamente da condenação. Se esta não decreta a privação da liberdade ou se, consistindo ou implicando a privação desse direito fundamental, for por tempo inferior a 6 meses, ou se superior, todavia não logra executar-se, a liberdade condicional não pode campear.
Também não tem cabimento a liberdade condicional obrigatória sempre que a privação da liberdade fixada na sentença condenatória seja igual ou inferior a 6 anos de prisão ou em caso de cumprimento sucessivo de penas, a respetiva soma, não ultrapasse essa medida.
E, em nenhuma circunstância pode impor-se a liberdade condicional – facultativa ou obrigatória -, contra a vontade do condenado.
Reforçando a conceção da natureza jurídica da liberdade condicional como uma fase de cumprimento da pena privativa da liberdade fixada em medida superior a 6 meses, importa ter presente que o legislador estabeleceu que a execução da pena de prisão “orienta-se pelo princípio da individualização do tratamento prisional”, “programado e faseado, favorecendo a aproximação progressiva à vida livre, através das necessárias alterações do regime de execução” – art.º 5º do Cód. de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEPMPL).
A preparação para o reingresso na vida em liberdade, obedece a um programa individualizado de reinserção social integrado por medidas que, gradualmente, vão propiciando ao recluso poder retomar ou adquirir as rotinas de uma pessoa livre, capaz de se reintegrar na comunidade sem cometer crimes.
Gradualismo que a concessão de liberdade condicional ilustrativamente reflete. Estabelece a lei que deve avaliar-se em três momentos, mediante a verificação de cada vez menos exigentes pressupostos:
- a primeira, ao meio da pena – art.º 61º n.º 2 -, o deferimento depende da verificação cumulativa de razões de prevenção geral e de prevenção especial;
- a segunda, aos dois terços – n.º 3 – a concessão depende apenas de razões de prevenção especial;
- a terceira, aos cinco sextos – n.º 4 –ope legis, independente da verificação de qualquer requisito substancial.
Neste quadro normativo e no pensamento do legislador, expresso na Exposição de Motivos citada, pode realmente dizer-se que a liberdade condicional, é uma etapa ou fase de cumprimento de uma longa ou relativamente longa pena de prisão, obrigatoriamente inserida no aludido gradualismo de reinserção do recluso na comunidade, contanto este consinta.
O Estado, sacrifica uma porção da finalidade preventiva geral – que, enquanto parâmetro marcante da proteção dos bens jurídicos violados, determinou a medida mínima aceitável da pena judicialmente fixada (art. 40º n.º 1 do Cód. Penal) -, para, com o consentimento do recluso, poder programar e orientar, ou pelo menos acompanhar com alguma atenção o período inicial da sua vivência novamente em liberdade. Dito de outro modo, respeitando a medida da pena judicial, aproveita-se da parte final da privação da liberdade do condenado para, com o seu consentimento, a converter num período de liberdade acompanhada que, tendo sucesso, se converterá na fase derradeira da execução da pena de prisão. É, pois, uma fase legalmente imposta, se individualmente consentida, de cumprimento – ou de experimentação da execução -, em liberdade da parte final das penas longas de prisão.
A liberdade condicional não é uma pena nova, decretada pelo TEP (que não tem competência material para condenar em penas criminais), diversa da fixada pelo tribunal criminal.
6. no caso:
i. objeto:
O Requerente afirmou que vinha “por este meio interpor Recurso, da decisão de 12/06/2020” do TEP que não lhe concedeu a liberdade condicional ao meio da pena de prisão que está a cumprir, pedindo “por isso uma reavaliação da mesma e/ou a aprovação da liberdade condicional”.
A providência de habeas corpus não é uma via de recurso ordinário, não se destinando a reexaminar o mérito da decisão judicial que decretou ou manteve a prisão de uma pessoa.
Pelo que, se o recorrente pretendia recorrer ou requereu ao Ministério Público junto do TEP que impugnasse aquela decisão judicial, são pretensões que estão à margem da vertente providência de habeas corpus, exclusivamente liberatória em que a privação da liberdade é decretada ou mantida em patente ilegalidade, com abuso de poder, e que, por conseguinte, neste procedimento não se admite.
Aqui, no presente habeas corpus o Supremo Tribunal de Justiça, mais não pode que apreciar, expeditamente e urgentemente, da legalidade da privação da liberdade do requerente à luz dos parâmetros consagrado nos arts. 27º e 31º da Constituição da República e das situações configuradas, taxativamente, no art. 222º n.º 2 do CPP.
Excluído o recurso – que o TEP nem sequer admitiu - bem -, (e que, consequentemente, não se postula tampouco ter de rejeitar-se) -, vejamos, à luz da interpretação delineada, se a privação da liberdade em que o Requerente presentemente se encontra, em cumprimento da pena de 6 anos e 6 meses de prisão em que foi condenado no processo n.º º 625/16…, no Juízo Central de …. – Juiz .., por acórdão de 20 de abril de 2018, por ter cometido, em autoria material, um crime de tráfico de estupefacientes, confirmado pela Relação de …, transitado em julgado em 2 de janeiro de 2019, se mantem para além do meio da respetiva execução, arbitrariamente e com abuso de poder.
ii. prisão mantida no prazo judicialmente fixado:
Resulta da factualidade acima exposta que a medida concreta da pena em causa – 6 anos e 6 meses de prisão -. foi decretada e fixada pela decisão judicial identificada, transitada em julgado, proferida e confirmada pelos tribunais criminais materialmente competentes.
