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MEIO DE PROVA ILEGAL
MEIO DE PROVA PROIBIDO
TELEFONE
CONVERSAS
GRAVAÇÃO
Sumário
1. O direito a um processo equitativo (Art. 20.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa) implica a inadmissibilidade de meios de prova ilícitos, sendo nulas todas as provas obtidas mediante abusiva intromissão na vida privada ou nas telecomunicações (Art. 32.º n.º 8 da Constituição) e que constituam uma violação aos direitos à palavra e à reserva da vida privada, consagrados no Art. 26.º n.º 1 da nossa Lei Fundamental. 2. Todos os meios de prova que violem esses direitos fundamentais e de personalidade, são materialmente proibidos, seja em processo penal, seja em processo civil, impondo-se a aplicação neste último das correspondentes normas estabelecidas naquele sobre proibição de prova. 3. O nosso sistema legal de proibição de prova ilícita dá clara prevalência aos direitos pessoais quando estes são violados através de métodos de prova proibidos. 4. O meio de prova consistente na gravação de conversação telefónica privada, sem consentimento duma das partes nela interveniente, preenche, em abstracto, o crime de “gravações e fotografias ilícitas”, previsto no Art. 199.º n.º 1 al. a) do Código Penal, que pune com pena de prisão quem, sem consentimento, gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que essas palavras lhe sejam dirigidas, não podendo ser usado como meio de prova no processo (Art. 167.º n.º 1 do C.P.P), sendo, portanto, prova nula, nos termos do Art. 126.º n.º 2 do C.P.P.. 5. A busca da verdade no âmbito dum processo judicial não é um valor absoluto, não sendo admissível que se possa procurar a verdade usando de quaisquer meios, mas tão-só de meios justos, ou seja, através de meios legalmente admissíveis. 6. A proibição de prova assume também um efeito dissuasor, pretendendo-se com tal proibição evitar sacrifícios de direitos das pessoas por parte das autoridades judiciárias, dos órgãos de polícia criminal ou dos particulares, privando logo à partida de qualquer eficácia as provas proibidas ou produzidas ilegalmente.
Texto Integral
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I- RELATÓRIO A [ Maria …] e B [ João …] , em conjunto com a sua esposa, C [ Emília …] , intentaram ação de condenação, em processo declarativo comum, contra D, pedindo a condenação da R. a restituir à 1.ª A., a quantia de €5.000,00, e aos 2.ºs A.A., a quantia de €1.250,00, em ambos os casos, acrescidas de juros de mora, à taxa legal, desde 18 de maio de 2019, até efetivo e integral pagamento.
Para tanto, alegam que, por acordos não formalizados por escrito, emprestaram à R. e ao seu marido, que era, respetivamente, neto da 1.ª A. e filho dos 2.ºs A.A., as quantias de €10.000,00 e €1.500,00, para aqueles fazerem face a obras de remodelação de imóvel. Entretanto, a R. veio a divorciar-se do neto e filho dos A.A., tendo nas negociações de partilha do património conjugal sido reconhecida a dívida aos A.A., por contrato-promessa de partilha, ficando a R. responsável pela obrigação de restituição de €5.000,00 à 1.ª A. e €1.250,00 aos 2.ºs A.A.. Nessa sequência, os A.A., por cartas de 3 de maio de 2019, interpelaram a R. para restituir as quantias mutuadas no prazo de 10 dias, o que esta não satisfez.
A R. contestou, defendendo-se por impugnação, pugnando pela improcedência da ação, sendo que no artigo 28.º dessa contestação alegou o seguinte: «Acresce que, em contacto telefónico que a 1ª A. efetuou para a Ré em 25/11/2018 aquela declarou que havia doado a referida quantia e que não pretendia o correspondente reembolso da Ré, nem tão pouco do seu referido neto – doc. nº 88». Sendo que o documento n.º 88 é uma cópia dum print-screen de telemóvel com menção a uma chamada, com duração de 48 minutos, ocorrida no dia 25 de novembro de 2018 (cfr. fls 146 verso).
Por requerimento de 5 de setembro de 2019 (Ref.ª n.º 23874599 – p.e.), os A.A. vieram a exercer o direito ao contraditório relativamente à prova documental junta pela R. com a sua contestação, realçando-se que, relativamente ao documento n.º 88, disseram o seguinte: «VI – Documento n.º 88 «58. O documento n.º 88 junto à Contestação é, no mínimo, caricato. «59. O que pretende a R. provar com tal documento??? «60. Que estabeleceu uma ligação telefónica com alguém que a mesma identifica no seu telemóvel como “D. Adelaide”??? «61. Ora, ainda que tal ligação tivesse sido estabelecida com a 1.ª A. – o que a 1.ª A. francamente já não se recorda, atento o tempo já decorrido –, certo é que o documento n.º 88 não prova o teor da dita conversa! «62. Ou seja, a R. e a 1.ª A. (se assim realmente se verificasse, mas sem conceder) até poderiam ter estado a falar de costura ou de telenovelas! «63. Pelo que, sem mais considerandos, se impugna expressamente o documento n.º 88 junto à Contestação.»
Findos os articulados, a 20 de novembro de 2019 é proferido despacho saneador que fixou o objeto do litígio, enunciou os temas de prova e admitiu a prova requerida, designando data para julgamento.
Entretanto, na sessão de julgamento de 29 de setembro de 2020, procedeu-se à acareação entre a 1.ª A., A, e a R., D, por haver alegada oposição quanto ao teor de uma conversa telefónica entre ambas, sustentando a 1.ª A. que a R. lhe havia dito que amortizaria o empréstimo com as rendas que o casal viesse a auferir de um outro imóvel, enquanto a R. afirmou que a A. havia confessado que a importância transferida de €10.000,00 foi uma doação, não pretendendo exigir qualquer quantia de volta (cfr. Ata junta a fls 74).
Após, a R., por requerimento de 19 de outubro de 2020 (Ref.ª n.º 27435058 – p.e.), veio expor e requerer o seguinte: «1º No decurso dos depoimentos de parte e acareação da 1ª A. e Ré foi por ambas referida a existência de uma conversa telefónica recíproca que teve lugar em finais de Novembro de 2018. «2º Esse mesmo contacto telefónico foi igualmente referido e invocado nos depoimentos testemunhais prestados por Carlos …. e por João ….. «3º Esse contacto telefónico é aquele que surge ilustrado no “print-screen” do telemóvel da Ré e que teve lugar em 25/11/2018 às 13h57 com a duração de 48 minutos, proveniente de uma ligação efetuada pelo telemóvel da 1ª A., conforme doc. nº 88 da contestação. «4º A Ré afirma e sustenta que durante esse contacto telefónico a 1ª A. confirmou que os alegados empréstimos, afinal, tratavam-se de doações que a mesma havia efetuado àquela e ao seu ex-marido, neto desta última, pelo que não havia lugar a reembolso. «5º Em sede de acareação a 1ª A. negou ter afirmado semelhante declaração. «6º Esse contacto telefónico encontra-se gravado no telemóvel da Ré, que a mesma quer disponibilizar ao Tribunal para que seja apreciado e posteriormente valorizado o respetivo teor. «7º Porém, como semelhante gravação foi feita à revelia da 1ª A e, por conseguinte, pela mesma não foi consentida, a Ré coibiu-se de a juntar a estes autos. Todavia, «8º o teor dessa gravação telefónica é fulcral para a descoberta da verdade material, pois permitirá decidir, sem quaisquer dúvidas, sobre a improcedência do pedido pela 1ª A. formulado contra a Ré, «9º pelo que e ao abrigo do disposto no art. 411º do Cod. Proc. Civil desde já se requer que o Sr. Juiz de Direito, exercendo o princípio do inquisitório, ordene a sua junção aos autos, porquanto se trata de diligência necessária ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio que se relaciona com factualidade de que lhe é licito conhecer, porque alegada pela Ré na sua contestação. Doutro passo, «10º a testemunha João ……, ex-marido da Ré, admitiu no seu depoimento que em meados de Dezembro de 2018 havia transferido a quantia de €5.000,00 da conta comum do dissolvido casal para a sua conta pessoal. «11º Ignora-se o destino que João …. então deu a semelhante quantia, designadamente se a conservou para si, ou a devolveu à sua Avó, ora 1ª A.. Porém, «12º o certo é que o mesmo João ….. transferiu em 30/10/2019 para a conta da sua referida Avó a quantia de €5.000,00 que, durante o respetivo depoimento, admitiu ser proveniente do saldo do produto da venda da moradia sita na Costa da Caparica após terem sido pagas todas as dívidas -cfr. documento pela 1º A. junto aos autos em 30/01/2020. Assim sendo, «13º resulta evidente que este João …… se apoderou da quantia de €10.000,00 (5.000,00 em meados de Dezembro de 2018 e €5.000,00 em finais de Outubro de 2019) que supostamente terá devolvido à respetiva Avó, logo o pedido que esta última contra a Ré nestes autos formulou carece de qualquer fundamento. Ora, «14º no tocante à transferência da quantia de €5.000,00 em meados de Dezembro de 2018 da conta comum para a conta de João ….., a mesma surge evidenciada no extrato de Dezembro de 2018 que, por mero lapso, a Ré não juntou a estes autos em 17/09/2019, «15º logo está agora processualmente impedida de o fazer, face a que a esse propósito dispõe o art. 423º nº 2 do Cod. Proc. Civil. Deste modo, «16º para suprir semelhante obstáculo e por forma a se apurar a verdade material e se alcançar a justa composição do litígio, igualmente ora se requer ao Sr. Juiz de Direito que ordene à Ré a junção aos autos da cópia do extrato de Dezembro de 2018 da conta comum que então esta última mantinha com João ….., nos termos e ao abrigo do disposto no art. 411º do Cod. Proc. Civil. «Nestes termos e nos melhores de Direito ao caso aplicáveis que o Sr. Juiz adequadamente suprirá, devem ser integralmente deferidas as ora referidas junções de documentos, mediante despacho judicial que as ordene, com todas as devidas e legais consequências.» (sublinhados nossos).
Os A.A. responderam por Requerimento de 20 de outubro de 2020 (Ref.ª n.º 27440795 – p.e.) e, no que se refere à conversão telefónica, disseram o seguinte: «I – Da pretensa conversa telefónica gravada entre a 1.ª A. e a R. «1. Não podem os AA. levar o requerimento ora apresentado pela R. minimamente a sério, por se afigurar tão grosseiramente inadmissível e violador das regras processuais vigentes. «2. Desde logo, porque, no requerimento a que ora se responde, a R. está, em rigor, a confessar a prática de um crime! «3. Mas comecemos pela acareação entre a 1.ª A. e a R. «4. Ora, conjugando as declarações prestadas pela R. e pela testemunha João ….., que afirmaram que a dita conversa teria ocorrido no dia 26 de Outubro de 2018 (data indicada pela Ré, cujas declarações estão gravadas) e que teria sido através dessa conversa que a 1.ª A. teria ficado a saber da separação do neto, João…, e da aqui R., «5. Conclui-se que a 1.ª A., efetivamente, não mentiu quando disse que, após (o conhecimento da) a separação, nunca mais falou com a R. «6. Mentiu, sim, a R. ao afirmar o facto inverso. «7. Mais uma vez, os timings acabam por tramar a narrativa da R. «8. Quanto à pretensa gravação dessa conversa, é certo que, até à presente data, a mesma não se mostra junta aos mesmos, desconhecendo-se, por isso, se a mesma efetivamente existe ou se não passa de mais um bluff da R. «9. Preferíamos, aliás, assim entender, porquanto tal gravação – a ter existido, o que, reitera-se, se desconhece e se impugna –, é ilícita e ilegal e configura, na verdade, um crime, p. e p. pelo artigo 199.º do Código Penal, «10. Uma vez que teria sido feita sem conhecimento da 1.ª A., como a testemunha João ….. afirmou em audiência de julgamento, «11. Testemunha que, inclusivamente, afirmou, perante o douto Tribunal, que a referida chamada teria sido colocada em alta-voz para que este a pudesse ouvir. «12. Pelo que, constituindo um crime, a referida gravação, a existir, sempre configuraria uma prova proibida e, por esse motivo, não é admissível a sua junção aos autos. «13. Neste sentido, decidiu o Tribunal da Relação de Évora, no douto Acórdão de 11-05-2017, no processo n.º 8346/16.0T8STB-B.E1, acessível em www.dgsi.pt: «Por constituir meio de prova obtido de forma ilícita, não pode ser admitida a junção, em processo civil, de gravações não consentidas de comunicações orais, por telefone ou de viva voz, não destinadas ao público, mesmo que sejam dirigidas a quem fez a gravação, sendo igualmente proibido utilizar ou deixar utilizar as ditas gravações». «14. Mais, não se duvida que a dita gravação, a ter existido, o que se desconhece, não passou de uma cilada a uma senhora com 80 anos, aproveitando-se a R. das fragilidades emocionais da 1.ª A., típicas da idade, senhora esta que nunca lhe fez qualquer mal, antes bem quando a R. e o ex-marido mais precisaram! «15. O que, uma vez mais, é bem revelador do ardil da R. e da postura assumida perante os AA. 16. Mercê do supra exposto, não se aceita a junção da pretensa gravação aos autos, por a mesma, a existir, constituir uma prova proibida. 17. SEM PRESCINDIR, no caso de ser admitida a junção da referida gravação, requer-se, desde já, que seja extraída certidão da mesma para efeitos de participação criminal junto do Ministério Público. (…)». (sublinhados nossos)
A esse requerimento seguiu-se um outro de resposta da R., datado de 23 de outubro de 2020 (Ref.ª n.º 27488105 – p.e.), no qual, entre outras questões, veio sustentar-se a admissibilidade legal da gravação não autorizada de contacto telefónico (cfr. doc. ora junto de fls 61 a 68). Ao qual os A.A. responderam por requerimento de 26 de outubro de 2020 (Ref.ª n.º 27504164 – p.e. – cfr. doc. ora junto de fls 37 a 60). O que mereceu nova réplica da A., por requerimento de 27 de outubro de 2020 (Ref.ª n.º 27525534 – p.e.).
Nessa sequência é proferido o despacho de 28 de outubro de 2020 (Ref.ª n.º 400046600 – p.e.), com o seguinte teor, na parte que interessa ao caso: «Em face da profusão de requerimentos apresentados pelas partes, e encontrando-se suspensa a audiência final, entende-se por bem, desde já, tomar posição sobre os mesmos, a fim de não ser perturbada a continuação da diligência. «Do requerimento da ré de 19/10/2020: «Pretende a ré que ao abrigo do disposto no art. 411º do Cod. Proc. Civil, exercendo-se o princípio do inquisitório, se ordene a junção aos autos do contacto telefónico que surge ilustrado no “print-screen” do telemóvel da Ré e que teve lugar em 25/11/2018 às 13h57 com a duração de 48 minutos, proveniente de uma ligação efetuada pelo telemóvel da 1ª A., porquanto se trata de diligência necessária ao apuramento da verdade. (…) «Cumpre apreciar: «No que concerne ao primeiro pedido-junção de conversação telefónica-, temos sufragado o entendimento que, em matéria de processo civil, não pode ser admitida a junção de gravações não consentidas de comunicações orais, por telefone ou de viva voz, não destinadas ao público. «A autora A [ Maria …] (interlocutora na conversação telefónica) através de requerimento de 20/10/2020, opõe-se a tal junção (que nos permite presumir falta de consentimento), pelo que estamos perante prova inadmissível, pelo que não irá ser deferida a pretensão da ré. (…)»
É deste segmento do despacho de 28 de outubro de 2020 que a R. pretende agora recorrer, apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões:
A- Em 25/11/2018 pelas 13h57m a Ré recebeu uma chamada telefónica no respetivo telemóvel proveniente do telemóvel da 1ª A., durante a qual esta última lhe afirmou que a quantia cujo reembolso nestes autos daquela é reivindicada havia sido entregue a título de doação e não de empréstimo, não sendo, por conseguinte, para devolver à procedência.
B- O teor do referido contacto telefónico, que teve extensão temporal de 48 minutos, foi gravado sem o conhecimento da 1ª A..
C- A Ré invocou na sua contestação esse contacto telefónico e confirmou-o no decurso do respetivo depoimento de parte, o que foi negado pela 1ª A. no correspondente depoimento de parte, tendo ambas as litigantes mantido a sua posição em sede de acareação.
D- A Ré requereu ao Juiz “a quo” que nos termos do art.º 411º do Cod. Proc. Civil. Ordenasse a junção aos autos da gravação da referida conversa telefónica, pretensão a que a 1ª A. se opôs, sem que tivesse invocado qualquer das situações previstas na alínea b) do n.º 3 do art.º 417º do mencionado diploma legal.
E- Na medida em que é obrigação das partes cooperar para a descoberta da verdade material, tal como se encontra previsto no n.º 1 do art.º 417º do Cod. Proc. Civil, a não invocação de alguma das exceções previstas no n.º 3 do referido preceito legal como fundamento válido para se opor à produção de um meio de prova equivale a consentimento tácito.
F- A utilização da gravação da conversa telefónica que versa sobre uma relação de crédito subjacente a uma demanda e com ela conexa não viola os direitos fundamentais à reserva da vida privada e das telecomunicações, devendo o direito de acesso aos Tribunais para defesa de interesses legalmente protegidos e o princípio de descoberta da verdade material necessário à realização de uma justa composição do litígio prevalecer, com a correspondente admissibilidade daquele meio de prova como instrumento essencial para a para a concretização daqueles princípios.
G- Ao não ter admitido o requerido meio de prova com os parcos e lacónicos fundamentos que constam do despacho ora recorrido, o Sr. Juiz “a quo” violou o poder-dever constante no art.º 411º do Cod. Proc. Civil, que lhe impõe a obrigação de admitir todos os meios de prova suscetíveis de apurar a verdade material e alcançar a justa composição do litígio, pelo que com esse fundamento deve semelhante decisão ser revogada e substituída por outra que admita o meio de prova ora em causa.
Pede assim que seja dado provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outra decisão que admita reprodução em Juízo do teor da gravação da conversa telefónica mantida entre a R. e a 1ª A. em 25/11/2018, com todas as devidas e legais consequências.
Os A.A. responderam ao recurso assim interposto, sobrelevando das suas contra-alegações as seguintes conclusões:
1. O presente Recurso foi interposto pela R., ora Apelante, do douto despacho proferido em 28 de outubro de 2020, que indeferiu o requerimento da Apelante de junção aos autos de uma gravação de uma (alegada) conversa telefónica entre esta e a 1.ª Apelada.
2. Não tem a Apelante razão no recurso interposto do sobredito aresto, porquanto a conversa telefónica em questão foi alegada por aquela logo na Contestação, e, nesse articulado, a Apelante limitou-se a juntar um print-screen do visor do seu telemóvel, com o registo de uma chamada telefónica, nada mais tendo junto ou requerido.
3. Considerando que a gravação da alegada conversa telefónica teria sido realizada, segundo a Apelante, em 25 de Novembro de 2018, tendo sido tal circunstância alegada logo em sede de Contestação, não é aplicável in casu o regime previsto no n.º 3 do artigo 423.º do C.P.C., porquanto a Apelante apenas de “lembrou” de requerer a sua junção já no decurso da audiência de julgamento, quando a verdade é que tal gravação já existiria desde finais de 2018 (i.e. ainda antes da instauração da presente ação e, portanto, da apresentação da Contestação da Apelante) e a sua junção ter-se-ia tornado necessária logo com a apresentação da Contestação, face à alegação pela Apelante da correspondente matéria.
4. Em suma, atento o momento processual em que surge o requerimento da Apelante (já no decurso da audiência de julgamento), a não superveniência da realização da dita conversa telefónica e, portanto, da gravação e o facto de a referida matéria ter sido, desde logo, alegada na Contestação, não sendo, portanto, inovadora, a junção da gravação só poderia ser indeferida, porquanto a mesma não tinha qualquer cabimento legal, mormente no regime do artigo 423.º do C.P.C.
5. Em conformidade, decidiu bem o douto Tribunal a quo ao indeferir o requerimento probatório da Apelante, por o mesmo se afigurar processualmente inadmissível.
SEM PRESCINDIR
6. Ainda que o requerimento probatório da Apelante tivesse abrigo no artigo 423.º do C.P.C. – o que não se concede –, não poderia o mesmo, ainda assim, ser admitido, como, de resto, bem entendeu o douto Tribunal a quo, porquanto tal prova é inadmissível, uma vez que se trata de prova ilícita, proibida e nula.
7. Desde logo, veja-se que, no dito requerimento probatório, a Apelante está, em rigor, a confessar a prática de um crime, p. e p. pelo artigo 199.º do Código Penal, uma vez que a dita gravação teria sido realizada sem conhecimento da 1.ª Apelada, como a testemunha João ….. afirmou em audiência de julgamento, testemunha que, inclusivamente, afirmou, perante o douto Tribunal a quo, que a referida chamada teria sido colocada em alta-voz para que este a pudesse ouvir, mas sem que se tivesse dado conhecimento de tal circunstância à 1.ª Apelada.
8. Estabelece o artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa que a todos é reconhecido o direito à reserva da intimidade da vida privada, ou seja, ao «núcleo vivencial individual que não é exposto publicamente ou socialmente, antes é reduzido (por opção pessoal ou por força das circunstâncias) à esfera circunscrita ou recatada de cada pessoa» (Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16-02-2012, processo n.º 435234/09.8YIPRT-A.G1, acessível em www.dgsi.pt), caindo precisamente neste âmbito a conversa telefónica estabelecida, particularmente, entre duas pessoas.
9. Referência também ao n.º 1 do artigo 34.º da Constituição da República Portuguesa, que consagra a inviolabilidade do sigilo dos meios de comunicação privada.
10. Posto isto, o artigo 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa comina com o vício da nulidade – que, portanto, resulta na sua ilicitude e proibição – a prova que seja obtida mediante «abusiva intromissão na vida privada ou nas telecomunicações», norma que, não obstante estar formalmente prevista para o processo penal, deve ser tida como aplicável em todo e qualquer processo, e reporta-se tanto à prova obtida pelas entidades públicas como pelas entidades particulares (Cfr. CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, p. 348; ISABEL ALEXANDRE, Provas Ilícitas em Processo Civil, p. 239).
11. Como é consabido, os preceitos acima mencionados, estabelecidos na Constituição da República Portuguesa, são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas (e, portanto, os Tribunais) e privadas, daí que a gravação de uma conversa telefónica, quando não consentida, constitua um crime, p. e p. pelo artigo 199.º do Código Penal.
12. Resulta, também, da alínea b) do n.º 3 do artigo 417.º do C.P.C., ainda que indiretamente, a inadmissibilidade de tal prova.
13. Por conseguinte, constituindo um crime, a referida gravação, a existir, sempre configuraria uma prova proibida e, por esse motivo, não é admissível a sua junção aos presentes autos.
14. Neste sentido, decidiu o Tribunal da Relação de Évora, no douto Acórdão de 11-05-2017, no processo n.º 8346/16.0T8STB-B.E1, e o Tribunal da Relação de Guimarães, no douto Acórdão de 16-02-2012, no processo n.º 435234/09.8YIPRT-A.G1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
15. Acresce salientar que a não junção de tal gravação ao processo não coloca o direito de ação judicial da Apelante, nem a mesma, enquanto prova, é imperiosa e insubstituível; contrariamente, o direito da 1.ª Apelada à reserva da intimidade da vida privada ficaria completamente esvaziado e, a ser assim, como é, nunca poderia este último direito ser posto em crise no confronto daquele outro.
16. Não nos podemos também esquecer que a dita gravação, a existir, o que se desconhece, teria sido obtida por meio de uma cilada montada pela Apelante, com a cumplicidade da sua irmã e do seu cunhado, a uma senhora com 80 anos (a aqui 1.ª Apelada), para se aproveitar das fragilidades emocionais da 1.ª Apelada, típicas da idade, e para convencê-la a perdoar a dívida aqui em discussão, conduta que é bem reveladora do ardil da Apelante e da postura assumida perante os Apelados.
17. A acareação entre a Apelante e a 1.ª Apelada foi, de resto, mais uma manobra para constranger a 1.ª Apelada a admitir um facto que não é, de todo, verdade.
18. Ademais, conjugando as declarações prestadas pela Apelante e pela testemunha João ….. na audiência de julgamento, que afirmaram que a dita conversa telefónica teria ocorrido no dia 26 de Outubro de 2018 (data indicada pela Apelante em sede de depoimento de parte, cujas declarações estão gravadas) e que teria sido através dessa conversa que a 1.ª Apelada teria ficado a saber da separação do neto, João ……, e da aqui Apelante, conclui-se que a 1.ª Apelada, efetivamente, não mentiu quando disse que, após (o conhecimento da) a separação, nunca mais falou com a Apelante, porquanto, após tal conversa, nunca mais falou com a Apelante.
19. Por fim, desconhecendo os Apelados o conteúdo de tal conversa, pretensamente gravada, é sua convicção que a mesma até poderia ter sido manipulada, retirando parte do seu conteúdo, de modo a que as respostas sejam de acordo com os objetivos ilícitos da Apelante.
20. Tudo visto, decidiu bem o douto Tribunal a quo ao indeferir o requerimento de junção da pretensa gravação aos autos, por a mesma, a existir, constituir uma prova proibida.
21. Posto isto, não assiste razão à Apelante no Recurso interposto, pelo que deverá o mesmo ser julgado improcedente, confirmando-se o douto despacho proferido pelo Tribunal a quo, por de tal dispositivo resultar a correta interpretação e aplicação das normas legais vigentes no nosso ordenamento jurídico.
Pedem assim a improcedência do recurso interposto e a confirmação do despacho recorrido.
*
II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.s 635.º n.º 4 e 639º n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106).
Assim, em termos sucintos, a única questão a decidir é saber se, ao abrigo do princípio do inquisitório, nos termos do Art. 411.º do C.P.C., era processualmente admissível o meio de prova relativo a gravação de conversação telefónica, na qual interveio a R. e a 1.ª A., gravação essa que foi realizada sem o consentimento prévio desta última.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
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III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O despacho recorrido não fixou de forma autónoma a factualidade relevante em que assentou a sua decisão, mas ela decorre da sequência de atos processuais exposta no relatório do presente acórdão.
Tudo visto, cumpre apreciar.
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IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Conforme ficou explicitado, o objeto deste recurso resume-se a saber se, fazendo funcionar o princípio do inquisitório, era admissível o meio de prova requerido pela R. relativo a gravação de conversação telefónica ocorrida entre a mesma e a 1.ª A., a qual foi obtida sem o consentimento desta última, sendo que a sua junção e audição em julgamento continua a merecer oposição dos A.A., que sustentam constituir esse ato um ilícito criminal, tendo inclusivamente manifestado a sua intenção de apresentarem queixa-crime contra a R..
Relembremos que estamos no quadro duma ação de condenação, que corre termos em processo declarativo comum, subordinada ao Código de Processo Civil. Está assim em causa a admissibilidade de um meio de prova no âmbito do processo civil.
As provas têm por função a demonstração a realidade dos factos, tal como decorre textualmente do Art. 341.º do C.C.. Em conformidade com esta norma substantiva, no processo civil, a produção de prova visará a demonstração da realidade dos factos articulados pelas partes, fornecendo ao juiz os dados ou elementos necessários para controlar a veracidade das correspondentes afirmações das partes (vide: Manuel Andrade in “Noções Elementares de Processo Civil”, Reimpressão, 1993, pág. 190).
Neste contexto, Antunes Varela (in “Manual de Processo Civil”, 2.º Ed., pág.s 437 a 439) identificava os factos como constituindo o objeto mediato da prova, sendo o objeto imediato essencialmente traduzido na demonstração da realidade desses factos, o que numa grande maioria de casos equivalerá à demonstração da veracidade das afirmações das partes sobre os mesmos. É esta, portanto, a finalidade da prova e dos requerimentos probatórios.
A regra geral, no processo civil, é que todos os factos alegados pelas partes, relevantes para o julgamento da causa, carecem de prova, sendo esse o propósito geral da instrução do processo, tal como estabelecido no Art. 410.º do C.P.C.. Só os factos notórios, ou os que o tribunal tenha conhecimento em virtude do exercício das suas funções, é que não carecem de prova (v.g. Art. 412.º do C.P.C.). Quanto aos demais, há necessidade de produção de prova de acordo com as regras do processo.
A fase da instrução no processo civil tem assim por função a demonstração dos factos alegados pelas partes, com relevância para a solução a dar ao litígio, através da produção de provas constituendas ou já pré-constituídas. As provas constituendas realizam-se no âmbito do próprio processo, normalmente na audiência final. Já as provas pré-constituídas, porque formadas antes sequer de surgir a necessidade da sua apresentação no processo, subordinam-se apenas às regras sobre a possibilidade da sua junção, consistindo a instrução na sua incorporação ou apresentação na ação pendente (Vide: Teixeira de Sousa in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 1997, pág.s 319 a 320).
No quadro do Código de Processo Civil vigente, a prova deve ser apresentada em conjunto com os articulados (v.g. Art.s 552.º n.º 2, 572.º al. d) e, em particular, quanto à prova documental, Art. 423.º n.º 1, todos do C.P.C.), podendo ser alterado o requerimento probatório na audiência prévia (Art.598.º n.º 1 do C.P.C.) ou até 20 dias antes do início da audiência final (cfr. Art.s 598.º n.º 2 e Art. 423.º n.º 2 do C.P.C.). Após esse momento, só é admitida prova cuja apresentação não tenha sido possível até então, bem como cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior (Art. 423.º n.º 3 do C.P.C.). A justificação para este regime, mais restritivo que o pretérito, relaciona-se com o objetivo de evitar o arrastamento das audiências e evitar a perturbação dos depoimentos (vide, a propósito: Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, pág. 499).
