I - O cheque, enquanto documento que consubstancia um título de crédito, não opera, por si, a extinção da obrigação jurídica a cujo pagamento se dirige, constituindo tão-só um meio para alcançar esse desiderato. Mas a entrega do cheque cria expectativas ao tomador do mesmo, consubstancia uma promessa de pagamento.
II - A emissão de um cheque não se limita a traduzir uma ordem de pagamento a um estabelecimento bancário a favor de um terceiro pois que constitui também o reconhecimento de uma obrigação pecuniária em relação a esse terceiro.
III - A provisão e a convenção de cheque são simples condições de regularidade de emissão do cheque, não constituindo requisitos da sua validade jurídica (art.º 3, in fine, da LUCh).
IV - Não se pode considerar constituído, ou reforçado, o sinal pelo executado por via de um cheque que se encontra naquelas condições (devolvido por falta de provisão) mas, mesmo assim, assistiria ao exequente o direito de obter a cobrança do mesmo através do processo de execução, desde que se mantivesse em vigor o contrato, isto é, não houvesse resolução do contrato-promessa.
V – “O Executado [que] desistiu da exploração do estabelecimento e entregou as chaves do imóvel à senhoria, em finais de 2011, facto de que deu conhecimento ao exequente a quem voltou a comunicar, nessa altura, que desistia do negócio e do contrato", consubstancia uma declaração de vontade de não cumprir pois que se trata de uma declaração inequívoca, clara, séria, categórica e definitiva a manifestar o propósito de não outorgar o contrato prometido, declaração que, tem de ser indubitável (como foi), dispensando a interpelação admonitória.
1- Em 29.01.2013, e por apenso aos autos de execução comum em que é exequente AA e executado BB, veio este deduzir embargos de executado, pedindo a extinção da execução.
A fundamentar o peticionado, alegou, em síntese, que a quantia titulada pelo cheque não é devida, porquanto o mesmo foi entregue para servir de caução ao trespasse acordado em contrato promessa celebrado entre exequente e executado e para certificar o preço ajustado, tendo o exequente ficado obrigado a devolvê-lo ao executado no momento da outorga da escritura, que não se chegou a concretizar, sendo certo que este já havia entregue como sinal e princípio de pagamento do preço a quantia de €20.000, faltando entregar €15.000.
2- Foi proferido despacho a admitir, liminarmente, a oposição e a ordenar a notificação do exequente para, querendo, contestar, o que este fez, pugnando pela improcedência da oposição e prosseguimento da execução.
3- Foi dispensada a seleção da matéria de facto, e realizou-se julgamento, tendo sido fixada a matéria de facto relevante.
4- Em 17.4.2019 foi proferida sentença que julgou os embargos de executado totalmente improcedentes.
5- Não se conformando com o teor da decisão, apelou o executado/embargante, e efetuado o julgamento, acordaram os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em “julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida que se substitui por outra a julgar procedentes os embargos, e extinta a execução”.
6- Inconformado com o decidido pela Relação, interpõe recurso de Revista para este STJ o exequente/embargado, e formula as seguintes conclusões:
“1. O presente Recurso versa apenas sobre a matéria de direito.
2. O tribunal que se recorre não está a interpretar bem as normas de direito.
Uma vez que a 13/04/2010 quando o recorrente/aqui também Exequente apresentou o cheque ao banco não havia ainda intenção por parte do Executado de incumprir tal contrato, ou se havia o Exequente desconhecia.
3. O que ficou provado é que o devedor/Executado, permaneceu no estabelecimento ainda durante mais de um ano. – facto 14 provado pelo trib. 1ª Inst. “O executado desistiu da exploração do estabelecimento e entregou as chaves do imóvel á senhoria em finais de 2011::” (…) “nessa altura que desistia do negócio e do contrato” – sublinhado nosso.
4. Logo desde Abril de 2010 a finais de 2011, o Executado poderia ter cancelado o cheque junto do Banco, que seria uma reacção expectável, caso tivesse ocorrido algum lapso na respectiva emissão, ou tivessem sido alterados os pressupostos que estiveram na origem da emissão do mesmo. Pelo contrário o cheque veio a ser devolvido pela falta de provisão.
5. Não tendo sido demonstrada ou alegada a falta de qualquer pressuposto de que dependa a validade do cheque dado á execução como tal, nem tendo- se verificado qualquer excepção respeitante á relação subjacente á emissão do mesmo, estes consideram-se nessa conformidade documentos válidos.
6. E o Exequente em nada incumpriu o Contrato de Promessa.
7. A sentença recorrida entendeu, que de modo não apropriado que a falta de provisão se tratou de um incumprimento definitivo.
8. O que facto não aconteceu, pese embora ter havido incumprimento, o Executado continuou a usufruir do estabelecimento. - Constituindo-se assim o Executado em mora.
9. A consequência legal e contratual associada aos contratos de promessa, não parece que tenha sido a mais apropriada, a aqui aplicada, impondo-se que seja alterada.
10. Efectivamente, no caso em apreço, o contrato promessa de Trespasse, não deverá ter a consequência de um negócio viciado, por nunca ter sido invocado, nos termos do 289 nº 1, nem por força do preceituado artº 474 ambos do CC deverá o fiel cumpridor ser penalizado.
11. o cheque destinado ao pagamento de reforço de sinal do contrato de promessa de Trespasse, com tradição do imóvel, foi apresentado a pagamento no prazo de 8 dias, tendo sido devolvido por falta de provisão.
12. O Exequente aqui recorrente, alegou sumariamente a relação causal subjacente á emissão daquele documento particular.
13. Instou o Executado a pagar, que por sua vez não pagou, mas continuou a usufruir do estabelecimento, como se ainda tivesse interesse no negócio.
14. Tendo a presente acção executiva dado entrada dentro dos seis meses.
15. Não tendo sido demonstrada ou alegada a falta de qualquer pressuposto de que dependa a validade do cheque dado á execução como tal;
16. Nem tendo-se verificado qualquer excepção respeitante á relação subjacente á emissão do mesmo, sendo considerados nessa conformidade documentos válidos.
17. Tendo havido uma interpretação que viola as normas constantes nos art 410, 440, 442 do CC art 22 da LUC, art 45 nº 1 CPC (na versão aplicável aos autos) pelo tribunal a quo.
Nestes termos e no mais de direito, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., ao recurso intentado pelo Exequente/Recorrente deve ser dado Provimento, com a consequente confirmação da sentença proferida pelo tribunal da 1ª instância”.
7- Contra-alegou o embargante/executado e formulou as seguintes conclusões:
“1- Ao contrário do alegado pelo recorrente, não existe qualquer erro na apreciação da prova pelo Tribunal da Relação de Lisboa e também não se verifica, no acórdão recorrido, a violação das normas constantes dos artigos 410º, 440º e 442º do Código Civil, do artigo 22º da LUC e do artigo 45º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
2- Para sustentar o alegado erro o recorrente argumenta que o cheque dos autos é válido como título executivo, que a execução foi tempestivamente instaurada, que na data em que o cheque foi posto a pagamento (14-10-2010) não existia a intenção por parte do promitente trespassário de incumprir o contrato e que o incumprimento definitivo só se verificou em finais de 2011.
3- Sucede que não está em causa nem a validade do cheque como título executivo nem a regularidade da ação executiva.
4- Sendo que, conhecendo de tal questão, o acórdão recorrido até foi do entendimento de que o cheque era apto a constituir-se como título executivo, assim refutando o que havia sido alegado pelo ora recorrido no recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.
5- Dizendo existir erro do Tribunal recorrido na apreciação da prova, o recorrente fundamenta esse invocado erro alegando matéria em que não se vislumbra qualquer discordância com o entendimento expresso no acórdão de que recorre.
6- Como evidencia e bem o acórdão recorrido, a questão a apreciar e a decidir prende-se com a exigibilidade ou a não exigibilidade da quantia titulada no cheque (e não com a validade deste como título executivo).
7- Para apreciar dessa questão, impunha-se, por um lado, que fosse conhecido a que título havia sido entregue o cheque pelo promitente trespassário e aqui recorrido ao promitente trespassante e aqui recorrente e, por outro, que se conhecesse do cumprimento ou do não cumprimento do contrato promessa de trespasse outorgado pelas partes.
8- Conhecimento esse que se encontra explícito no acórdão recorrido e sobre o qual a alegação do recorrente é totalmente omissa, não apresentando qualquer juízo crítico ao entendimento do Tribunal da Relação de Lisboa sobre tal matéria.
9- Sendo que nesse entendimento, sabiamente estribado em dados jurisprudenciais e em dados doutrinários, o Tribunal recorrido concluiu ter-se verificado o incumprimento definitivo do contrato promessa de trespasse por parte do promitente trespassário quando, em finais de 2011, procedeu à entrega das chaves do estabelecimento e na mesma altura comunicou ao promitente trespassante não apensas essa entrega mas também que desistia do contrato e do negócio (factos dados por provados na sentença do tribunal de 1ª instância).
10- Tendo ainda concluído que, de acordo com o disposto na cláusula 7ª do contrato promessa, o cheque dos autos fora entregue a título de reforço do sinal, facto que o recorrente não põe em causa.
11- Como também não põe em causa que tenha ocorrido o incumprimento definitivo do contrato promessa, como se alcança da própria alegação do recorrente quando diz “…na verdade, há um erro na apreciação da prova pelo Tribunal da Relação de Lisboa porquanto este incumprimento definitivo do contrato de promessa só ocorreu pelo executado em finais de Novembro de 2011”.
12- É certo que, num outro passo, expresso ainda nos pontos 7) e 8) das conclusões, a alegação do recorrente refere que “a sentença recorrida, de modo não apropriado, entendeu que a falta de provisão do cheque se tratou de um incumprimento definitivo, o que de facto não aconteceu (…) constituindo-se assim o executado em mora”.
13- Porém, como dá conta o acórdão recorrido, o incumprimento definitivo do contrato promessa de trespasse não resultou do não pagamento do cheque, por falta de provisão, tendo antes resultado da atuação do promitente trespassário quando procedeu à entrega das chaves do estabelecimento e comunicou ao promitente trespassante que desistia do contrato e do negócio.
14- O recorrente também alega que o contrato promessa de trespasse “não deverá ter a consequência de um negócio viciado”. Com o mais elevado respeito, pensa o recorrido que a alegação em apreço é de todo irrelevante, porquanto não determina o vício a que reporta, a que acresce o facto da questão não ter sido apreciada nem posta em equação no acórdão recorrido.
15- Do não pagamento do cheque por falta de provisão e sendo o cheque um meio de pagamento que só se concretiza após ser recebido o valor que titula, o acórdão recorrido retirou que o reforço do sinal (€ 35.000,00) a que tal cheque se destinava, nos termos do contrato promessa, não se chegou a constituir.
16- Matéria e entendimento que também não é posta em causa no recurso do recorrente.
17- Perante o não pagamento do cheque e consequentemente a não constituição do reforço do sinal e perante ainda o incumprimento definitivo do contrato promessa, impunha-se (como se impõe) que a questão em decisão fosse apreciada à luz do regime legal que regula o incumprimento definitivo do contrato promessa e não à luz da validade do cheque como título executivo (como pretendido pelo recorrente), tanto mais que, como mencionado no acórdão recorrido, quando o promitente trespassante instaurou a ação executiva, em 2012, há muito que ocorrera o incumprimento definitivo do contrato promessa de trespasse.
18- Foi justamente isso que fez o Tribunal da Relação de Lisboa, decidindo que, de acordo com o regime do artigo 442º, do Código Civil, ao promitente trespassante não assiste o direito a ser ressarcido do incumprimento definitivo do contrato promessa através do reforço do sinal já que este não se chegou a constituir, seja, que não lhe asiste o direito a exigir a quantia titulada no cheque dos autos.
19- Decisão absolutamente conforme e totalmente ajustada, pelo que não passível de qualquer reparo, em particular do reparo alegado pelo recorrente.
20- Ao recorrente assistia o direito a fazer seu, como de facto fez, o valor recebido a título de sinal quando da outorga do contrato promessa de trespasse, no montante de € 15.000,00, como estipulado na alínea a) da cláusula 4ª do contrato promessa. Contudo, perante a não constituição do reforço do sinal, não lhe assistia, como não assiste, o direito a fazer seu o valor desse reforço (€ 35.000,00), entendimento que encontra cabal sustentação no acórdão recorrido.
Nestes termos, nos melhores de direito e sempre com o superior suprimento de Vossas Excelências, deve ser negado provimento ao recurso do recorrente, mantendo-se o douto acórdão recorrido”.
Dispensados os vistos cumpre apreciar e decidir.
“O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos, que não foram impugnados:
1. O executado preencheu, assinou e entregou ao exequente o cheque nº …, do Banco Santander Totta, datado de 2010/04/10, no valor de €35.000,00, junto ao requerimento executivo como docs. 1 e 2.
2. O referido cheque foi apresentado a pagamento pelo Exequente e devolvido por falta de provisão.
3. Em finais de setembro de 2009 o executado respondeu a um anúncio de jornal para trespasse de um estabelecimento de comércio de carnes (talho), sito em Queluz, indicando como preço, negociável, a importância de €50.000,00.
4. Após contactarem um com o outro, Exequente e Executado chegaram a um entendimento quanto aos termos do trespasse.
5. No dia 09 de outubro de 2009, a título de sinal e princípio de pagamento, o executado entregou ao exequente um cheque, no valor de €15.000,00.
6. Em documento escrito, assinado pelo exequente, este declarou ter recebido a dita importância.
7. No dia 17 de outubro de 2009, o executado e o exequente assinaram o contrato promessa que se encontra junto ao requerimento executivo como doc. nº 3, no qual, além do mais, estabelecem as partes que o preço total do trespasse a que respeita é de €50.000,00, sendo pago da seguinte forma: €15.000,00 já pagos a 9 de outubro de 2010 (Existe manifesto lapso de escrita, pretendendo o tribunal recorrido escrever “9.10.2009”, como resulta do encadeamento dos factos provados e do teor do contrato promessa junto ao requerimento executivo), e €35.000,00 até dia 10 de abril de 2010.
8. Mais estabeleceram as partes que os segundos outorgantes tomarão posse do estabelecimento a 29 de outubro.
9. Do referido contrato consta como primeiro outorgante o Exequente, e como segundos outorgantes o Executado e a Executada, tendo, no entanto, o mesmo sido apenas assinado pelo Exequente e pelo Executado ora Opoente.
10. No mesmo dia 17 de outubro de 2009, o exequente e a sua esposa, e o executado e a sua esposa, subscreveram contrato promessa, por todos assinado, em tudo idêntico, nos seus termos, ao acima referido, mas no qual se estabelece que o preço total do trespasse a que respeita é de €20.000,00, sendo pago da seguinte forma: €15.000,00 já pagos a 9 de outubro de 2010 (Existe manifesto lapso de escrita, pretendendo o tribunal recorrido escrever “9.10.2009”, como resulta do encadeamento dos factos provados e do teor do contrato promessa junto a fls. 20/21), e €5.000,00 até dia 10 de abril de 2010.
11. Conforme acordado (em qualquer das versões acima referidas), o Executado tomou posse do estabelecimento, que começou a explorar, no dia 29.10.2009.
12. A escritura prevista no contrato promessa (em qualquer das versões acima referidas) não chegou a ser realizada, ou marcada.
13. No contrato promessa (em qualquer das versões acima referidas) não previram as partes a quem caberia a marcação da escritura.
14. O Executado desistiu da exploração do estabelecimento e entregou as chaves do imóvel à senhoria, em finais de 2011, facto de que deu conhecimento ao exequente a quem voltou a comunicar, nessa altura, que desistia do negócio e do contrato.
Nos termos do disposto no art. 607, nº 4 do CPC, aplicável ex vi do disposto no art. 663, nº 2 do mesmo diploma legal, têm-se, ainda, como assentes os seguintes factos:
15. No contrato promessa (em qualquer das versões acima referidas) ficou estipulado na cláusula 8ª que o contrato definitivo seria celebrado no prazo de seis meses a contar da data da assinatura do contrato-promessa.
16. É do seguinte teor o requerimento executivo: “Factos:
O Executado entregou ao Exequente um cheque no valor de 35.000,00€ com data aposta de 10/04/2010 que este depositou no Banco a 13/04/2010 cfr. doc. 1 e 2 que se junta. Cheque este que não teve provisão. Pelo que o exequente ainda teve de pagar 30,00€. A entrega deste cheque do ora Executado ao ora Exequente, destinava-se ao cumprimento da cláusula terceira e quinta do contrato de promessa de trespasse cfr. doc. 3, que se junta e se dá por integralmente reproduzido.
O referido contrato foi assinado a 17 de outubro de 2009 e foi acordado o trespasse do estabelecimento comercial de comércio de carnes, sito na rua …., …. nº …, ….
O valor acordado pelo Trespasse entre o Exequente e o Executado foi de 50.000,00€ (tal como está previsto no art. 3 do contrato).
Este valor seria pago por duas vezes, a 9 de outubro de 2009 a quantia de 15.000,00€ e até 10 de abril de 2010 a quantia de 35.000,00€. (Tal como é referido Cláusula 5ª do referido Contrato).
O primeiro valor de 15.000,00€ foi pago e consequentemente o Exequente entregou as chaves do estabelecimento ao Executado, com todo o equipamento e bens acordados.
O valor de 35.000,00€ foi titulado pelo cheque nº … do Banco Santander Totta emitido e assinado por BB titular da conta …, o qual foi devolvido por falta de provisão, dando origem à presente ação judicial.
Tendo feito várias tentativas junto do ora executado para este proceder ao pagamento da dívida no valor do cheque de 35.000,00€ o Exequente viu todos os seus esforços inúteis.
Assim sendo, e nos termos do art. 46 nº 1 alínea c) do C.P.C. se requer a execução e a penhora dos valores em dívida a ambos os Executados por serem casados no regime de comunhão de adquiridos.
À data da instauração da presente execução venceram-se juros à taxa anual de 8% até 30/6/2011 e à taxa de 8,25% de 1/7/2011 até 23/2/2012, totalizando o valor de 5.300,00€.
Pelo que atualmente são os Executados devedores à Exequente a quantia de 40.330,80€. E sendo ainda os executados responsáveis pelo pagamento de juros, que se venceram sobre a quantia 40.330,80€ desde a data da instauração da presente ação executiva até integral pagamento”.
1. O preço total acordado pelas partes para o trepasse acima referido foi de € 35.000,00.
2. O Exequente acordou com o Executado em dar sem efeito o contrato acima referido nos pontos 7 a 9 dos factos provados, substituindo-o pelo referido no respetivo ponto 10.
3. O contrato acima referido sob o ponto 10 dos factos provados foi inutilizado no próprio dia da sua assinatura.
4. Na mesma ocasião, o exequente pediu ao executado que lhe entregasse o cheque acima referido no ponto 1 dos factos provados, o qual visava caucionar o bom cumprimento do contrato, sendo o seu valor o do preço total acordado para o trespasse, adiantando que o mesmo lhe seria devolvido com a outorga da escritura.
5. Esse cheque caução deveria ser no valor do trespasse uma vez que, como o valor inscrito no contrato promessa não correspondia ao acordado, o cheque sempre traduzia o preço do trespasse de facto acertado.
São as questões suscitadas pelo recorrente e constantes das respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar – artigos 608, 635, nº 3 a 5 e 639, nº 1, do C.P.C.
O título executivo que serve de base à execução para pagamento de quantia certa é um cheque, não pago e devolvido por falta de provisão.
No caso em análise não se questiona a validade desse cheque como título executivo, como título de crédito, ou como mero quirógrafo.
Isto é aceite, pelo recorrido, ao referir na conclusão 3ª que, “3- Sucede que não está em causa nem a validade do cheque como título executivo nem a regularidade da ação executiva.
A questão a apreciar e a decidir prende-se com o contrato fundamento da relação subjacente à emissão do cheque, um contrato promessa de trespasse de um estabelecimento em que o exequente/embargado era trespassante e o embargante/executado era trespassário e avaliar da validade ou do incumprimento e da eventual resolução desse contrato promessa e, consequentemente, decidir da exigibilidade ou a não exigibilidade da quantia titulada no cheque pela via seguida, execução desse cheque.
Como refere o Ac. recorrido, “O cheque é um título cambiário, que enuncia uma ordem de pagamento, dirigida a um banqueiro, no estabelecimento do qual o emitente tem fundos disponíveis. É um meio de pagamento e, só após recebido o valor que titula, se concretiza esse pagamento. A dívida não se extingue pela entrega do cheque, que não se sabe se será ou não pago”.
Ou seja, o cheque, enquanto documento que consubstancia um título de crédito, não opera, por si, a extinção da obrigação jurídica a cujo pagamento se dirige, constituindo tão-só um meio para alcançar esse desiderato. Mas a entrega do cheque cria expectativas ao tomador do mesmo, consubstancia uma promessa de pagamento.
O cheque é um título de crédito mediante o qual o sacador dá uma ordem de pagamento à vista a um sacado para que pague determinada quantia, em regra a favor de terceiro, o tomador, por conta dos fundos disponíveis junto do sacado, que terá de ser forçosamente um banco, o que resulta do art. 3 da LUCh.
Com a entrega do cheque, ou seja, a partir do momento em que o emitente põe o cheque em circulação, até ao termo do prazo legal para a sua apresentação a pagamento, o sacador obriga-se a manter a conta devidamente provisionada, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 28, 29 e 40 da LUCh.
A convenção de cheque, consubstancia o contrato celebrado entre o banco e o titular de uma conta bancária que atribui ao cliente a faculdade de utilizar os fundos disponíveis através de cheques disponibilizados pelo banco, o qual fica vinculado a honrar o pagamento incorporado no título.
A falta de provisão destrói a convenção de cheque, comprometendo irremediavelmente, quando não seja, em tempo oportuno, regularizada a subsistência deste contrato. Neste sentido cfr. Olavo Cunha, Cheque e Convenção de Cheque (2009), pág. 577.
Na convenção de cheque tudo se passa entre o banco e o titular da provisão, não sendo o portador parte nessa convenção.
No caso em análise não houve revogação (art. 32 da LUCh) da ordem de pagamento resultante da convenção de cheque, mas falta de fundos do sacador no banco sacado, e pelo facto de o sacador não dispor de fundos na sua conta de depósitos suficientes para o pagamento do cheque, não havia, por parte do banco sacado, a obrigação de pagar o valor nele inscrito.
A provisão e a convenção de cheque são simples condições de regularidade de emissão do cheque, não constituindo requisitos da sua validade jurídica (artº 3, in fine, da LUCh) pelo que a devolução do cheque, em lugar do seu pagamento, por falta de provisão, constituindo mera irregularidade, mantem o cheque válido, embora irregular, o que leva o sacador a incorrer em responsabilidade civil e penal.
Donde resulta que o cheque é um título abstrato: pressupõe uma relação subjacente, mas o efeito cartular não fica dependente da existência e regularidade da relação de provisão: se ela não existir, o direito cartular não é posto em causa; a única consequência é a impossibilidade de o portador se satisfazer através do sacado, dirigindo-se o seu direito apenas contra o sacador, cuja assinatura dá, aliás, a garantia mínima do cheque.
E foi o que aconteceu, instaurando-se a execução contra o sacador.
Isto para concluirmos, como acima dissemos que não está em causa a exequibilidade do cheque, mas sim a exigibilidade da quantia exequenda uma vez que, estando no domínio das relações imediatas, interposto o processo de embargos, neste se discute a relação subjacente, contrato promessa de trespasse.
Os factos provados demonstram claramente que entre o exequente e o executado foi celebrado um contrato promessa e na data da celebração, 09 de outubro de 2009, o executado entregou ao exequente 15000,00€ a título de sinal e princípio de pagamento.
E desconhecendo-se a data da emissão, foi entregue o cheque dos autos datado de 2010/04/10, no valor de €35.000,00, que veio a ser devolvido por falta de provisão.
O embargante tomou posse do estabelecimento a 29 de outubro de 2009 e explorou o mesmo até finais de 2011, altura em que entregou as chaves do imóvel à senhoria, facto de que deu conhecimento ao exequente a quem voltou a comunicar, nessa altura, que desistia do negócio e do contrato.
Mas dos factos provados resultam duas versões do contrato promessa de trespasse (divergentes quanto ao montante do trespasse, uma versão no valor de 50.000,00€ (15.000€ na data da celebração e os 35.000,00€ do cheque) e outra versão no valor de 20.000,00€ (15.000,00€ na data da celebração e 5.000,00€ até 10 de abril de 2010) desconhecendo-se se qual a versão originária ou qual a versão que veio substituir.
Esquisito (duas partes e três versões) é a verificação de uma terceira versão (constante dos factos não provados) onde se diz que o valor do trespasse foi acordado em 35.000,00€ e que o cheque servia apenas de caução.
Ao executado/embargante competia fazer prova da relação jurídica existente e que abalasse a relação causal constante do cheque dado à execução, nos termos do art. 342, nº 2 do CC, a prova dos factos impeditivos compete àquele contra quem a invocação é feita.
A emissão de um cheque não se limita a traduzir uma ordem de pagamento a um estabelecimento bancário a favor de um terceiro pois que constitui também o reconhecimento de uma obrigação pecuniária em relação a esse terceiro. Exceto se se provar que não foi essa (pagamento) a finalidade do cheque.
Assim que se concorda com o referido no acórdão recorrido que, o executado “Aceitando ter subscrito o cheque dado à execução, e sabendo-se que a emissão de um cheque não se limita a traduzir uma ordem de pagamento a um estabelecimento bancário a favor de um terceiro, mas constitui, também, o reconhecimento de uma obrigação pecuniária em relação a esse terceiro, incumbia-lhe demonstrar a inexistência da obrigação causal subjacente”.
E dispõe o artigo 441 do CC que “No contrato-promessa de compra e venda presume-se que tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço”.
Mas o sinal só é prestado (só é entreque quantia a título de sinal) quando o cheque, através do desconto, se converte em dinheiro, e não com a entrega do cheque. Até ao desconto, o tomador do cheque apenas tem expectativas (pela promessa que o mesmo encerra), legitimas e tuteladas, apenas se o contrato estiver em vigor.
Como ensina Vaz Serra (RLJ, ano 109º, pág. 220), “... a emissão e entrega de um cheque não extinguem, em princípio, a obrigação causal, significando apenas uma datio pro solvendo (Cód. Civil, art. 840º )”, em vista do que “o crédito para cuja segurança foi entregue o cheque só se extingue com a cobrança dele e na respetiva medida”.
Não se pode considerar constituído, ou reforçado, o sinal pelo executado por via de um cheque que se encontra naquelas condições (devolvido por falta de provisão) mas, mesmo assim, assistiria ao exequente o direito de obter a cobrança do mesmo através do processo de execução, desde que se mantivesse em vigor o contrato, isto é, não houvesse resolução do contrato-promessa.
Desconhece-se o que (relativamente ao cumprimento do contrato promessa e à devolução do cheque) fez o exequente no período entre os esforços inúteis que fez para receber o montante do cheque (meados de 2010?) e, a data da entrega das chaves, pelo executado, à senhoria : “O Executado desistiu da exploração do estabelecimento e entregou as chaves do imóvel à senhoria, em finais de 2011, facto de que deu conhecimento ao exequente a quem voltou a comunicar, nessa altura, que desistia do negócio e do contrato”.
Certo é que não instaurou execução, e nesta data, finais de 2011, o executado revelou o seu incumprimento definitivo do contrato promessa. A desistência da exploração, a entrega das chaves à senhoria, facto de que deu conhecimento ao exequente e a comunicação a este de que desistia do negócio e do contrato, constituem declarações expressas de resolução do contrato.
Consubstancia uma declaração de vontade de não cumprir pois que se trata de uma declaração inequívoca, clara, séria, categórica e definitiva a manifestar o propósito de não outorgar o contrato prometido, declaração que, tem de ser indubitável (como foi), dispensando a interpelação admonitória.
Foi resolvido o contrato promessa e o exequente não veio peticionar o pagamento do cheque (sinal) ao abrigo do regime previsto no art. 442, nº 2 do Código Civil, mas peticionou a realização das expectativas criadas pelo contrato promessa, sem ter em conta a resolução do contrato promessa que havia ocorrido.
As expectativas no contrato promessa são tuteladas pela emissão e entrega ao exequente do cheque em causa e é a sua cobrança coerciva que ele pretende nesta execução. Mas já não havia contrato promessa quando a execução foi instaurada.
“O cheque não constitui um pagamento em si mesmo, mas um meio de pagamento. A obrigação só se extingue quando a prestação for satisfeita, ou seja, quando o banco sacado paga”, Ac. STJ de 15.1.2002, Recurso 4178/01 da 6ª secção.
O cheque só constituiria título executivo exigível se ao ser dado à execução ainda se mantivesse o contrato promessa que lhe estava subjacente.
Assim que se concorda com o concluído no acórdão recorrido, “No caso, o reforço de sinal, titulado pelo cheque dado à execução, não se constituiu, não tendo sido entregue qualquer quantia em dinheiro ao exequente, uma vez que o cheque não foi pago por falta de provisão.
E quando (em 2012) o promitente trespassante intenta a ação executiva de que os presentes autos são apenso com vista a obter o pagamento do cheque que titula o reforço do sinal, já o contrato promessa se encontrava definitivamente incumprido pelo promitente trespassário.
Ora, salvo melhor opinião, não assiste ao promitente trespassante o direito de se ver ressarcido do incumprimento definitivo do contrato promessa pelo promitente trespassário através de sinal que não se chegou a constituir, ou, noutra perspetiva, não lhe assiste o direito de pretender ver constituído o reforço de sinal do contrato promessa já incumprido”.
Face ao exposto, há-de ser julgado improcedente o recurso.
I-O cheque, enquanto documento que consubstancia um título de crédito, não opera, por si, a extinção da obrigação jurídica a cujo pagamento se dirige, constituindo tão-só um meio para alcançar esse desiderato. Mas a entrega do cheque cria expectativas ao tomador do mesmo, consubstancia uma promessa de pagamento.
II- A emissão de um cheque não se limita a traduzir uma ordem de pagamento a um estabelecimento bancário a favor de um terceiro pois que constitui também o reconhecimento de uma obrigação pecuniária em relação a esse terceiro.
III- A provisão e a convenção de cheque são simples condições de regularidade de emissão do cheque, não constituindo requisitos da sua validade jurídica (artº 3, in fine, da LUCh).
IV- Não se pode considerar constituído, ou reforçado, o sinal pelo executado por via de um cheque que se encontra naquelas condições (devolvido por falta de provisão) mas, mesmo assim, assistiria ao exequente o direito de obter a cobrança do mesmo através do processo de execução, desde que se mantivesse em vigor o contrato, isto é, não houvesse resolução do contrato-promessa.
V-“O Executado [que] desistiu da exploração do estabelecimento e entregou as chaves do imóvel à senhoria, em finais de 2011, facto de que deu conhecimento ao exequente a quem voltou a comunicar, nessa altura, que desistia do negócio e do contrato”, consubstancia uma declaração de vontade de não cumprir pois que se trata de uma declaração inequívoca, clara, séria, categórica e definitiva a manifestar o propósito de não outorgar o contrato prometido, declaração que, tem de ser indubitável (como foi), dispensando a interpelação admonitória.
Pelo exposto, acorda-se na 1ª Secção do STJ em julgar improcedente o recurso, nega-se a revista e mantém-se, o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 03-11-2020
Fernando Jorge Dias – Juiz Conselheiro relator
Nos termos do art. 15-A, do Dl. nº 10-A/2020 de 13-03, aditado pelo art. 3 do Dl. nº 20/2020 atesto o voto de conformidade dos srs. Juízes Conselheiros adjuntos.
Maria Clara Sottomayor – Juíza Conselheira 1ª adjunta
António Alexandre Reis – Juiz Conselheiro 2º adjunto