Da liquidação dessa pena resulta que se é certo que o Requerente, detido e preso desde 23 de março de 2017, atingiu já o meio do cumprimento daquela pena em 23 de junho de 2020, está ainda distante de atingir o termo e mesmo os cindo sextos da respetiva execução.
É, assim, insofismável que a privação da liberdade e atual reclusão do Requerente em cumprimento dessa pena de prisão está, por ora, aquém do termo final da medida judicialmente fixada. Está ainda aquém do tempo de cumprimento em que operará – automaticamente -. a liberdade condicional obrigatória (se nela vier a consentir).
Conforme exposto, a liberdade condicional facultativa ao meio da pena, ademais dos requisitos formais e do consentimento – que se verificam no caso -, depende da concorrência dos dois pressupostos substanciais enunciados: a prognose de que o condenado não recairá no cometimento de crimes; e que a libertação não afete o sentimento de validade comunitária do bem jurídico violado e de vigência da proteção penal conferida, ou, noutra expressão, que “possa ser comunitariamente suportada”.
O juízo de prognose – pressuposto questionado pelo Requerente -, não pode assentar em conceções ou perceções subjetivas, nem em dados discricionariamente eleitos. Ao invés, tem de fundar-se na ponderação conjunta “[d]as circunstâncias do caso”, [d]a vida anterior do agente [d]a sua personalidade e [d]a evolução desta durante a execução da pena de prisão” – art. 61º n.º 2 al.ª a) do Cód. Penal.
Para conceder ou denegar a liberdade condicional facultativa, Importa avaliar “a evolução da personalidade do recluso durante a execução da pena, das competências adquiridas nesse período, do seu comportamento prisional e da sua relação com o crime cometido”, bem como “das necessidades subsistentes de reinserção social, das perspectivas de enquadramento familiar, social e profissional do recluso” e ainda “a necessidade de proteção da vítima” (nos crimes com vítimas identificadas) – art. 173º do CEPMPL.
Porque muitas vezes parece olvidar-se, como se não existisse ou não tivesse qualquer relevância uma das finalidades da execução das penas e medidas de segurança privativas da liberdade, convém rememorar que o cumprimento em meio estacionário visa alcançar, ao mesmo tempo – art. 2º do CEPMPL:
- “a reinserção do agente na sociedade, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes”; e
- “a proteção de bens jurídicos e a defesa da sociedade”.
Por isso mesmo, o legislador estabeleceu que só deve conceder-se a concessão da liberdade condicional ao meio da execução da pena, ou da soma das penas em cumprimento sucessivo, se concorrerem cumulativamente os dois pressupostos substancias enunciados: a reinserção social do condenado; a defesa do ordenamento jurídico.
A não verificação de um deles inviabiliza a concessão da liberdade condicional ao meio da pena.
Diferentemente do sucede com a liberdade condicional aos cinco sextos do cumprimento da pena, em que único pressuposto é o da reinserção social do condenado.
iii. falta de fundamento:
Em consonância com exposto, repete-se que na providência de habeas corpus não pode reexaminar-se a decisão judicial que não concedeu ao Requerente a liberdade condicional ao meio da pena com o fundamento na não verificação dos pressupostos substanciais legalmente exigidos. O meio processualmente adequado à reapreciação da decisão visada, questionando-se os fundamentos de facto e o mérito da decisão, é o recurso ordinário, expressamente previsto no art. 179º do CEPMPL
Aqui, nesta providência liberatória especial, resta concluir, em conformidade com o exposto, que a pena de prisão que o Requerente agora cumpre à ordem do processo onde foi condenado por decisão transitada, não se mantém atualmente com abuso de poder, não sendo ilegal.
Não se verificando no caso situação fáctica ou jurídica que possa subsumir-se às previsões normativas do art. 31º n.º 1 da Constituição da República e no art. 222º n.º 2 al.ªs a) a c) do CPP, conclui-se pelo falta de fundamento da vertente providência de habeas corpus, por - artigo 223.º, n.º 4, alínea a), do Código de Processo Penal, e pelo indeferimento da peticionada libertação imediata do requerente.
C. DECISÃO:
Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça -3ª secção criminal-, deliberando nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 223.º do CPP, decide indeferir, por falta de fundamento bastante, a petição de habeas corpus que o requerente AA apresentou nestes autos
Custas pelo Requerente, fixando-se a taxa de justiça em 4UCs (art. 8.º, n.º 9, e da Tabela III do Regulamento das Custas Judiciais).
Supremo Tribunal de Justiça, 15 de julho de 2020.
Nuno Gonçalves (Juiz Conselheiro relator)
Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira adjunta)
Pires da Graça (Presidente da secção)
________
[1] Grand Chamber, Case of AL-JEDDA v. THE UNITED KINGDOM, (Application no. 27021/08). JUDGMENT, in 7 July 2011
[2] Grand Chambre, Affaire KAFKARIS c. CHYPRE. (Requête n.º 21906/04), ARRÊT du 12 février 2008.
[3] Habeas corpus: passado, presente, futuro, revista JULGAR - N.º 29 – 2016, pag. 223.
[4] Iniciada, ou pelo menos desde o «Habeas corpus Act» de 1679.
[5] Autores e obra citada, pag. 508.
[6] Autores e obra citada, pag 508.
[7] Aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte, na sessão do 19 de Junho do 1911.
[8] 31.º Dar-se-á o habeas corpus sempre que o individuo sofrer ou se encontrar em iminente perigo do sofrer violência, ou coacção, por ilegalidade, ou abuso de poder.
A garantia do habeas corpus só se suspende nos casos do estado do sitio por sedição, conspiração, rebelião ou invasão estrangeira.
Uma lei especial regulará a extensão desta garantia e o seu processo.
[9] Jorge Miranda, O constitucionalismo liberal luso-brasileiro, Lisboa, 2001, págs. 51/52.
[10] § 22. Dar-se-ha o habeas-corpus sempre que o individuo soffrer ou se achar em imminente perigo de sofrer violencia, ou coacção, por illegalidade, ou abuso de poder.
[11] Jorge Miranda, ob. cit. pág. 48/49;
[12] E. Maia Costa, HABEAS CORPUS: PASSADO, PRESENTE, FUTURO, Revista Julgar, N.º 29 – 2016.
[13] Artigo 8º, § 4º: “Poderá contra o abuso de poder usar-se da providência excepcional do habeas corpus, nas condições determinadas em lei especial”
[14] Lei nº 3/71, de 16 de Agosto.
[15] Diário do Govêrno n.º 233/1945, Série I de 1945-10-20.
[16] Sobre o Habeas corpus, “Jornal do Fôro”, Ano 9º, nºs. 70/73, 1945, págs. 228/229.
[17] Curso de Processo Penal, vol. II, reimpressão, Lisboa, 1981, págs. 477/478.
[18] Na exposição de motivos do DL n.º 185/72 fez-se constar: “Em virtude de as garantias da legalidade da prisão deverem inserir-se no sistema do Código de Processo Penal, incluiu-se nele, substancialmente inalterada, a regulamentação do habeas corpus, a que procedera o Decreto-Lei n.º 35043, de 20 de Outubro de 1945, para dar cumprimento à parte final do § 4.º do artigo 8.º da Constituição. Quer dizer: realiza-se, neste ponto, uma pura e simples «codificação» de normas vigentes, e não qualquer mudança de conteúdo (…)”.
[19] Funcionando a secção do STJ com todos os Juízes em exercício.
[20] E. Maia Costa, publicação cit., pag. 236.
[21] E. Maia Costa, publicação cit., pag.
[22] Ao art. 31º da Constituição da República.
[23] Ac. STJ de 19-05-2010, CJ (STJ), 2010, T2, pág.196
[24] Ac. STJ de 10/08/2018, Proc. 398/17.1PASXL-B.S1, www.dgsi.pt/jstj.
[25] Tribunal Constitucional de Espanha (Sala Primeira), Sentença 21/2018 de 5.03.2018 (recurso de amparo 3766-2016), in BOE (Boletim Oficial do Estado) n.º 90 de 12.04.2018
[26] Ac. STJ de 20/09/2017, Proc. 82/17.6YFLSB, e jurisprudência aí citada (máxime: por remissão para o Ac. de 4.02.2016, proc. 529/03.9TAAVR-E.S1), ECLI:PT:STJ:2017:82.17.6YFLSB.D4.
[27] Ac. STJ de 9/08(2017 cit.
[28] Assim Maia Costa In Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Pires da Graça 2016. Almedina -2ª edição revista, pág. 854; Paulo Pinto de Albuquerque, inComentário do Código de Processo Penal, 4º ed., pág. 638.
Também assim Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada I, 2010, pág. 346 para quem, “a providência de habeas corpus é, desde a sua efectiva introdução na nossa ordem jurídica, uma providência meramente conservatória, liberatória ou desconstitutiva e não também preventiva. Reage a uma detenção ou prisão efectiva e actual, e não ao simples perigo iminente de detenção ou de prisão” -
[29] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada (artigos 1º a 107º), Coimbra Editora, 4ª ed. Revista (2007), pag. 510.
[30] Cfr Ac. de 8/02/2017, proc. 404/11.3PULSB-A; Ac. de 7/11/2012, proc. 19996/97.1TDLSB-H.S1; Ac. de 11/11/2010, proc. 610/08.8PBSXL-B.S1, in www.dgsi.pt.
[31] 211/12.6GAMDB-A.S1. in www. Dgsi.pr
[32] Proc. 741/12.0TXPRT-F, in www. dgsi.pt
[33] J. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, pag 542.