AÇÃO EXECUTIVA
EMBARGOS DE EXECUTADO
CONTRATO DE MÚTUO
HIPOTECA
BANCO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
ABUSO DO DIREITO
BEM IMÓVEL
VALOR DE MERCADO
AVALIAÇÃO
AQUISIÇÃO
INDEFERIMENTO LIMINAR
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
Sumário


I. No sistema português, sendo o património do devedor a garantia geral da obrigação, não obstante a execução da hipoteca, se remanescer a tal execução algum valor em dívida, poderá o credor em princípio prosseguir a execução sobre outros bens, para pagamento do valor remanescente.
II. O instituto do enriquecimento sem causa poderia estar em causa a modalidade da condictio ob rem, traduzida no enriquecimento do credor hipotecário à custa do devedor, não fora estar em causa um contrato, como o dos autos.
III. O facto de não se poder considerar inexistir causa justificativa para o alegado enriquecimento, uma vez que o prosseguimento da execução é baseado no cumprimento integral do contrato de mútuo celebrado entre as partes, não significa que não possa ser abusivo o exercício do direito por parte do credor.
IV. No caso concreto dos autos, discutindo-se a aquisição do imóvel hipotecado pelo Banco exequente por um valor bastante inferior ao valor da avaliação realizada pelo próprio Banco, resulta dos factos alegados que entre o momento da última avaliação pelo Banco Exequente e a data da adjudicação do imóvel decorreram dois anos, mas importa apurar se nesse período de tempo existiu desvalorização do imóvel que justifique a redução do preço pago, pelo que é necessário produzir prova e admitir a receção e prosseguimento dos embargos à execução.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:        


I . Relatório


1. AA., executado na execução que lhe move a Caixa Geral de Depósitos, S.A., veio deduzir embargos de executado, pedindo que se declare paga a dívida exequenda e extinta a execução, determinando-se o levantamento das penhoras subsequentes à adjudicação do imóvel.

Para tal alegou, em síntese, que:

- em 20/04/2010, celebrou com o exequente três contratos de mútuo, sendo o valor global mutuado de €127 889,84;

- constituiu a favor do exequente hipoteca sobre o imóvel descrito na ….ª Conservatória do Registo Predial …, sob o n.º … – freguesia …., para garantia do capital de €100 000,00, com o montante máximo de €140 738,00;

- o imóvel tinha sido avaliado pelo exequente em €120 000,00;

- no mesmo dia, constituiu segunda hipoteca sobre o mesmo imóvel para garantia de €21 500,00 de capital, com o montante máximo assegurado de €30 258,67;

- as quantias mutuadas destinavam-se a obras em prédio com área descoberta de 16560 m2 e coberta de 131 m2, que o executado tinha adquirido em 2006 por €60 000,00;

- entre 2010 e 2014, o executado realizou obras no prédio despendendo todo o capital mutuado, acrescida de €40 000,00;

- no início de 2014, o exequente verificou as obras realizadas e avaliou o prédio em €142 000,00;

- por falta de pagamento de prestações, o exequente instaurou execução;

- em 12/02/2016, o prédio foi adjudicado ao exequente pelo valor de €79 000,00;

- em 31/03/2017, o executado foi notificado da intenção de prosseguimento da execução;

- entende que a dívida deve considerar-se extinta uma vez que o imóvel foi avaliado em €142 000,00, em 2014.

2. O Tribunal de 1.ª instância proferiu despacho a indeferir liminarmente os embargos por manifesta inviabilidade.

3. Inconformado com esta decisão, o embargante interpôs recuso de apelação.

4. O Tribunal da Relação …. veio a julgar o recurso improcedente, e confirmou a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância.

5. Novamente inconformado, o Embargante veio interpor recurso de revista (excecional), que foi admitido pela Formação de Juízes a que alude o n.º 3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

1ª. Por sentença proferida nos autos que correram termos no Juízo de Execução da Comarca de ….., J….., sob Proc. 466/14… o tribunal de primeira instância indeferiu liminarmente os embargos de executado julgando os mesmos “manifestamente inviáveis”, ao abrigo do disposto na alínea c) do nº1 do art. 732º CPC, fundamentando a sua decisão no facto de o produto da venda realizada nos autos se ter revelado insuficiente para satisfazer o crédito exequendo, donde, não estando  parte da dívida exequenda garantida por hipoteca, essa outra parte não poderia extinguir-se, mais julgando irrelevante para o pagamento da dívida exequenda a realização do valor pecuniário do bem onerado e vendido no processo executivo, e concluindo inexistir “qualquer espécie de abuso de direito” como “qualquer enriquecimento ilegítimo do exequente” no prosseguimento da execução.

2.ª Interposto recurso de Apelação, os Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação …. acordaram, sem voto de vencido, em julgar a Apelação improcedente confirmando o despacho recorrido, secundando assim na íntegra o entendimento da primeira instância de que “inexiste pois, nestas circunstâncias qualquer espécie de abuso de direito (…). Do mesmo modo é manifesto que inexiste, no caso, qualquer enriquecimento ilegítimo do exequente, porquanto não produzindo a venda executiva do bem onerado a extinção, total imediata, da dívida que garantia, a exigência da parte remanescente, não coberta pelo produto obtido, funda-se nas obrigações voluntariamente assumidas pelo executado através da celebração dos dois contratos de mútuo dos autos, os quais, como é sabido, devem ser pontualmente cumpridos.

3.ª Confirmando o Acórdão do Tribunal da Relação …, sem voto de vencido nem fundamentação diferente, a sentença de primeira instância, e não se conformando o aqui Recorrente com o teor deste Acórdão, que se entende incorrer em violação de lei por errada interpretação das normas jurídicas aplicáveis, concretamente as plasmadas nas alínea c) do nº 1 art. 732º do CPC, alíneas e) e g) do art. 729º do CPC, e nos artigos 334 º e 473º do Código Civil, interpõe o Recorrente o presente recurso de revista excepcional ao abrigo do disposto nos nº 3 do art.º 671º, alínea b) do nº 1 e alínea b) do nº 2 do art. 672º, alíneas a) e b) do nº 1 do art. 674º e 638º todos do Código de Processo Civil porquanto se afigura estarem em causa nos presentes autos interesse de particular relevância social. Com efeito,

4.ª Sendo objecto do presente recurso a determinação da melhor aplicação do Direito perante o caso em que o exequente mutuante bancário, que, tendo avaliado o imóvel garantia do mútuo dois anos antes da venda judicial em €142.000,00, no âmbito da venda judicial se propõe adjudicar e lhe é adjudicado o mesmo por €79.000,00, faz prosseguir a acção executiva para pagamento coercivo do remanescente da dívida cujo montante “formatou” com a sua actuação no contexto da venda judicial, e concretamente se se verificam preenchidos os pressupostos do abuso de direito ou do enriquecimento sem causa em termos que determinem a extinção da execução por pagamento integral da dívida,

5.ª os interesses em causa nos presentes autos têm evidente repercussão fora dos limites da causa na medida em que intrinsecamente relacionados com valores sócio-económicos de especial importância na estrutura e relacionamento social, desde logo a protecção e tutela da confiança do cidadão que recorre ao mútuo bancário como forma de garantir o seu direito constitucional a habitação, interesses esses cuja tutela pelo Direito e pelos Tribunais tem de ser efectivada sob pena de serem comprometidas a tranquilidade e segurança relacionadas com o crédito das instituições e a aplicação do Direito. Com efeito,

6.ª O crescimento exponencial de situações de insolvência de pessoas singulares determinadas por incumprimento de créditos contraídos para aquisição de habitação, que “empurram” os mutuários para a
responsabilização pelo pagamentos de dívidas remanescentes, computadas após a venda judicial da sua habitação, que não raras vezes excedem largamente o capital inicialmente mutuado, o que sucede em grande medida em consequência directa dos valores pelos quais os próprios Bancos mutuantes adjudicam em venda judicial os imóveis que avaliaram em montantes manifestamente superiores, traz à evidência que a questão em causa no presente recurso de revista excepcional se trata de questão suscetível de afetar um grande número de pessoas, quanto à segurança jurídica do seu relacionamento com as instituições, daqui resultando manifesto que o interesse sub iudice ultrapassa significativamente os limites do caso concreto.

7.ª Donde, em conformidade com o que vem sendo julgado por este Supremo Tribunal de Justiça como integrando pressuposto de admissibilidade do recurso de revista excepcional ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art. 672º do CPC, se afigura estar inequivocamente em causa nos presentes autos interesse de particular relevância social, situação de reconhecida importância, devendo em consequência, e ao abrigo do disposto no nº 3 do art 672º do CPC ser julgado in casu verificado o pressuposto de admissibilidade previsto na alínea b) do nº 1 do art. 672º do CPC e admitido o presente recurso de revista excepcional.

8.ª Impõe se pois, como matéria de particular relevância social, que este Supremo Tribunal de Justiça julgue se age em abuso de direito, ou configura enriquecimento sem causa, o exequente mutuante que adjudicando em contexto de venda judicial o imóvel garantia que serviu de base à celebração de contrato de mútuo por valor manifestamente inferior não apenas àquele que era o seu valor de mercado nessa data, como ao valor que lhe foi atribuído pelo próprio exequente mutuante dois anos antes da venda, faz prosseguir a execução para pagamento coercivo pelo executado do remanescente da dívida assim “gerado” pelo valor diminuto pelo qual foi o bem adjudicado ao exequente, quando o exequente adjudicatário aceitara apenas dois anos antes ser manifestamente maior o seu  valor real, sendo certo que é este último e não qualquer outro o que “valor” que efectivamente passa a integrar a esfera patrimonial do exequente com a adjudicação.