Em todo o caso, mesmo que a prova requerida juntar não respeite o disposto nos normativos citados, o juiz pode ordenar a junção aos autos desses documentos, por sua iniciativa, ao abrigo do Art. 411.º do C.P.C., desde que se convença da necessidade dos meios probatórios em causa. No entanto, o exercício desse poder-dever não deve servir para dar cobertura a exercícios extemporâneos e impertinentes de direitos das partes, nem muito menos a expedientes de natureza meramente dilatória.
Não se no afigura que, no caso concreto, esteja em causa um expediente dilatório e compreendem-se perfeitamente as razões que estiveram por trás da decisão de não apresentação do meio probatório em consideração em momento anterior, considerando que a própria R. estava ciente de que se tratava de meio de prova ilícito, consistente numa gravação de conversação telefónica, sem consentimento da 1.ª A., o que poderia, em abstrato, preencher a previsão do Art. 199.º n.º 1 al. a) do C.P., que pune com pena de prisão quem, sem consentimento, gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que essas palavras lhe sejam dirigidas.
Assim, a oportunidade da junção estava condicionada pela ilicitude do meio de prova em causa e pela circunstância de ainda não ter sido produzido o depoimento da 1.ª A. em audiência final, que poderia conduzir a uma eventual confissão do facto alegado pela R. no artigo 28.º da sua contestação, tornando inútil uma prova que, por principio, não seria admissível.
Só depois de prestado esse depoimento e de feita a acareação entre essa 1.ª A. e a R., que teve precisamente por objeto saber qual o teor dessa conversação telefónica, é que a R. requereu que fosse junta e se procedesse à audição dessa gravação, pois entendeu que, só desse modo, poderia fazer prova dos factos por si alegados, considerando que a acareação não conduziu à admissão pela 1.ª A. da versão dos factos apresentada pela R. no artigo 28.º da sua contestação.
Aceitamos, por isso, o argumento da oportunidade da pretendida junção do suporte da gravação só em audiência final, no quadro legal do n.º 3 do Art. 423.º do C.P.C., mas não podemos deixar de ser reticentes sobre a possibilidade de, no caso, o juiz do processo, por sua iniciativa e ao abrigo do Art. 411.º do C.P.C., promover a produção desse meio de prova, que correspondia à admissão de prova obtida de forma ilícita.
Sejas como for, a nosso ver, a questão da oportunidade da apresentação do meio de prova perde-se, porque estaria sempre dependente da consideração principal de estarmos ou não perante um meio de prova proibida.
A regra no processo civil é a da livre admissibilidade dos meios de prova, refletindo uma tendência evolutiva do nosso direito no sentido de se afastar do sistema da prova legal para um regime de prova livre. Este regime de prova supõe não só que a prova deve ser apreciada de forma livre pelo julgador, de acordo com a sua convicção, mas também que todos os meios de prova previstos na lei processual são admissíveis na medida em que sirvam para formar a convicção do julgador. Tratam-se de duas realidades distintas, mas profundamente interligadas entre si (vide: Antunes Varela in Ob. Loc. Cit. pág.s 467 e ss.), porque concorrem para alcançar o propósito final da realização da justiça, através do apuramento da verdade material.
No final, finda a produção de prova, ao juiz competirá apreciar livremente todas as provas, mesmo que contraditórias entre si, segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (Art. 607.º n.º 5 do C.P.C.), devendo tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que deveria produzi-las (Art. 413.º do C.P.C.).
Existem, no entanto, alguns limites à regra geral da livre admissão dos meios de prova, que se ligam a normas substantivas excecionais, nomeadamente as que prescrevem a necessidade de observância para certos atos de formalidades ad substantiam (v.g. normas que estabelecem a forma de certos atos (por exemplo: o Art. 875.º do CC.); normas que não admitem prova testemunhal de factos para que se exija prova documental (v.g. Art.s 393.º a 395.º do C.C.); normas imperativas sobre a prova de determinados factos que não admitem a demonstração do contrário (por exemplo: o Art. 1260.º n.º 3 do C.C.)) e normas que procedem da própria lei processual e assentam em finalidades puramente adjetivas.
Entre esses limites à livre admissão dos meios de prova que provêm de normas processuais estão as normas relativas às “provas proibidas”.
Em termos gerais, incumbe sempre ao juiz verificar a admissibilidade dos meios de prova pré-constituídos e garantir quanto aos mesmos o exercício do contraditório (Art.s 3.º e 410.º a 524º do C.P.C.).
É certo que, no Código de Processo Civil não existe uma norma idêntica àquela que no âmbito do processo penal define quais os meios de prova cuja utilização é proibida (v.g. Art. 126.º do C.P.P.), mas daí não pode resultar a conclusão de que todos os meios de prova são admissíveis em processo civil independentemente do método utilizado para a respetiva obtenção.
Efetivamente, teoricamente, podem perfilar-se 3 correntes distintas sobre esta matéria da prova ilegítima, fundada na conclusão de que violam normas de caráter processual para a sua admissibilidade (Vide: Isabel Maria Fernandes Branco in “As Gravações e Fotografias Ilícitas como Prova a Valorar no âmbito do Processo Penal e Civil (Tendências jurisprudenciais), disponível in “verbojuridico.net/ficheiros/doutrina/ppenalisabelbranco”):
1.º- Uma tese permissiva, que sustenta a irrelevância da ilicitude da prova quando se refere a provas produzidas em momento anterior ao processo, dando prevalência à descoberta da verdade e ao interesse público da realização da justiça, fazendo prevalecer o dever de dizer a verdade em detrimento da ilicitude material do ato, que assim seria irrelevante (Sendo certo que, não há nota de que na doutrina portuguesa alguém sustente semelhante posição, nem existe jurisprudência publicada que a suporte).
2.º- Uma tese restritiva, que não admite em caso algum a utilização de prova ilícita, sustentando-se no princípio constitucional da inadmissibilidade das provas ilícitas, consagrado no Art. 32.º n.º 8 da C.R.P., e na unidade do sistema jurídico, que implicaria a aplicação analógica do Art. 126.º do C.P.P. ao processo civil, na medida em que assim se conferiria maior eficácia aos direitos fundamentais violados. Assim, se nos termos do Art. 126.º n.º 2 do C.P.P., para o processo penal, são nulas as provas obtidas com intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações, sem o consentimento do respetivo titular, e se, nos termos do Art. 199.º n.º 1 al. a) do C.P., pratica um crime quem gravar palavras proferidas por outra pessoa e não destinadas ao público, mesmo que lhe sejam dirigidas, então os meios de prova assim obtidos também não podem ser admitidos em processo civil.
3.º- Uma tese intermédia, que admite algumas provas proibidas com base no princípio da proporcionalidade, ponderando a tutela da norma violada com a obtenção da prova ilícita e a utilização dos meios necessários ao alcance do fim pretendido alcançar com a atividade jurisdicional, em respeito pelo disposto no Art. 18.º n.º 2 da C.R.P.. Esta tese continua a sustentar a regra geral da inadmissibilidade das provas ilícitas, mas se esse for o único meio disponível para descobrir a verdade material e se, no caso concreto, o bem jurídico violado, com a prova assim obtida, for menos digno de proteção do que aquilo que se visa provar, admite-se a exceção à inadmissibilidade da prova.
Com efeito, o Código de Processo Civil não é tão claro como o Código de Processo Penal (no citado Art. 126.º), quanto à validade das provas e à sua admissibilidade no processo. Sem prejuízo, é evidente que aquelas normas do processo penal são a expressão legislativa de princípios gerais constitucionais vigentes, devendo conformar todo o ordenamento jurídico de forma coerente (vide: Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 15/04/2010 - Relator Teixeira Ribeiro; de 3/6/2004 – Relatora: Fátima Galante; e do Tribunal da Relação de Guimarães de 16/02/2012 - Relator: José Rainho, disponíveis em www.dgsi.pt).
Os princípios estruturantes do ordenamento jurídico português, relativos à consagração dos direitos fundamentais dos cidadãos constantes da Lei Constitucional impõem-se no âmbito do processo civil, constituindo limites que o intérprete não pode postergar na aplicação do direito. «Face à nossa lei, determinados valores são em principio intangíveis podendo até justificar uma recusa do dever de colaboração e fundamentar a inadmissibilidade de certos meios de prova que com eles colidam» (cfr. cit. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 3/06/2004, Relatora: Fátima Galante, disponível em www.dgsi.pt)
O Art. 26.º n.º 1 da C.R.P. estatui que a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação. Ora, a tutela desses direitos fundamentais do ser humano passa igualmente pela necessária proibição de utilização de meios de prova obtidos com a violação dos bens jurídicos protegidos pela Constituição. O que tem justificado a aplicação analógica ao processo civil das proibições de prova estatuídas no n.º 32º, n.º 8 da CRP para o processo penal (Vide: Isabel Alexandre in “Provas ilícitas em Processo Civil”, 1988, Almedina, pág.s 261 a 278 e Acórdão da Relação do Porto de 15/04/2010, Relator: Teixeira Ribeiro).
Como refere Germano Marques da Silva (in “Curso de Processo Penal”, Vol. II, 1993, pág. 101): «A proibição de prova assume desde logo grande importância pelo seu efeito dissuasor. Se os direitos do cidadão são violados, as provas que se obtenham através de tal violação não poderão ser atendidas no processo, são proibidas. Pretende-se com tal proibição evitar sacrifícios de direitos das pessoas por parte das autoridades judiciárias, dos órgãos de polícia criminal ou dos particulares, privando de eficácia as provas proibidas ou produzidas ilegalmente, as provas proibidas não podem ter efeito no processo».
Claro que, sem ouvir a gravação em causa nestes autos, não sabemos até que ponto pode estar em causa uma efetiva violação relevante da reserva da intimidade da vida privada e familiar da pessoa gravada, mas tal não invalida a conclusão de que a gravação duma conversação telefónica, sem o consentimento do visado, não deixa de ser um facto ilícito.
Desde logo, o “direito à palavra” também está consagrado com direito fundamental na nossa Constituição, o qual comporta «o direito a que não sejam registadas ou divulgadas palavras (…) de uma pessoa sem o seu consentimento, conferindo assim o direito à reserva e à transitoriedade da palavra falada», garantindo-se «a autonomia na disponibilidade (…) da palavra, independentemente de estar ou não, de forma direta, em causa o bom nome e a reputação das pessoas» (Cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros in “Constituição Portuguesa Anotada”, Tomo I, 2005, pág.s 289 a 290). Por isso mesmo, no Art. 199.º n.º 1 al. a) do C.P., qualifica-se como crime a gravação sem o consentimento do visado de palavras por este proferidas, mesmo que dirigidas ao agente da gravação.
Eduardo Correia (in SJ, Tomo XVI, n.ºs 1-2, pág. 35) chama a atenção para que subjacente a esta proibição de prova estão “razões de ordem ética” e o “perigo de deturpação”, que normalmente são os argumentos usados pelos autores para justificar a interdição total destes meios de prova.
No acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16/02/2012 (Relator: José Rainho, disponível em www.dgsi.pt) é mencionado que o que está subjacente a esta proibição não é propriamente o conteúdo (o secretismo) da comunicação, mas sim a palavra falada em si, tratando-se de impedir que aquilo que se pretende que fosse apenas uma expressão fugaz e transitória da vida, se converta num produto registado e suscetível de ser utilizado a todo o tempo».
Para Isabel Alexandre «a prova fonográfica será nula quando, independentemente da forma como foi obtida, a sua utilização em juízo implique uma abusiva lesão do direito à palavra do interessado, e isto mesmo que a ilicitude pessoal esteja afastada» (Ob. Loc. Cit., pág. 277 e 278.
Já para Francisco Ferreira de Almeida (in “Direito Processual Civil”, Vol. II, 2.ª Ed., pág. 275 a 276): «o direito a um processo equitativo (art.s 20.º, n.º 4 da CRP e 26. N.º 3 da LOSJ) implica a inadmissibilidade de meios de prova ilícitos. Tal ilicitude pode resultar, quer da violação de direitos fundamentais (ilicitude material), quer por formação (constituição) ou obtenção de meios probatórios em resultado de procedimentos ilícitos (ilicitude formal)». E acrescenta mais à frente, depois de relembrar que o Art. 32.º n.º 8 da Constituição considera nulas todas as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, que o Art. 26.º n.º 1 reconhece a todos o direito à reserva da vida privada, e que os Art.s 79.º e 80.ºdo C.C. também protegem o direito à imagem e à reserva sobre a intimidade da vida privada, concluindo que: «Todos os meios de prova que violem esses direitos fundamentais e de personalidade, são, em si, materialmente proibidos».
Germano Marques da Silva (in. Ob. Loc. Cit., pág.s 101 a 102) vai mais longe e desmonta o argumento da tese intermédia que supra enunciámos, ao afirmar claramente que: «É manifesto que com a proibição de prova se pode sacrificar a verdade, já que a prova proibida, seja qual for a causa da proibição, pode ser de extrema relevância para a reconstituição do facto histórico, pode ser mesmo a única. Um facto pode ter de ser julgado como não provado simplesmente porque o meio que o provaria não pode ser valorado no processo, é um meio de prova proibido. / Simplesmente, como já por várias vezes foi referido, o CPP/87 não considera a busca da verdade como um valor absoluto e por isso não admite que a verdade possa ser procurada, usando de quaisquer meios, mas tão-só através de meios justos, ou seja de meios legalmente admissíveis. A verdade não é um valor absoluto e, por isso, não tem de ser investigada a qualquer preço, mormente quando esse “preço” é o sacrifício dos direitos das pessoas» (sublinhado nosso).
No mesmo sentido do exposto estão, por exemplo, para além dos citados nas contra-alegações de recurso, os Acórdãos da Relação de Lisboa de 24/10/2013 – relator: Tibério Silva; e da Relação de Guimarães de 16/02/2012 – Relator: José Rainho - disponíveis em www.dgsi.pt.) Aliás, este mesmo coletivo, da 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, já defendeu esta mesma posição em acórdão de 17 de março de 2020, Proc. n.º 21611/15.4T8LSB.L1-B – que supomos não estar publicado – ainda que esta não fosse a questão central para o julgamento daqueles autos.
No caso, há que relevar, não só que a situação concreta dos autos preenche em abstrato a previsão do crime de “gravações e fotografias ilícitas”, p. e p. no Art. 199.º n.º 1 al. a) do C.P., como o facto de a A. pretender apresentar queixa-crime contra a R., como deixou consignado em requerimento nos autos, sendo assim manifesta a oposição à produção desse meio de prova.
De realçar ainda que o dever de cooperação, imposto por lei também às partes, para a descoberta da verdade, tal como consagrado no Art. 417.º do C.P.C., admite recusa legítima, nomeadamente se a sua obediência importar violação da integridade moral das pessoas e uma intromissão em telecomunicações (Art. 417.º n.º 3 al.s a) e b) do C.P.C.). Portanto, em substância, não havia fundamento para impor à 1.ª A. um dever de colaboração, consentindo na reprodução da gravação de conversação telefónica realizada sem o seu consentimento. Acresce que, nos termos do processo penal, as reproduções mecânicas da voz e, portanto, as “gravações”, só podem valer como meio de prova se não forem ilícitas nos termos da lei penal (cfr. Art. 167.º n.º 1 do C.P.P.), o que nos reconduz de novo ao crime previsto e punido no Art. 199.º n.º 1 al. a) do C.P..
Como vimos, a nossa lei processual tomou posição sobre a ponderação entre a tutela dos direitos pessoais violados com a obtenção da prova ilícita e a utilização dos meios necessários ao alcance do fim pretendido alcançar com a atividade jurisdicional, dando clara prevalência aos direitos pessoais.
Se as autoridades ligadas à investigação criminal não podem usar de gravações de conversações telefónicas que não tenham previamente sido autorizadas por juiz, de acordo com os procedimentos legais estabelecidos (v.g. Art.s 187.º e 188.º do C.P.P.), que justificação poderia haver para permitir semelhante procedimento para pessoas privadas, em manifesta violação de direitos pessoais com gozam de tutela civil (Art.s 70.º e ss do C.C.), penal (Art. 199.º n.º 1 al. a) do C.P.) e constitucional (Art. 26.º e 32.º n.º 8 da C.R.P.).
Admitir interpretação diversa consistiria na introdução de entorse no sistema, permitindo ao infrator obter benefício de forma ilegítima, porque usando de método contrário a lei imperativa.
Exige-se necessariamente ponderar a coerência do sistema. Nessa medida, também não faria qualquer sentido que uma gravação não pudesse servir de meio de prova em processo penal, mas por razões de mera circunstância, pudesse valer em processo civil, relembrando-se aqui que, em abstrato, é possível que os mesmos factos possam ser objeto de julgamento em Tribunal Cível e em Tribunal Criminal, o que poderia conduzir a decisões judiciais contraditórias, que o sistema deve evitar por se traduzirem em situações que causam descrédito para a ação da justiça.
Portanto, não vemos como superar estas limitações legais, fundadas na tutela de direitos fundamentais consagrados na Constituição, nomeadamente quando nesta ação está em causa um mero conflito de interesses de natureza patrimonial eminentemente privados, ainda que esgrimidos em Tribunal, no âmbito dum processo civil.
Em conformidade, improcedem as conclusões apresentadas em sentido diverso do exposto, devendo a decisão recorrida ser mantida nos seus precisos termos.
V- DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente, por não provada, a presente apelação, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
- Custas pela Recorrente (Art. 527.º do C.P.C.).
Lisboa, 2 de fevereiro de 2021
Carlos Oliveira
Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva