FIANÇA
SUB-ROGAÇÃO
Sumário

I – Existe uma distinção clara quanto aos regimes jurídicos do direito de regresso e da sub-rogação: na sub-rogação, há a transmissão dum direito de crédito já existente, pelo que a transmissão do crédito é acompanhada com todas as garantias e acessórios da dívida; no direito de regresso, trata-se dum direito de crédito que surge “ex novo” por força da extinção da anterior relação creditória e sempre desacompanhado das garantias e acessórios da dívida extinta.
II – No âmbito da fiança, conforme decorre do disposto no art.644.º do Código Civil, nas relações entre o devedor e o fiador, o fiador que cumprir a obrigação fica sub-rogado nos direitos do credor, na medida em que estes foram por ele satisfeitos.
III – Tal sub-rogação ocorre mesmo que aquele pagamento tenha sido obtido através de ação executiva e implica que o fiador tenha direito a ser pago pelo devedor pela totalidade daquela prestação por si efetuada.

Texto Integral

Processo n.º 767/20.0T8VLG.P1

Acordam os juízes do Tribunal Colectivo da Relação do Porto

I – Relatório
B… instaurou ação declarativa de condenação, com a forma de processo comum, contra C…, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora vencido se vincendos até efetivo e integral pagamento, bem como nas custas devidas.
Alega para tanto ter assumido a qualidade de fiadora da ré no contrato de arrendamento por esta celebrado, referente a imóvel para habitação, como descrito no artigo 1.º da petição inicial, obrigando-se solidariamente ao pagamento das rendas. Porque a ré não procedeu ao pagamento das rendas entre novembro de 2013 e março de 2014 e, em ação judicial que correu seus termos com o número 504/14.8TBGMR, foi condenada, solidariamente com a aqui autora, no pagamento das rendas em dívida e demais obrigações devidas.
Não tendo esta condenação sido cumprida voluntariamente, foi intentada contra as partes nesta causa ação executiva, para satisfação da quantia exequenda de € 10.757,95, a que acresciam despesas com a agente de execução.
No âmbito dessa ação executiva, a autora, por acordo com os exequentes, procedeu ao pagamento da quantia total de € 7.500,00, tendo a ação executiva sido declarada extinta, primeiramente quanto à aqui autora e depois também quanto à ré, pelo pagamento da quantia exequenda.
A ré, pessoal e regularmente citada, não contestou o que, nos termos do disposto no art.º 567.º, n.º 1, do Código do Processo Civil, implicou a confissão dos factos articulados pela autora.
A autora apresentou doutas alegações tendo sido, em conformidade com o preceituado no art.º 567.º, n.º 3, do Código do Processo Civil, atenta a manifesta simplicidade da causa, sido proferida decisão de mérito a qual se reproduz na parte dispositiva:
Pelo exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente e, em conformidade, condeno a ré C… a pagar à autora B… a quantia de € 3.750,00 (três mil, setecentos e cinquenta euros), acrescida de juros de mora, contados desde a citação, à taxa legal, até efetivo e integral cumprimento, absolvendo a ré do mais peticionado.
Custas pela autora e pela ré, na proporção de metade para cada uma (art.ºs 527.º, n.os 1 e 2, e 607.º, n.º 6, do Código do Processo Civil).