9.ª Não se conforma o Recorrente com a afirmação de que se impõe dar como adquirido que o produto da venda se revelou, no caso, insuficiente para satisfazer na íntegra o crédito exequendo na medida em que tal interpretação só seria de admitir como conforme à proibição de abuso de direito e enriquecimento sem causa se o exequente houvesse adquirido para a sua esfera patrimonial (apenas), esse “produto”, isto é o valor de €79.000,00, o que não sucedeu in casu. Ao contrário,

10.ª Considerando que em 20/04/2010 o executado aqui embargante celebrou com a Exequente aqui Recorrida os três contratos de mútuo identificados nos autos, tendo por objecto a quantia total mutuada de 127.889,84€, sendo que para garantia do pagamento desta quantia constituiu a favor da Exequente hipoteca sobre prédio sito em …, descrito na …ª Conservatória do Registo Predial de …. sob nº …… da freguesia de … e na matriz predial urbana sob artigo …. sobre capital de 100.000,00€, com montante máximo assegurado de 140.738,00€,

11.ª Considerando que a exequente aceitou assim como garantia única do pagamento do total mutuado de 127.889,84€, apenas a hipoteca sobre este prédio, que para o efeito avaliaram em 2010 em 120.000,00€, como melhor resulta do clausulado do contrato de mútuo com hipoteca junto com o requerimento executivo em que pode ler-se que “a parte mutuária constitui a favor da Caixa hipoteca sobre o prédio atrás identificado, a que atribui o valor de cento e vinte mil euros (…) para garantia: a) do capital mutuado no valor de cem mil euros”,

12.ª Considerando ainda que em resultado das obras empreendidas no imóvel custeadas com o capital mutuado, mas também com capitais próprios do Recorrente, o imóvel que a Recorrida Caixa Geral de Depósitos avaliou à data da constituição das duas hipotecas em 120.000,00€ sofreu um manifesto incremento de valor de mercado, que a mesma não desconhece, resulta que

13.ª Com a adjudicação em 2016, passou a integrar a esfera patrimonial do Exequente não o valor de € 79.000,00 mas outrossim um bem cujo valor real é quase o dobro do valor pelo qual se propôs “adquirir” e adquiriu, como procurou o aqui recorrente provar nos embargos de executado liminarmente indeferidos. Isso mesmo bem sabe o Banco Exequente que, como pode ler-se no douto da Relação …, em 2014 (apenas dois anos antes da venda judicial) avaliou em €142.000,00 o imóvel que lhe foi adjudicado em 2016 pelos €79.000,00 por sim mesmo propostos.

14.ª É ao valor real de mercado do bem dado como garantia e não ao valor da adjudicação que deve ser dada primazia pela materialidade subjacente na tutela judicial, só assim podendo afirmar-se cumprido o princípio da proporcionalidade segundo o qual podem ser penhorados (apenas) os bens suficientes cujo valor permita a satisfação da dívida exequenda, pelo que demonstrada a suficiência do valor do bem que ingressou na esfera do exequente para essa satisfação, torna-se inexigível qualquer outra quantia ao abrigo do mesmo título executivo.

15.ª Por assim ser, peticionou o Recorrente a extinção da execução por pagamento da dívida exequenda dado que a desconsideração do valor real do bem e consideração apenas do valor da adjudicação conduziria a um resultado jurídico sem acolhimento no Direito porquanto “cúmplice” da criação de uma situação de enriquecimento sem causa da Recorrida em manifesta violação dos princípios jurídicos basilares do nosso Ordenamento. Instruiu o Recorrente a sua petição com um acervo de prova documental, que mais tarde complementou com a junção aos autos de um relatório de avaliação do imóvel adjudicado por €79.000,00 de que resulta a atribuição ao mesmo de um valor de mercado aproximado de €190.000,00, mais do dobro do valor da adjudicação.

16.ª O Acórdão da Relação …, que confirmou a sentença de primeira instância, ao julgar a manifesta improcedência da pretensão do Recorrente, desconsidera toda a matéria alegada, e elementos probatórios juntos, e julgando igualmente a manifesta inexistência de abuso de direito ou enriquecimento sem causa, salvo o devido respeito, incorrem em violação de lei porquanto faz uma incorrecta interpretação não apenas dos preceitos legais de natureza processual aplicáveis, concretamente, das alínea c) do nº1 art. 732º do CPC, alíneas e) e g) do art. 729º do CPC, como faz uma incorrecta interpretação dos princípios norteadores do direito civil português e do preceituado nos artigos 334º e 473º do Código Civil.

17.ª Citando o Iustre Professor Luis Menezes Leitão: “É manifestamente abusivo o comportamento do Banco (…) que concedeu crédito a consumidores, com base num valor de avaliação que ele próprio certificou, criando assim uma situação de confiança de que o valor do imóvel chegaria para pagar o empréstimo. Depois, no entanto, efectuou uma proposta de aquisição do imóvel por um valor que sabia ser insuficiente para cobrir o seu crédito, exigindo em seguida ao devedor, já desembolsado do seu único activo, que lhe liquidasse a diferença de valores, o que colocaria o devedor em insolvência. É evidente que esse comportamento do banco representa um exercício manifestamente abusivo do seu direito de crédito, consubstanciando um verdadeiro venire contra factum proprium.”

18.ª Resulta manifestamente claro, na senda do entendimento do Ilustre Professor Luis Menezes Leitão supra transcrito que considerando-se no Acórdão recorrido que o Banco Exequente avaliou o imóvel sub iudice em 2014 em €142.000,00, a apresentação pelo próprio Banco de proposta de adjudicação apenas dois anos depois pelo valor de €79.000,00 bem sabendo ser o valor do imóvel, de acordo com a sua própria avaliação, quase o dobro deste, não pode deixar de configurar uma situação de manifesto abuso de Direito na modalidade de venire contra factum proprium por parte do exequente mutuante na medida em que

19.ª ao propor-se adquirir e adquirir o imóvel por um valor que sabe ser manifestamente inferior ao que lhe atribuíra recentemente, está o mutuante a “formatar”, unilateralmente e muito além do que são os limites da boa fé e do fim social e económico do seu direito, aquele que há de ser o quantitativo do remanescente de dívida com base no qual continuará a consumir o património do mutuário.

20.ª Entendimento diferente, como o plasmado no Acórdão da Relação …., só pode ser defendido desconsiderando em absoluto que sob o prisma da materialidade subjacente, e independentemente da legalidade da venda judicial, o exequente fez integrar na sua esfera patrimonial um bem que o próprio assumiu valer tanto ou mais que a dívida exequenda, e não apenas o valor pelo qual se propôs adjudicar o mesmo, desconsideração essa que se não aceita por desconforme ao Direito.

21.ª Ao julgar a pretensão do recorrente como manifestamente improcedente a o Acórdão recorrido, salvo o devido respeito, incorreu em violação de lei nos termos da alínea a) e b) do art. 674º do CPC substantiva porquanto fez errada interpretação não apenas das normas processuais plasmadas nas alínea c) do n.º1 art. 732.º do CPC, e alíneas e) e g) do art. 729.º do CPC, como as normas substantivas plasmadas nos artigos 334º e 473º do Código Civil.

22.ª O Tribunal a quo privou, assim, ilegalmente o recorrente do direito de discutir de facto e de direito, adotando uma interpretação da alínea c) do nº1 art. 732º do CPC, inconstitucional porquanto violadora do art. 20.º, n.º 1 e 4 da Constituição.

23.ª Uma interpretação conforme à Constituição das normas plasmadas nas alínea c) do nº1 art. 732º e alíneas e) e g) do art. 729º do CPC, impunha que, ao contrário do decidido pelo tribunal a quo, fosse revogado o despacho que indeferiu liminarmente os embargos de executado apresentados, e substituído o mesmo por um outro despacho de recebimento dos embargos de executado, seguindo se os ulteriores termos processuais, permitindo ao aqui recorrente, após exercício do contraditório, produzir prova da causa de pedir que alega na sua petição inicial.

24.ª Uma interpretação conforme aos princípios subjacentes e teleologia das normas plasmadas nos artigos 334º e 473º do Código Civil impõe que o Supremo Tribunal de Justiça, ajustando o vício de violação de lei substantiva em que incorre o Acórdão recorrido, aplique ao caso sub iudice o regime jurídico decorrente no preceituado no art. 334º e 473º do Código Civil, e em consequência julge afinal que age em manifesto abuso de Direito, na modalidade de venire contra factum proprium, e enriquecendo sem causa legítima, o exequente mutuante que tendo avaliado o imóvel garantia do mútuo dois anos antes da venda judicial em €142.000,00, no âmbito da venda judicial se propõe adjudicar e lhe é adjudicado o mesmo por €79.000,00, fazendo depois prosseguir a acção executiva para pagamento coercivo do remanescente da dívida cujo montante “formatou” com a sua actuação no contexto da venda judicial, incrementando o seu ganho com empobrecimento do mutuário/ executado sem causa que o legitime,

25.ª Uma interpretação conforme aos princípios subjacentes e teleologia das normas plasmadas nos artigos 334º e 473º do Código Civil impõe que o Supremo Tribunal de Justiça, ajustando o vício de violação de lei substantiva em conformidade com a melhor interpretação do Direito aplicável que se deixa exposta, julgue extinta a obrigação por pagamento da dívida exequenda em consequência da adjudicação efectivada nos autos, e em consequência extinta a execução.

6. O Recorrido apresentou contra-alegações, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

Quanto ao empréstimo n° PT …

1.ª No exercício da sua actividade creditícia, a exequente celebrou com os executados, em 20-04-2010, um contrato de mútuo com hipoteca, mediante o qual emprestou aos executados a quantia de 100 000,00 €.

2.ª Clausulou-se no mencionado contrato que o capital mutuado venceria juros à taxa de 4,388%, alterável em função dos limites legais, em vigor na data da alteração, acrescendo, em caso de mora, a sobretaxa de 4% ao ano.

Quanto ao empréstimo n° PT …

3.ª No exercício da sua actividade creditícia, a exequente celebrou com os executados, em 20-04-2010, um contrato de mútuo com hipoteca, mediante o qual emprestou aos executados a quantia de 21 500,00 €.

4.ª Clausulou-se no mencionado contrato que o capital mutuado venceria juros à taxa de 5,433%, alterável em função dos limites legais, em vigor na data da alteração, acrescendo, em caso de mora, a sobretaxa de 4% ao ano.

 Para garantia dos capitais mutuados, acima referidos, respectivos juros e despesas, foram constituídas hipotecas sobre:

5.ª Prédio misto sito em …, freguesia …, concelho .., descrito na Conservatória do Registo Predial … sob a ficha nº .., da referida freguesia, inscrito na matriz sob os arts. ….. (U) e ….º, secção S (R).

Quanto ao empréstimo n° PT …

6.ª No exercício da sua actividade creditícia, a exequente celebrou com os executados, em 11-10-2010, um contrato de mútuo, mediante o qual emprestou aos executados a quantia de 6399,84 €.

7.ª Clausulou-se no mencionado contrato que o capital mutuado venceria juros à taxa de 9,381%, alterável em função dos limites legais, em vigor na data da alteração, acrescendo, em caso de mora, a sobretaxa de 4% ao ano.

8.ª O contrato é título executivo nos termos do art. 9º, nº 4, do DL n.º 287/93.

9.ª O ora recorrente admite de forma expressa que entrou em incumprimento do contrato ora em causa, não se atrevendo sequer a avançar um número para os montantes em mora.

10.ª Convém notar que o incumprimento do recorrente já remonta de Outubro de 2012, tendo a ora recorrida instaurado a presente ação em executiva para cobrança coerciva dos seus créditos em 31/01/2014.

11.ª A 17/07/2014, tanto o executado, ora recorrente, com a exequente, ora recorrida, foram notificados pela Agente de Execução para se pronunciarem quanto à modalidade e ao valor da venda do bem imóvel penhorado.

12.ª Após ter sido notificada, o ora requerida requereu que a venda judicial do bem imóvel penhorado se realizasse por propostas em carta fechada, tendo indicado o valor patrimonial como valor base de venda.

13.ª A 31/01/2015, executado e exequente, foram notificados da decisão da modalidade de venda, bem como do valor da mesma, no montante de € 67.373,12.

14.ª Nessa sequência, dispunha o executado, ora recorrente, de 10 dias, para discordar ou impugnar dos termos consignados na decisão da modalidade de venda e valor base, o que não fez, demonstrando, deste modo, o seu consentimento tácito.

15.ª Posteriormente, no dia designado para abertura de propostas da venda judicial do imóvel penhorado, sobre o qual tinha garantia hipotecária, a 12/02/2016, a exequente, ora recorrida, adquiriu o mesmo pelo montante de € 79.000,00, quantia bem superior ao valor base.

16.ª Na verdade, imóvel em causa foi adjudicado à ora recorrida por € 79.000,00, mas acontece que, na data da venda (11.12.2015), a respetiva dívida total já ascendia a €148.828,61.

17.ª Em bom rigor, a proposta da ora exequente foi admitida como a única de maior preço válida.

18.ª Não tendo sido apresentadas propostas mais elevadas, nem tão pouco surgiram mais interessados.

19.ª Se o valor de mercado fosse realmente muito superior ao valor anunciado para venda, outros proponentes teriam tido interesse no negócio, e outras propostas teriam sido apresentadas, conforme acontece nas inúmeras vendas judiciais que ocorrem todos os dias nos tribunais, com investidores atentos aos anúncios das mesmas.

20.ª Além de que convém não esquecer que o executado, ora recorrente, foi devidamente notificado tanto para se pronunciar quanto à modalidade de venda e valor base, quanto à decisão da mesma, nomeadamente, quanto ao valor mínimo de aquisição, não tendo apresentado qualquer reclamação nem tão pouco requerido que fosse feita alguma perícia que indicasse montante diverso.

21.ª Salvo melhor opinião, esse teria sido o momento acertado para fazer valer o que alega e não após a venda feita por valor bem superior ao valor base, dizer que valia mais.

22.ª Nesse sentido, o ora recorrente não considerou, então, aquando da decisão de venda, a ser concretizada pela admissão de propostas a partir de € 67.373,12, seria realizada por montante inferior ao valor que o imóvel hipoteticamente teria, pois que, se assim o entendesse, teria expressado a sua discordância no processo.

23.ª Se o preço proposto pela exequente, ora recorrida, para a adjudicação do imóvel fosse aquém do seu valor na ocasião, por certo que surgiriam proponentes a oferecer valores mais elevados, o que não sucedeu.

24.ª Assim, o preço a considerar foi, com observância dos normativos pertinentes, o oferecido na proposta de adjudicação da exequente e era esse valor que para todos os efeitos haveria de considerar para apurar se estava ou não satisfeita a quantia exequenda e demais despesas e, consequentemente, se a execução haveria, ou não, de prosseguir com penhora de outros bens, o que veio a suceder, precisamente, porque a quantia de € 79.000,00 não cobria a respetiva quantia exequenda e demais despesas.

25.ª Por outro lado a CGD, ora recorrida, em momento algum não se comprometeu com o executado, ora recorrente, a satisfazer o seu crédito, perante um eventual futuro incumprimento do mutuário, mediante o valor que o imóvel tivesse à data em que o mesmo fosse vendido em execução, caso esta viesse a ter lugar.

26.ª O valor pelo qual o bem imóvel, ora em causa, foi vendido revelou-se manifestamente insuficiente para fazer face ao montante em dívida, pelo que, nos termos do disposto no nº 1 do art. 752º do CPC, deverá a presente execução prosseguir com a penhora de outros bens até pagamento integral do crédito exequendo.

27.ª Não tendo havido por parte da exequente qualquer enriquecimento sem causa, nem tão pouco abuso de direito, uma vez que a ora recorrida, pretende apenas ser ressarcida do remanescente em dívida que lhe é devido nos termos da lei e do que foi contratualmente acordado entre as partes.

28.ª Acresce ainda que não há abuso de direito da ora recorrida, enquanto exequente ao apresentar proposta aquisitiva por valor bastante superior ao valor anunciado para venda nos autos e aceite pelas partes, apesar de aquando da constituição das hipotecas se prevesse valor superior com as obras integralmente realizadas.

29.ª No caso em concreto, não se verificam os pressupostos do art. 334º do CC para o abuso de direito, não tendo a ora recorrida, no exercício do seu direito excedido manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

30.ª Face a tudo o que antecede, resulta claro que o presente recurso não passa de puro artifício dilatório, sem qualquer fundamento que o sustente, através do qual o ora recorrente tem o intuito de continuar adiar ad aeternum o pagamento das responsabilidades a que se encontra adstrito.

E concluiu: “deve o recurso de revista ser julgado improcedente e não provado, mantendo-se inteiramente o doutamente decidido no Acórdão recorrido”.

7. Cumpre apreciar e decidir.


II Delimitação do objeto do recurso

Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pelo Recorrente, decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito à questão de saber se se verifica o abuso do direito ou o enriquecimento sem causa.


III Fundamentação

1. Os factos:

1.1. Em 24/04/2017, o executado opôs-se à execução mediante embargos, alegando, em síntese, que:

- em 20/04/2010, celebrou com o exequente três contratos de mútuo, sendo o valor global mutuado de € 127.889,84;

- constituiu a favor do exequente hipoteca sobre o imóvel descrito na 1.ª CRP …, sob o n.º …-freguesia …, para garantia do capital de € 100.000, com o montante máximo assegurado de € 140.738;

- o imóvel tinha sido avaliado pelo exequente em € 120.000;

- no mesmo dia, constituiu segunda hipoteca sobre o mesmo imóvel para garantia de € 21.500 de capital, com o montante máximo assegurado de € 30.258,67;

- as quantias mutuadas destinavam-se a obras em prédio com área descoberta de 16560 m2 e coberta de 131 m2, que o executado tinha adquirido em 2006 por € 60.000;

- entre 2010 e 2014, o executado realizou obras no prédio despendendo todo o capital mutuado, acrescido de € 40.000;

- no início de 2014, o exequente constatou as obras realizadas e avaliou o prédio em € 142.000;

- por falta de pagamento de prestações, o exequente instaurou execução;

- em 12/02/2016, o prédio foi adjudicado ao exequente pelo valor de € 79.000;

- em 31/03/2017, o executado foi notificado da intenção de prosseguimento da execução;

- entende que a dívida deve considerar-se extinta uma vez que o imóvel foi avaliado em € 142.000, em 2014.

Termina pedindo que se declare paga a dívida exequenda e extinta a execução, determinando-se o levantamento das penhoras subsequentes à adjudicação do imóvel.

1.2. Em 16/02/2019, foi proferido despacho de indeferimento liminar por manifesta inviabilidade.

Dele consta, entre o mais, o seguinte:

«(…) Em 7 de fevereiro de 2014, o agente de execução registou a penhora sobre aquele prédio. 

Não foram reclamados créditos por apenso à execução.  

Em 12 de fevereiro de 2016, foi aceite a proposta da exequente de compra do referido imóvel pelo preço de €79.000,00 (setenta e nove mil euros).  

Por despacho de 3 de julho de 2017 determinou-se a suspensão de todas as diligências de penhora em curso, incluindo os descontos no vencimento do executado, por não ter sido liquidada, após a venda, a responsabilidade do executado, necessária para apurar o remanescente da quantia exequenda em dívida. 

Por despachos de 9 de maio de 2018 e 4 de dezembro de 2018 determinou-se o prosseguimento da execução para cobrança da quantia de €51.095,04 (cinquenta e um mil e noventa e cinco euros e quatro cêntimos). 

Importa começar por salientar que se foram anteriormente penhorados determinados bens e ou direitos e se a ação executiva prosseguiu a sua tramitação com a penhora de novos bens ou direitos, em virtude da insuficiência do produto da venda do bem ou direito inicialmente penhorado, não é no âmbito dos embargos de executado que cabe conhecer da legalidade do processado relativo à penhora anterior e subsequente venda executiva. 

Com efeito, a lei prevê mecanismos processuais específicos de reação, incluindo em relação à venda executiva, fixando prazos, perentórios, para a sua utilização, pelo que, decorridos tais prazos, sem que tenha sido feito uso daqueles mecanismos, fica definitivamente precludido o direito de suscitar-se a apreciação das questões que podiam e deviam ter sido então invocadas, solução ditada por razões óbvias de certeza e segurança jurídica. 

Vale isto por dizer que, no caso, o processado relativo à venda executiva do imóvel hipotecado deve considerar-se consolidado, em definitivo, importando dar, por isso, como adquirido que o produto daquela venda se revelou, no caso, insuficiente para satisfazer, na íntegra, o crédito exequendo. 

Já no que concerne à extinção do remanescente da dívida, por via da realização da venda do imóvel hipotecado, a questão terá que se centrar, a nosso ver, na dívida provida da respetiva garantia, certo que uma parte dela não estava garantida pelas hipotecas, o que significa que essa parte nunca poderia extinguir-se só porque tal imóvel foi vendido através da execução. 

Para solucionar tal questão, circunscrita, portanto, à extinção da totalidade da dívida provida efetivamente de garantia, importa atentar no enquadramento jurídico que a seguir se desenvolve.  

“Pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor suscetíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios” (artigo 601.º do Código Civil).

“Não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos” (artigo 604.º, n.º 1, do Código Civil).  

“São causas legítimas de preferência, além de outras admitidas na lei, a consignação de rendimentos, o penhor, a hipoteca, o privilégio e o direito de retenção” (artigo 604.º, n.º 2, do Código Civil). 

“A hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo” (artigo 686.º, n.º 1, do Código Civil). 

“O devedor que for dono da coisa hipotecada tem o direito de se opor não só a que outros bens sejam penhorados na execução enquanto se não reconhecer a insuficiência da garantia, mas ainda a que, relativamente aos bens onerados, a execução se estenda além do necessário à satisfação do direito do credor” (artigo 697.º do Código Civil. 

“Quando, por causa não imputável ao credor, a coisa hipotecada perecer ou a hipoteca se tornar insuficiente para segurança da obrigação, tem o credor o direito de exigir que o devedor a substitua ou reforce; e, não o fazendo este nos termos declarados na lei de processo, pode aquele exigir o imediato cumprimento da obrigação ou, tratando-se de obrigação futura, registar hipoteca sobre outros bens do devedor” (artigo 701.º, n.º 1 do Código Civil). 

“Não sendo a obrigação voluntariamente cumprida, tem o credor o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do devedor, nos termos declarados neste código e nas leis de processo” (artigo 817.º do Código Civil).  “Salvo nos casos especialmente previstos na lei, o exequente adquire pela penhora o direito de ser pago com preferência a qualquer outro credor que não tenha garantia real anterior” (artigo 822.º, n.º 1 do Código Civil).

“A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida” (artigo 824.º, n.º 1, do Código Civil). 

“Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com exceção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo” (artigo 824.º, n.º 2, do Código Civil).

“Os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respetivos bens” (artigo 824.º, n.º 3, do Código Civil). 

“Executando-se dívida com garantia real que onere bens pertencentes ao devedor, a penhora inicia-se pelos bens sobre que incida a garantia e só pode recair noutros quando se reconheça a insuficiência deles para conseguir o fim da execução” (artigo 752.º, n.º 1, do CPC). 

Do conjunto destes dados do direito positivo vigente decorre que a hipoteca é um direito real de garantia que confere ao credor uma causa legítima de preferência, no confronto de outros credores, para ser pago pelo valor pecuniário do bem onerado em garantia.  

Trata-se, portanto, de um benefício concedido ao credor, em reforço da sua posição jurídica e não da posição jurídica do devedor, que apenas se pode opor a que outros bens sejam penhorados enquanto não se reconhecer a insuficiência da garantia e, relativamente aos bens onerados, a que a execução se estenda além do necessário à satisfação do direito do credor.

Por outro lado, a lei substantiva prevê as causas típicas de extinção das obrigações (v.g., cumprimento, dação em cumprimento, consignação em depósito, compensação, novação, remissão, confusão), não associando à realização do valor pecuniário do bem onerado a produção, automática e imediata, do efeito extintivo da dívida que garantia, independentemente do seu montante. 

Ademais, a lei adjetiva possibilita a penhora de outros bens do devedor logo que se reconheça a insuficiência do bem onerado para atingir o fim da execução, ou seja, o pagamento integral do montante do crédito exequendo. 

Assim sendo, e salvo melhor entendimento, não se vislumbra que esgotada a função típica da hipoteca, reconhecida pela lei substantiva (v.g., preferência de pagamento, para segurança da obrigação), o credor esteja inibido de fazer atuar a garantia geral do seu crédito, penhorando outros bens do devedor, até integral e efetivo pagamento da dívida, já que tal consubstancia apenas e tão só o exercício normal e inteiramente legítimo da sua posição jurídica substantiva e processual (Cfr., entre outros, Acs. da RL de 11.10.2012, proc. 1417/08.8TCSNT.L1-2, de 29.10.2013, proc. 181/12.OTBMC.L1-7, de 12.12.2013, proc. 23703/09.0T2SNT-B.L1-6, e de 10.11.2016, proc. 2064/09.2 T2SNT.L1-6, e da RC de 01.03.2016, proc. 133/14.6TBPCV.C1, www.dgsi.pt). 

Inexiste, pois, nestas circunstâncias, qualquer espécie de abuso de direito, certo que tal pressupõe a ofensa patente, clamorosa, flagrante de princípios estruturantes da ordem jurídica, atuando, assim, como válvula de segurança, em ordem a repor desequilíbrios desconformes com a desejável coerência e unidade do sistema jurídico. 

Do mesmo modo, é manifesto que inexiste, no caso, qualquer enriquecimento ilegítimo do exequente, porquanto não produzindo a venda executiva do bem onerado a extinção, total e imediata, da dívida que garantia, a exigência da parte remanescente, não coberta pelo produto obtido, funda-se nas obrigações voluntariamente assumidas pelo executado através da celebração dos dois contratos de mútuo dos autos, os quais, como é sabido, devem ser pontualmente cumpridos (Cfr.,, entre outros, os citados Acs. da RL de 12.12.2013, proc. 23703/09.0T2SNT-B.L1-6, e da RC de 01.03.2016, proc. 133/14.6TBPCV.C1). 

Improcedem, por isso, manifestamente, os embargos de executado em apreço, o que constitui fundamento de indeferimento liminar imediato, nos termos do disposto no artigo 732.º, n.º 1, alínea c), do CPC. 

Decisão: pelo exposto, indefere-se liminarmente os presentes embargos de executado, porque manifestamente inviáveis. (…)»


2. Do abuso do direito e do enriquecimento sem causa

No Acórdão recorrido, defendeu-se que a venda judicial de um imóvel por preço inferior ao da última avaliação em cerca de 40%, tendo a venda seguido os regulares trâmites, não permite considerar abusiva a atuação do exequente. Quanto ao alegado enriquecimento sem causa, considerou-se que na situação dos autos existe causa para o eventual enriquecimento do exequente – venda judicial válida –, pelo que o instituto nunca teria aplicação.

O Recorrente alega, ao invés, que age em manifesto abuso de Direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, e enriquecendo sem causa legítima, o exequente mutuante que tendo avaliado o imóvel garantia do mútuo dois anos antes da venda judicial em €142.000,00, no âmbito da venda judicial se propõe adjudicar e lhe é adjudicado o mesmo por €79.000,00, fazendo depois prosseguir a ação executiva para pagamento coercivo do remanescente da dívida cujo montante «formatou» com a sua atuação no contexto da venda judicial, incrementando o seu ganho com empobrecimento do mutuário/ executado sem causa que o legitime.

Como se entendeu recentemente no Acórdão do STJ de 30-06-2020 (Revista n.º 392/14.4T8CHV-A.G1.S1), o abuso de direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil, configurando uma exceção perentória que impede a realização coativa da prestação, também constitui fundamento de oposição à execução, nos termos da al. g) do artigo 729.º do Código de Processo Civil.

Como foi referido no Acórdão da Formação que admitiu o presente recurso na sequência da anterior crise financeira, tem sido debatida, entre nós e em países que nos são político-culturalmente próximos, a possibilidade de quem contraiu uma dívida para aquisição de habitação entregar o bem hipotecado e saldar assim a sua dívida.

 A crise económica que teve origem nos EUA em 2008 e o sobreendividamento das famílias fez aumentar exponencialmente o número de execuções que têm por objeto dívidas decorrentes de empréstimos hipotecários para compra de habitação. Sendo certo que são frequentes os casos em que o valor obtido pelo credor no processo executivo após a venda do bem hipotecado, é insuficiente para a satisfação integral da responsabilidade do devedor e, por isso, é também frequente o prosseguimento desses processos – mesmo após ter tido lugar a venda do bem hipotecado – para a satisfação integral do crédito. Porém, as soluções encontradas divergem consoante os sistemas jurídicos.

Num grande número de Estados norte-americanos, não vigora um sistema de responsabilidade universal do devedor, caracterizando-se os empréstimos hipotecários (mortgage loan) como hipotecas “non recourse”, em que o mutuário outorga ao credor hipotecário o poder de promover a venda do bem hipotecado, mas limitando-se a responsabilidade do devedor ao valor do bem, não respondendo por qualquer valor remanescente que resultar da insuficiência do produto da venda para cobrir a dívida exequenda.

- Sobre o sistema vigente nos EUA, qualificando as hipotecas “non recourse” como um regime semelhante à figura da “fiducia cum creditore” com pacto comissório, veja-se Carla Câmara, A aquisição da propriedade do bem hipotecado pelo credor e a questão da satisfação (integral ou parcial) do crédito, in Armando Marques Guedes / Maria Helena Brito / Ana Prata / Rui Pinto Duarte / Mariana França Gouveia, “Estudos em homenagem ao Professor Doutor José Lebre de Freitas”, volume I, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, págs. 645-779 (pág. 717) -

Ao invés, na Europa e, em particular, no nosso país, tem sido adotado um sistema de responsabilidade universal do mutuário, à semelhança do que sucede em geral com o devedor de qualquer obrigação, em que a responsabilidade do mesmo subsiste, mesmo que o imóvel hipotecado seja vendido na execução e o produto da venda não permita cobrir a dívida exequenda, respondendo com outros bens do seu património, nomeadamente, como sucede no caso dos autos, com o respetivo rendimento profissional.

- Sobre a distinção dos sistemas vigentes na EUA e na Europa, veja-se também Luís Menezes Leitão, O impacto da crise financeira no regime do crédito à habitação, in Revista Julgar, n.º 25, janeiro / abril 2015, págs. 49 e segs. -

Com efeito, em matéria de garantia geral das obrigações, nos termos do disposto no artigo 601.º do Código Civil, pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor suscetíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação de patrimónios.

Ou seja, a responsabilidade patrimonial do devedor é ilimitada, pelo que pela dívida respondem todos os bens penhoráveis existentes no seu património.

É possível a limitação da responsabilidade do devedor a alguns dos seus bens no caso de a obrigação não ser voluntariamente cumprida (salvo quando se trate de matéria subtraída à disponibilidade das partes), mas tal depende de acordo de ambas as partes (artigo 602.º do Código Civil) algo que raramente sucede no tráfego comercial e no âmbito do crédito hipotecário em particular, inexistindo qualquer acordo nesse sentido no caso dos autos.

Por outro lado, em matéria de cumprimento de obrigações, o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado (artigo 762.º, n.º 1, do Código Civil), vigorando o princípio da pontualidade (artigo 406.º, n.º 1, do Código Civil), segundo o qual o devedor deve cumprir pontualmente o contrato. E não sendo a obrigação voluntariamente cumprida, tem o credor o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do devedor, nos termos declarados no Código Civil e nas leis de processo – artigo 817.º do CC.

 Havendo vários credores, se não existirem causas legítimas de preferência, os mesmos têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos (artigo 604.º, n.º 1 do Código Civil). São causas legítimas de preferência, além de outras admitidas na lei, a consignação de rendimentos, o penhor, a hipoteca, o privilégio e o direito de retenção (artigo 604.º, n.º 2, do Código Civil).

 No que respeita à hipoteca que está em causa nestes autos, a mesma confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (artigo 686.º, n.º 1, do Código Civil).

Ainda que seja alienado o bem objeto da garantia, a hipoteca subsiste – artigos 721.º e ss. do Código Civil. E tratando-se de um bem imóvel hipotecado, a sua desvalorização por si só não determina o não cumprimento das obrigações assumidas pelo devedor.

A regra é a da transferência do risco com a entrega da coisa (artigo 796.º, n.º 1, do Código Civil) pelo que a depreciação do imóvel corre por conta do comprador a quem o mesmo foi entregue.

Com efeito, quando, por causa não imputável ao credor, a coisa hipotecada perecer ou a hipoteca se tornar insuficiente para segurança da obrigação, tem o credor o direito de exigir que o devedor a substitua ou reforce; e, não o fazendo este nos termos declarados na lei de processo, pode aquele exigir o imediato cumprimento da obrigação ou, tratando-se de obrigação futura, registar hipoteca sobre outros bens do devedor (artigo 701.º, n.º 1, do Código Civil).

De acordo com o regime legal acima referido, não se permite que o credor extrajudicialmente se apodere da coisa hipotecada para que, com o produto da sua venda extrajudicial consiga pagar o seu crédito (regime da chamada “actio hypothecaria do Direito Romano). Também se proíbe o pacto comissório, ou seja, a convenção que atribua ao credor o direito de fazer sua a coisa onerada no caso de o devedor não cumprir – artigo 694.º do Código Civil.

Em matéria de execução, o devedor que for dono da coisa hipotecada tem o direito de se opor não só a que outros bens sejam penhorados na execução enquanto se não reconhecer a insuficiência da garantia, mas ainda a que, relativamente aos bens onerados, a execução se estenda além do necessário à satisfação do direito do credor – artigo 697.º do Código Civil.

Assim, executando-se dívida com garantia real que onere bens pertencentes ao devedor, a penhora inicia-se pelos bens sobre que incida a garantia e só pode recair noutros quando se reconheça a insuficiência deles para conseguir o fim da execução – artigo 752.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Uma das formas de pagamento do credor exequente na execução traduz-se na adjudicação dos bens penhorados – artigos 795.º, n.º 1 e 799.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil.

Nesse caso, o requerente da adjudicação deve indicar o preço que oferece, não podendo a oferta ser inferior ao valor a que alude o n.º 2 do artigo 816.º do Código de Processo Civil, ou seja, o correspondente a 85 % do valor base dos bens – n.º 3 do artigo 799.º do Código de Processo Civil.

Por sua vez, nos termos do artigo 812.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, o valor base dos bens imóveis corresponde ao maior dos seguintes valores:

a) Valor patrimonial tributário, nos termos de avaliação efetuada há menos de seis anos;

b) Valor de mercado.

Para fixar o valor do bem de acordo com o valor de mercado, o agente de execução pode promover as diligências necessárias quando o considere vantajoso ou algum dos interessados o pretenda (n.º 5 do artigo 812.º do Código de Processo Civil).

A decisão sobre a modalidade da venda e o valor base dos bens é notificada pelo agente de execução ao exequente, ao executado e aos credores reclamantes de créditos com garantia sobre os bens a vender, preferencialmente por meios eletrónicos (n.º 6), e se o executado, o exequente ou um credor reclamante discordar da decisão, cabe ao juiz decidir, sendo a respetiva decisão irrecorrível (n.º 7).

 Cabe ao agente de execução fazer a adjudicação; mas, se à data do requerimento já estiver anunciada a venda por propostas em carta fechada, esta não se susta e a pretensão só é considerada se não houver pretendentes que ofereçam preço superior (n.º 4 do artigo 799.º do Código de Processo Civil).

  Por outro lado, uma das formas de extinção das obrigações é a dação em cumprimento (artigos 837.º e segs. do Código Civil) segundo a qual o devedor pode prestar uma coisa diversa (nomeadamente um bem imóvel) da que for devida, exonerando-se dessa forma da sua obrigação, mas a mesma depende sempre do acordo do credor.

Na verdade, não se pode confundir a dação em cumprimento com a adjudicação pelo exequente em processo executivo, do imóvel objeto da garantia hipotecária. Como salienta Carla Camara: De “iure condito” cumpre assinalar que não se confunde com a dação em pagamento, a aquisição – por venda ou adjudicação do bem – que o Banco/exequente faça em processo judicial, do imóvel objecto do crédito à habitação. Uma coisa é o valor da dívida – que não depende, nem é afectado por variações do valor do bem que é sua garantia – outra o valor do imóvel hipotecado.

 - Op. cit. pág. 767 -

 Em resposta à crise económica iniciada nos EUA em 2008, foram publicados alguns diplomas legais destinados a implementar medidas de proteção dos mutuários de créditos à habitação, em concreto, as Leis n.os 57/2012 (alteração ao Decreto-Lei n.º 158/2002, de 2 de julho, permitindo o reembolso do valor de planos poupança para pagamento de prestações de crédito à habitação), 58/2012 (cria um regime extraordinário de proteção de devedores de crédito à habitação em situação económica muito difícil), 59/2012 (cria salvaguardas para os mutuários de crédito à habitação e altera o Decreto-Lei n.º 349/98, de 11 de novembro) e 60/2012 (altera o Código de Processo Civil, modificando as regras relativas à ordem de realização da penhora e à determinação do valor de base da venda de imóveis em processo de execução), todas de 9 de novembro. Foram igualmente publicados os Decretos-Leis n.os 226/2012, de 18 de outubro (procede à extensão do âmbito de aplicação do Decreto-Lei n.º 51/2007, de 7 de março, aos demais contratos de crédito garantidos por hipoteca, ou por outro direito sobre imóvel, e celebrados com clientes bancários particulares) e 227/2012 de 25 de outubro (estabelece princípios e regras a observar pelas instituições de crédito na prevenção e na regularização das situações de incumprimento de contratos de crédito pelos clientes bancários e cria a rede extrajudicial de apoio a esses clientes bancários no âmbito da regularização dessas situações).

  A Lei n.º 59/2012, de 9 de novembro, criou salvaguardas para os mutuários de crédito à habitação e alterou o Decreto-Lei n.º 349/98, de 11 de novembro, destacando-se no âmbito deste último diploma e em matéria de execução hipotecária, o novo artigo 23.º-A relativo ao regime especial de garantias de empréstimo em cujo n.º 1 se prevê que:

1 — A instituição de crédito mutuante e o mutuário podem, por acordo, sujeitar o empréstimo às seguintes regras especiais:

a) Em reforço da garantia de hipoteca da habitação adquirida, construída ou objeto das obras financiadas, incluindo o terreno, apenas pode ser constituído seguro de vida do mutuário e cônjuge e seguro sobre o imóvel;

b) A venda executiva ou dação em cumprimento na sequência de incumprimento do empréstimo pelo mutuário exoneram integralmente o mutuário e extinguem as respetivas obrigações no âmbito do contrato de empréstimo, independentemente do produto da venda executiva ou do valor atribuído ao imóvel para efeitos da dação em cumprimento ou negócio alternativo.

No entanto, como decorre expressamente do texto da lei, este regime especial para a venda executiva do bem hipotecado depende de acordo das partes.

Em matéria de regime transitório de dação em cumprimento, o artigo 3.º desta Lei n.º 59/2012, de 9 de novembro, prevê que os contratos de empréstimo à aquisição, construção, conservação ordinária, extraordinária ou beneficiação de habitação própria permanente celebrados até à entrada em vigor dessa lei podem beneficiar da aplicação do regime de dação em cumprimento previsto em diploma especial que estabelece um regime extraordinário de proteção de devedores de crédito à habitação.

Este regime transitório foi criado pela Lei n.º 58/2012 de 9 de novembro, que criou um regime extraordinário e transitório, aplicável até ao dia 31 de dezembro de 2015, aplicável às situações de incumprimento de contratos de mútuo celebrados no âmbito do sistema de concessão de crédito à habitação destinado à aquisição, construção ou realização de obras de conservação e de beneficiação de habitação própria permanente de agregados familiares que se encontrem em situação económica muito difícil e apenas quando o imóvel em causa seja a única habitação do agregado familiar e tenha sido objeto de contrato de mútuo com hipoteca.

 O regime instituído por tal diploma é imperativo para as instituições de crédito mutuantes nos casos em que se encontrem cumulativamente preenchidos os requisitos previstos no respetivo artigo 4.º que se passam a enunciar:

a) O crédito à habitação esteja garantido por hipoteca que incida sobre imóvel que seja a habitação própria permanente e única habitação do agregado familiar do mutuário e para o qual foi concedido;

b) O agregado familiar do mutuário se encontre em situação económica muito difícil nos termos do artigo seguinte;

c) O valor patrimonial tributário do imóvel não exceda:

i) € 90 000 nos casos em que o imóvel hipotecado tenha coeficiente de localização até 1,4;

ii) € 105 000 nos casos em que o imóvel hipotecado tenha coeficiente de localização entre 1,5 e 2,4;

iii) € 120 000 nos casos em que o imóvel hipotecado tenha coeficiente de localização entre 2,5 e 3,5 (a Lei n.º 58/2014 de 25 de agosto alterou os limites monetários previstos nestas subalíneas para respetivamente, € 100 000, €115 000 e €130 000).

d) O crédito à habitação não esteja garantido por outras garantias reais ou pessoais, salvo se, neste último caso, os garantes se encontrem também em situação económica muito difícil, nos termos do artigo seguinte.

Por sua vez, nos termos do respetivo artigo 5.º, considera-se em situação económica muito difícil o agregado familiar relativamente ao qual se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos:

a) Pelo menos um dos mutuários, seu cônjuge ou pessoa que com ele viva em condições análogas às dos cônjuges, se encontre em situação de desemprego ou o agregado familiar tenha sofrido uma redução do rendimento anual bruto igual ou superior a 35 %;

b) A taxa de esforço do agregado familiar com o crédito à habitação tenha aumentado para valor igual ou superior a:

i. 45 % para agregados familiares que integrem dependentes;

ii. 50 % para agregados familiares que não integrem dependentes (A Lei n.º 58/2014, de 25 de agosto, acrescentou uma subalínea iii) prevendo um valor de 40 % para agregados familiares considerados famílias numerosas);

c) O valor total do património financeiro de todos os elementos do agregado familiar seja inferior a metade do rendimento anual bruto do agregado familiar;

d) O património imobiliário do agregado familiar seja constituído unicamente:

i. Pelo imóvel que seja a habitação própria e permanente do agregado familiar; e

ii. Por garagem e imóveis não edificáveis, até ao valor total de € 20 000;

e) O rendimento anual bruto do agregado familiar não exceda 12 vezes o valor máximo calculado em função da composição do agregado familiar e correspondente à soma global das seguintes parcelas:

i. Pelo mutuário: 100 % do valor do salário mínimo nacional ou 120 % no caso de o agregado familiar ser composto apenas pelo requerente;

ii. Por cada um dos outros membros do agregado familiar que seja maior: 70 % do valor do salário mínimo nacional;

iii. Por cada membro do agregado familiar que seja menor: 50 % do valor do salário mínimo nacional.

Cumpridos que estejam os referidos requisitos, os mutuários têm direito à aplicação de uma ou de várias das seguintes modalidades de proteção:

a) Plano de reestruturação das dívidas emergentes do crédito à habitação;

b) Medidas complementares ao plano de reestruturação;

c) Medidas substitutivas da execução hipotecária

Nos termos do respetivo artigo 21.º, as medidas substitutivas da execução hipotecária, as quais são de aplicação subsidiária em relação às medidas de reestruturação previstas na alínea a), são:

a) A dação em cumprimento do imóvel hipotecado;

b) A alienação do imóvel a FIIAH (Fundos de Investimento Imobiliário para Arrendamento Habitacional), promovida e acordada pela instituição de crédito, com ou sem arrendamento e opção de compra a favor do mutuário e entrega do preço à instituição de crédito, liquidando -se assim a dívida;

c) A permuta por uma habitação de valor inferior, com revisão do contrato de crédito e redução do capital em dívida pelo montante da diferença de valor entre as habitações.

No caso da dação em cumprimento, a dívida extingue-se totalmente (artigo 23.º, n.º, al. a) quando:

i) A soma do valor da avaliação atual do imóvel, para efeito de dação, e das quantias entregues a título de reembolso de capital for, pelo menos, igual ao valor do capital inicialmente mutuado, acrescido das capitalizações que possam ter ocorrido; ou

ii) O valor de avaliação atual do imóvel, para efeito de dação, for igual ou superior ao capital que se encontre em dívida;

No caso da alienação do imóvel a FIIAH, a dívida extingue-se totalmente quando:

i) A soma do valor pago pelo FIIAH para aquisição do imóvel e das quantias entregues pelo mutuário a título de reembolso de capital for, pelo menos, igual ao valor do capital inicialmente mutuado, acrescido das capitalizações que possam ter ocorrido; ou

ii) O valor pago pelo FIIAH para aquisição do imóvel for igual ou superior ao capital que se encontre em dívida;

Nos termos do n.º 2 do artigo 23.º do referido diploma, quando a transmissão do imóvel operada pela dação em cumprimento ou pela alienação a FIIAH, não determine a extinção total da dívida, mantém-se apenas a dívida relativamente ao capital remanescente, aplicando-se-lhe os termos e condições contratuais equivalentes aos que se encontravam em vigor para o crédito objeto desta medida. E nos termos do n.º 3, a referida dívida remanescente não pode beneficiar de novas garantias reais ou pessoais.

Este regime especial vigorou apenas até 31 de dezembro de 2015, não tendo sido prorrogado.

No caso concreto dos autos, não foram alegados factos que preencham os requisitos de aplicação do referido regime transitório.

Atualmente, o crédito hipotecário celebrado com consumidores é regulado pelo Decreto-Lei n.º 74-A/2017, de 23 de junho (alterado pela Lei n.º 32/2018, de 18 de julho, pela Lei n.º13/2019 de 12 de fevereiro e pela Lei n.º 57/2020 de 28 de agosto) que transpôs parcialmente a Diretiva n.º 2014/17/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de fevereiro de 2014 (relativa a contratos de crédito aos consumidores para imóveis destinados a habitação) aprovando o Regime dos Contratos de Crédito Relativos a Imóveis, estabelecendo nomeadamente as regras aplicáveis ao crédito a consumidores garantido por hipoteca ou por outro direito sobre coisa imóveis.

No referido diploma são adotadas medidas de proteção dos mutuários e do sistema financeiro em geral, com especial destaque para os deveres de informação a respeitar pelo mutuante, a necessidade dos mutuantes efetuarem uma avaliação mais rigorosa da solvabilidade do consumidor, bem como a proceder a uma avaliação dos imóveis, com recurso a um perito avaliador independente. São igualmente reguladas as taxas de juros bancários (e respetivos arredondamentos), o direito do mutuário ao reembolso antecipado, bem como os pressupostos cumulativos para que o mutuante possa, em caso de incumprimento no contrato de crédito pelo consumidor, invocar a perda do benefício do prazo ou a resolução do contrato.

Em matéria de execução hipotecária, prevê-se apenas no respetivo artigo 28.º o direito do consumidor à retoma do contrato no prazo para a oposição à execução relativa a créditos à habitação caso não tenha havido lugar à reclamação de créditos por parte de outros credores e desde que se tenha verificado o pagamento das prestações vencidas e não pagas, bem como dos juros de mora e das despesas em que o mutuante tenha incorrido e que tenha justificado documentalmente.

  Podemos, assim, concluir que em nenhuma das intervenções legislativas acima mencionadas se institucionalizou uma dação em cumprimento obrigatória para instituições de crédito no âmbito de execuções hipotecárias, ressalvando-se o regime transitório acima referido cuja aplicação dependia ainda assim da verificação cumulativa de apertados requisitos.

 Como já acima foi referido, a dação em cumprimento depende de acordo das partes e não pode ser imposta unilateralmente por alguma delas.

- cf. Acórdão do STJ de 07-10-2014 (processo n.º 1393/11.0TBPMS-C.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt) -

 Acresce que no caso de as partes acordarem na entrega do imóvel ao mutuante em caso de incumprimento do contrato de mútuo, tratar-se-á, em regra, de uma dação pro solvendo (artigo 840.º do Código Civil), que não tem efeito liberatório imediato: apenas serve para facilitar a satisfação do crédito do credor (só se extinguindo o crédito quando o mesmo for totalmente extinto).

- Sobre a distinção entre dação em cumprimento (datio pro solutum) e a dação em função do cumprimento (datio pro solvendo), veja-se o Acórdão do STJ de 06-11-2003 (Revista n.º 3495/03,), consultável em www.dgsi.pt) -.

Perante este quadro legal, podemos concluir que no sistema português, sendo o património do devedor a garantia geral da obrigação, não obstante a execução da hipoteca, se remanescer a tal execução algum valor em dívida, poderá o credor em princípio prosseguir a execução sobre outros bens, para pagamento do valor remanescente.

O prosseguimento da execução não é questionado quando o bem é vendido nessa execução a um terceiro por um valor insuficiente para o pagamento da quantia exequenda. Mas quando é o próprio Banco exequente a adquirir o bem no âmbito do processo executivo, verificou-se o surgimento de uma corrente jurisprudencial, quer na Espanha, quer em Portugal, ainda que não ao nível dos Tribunais superiores, a sustentar que haveria abuso de direito no facto de o Banco requerer a continuação da execução após a adjudicação do imóvel.


3. Apreciação do caso dos autos

No caso concreto dos autos, a extinção da dívida exequenda como resultado automático da venda do bem hipotecado, independentemente do valor dessa venda, como acima vimos, não tem cabimento no atual sistema legal. Na verdade, no sistema português, como acima foi referido, sendo o património do devedor a garantia geral da obrigação, não obstante a execução da hipoteca, se remanescer a tal execução algum valor em dívida, poderá o credor em princípio prosseguir a execução sobre outros bens, para pagamento do valor remanescente.

Quanto ao instituto do enriquecimento sem causa invocado pelo recorrente, poderia estar em causa a modalidade da condictio ob rem, traduzida no enriquecimento do credor hipotecário à custa do devedor, aqui Recorrente, uma vez que a contratação do mútuo tinha visado um resultado específico que teria desaparecido com a venda executiva do bem ao próprio credor. Porém, como refere Menezes Leitão “a aplicação da condictio ob rem não tem lugar sempre que esteja em causa um contrato, como é neste caso o crédito à habitação”

- O Impacto da Crise Financeira no Regime do Crédito à Habitação, in Revista Julgar, n.º 25, janeiro / abril 2015, pág. 55.

Ou seja, não se pode considerar inexistir causa justificativa para o alegado enriquecimento, uma vez que o prosseguimento da execução é baseado no cumprimento integral do contrato de mútuo celebrado entre as partes, o que não significa que não possa ser abusivo o exercício do direito por parte do credor.           

Resta, assim, ponderar o alegado abuso de direito do credor exequente ao pretender prosseguir com a execução para cobrança do remanescente da divida exequenda.

Prescreve o artigo 334.º do Código Civil que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social desse direito.

Como sempre se refere, o regime previsto nesta disposição legal perfilha uma conceção objetiva do abuso do direito, porquanto não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, bastando que se excedam esses limites.

Pela cláusula geral do abuso do direito pretende o legislador impor um controlo casuístico dos limites normativos de cada direito concreto. Procura-se, a final, garantir o exercício “justo” dos direitos, fazendo valer, efetivamente, os princípios da boa fé, da confiança, do equilíbrio e da estabilidade negocial.

E essa cláusula geral tem necessariamente uma aplicação excecional e casuística.

Na formulação genérica do artigo 334.º do Código Civil cabem diversas categorias doutrinárias do abuso do direito, - sendo certo que o alcance do princípio do abuso do direito excede o conjunto dos grupos ou tipos de casos considerados na doutrina e na jurisprudência - como por exemplo: a) Exceptio doli – assenta na violação da boa fé e traduz-se, essencialmente, na oposição, ao titular do direito invocado, da desonestidade com que adquiriu ou pretende exercer; b) Venire contra factum proprium – é a categoria de abuso do direito mais abrangente e frequente. Trata-se da proibição de comportamentos contraditórios do titular do direito, frustrantes das expetativas criadas na contraparte e nas quais esta tenha legítima e razoavelmente confiado; c) Inalegabilidades formais – traduz-se na invocação de invalidade formal de determinado negócio pela parte que a provocou ou nela participou; d) Supressio e Surrectio – consiste na prolongada abstenção de exercer um direito (imputável ao respetivo titular), em condições tais que criam na outra parte da relação a expetativa legítima e razoável de que o titular do direito jamais o exercerá; e) Tu quoque – constitui a arguição ou o aproveitamento de um ato ilícito, por quem o cometeu; f) Exercício em desequilíbrio – traduz-se no exercício de um direito causando dano desnecessário a outrem, ou causando dano superior ao que era necessário. Tem na sua base o princípio do dano mínimo.

- cf. Acórdão do STJ, de 4/06/2013 -           

Como refere Menezes Cordeiro, existem dois princípios fundamentais de concretização da boa fé objetiva: a tutela da confiança e a primazia da materialidade subjacente.

- Tratado de Direito Civil, tomo I, 2.ª ed., 2000, págs. 223 e segs. -

Uma das modalidades de abuso de direito em que está especialmente presente a tutela da confiança reside no “venire contra factum proprium” que tem como pressuposto a existência de um comportamento que possa ser entendido como posição vinculante em relação à posição futura e o investimento na confiança pela contraparte e boa fé desta.

Como se salienta no acórdão do STJ de 12.11.2013 (proc. nº 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt), esta modalidade de abuso de direito tem como pressupostos: a existência dum comportamento anterior do agente suscetível de basear uma situação objetiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e atual) ao agente; a boa-fé do lesado (confiante); a existência dum “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma atividade com base no factum proprium; o nexo causal entre a situação objetiva de confiança e o “investimento” que nela assentou.

Por outro lado, segundo Menezes Cordeiro (op. cit., págs. 238 e 239), a ideia que aflora na regra da primazia da materialidade subjacente é a de que se torna insuficiente a adoção de condutas que apenas na forma correspondem aos objetivos jurídicos, descurando-os, na realidade, num plano material. A boa-fé exige que os exercícios jurídicos sejam avaliados em termos materiais, de acordo com as efetivas consequências que acarretem.

O mesmo Professor aponta três grandes vias de realização do princípio: a conformidade material das condutas; a idoneidade valorativa; o equilíbrio no exercício das posições.

 E no que respeita ao desequilíbrio no exercício de posições jurídicas, o mesmo autor aponta três sub-hipóteses que podem ser consideradas:

(i) o exercício danoso inútil – é contrário à boa-fé – e como tal abusivo – exercer os direitos de modo inútil, com o objectivo de provocar danos na esfera alheia;

(ii) dolo agit qui petit quod statim redditurus est – é contrário à boa-fé exigir o que de seguida se deva restituir;

(iii) a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem – tal desproporcionalidade, ultrapassados certos limites, é abusiva, defrontando a boa-fé.

- op. cit., pág. 265 -           

No acórdão do STJ de 11-07-2017 (Revista n.º 945/14.0T2OVR-A.P1.S1 - 1.ª Secção) definiu-se o «desequilíbrio no exercício de posições jurídicas», como figura do abuso do direito, na modalidade da “desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem”, que abrange o exercício de qualquer direito, por forma anormal, quanto à intensidade ou à sua execução, de modo a pôr em risco a satisfação dos direitos de terceiros e a criar uma desproporção objetiva entre a utilidade do exercício do direito, por parte do seu titular, e as consequências que outros têm de suportar.

 A apreciação do abuso de direito no caso concreto dos autos depende da apreciação de todo o conjunto factual que integra o objeto dos embargos. Se não podemos afirmar de forma genérica que constituiu abuso de direito a posição de um Banco exequente ao pretender prosseguir a execução para satisfação do remanescente da sua dívida, na parte que não foi coberta pela venda do bem hipotecado, também a afirmação contrária de que o exercício desse direito nunca constitui abuso de direito é igualmente censurável já que ignora as circunstâncias do caso concreto que podem caracterizar como abusiva e contrária à boa-fé o prosseguimento dessa execução.

  Como é defendido por Carla Câmara, obra citada, no caso de o valor do imóvel, objeto de reavaliação, ser inferior ao do montante da dívida hipotecária, a instituição mutuante deve ter direito, em regra, a prosseguir a execução para obter o remanescente, a não ser tenha atuado em “abuso de direito”. Parece poder convocar-se a figura do “abuso do direito” – na modalidade do “venire contra factum proprium” – do exequente ao requerer o prosseguimento da execução, em processo executivo, para cobrança do remanescente, após ter adquirido a propriedade do bem hipotecado, quando se evidencia uma desconformidade entre o formal exercício de um direito processual e a materialidade subjacente do correspondente direito substantivo, designadamente, quando, de forma manifesta, o valor obtido pelo credor – e que ingressa no seu património – ao adquirir o bem em processo executivo, é superior àquele pelo qual o bem foi, na realidade, alienado naquele processo em termos de satisfazer (parcial ou integralmente a dívida exequenda) e, não obstante, ainda assim, o credor pretender o prosseguimento da execução.

  A mesma autora prossegue exemplificando que o abuso de direito no prosseguimento da execução, após a aquisição da habitação hipotecada nesse processo executivo, pode suceder se, no caso concreto, se apreciar:

- Que o exequente financiou a aquisição do bem imóvel, que avaliou previamente e que aceitou como garantia hipotecária do mútuo, considerando-o apto para solver – com a possível execução da hipoteca – o seu crédito (garantia que oportunamente avaliou, de forma prudente, e que aceitou como adequada para garantir o pagamento do seu crédito, em caso de possível execução da hipoteca ou venda, tendo em conta os aspetos duradouros do prazo do crédito, das condições normais de mercado e locais em que imóvel se integra, o seu uso, etc.);

 - Que a instituição de crédito tem a obrigação legal de efetuar um acompanhamento da evolução dos valores dos bens sobre os quais tem constituída uma garantia real, efetuando as competentes provisões - designadamente, de harmonia com o previsto no Aviso n.º 3/95 do Banco de Portugal – e detetando a menos-valia correspondente, devendo proceder às condutas de ajuste de risco que considere prudentes e se durante todo o seu comportamento que precedeu a execução, não atuou os mecanismos legais correspondentes, nem tenha solicitado o reforço ou a substituição da garantia hipotecária que o imóvel constituía;

- Que esteja evidenciado – ou então que esteja manifestada a clara recusa do banco em fornecer tal informação – o valor pelo qual a instituição de crédito incorporou no seu património o ativo patrimonial adjudicado através da venda realizada em desconformidade com o valor pelo qual o bem foi adjudicado em execução.

 - Op. cit., págs. 769 a 773 -


No caso concreto dos autos, discutindo-se a aquisição do imóvel hipotecado pelo Banco exequente por um valor bastante inferior ao valor da avaliação realizada pelo próprio Banco, resulta dos factos assentes que entre o momento da última avaliação pelo Banco Exequente e a data da adjudicação do imóvel decorreram dois anos, mas importa apurar se nesse período de tempo existiu desvalorização do imóvel que justifique a redução do preço pago. Para tal desiderato, importa produzir prova sobre o valor de mercado do bem na data em que o mesmo foi adjudicado, uma vez o exequente alega que o imóvel tem um valor pelo menos igual ao da dívida exequenda.

Só dessa forma será possível aferir se a conduta do Banco exequente ao financiar a aquisição do imóvel, que avaliou no início de 2014 em €142 000,00 e que aceitou como garantia hipotecária dos mútuos no valor total de €149 389,84 (€127 889,84 + €21 500), considerando-o apto para solver o seu crédito (tendo em conta o prazo dos créditos concedidos, as condições de mercado, a localização e valorização do imóvel pelas obras realizadas pelo mutuário), criou no executado uma situação objetiva de confiança de que, não ocorrendo qualquer desvalorização do imóvel, o produto da venda do mesmo, incluindo a venda executiva ao próprio exequente, seria apto a cobrir a dívida de capital que surgisse do incumprimento dos referidos contratos de mútuo.

Por outro lado, apenas apurando o real valor de mercado do bem hipotecado na data em que o mesmo foi adjudicado ao Banco exequente e qual o valor pelo qual a instituição de crédito incorporou no seu património o ativo patrimonial adjudicado, é que se pode aferir de eventual desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo Banco exequente e o sacrifício imposto ao executado mutuário, aqui Recorrente, em termos que permitam concluir por um exercício abusivo do direito de prosseguir com a execução na modalidade de desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.

Importa referir que o valor de mercado do bem imóvel não pode equiparar-se, genericamente, ao valor que foi oferecido na venda judicial, porquanto podem existir distorções na formação do valor base do bem imóvel objeto da venda que não se verificariam caso o bem fosse vendido no mercado com sujeição às normais leis da oferta e da procura. Com efeito, na venda executiva, não se poderá equiparar o preço de venda do bem como correspondendo ao preço que seria conseguido no mercado fora do processo judicial.

Na venda de bens em processo executivo, não podemos esquecer que estamos perante uma venda forçada. A qual nunca deixa de o ser, pesem embora os esforços que na sua regulamentação se puseram para evitar que ela se faça por um valor desajustadamente diminuto. Perigo que decorre de estarem, à partida, viciados os dados que levariam à formação do preço do bem, dentro de um mercado em que vendedor e comprador agissem com o mesmo grau de liberdade, de molde a atingir-se o desejável equilíbrio ditado pela lei da oferta e da procura, como bem se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 31-10-2013 (Processo n.º 5074/10.3YYPRT-B.P1) consultável em www.dgsi.pt),

 De facto, como já acima foi referido, nos termos do artigo 812.º, n.º 3, do Código de Processo Civil o valor base dos bens imóveis corresponde ao maior dos seguintes valores:

a) Valor patrimonial tributário, nos termos de avaliação efetuada há menos de seis anos;

b) Valor de mercado.

Para fixar o valor do bem de acordo com o valor de mercado, o agente de execução pode promover as diligências necessárias quando o considere vantajoso ou algum dos interessados o pretenda (n.º 5 do artigo 812.º do Código de Processo Civil).

Nos termos do n.º 6 do artigo 812.º do Código de Processo Civil, a decisão sobre o valor base dos bens é notificada pelo agente de execução ao exequente, ao executado e aos credores reclamantes de créditos com garantia sobre os bens a vender, preferencialmente por meios eletrónicos (n.º 6), e se o executado, o exequente ou um credor reclamante discordar da decisão, cabe ao juiz decidir sendo a respetiva decisão irrecorrível (n.º 7).

O valor de venda do bem não é, assim, fixado unicamente pelo transmitente, sendo certo que o próprio exequente se pronuncia sobre o preço de venda pelo qual pode vir a adquirir o próprio bem no caso de não aparecerem mais propostas. Por outro lado, as regras legais respeitantes à apresentação por terceiros de propostas de aquisição de bens que sejam objeto de venda executiva exigem a apresentação de cheque visado no montante de 5 % do valor de venda anunciado ou garantia bancária no mesmo valor (artigo 824.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e, uma vez aceite a proposta, o proponente é obrigado  a depositar a totalidade do preço em falta no prazo de 15 dias (artigo 824.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).

A exiguidade do referido prazo exige liquidez aos proponentes ou, pelo menos, facilidade de obtenção de crédito num curto espaço de tempo, o que acaba por afastar grande parte da população com menos recursos que poderia comprar o bem caso o mesmo fosse objeto de venda fora do processo judicial, sem os referidos constrangimentos legais.

Também a publicidade da venda judicial não corresponde à de uma venda extrajudicial, nomeadamente com recurso a empresas especializadas na promoção de venda de bens. O executado que está interessado na venda do bem pelo maior valor possível não tem obviamente meios financeiros de suportar o custo dessa publicidade extrajudicial (pois se tivesse essa disponibilidade financeira não estaria a ser executado), nem pode atribuir a uma empresa de mediação imobiliária comissões sobre a venda judicial. O exequente ou os credores reclamantes que podiam ter meios para publicitar melhor a venda podem não ter interesse económico nessa promoção pois no caso de não surgirem propostas de aquisição por terceiros, acabam por ficar com o bem por um valor inferior àquele que ele realmente vale.

Embora o executado seja ouvido no processo de formação do valor base do bem e na escolha da modalidade da venda, a decisão sobre a venda do bem não lhe cabe, não podendo esperar pelo surgimento de melhor preço como sucederia caso vendesse o bem extrajudicialmente. Tratando-se de uma venda coerciva e forçada, não poderia ser de outra forma, mas tudo o acima exposto permite concluir que na venda judicial não funcionam as normais regras de oferta e de procura, dizendo a experiência que é normal assistir-se à venda judicial de bens por valor bastante inferior àquele que seria conseguido fora do processo executivo.

Nos presentes autos não consta qual foi o valor base do bem imóvel hipotecado e como se processou a fixação desse valor, nomeadamente, se foram realizadas algumas diligências no processo principal de execução para apurar o valor de mercado do mesmo. Também não consta dos autos qual o comportamento das partes no processo principal aquando da fixação desse valor base, nomeadamente, se o executado reclamou do mesmo e se requereu a realização de diligências para apurar o valor de mercado.

O apuramento do real valor do bem transmitido ao exequente é essencial para apurar da existência de abuso de direito nos termos pretendidos pelo Recorrente.

Consideramos ser assim prematura a decisão de indeferimento liminar dos embargos, uma vez que se o valor real do bem adjudicado ao exequente for bastante superior ao valor pelo qual o mesmo foi adquirido e próximo do valor pelo qual o próprio exequente o avaliou dois anos antes, como é alegado pelo aqui Recorrente na petição de embargos, pode ser considerado abusivo o exercício do direito de prosseguir com a execução para cobrança do valor correspondente à diferença entre o valor real do bem e o valor de adjudicação nos termos acima expostos.

Os embargos não são assim, manifestamente improcedentes, havendo que apurar da factualidade alegada, em conjugação com o que resulta dos autos principais de execução, de modo a constatar se houve ou não abuso de direito do exequente.

Em suma, os embargos devem ser recebidos, prosseguindo os autos a sua tramitação normal.

           

IV. Decisão

Posto o que precede, acorda-se em conceder a revista, revogando-se o Acórdão recorrido, determinando-se que os embargos de executado sejam recebidos e que os autos prossigam os seus trâmites normais

Custas pela Recorrida (atenta a sua oposição).

Lisboa, 26 de janeiro de 2021

Pedro de Lima Gonçalves (Relator)

Fátima Gomes

Acácio das Neves


Nos termos do disposto no artigo 15.º-A do decreto – Lei n.º20/2020, de 1 de maio, declara-se que têm voto de conformidade dos Senhores Juízes Conselheiros Fátima Gomes e Acácio das Neves.