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A autora não se conformou com o decidido e deduziu o presente recurso, apresentando as seguintes conclusões:
- A Ré e a Autora foram condenadas solidariamente, a primeira na qualidade de devedora e a segunda na capacidade de fiadora da primeira, em processo declarativo.
- A sentença foi executada, e a quantia em divida paga pela Autora em sede de acordo de pagamento.
- A Autora procurou então a condenação da Ré no montante pago em sede executiva, atento ao instituto da fiança e da sub-rogação que deriva da solidariedade entre a Autora e Ré.
- O tribunal de primeira instância erradamente interpretou o conceito de solidariedade, aplicando-o de forma a que a Autora deixa de ser fiadora para se tornar condevedora.
- Esta errónea aplicação do direito aos factos dados como provados, ignora por completo os acontecimentos que estão na origem da obrigação ora discutida e a conformação negocial dos negócios celebrados.
- A Autora é fiadora da Ré.
- Na qualidade de fiadora da Ré, procedeu ao pagamento da quantia em divida, liberando ambas as partes, aqui se cumprindo o conceito de obrigação solidária.
- Por via da sub-rogação legal, ocorre uma verdadeira transmissão do direito de crédito do credor para o fiador, com todos os seus acessórios e garantias.
- Quando ocorre o pagamento da dívida por parte do fiador a fiança extingue-se e o antigo fiador passa a ser credor do devedor.
- Na qualidade de fiadora que satisfez a obrigação principal, requereu junto do tribunal da primeira instância, o cumprimento do direito de regresso.
- O cumprimento do direito de regresso dá-se com a condenação da Ré- devedora principal - na quantia paga pela fiadora, no caso € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros).
- O tribunal de primeira instância, adotou o entendimento que, a Autora é condevedora da Ré em partes iguais face à inexistência de convenção legal ou negocial.
- O tribunal de primeira instância deu como provado a qualidade de fiadora da Autora, ou seja, deu como provado a existência de uma convenção negocial que determina a responsabilidade da Autora e da Ré face à divida, apenas e só para, mais à frente dar essa convenção negocial como inexistente e conformar a posição da Autora como condevedora – posição esta não coincidente com a realidade dos factos.
Termina a apelante peticionando que seja dado provimento ao presente recurso, e, consequentemente, se declare nula a sentença recorrida, na parte em que qualificou a posição jurídica da Autora como sendo condevedora da Ré e substituída por outra que condene a Ré ao pagamento da quantia de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos) a titulo de direito de regresso nos termos dos arts.644º e 524º, ambos do Código Civil.

II –Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar.
O objecto do recurso é delimitado, no essencial, pelas conclusões das alegações dos recorrentes. Assim, temos em causa nos autos, essencialmente, a questão de apurar a que título – condevedora ou fiadora, no exercício do direito de regresso – tem a autora direito à quantia peticionada e, decorrentemente, qual o montante que a ré lhe deverá pagar.

III–Factos Provados
Com relevo para a solução do litígio presente neste recurso, apuraram-se os seguintes factos que este Tribunal da Relação entende ser útil agora discriminar:
1. A ora Ré, no dia 29.07.2013, tomou de arrendamento para habitação, por meio de contrato escrito, um apartamento sito na Rua …, n.º .., na União de Freguesias …, concelho de Guimarães, pelo prazo de um ano, prorrogável por sucessivos e iguais períodos, pela renda mensal de € 250,00, iniciando a sua vigência a 01.08.2013,
2. A Autora, por sua vez, assumiu naquele mesmo contrato a qualidade de fiadora da Arrendatária, ora Ré, obrigando-se solidariamente, no pagamento das rendas e demais obrigações assumidas pela ora Ré, no âmbito do referido Contrato de Arrendamento.
3. A Ré, no decorrer da vigência do contrato de Arrendamento, não procedeu ao pagamento das rendas vencidas e correspondentes aos meses compreendidos entre Novembro de 2013 e Março de 2014.
4. Consequentemente, Autora e Ré foram condenadas por sentença em ação declarativa que correu termos no Tribunal Judicial de Guimarães, 4º Juízo Cível, sob o nº de processo 504/14.8TBGMR, no pagamento das quantias peticionadas.
5. Posteriormente, em sede executiva, foi exigido o pagamento coercivo das quantias tituladas na referida sentença, que a 4 de abril de 2018, se computavam em € 10.757,95 (dez mil, setecentos e cinquenta e sete euros e noventa e cinco euros) e às quais acresciam despesas com a agente de execução.
6. No âmbito do processo executivo, por falta de bens penhoráveis conhecidos à Ré foi penhorado ¼ de um prédio urbano pertencente à ora Autora.
7. Como forma de evitar a venda judicial do bem penhorado, a ora Autora, celebrou um acordo de pagamento com os Exequentes, efetuando o pagamento da quantia de 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros).
8. Efetuado que foi o pagamento, foi levantada a penhora do bem da Autora e extinta, primeiramente quanto à ora Autora e posteriormente quanto à Ré, a instância executiva, desonerando-se ambas daquela dívida.

IV - Fundamentação de direito.
A sentença recorrida fundamenta a condenação em metade do valor peticionado pela autora/apelante na seguinte argumentação: autora e a ré eram devedoras solidárias perante os exequentes e qualquer uma delas poderia responder pela prestação integral (cfr. artigo 512.º do Código Civil).Nos termos do artigo 524.º do Código Civil, ao devedor solidário que pague a dívida (exequenda) assiste o direito de regresso contra o seu condevedor. O objeto da prestação de regresso tem de ser concretizado em função da proporção das quotas de cada condevedor sendo normalmente iguais as quotas dos condevedores, salvo se, excecionalmente, por lei ou negócio jurídico, a responsabilidade recair exclusivamente ou em maior proporção sobre algum deles – n.º 2 do artigo512.º.
Donde, sempre segundo o fundamentado na decisão da primeira instância, as quotas da solidariedade na dívida, correspondendo à quantia exequenda de €7.500,00, são iguais, já que ambas as partes nestes autos foram condenadas nessa qualidade e eram ambas demandadas na ação executiva em idêntica medida, não havendo estipulação legal ou negocial que as diferencie.
Concluiu, portanto, que caberia à autora receber da ré apenas a proporção da sua quota; satisfez a totalidade da quantia exequenda, indo além da proporção que na dívida lhe competia (de metade), tendo agora a exigir da condevedora a sua parte (a outra metade), €3.750,00.
Em sede de recurso, contrapôs a autora, como vimos acima, não dever ser assim.
Deste modo, coloca o acento tónico no facto de a Autora ser fiadora da Ré.
Foi nessa qualidade de fiadora da Ré que procedeu ao pagamento da quantia em divida; donde, por via da sub-rogação legal, ocorre uma verdadeira transmissão do direito de crédito do credor para o fiador, com todos os seus acessórios e garantias. Por isso, o cumprimento do direito de regresso apenas se cumpre com a condenação da Ré- devedora principal –ao pagamento da quantia paga pela fiadora, no caso de € 7.500,00.
Cumpre apreciar e decidir.
À luz dos factos provados, que tivemos o cuidado de recensear, a autora é, efectivamente, fiadora da ré e foi por força exclusivamente dessa garantia que foi demandada em sede executiva.
Importa, pois, enquadrar juridicamente a fiança enquanto garantia contratual e, a partir daí, discernir do regime aplicável à situação sob escrutínio.
Na fiança, alguém - o fiador – obriga-se a cumprir uma obrigação alheia caso o devedor, o afiançado, não o faça. O fiador fica pessoalmente obrigado perante o credor, consistindo esta sua obrigação em cumprir a mesma do devedor/afiançado (artigo 627º, nº 1 do Código Civil).
O terceiro assume, pois, uma obrigação perante o credor a qual se apresenta numa relação de dependência ou de subordinação em relação à obrigação do devedor.
Depende dela geneticamente - a invalidade do negócio principal acarreta a invalidade da fiança - depende dela funcionalmente - o fiador pode opor ao credor os meios de defesa que competem ao devedor - e depende dela também na sua dimensão extintiva, já que uma vez finda a obrigação principal igualmente desaparece a fiança.
A caraterística essencial da fiança reside, portanto, na acessoriedade da obrigação assumida pelo fiador (art. 627º nº 2, 632º e 651º do CC).
Esta obrigação é ainda subsidiária da obrigação do afiançado, ou seja, o fiador chamado a cumprir pode recusar fazê-lo enquanto não se mostrar excutido o património do devedor - é o benefício da excussão prévia previsto no art. 638º do CC. Sabe-se, porém, que, muitas das vezes, o fiador renuncia voluntariamente a esse benefício.
Apenas naqueles casos, que não ocorrem nos autos, em que exista uma pluralidade de fiadores quanto à mesma dívida, diz-nos o art. 649º nº 1 do CC que cada um deles responde pela satisfação integral do crédito, mas sendo, aqui sim, aplicáveis as regras das obrigações solidárias.
Por isso, há que distinguir as relações entre fiador/afiançado e entre os vários fiadores, quando existam.
No primeiro caso, o fiador que pagou fica sub-rogado nos direitos do credor (art. 644º do CC) ao passo que, quanto aos cofiadores, está em causa um direito de regresso como decorre expressamente do art. 524º do CC.
Por sua vez, existe uma distinção clara quanto aos regimes jurídicos do direito de regresso e da sub-rogação (note-se que, salvo melhor opinião, as alegações de recurso incorrem igualmente no erro de falta de destrinça quanto aos dois institutos): na sub-rogação, há a transmissão dum direito de crédito já existente, pelo que a transmissão do crédito é acompanhada com todas as garantias e acessórios da dívida; no direito de regresso, trata-se dum direito de crédito que surge “ex novo” por força da extinção da anterior relação creditória e sempre desacompanhado das garantias e acessórios da dívida extinta.
Como vimos, no âmbito da fiança, apenas naquelas situações em que co-existam vários fiadores, é que ocorre “a circunstância curiosa, mas perfeitamente lógica, de o fiador que cumpra integralmente a obrigação adquirir um duplo direito: por um lado, como fiador solvens que é, fica sub-rogado nos direitos do credor sobre o devedor; por outro lado, como co-obrigado solidário que também é, goza do direito de regresso contra os outros fiadores, de acordo com as regras das obrigações solidárias. É evidente que não pode exercer os dois direitos conjuntamente” (Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª edição, pág. 668, anotação ao art. 650º)
No caso concreto, a solução apresenta-se, a nosso ver, mais simples.
Temos um único fiador (a apelante) e a sua intervenção nestes autos ocorre no exercício de uma sub-rogação legal exercida perante a devedora.
Nestes termos, dispõe o art.644.º do Código Civil, aplicável ás relações entre o devedor e o fiador, que o fiador que cumprir a obrigação fica sub-rogado nos direitos do credor, na medida em que estes foram por ele satisfeitos.
A figura da sub-rogação encontra-se regulada no capítulo da “transmissão de créditos e de dívidas” (cfr. arts. 589º e ss do Código Civil, em particular no que concerne à sub-rogação legal o artigo 592º).
Relativamente á sub-rogação legal, dispõe o artigo 592.º do Código Civil o seguinte:
“1. Fora dos casos previstos nos artigos anteriores ou noutras disposições da lei, o terceiro que cumpre a obrigação só fica sub-rogado nos direitos do credor quando tiver garantido o cumprimento, ou quando, por outra causa, estiver diretamente interessado na satisfação do crédito.
2. Ao cumprimento é equiparada a dação em cumprimento, a consignação em depósito, a compensação ou outra causa de satisfação do crédito compatível com a sub-rogação.”
O instituto da sub-rogação legal previsto no nº 1 do art. 592º do Cód. Civil preenche-se com o pagamento por terceiro que haja garantido a dívida em causa, mesmo que esse pagamento seja efetuado coercivamente por execução da garantia referida (vide, por todos, Ac. do STJ de 14.03.2017), como aconteceu no presente caso.
Por sua vez, os efeitos da sub-rogação estão previstos no artigo 593º do CC: “O sub-rogado adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam.”
Aqui chegados, já se define a solução ao dissídio em apreço.
Implicando a fiança uma absoluta identidade qualitativa entre a prestação do devedor principal e a do fiador, tendo, face ao exarado supra e aos factos apurados, a apelante, na qualidade de fiadora, satisfeito, através da execução também contra si intentada, a obrigação cujo cumprimento imediato cabia à ré, arrendatária, ficou sub-rogada nos direitos e poderes do credor/senhorio, na medida integral do seu cumprimento.
Ou seja, relativamente á quantia que se mostra paga pela fiadora de €7.500,00 ocorreu a sub-rogação da fiadora nos direitos do credor, por força do disposto no art. 644º do Código Civil, pelo que a fiadora terá direito a ser ressarcida da totalidade daquela prestação por si efetuada.
Procede, em síntese conclusiva, o recurso deduzido.
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Resta sumariar o presente acórdão nos termos do artigo 663.º, nº7 do CPC:
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IV – Decisão
Pelo exposto, decide-se julgar totalmente procedente o recurso formulado, revogando-se a sentença apelada e condenando-se a ré a pagar à autora a quantia de €7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora, contados desde a citação, à taxa legal, até efetivo e integral cumprimento.
Custas pela apelada.

Porto, 12 de Janeiro de 2021
José Igreja Matos
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues