I - A obrigação de suscitar a questão prejudicial por parte do STJ, enquanto tribunal que decide em última instância, pressupõe que se verifique o pressuposto de intervenção do referido mecanismo, ou seja, quando no caso se imponha a interpretação e aplicação de norma(s) da UE relevantes para o julgamento da causa; não, quando apenas esteja em causa a interpretação das regras de direito nacional ou questões de facto suscitadas no litígio, como é o caso da demonstração da qualificação de consumidor para graduação de créditos num processo de insolvência (qualificação do crédito reclamado como comum ou garantido por efeito do direito de retenção previsto no art. 755.º, n.º 1, al. f), do CC).
II - Não se justificando que o STJ submeta a questão ao TJUE com recurso ao mecanismo do reenvio prejudicial não foi omitida formalidade de cumprimento obrigatório a influir na decisão por forma a ferir a decisão de nulidade por excesso de pronúncia.
III - Não se verifica nulidade da decisão por omissão de pronúncia sempre que a matéria tida por omissa tenha ficado decidida (implícita ou tacitamente) no julgamento da matéria com ela relacionada.
Acordam em conferência na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,
I - Relatório
1. AA e BB, credores reclamantes nos autos de reclamação de créditos apensos ao processo de insolvência referente a Edasfer – Sociedade de Construções, Lda., vieram arguir a nulidade do acórdão proferido nos autos, que julgou a revista improcedente e confirmou o acórdão do tribunal da Relação de Lisboa, que afastou a qualificação do crédito dos aqui Reclamantes como garantido por direito de retenção (decidida na sentença), classificando-o de comum, pela falta de verificação do pressuposto necessário ao reconhecimento desse direito: a qualidade de consumidores.
Invocam os Reclamantes que o acórdão enferma das seguintes nulidades:
- excesso de pronúncia, por decidir uma questão sem cumprimento das formalidades prévias obrigatórias;
- omissão de pronúncia, por não ter apreciado a questão relativa à afectação dos imóveis ao exercício de qualquer atividade lucrativa.
II - Apreciando
1.Relativamente à nulidade do acórdão por excesso de pronúncia, defendem os Reclamantes que estando em causa a interpretação de uma norma comunitária (conceito de «consumidor» definido no artigo 3.º, n.º 12, do Regulamento (EU) 2017/2394 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12-12-2017), não poderia o STJ, enquanto tribunal de último recurso, atento o que dispõe o artigo 267.º, do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE), recusar o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia por forma a esclarecer a referida questão.
Alegam ainda os Requerentes que não foi invocado no acórdão nenhum dos dois fundamentos (e únicos admissíveis) justificativos para não se proceder ao reenvio prejudicial para o TJUE.
Concluem, assim, que a omissão de acto (reenvio prejudicial para o TJUE) que a lei prescreve com influência na decisão da causa, constituindo formalidade de cumprimento obrigatório, acarreta a nulidade do acórdão por excesso de pronúncia.
O reenvio prejudicial constitui expediente jurídico-processual que visa garantir a uniformidade na aplicação e interpretação do direito da União Europeia. o TJUE.
Conforme se mostra sublinhado no acórdão reclamado, “o reenvio prejudicial é um mecanismo (…) do direito da União Europeia que visa garantir a interpretação e a aplicação uniformes deste direito na União, oferecendo aos órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros um instrumento que lhes permite submeter ao Tribunal de Justiça da União Europeia (…), a título prejudicial, questões relativas à interpretação do direito da União ou à validade dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.” (cfr. ponto 1. das “Recomendações à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais” - 2019/C 380/01).
Reportando-nos ao caso do reenvio prejudicial de interpretação, parece não haver dúvida de que, conforme referem os Reclamantes, tal instrumento se assume obrigatório quando a questão prejudicial é colocada junto de órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam susceptíveis de recurso judicial previsto no ordenamento jurídico interno, como é o caso do STJ.
Acresce que, igualmente se mostra pacífico, que a obrigação de suscitar a questão prejudicial por parte do STJ, enquanto tribunal que decide em última instância, não é absoluta, comportando excepcões, como reconhecem os Reclamantes.
Todavia, a questão da natureza obrigatória/facultativa do reenvio e suas excepções apenas assume cabimento se se verificar o pressuposto de intervenção do referido mecanismo, ou seja, quando se imponha a interpretação e aplicação de norma(s) da UE relevantes para o julgamento da causa, situação que não se coloca no caso sob apreciação como tivemos oportunidade de justificar no acórdão objecto de reclamação.
A esse propósito refere o acórdão “Apenas se justifica, pois, que o órgão jurisdicional nacional submeta uma questão ao TJUE com recurso ao mecanismo do reenvio prejudicial se o direito da União for aplicável ao processo principal, e não a interpretação das regras de direito nacional ou questões de facto suscitadas no litígio no processo principal (cfr. pontos 8. e 9. das Recomendações).
Ora, no caso presente, entendem os Recorrentes que a norma de direito da União Europeia que carece de interpretação é a que decorre do Regulamento (UE) n.º 2017/2394 (https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A32017R2394), em particular o seu artigo 3.º, n.º 12, na medida em que o conceito de consumidor aí consagrado não exclui a actividade de locação.
Simplesmente, da leitura do mencionado Regulamento, relativo à cooperação entre as autoridades nacionais responsáveis pela aplicação da legislação de proteção dos consumidores, resulta que o respectivo objecto e âmbito de aplicação se refere às “condições em que as autoridades competentes, que tenham sido designadas pelos respetivos Estados-Membros como responsáveis pela aplicação da legislação da União de proteção dos interesses dos consumidores, cooperam e coordenam entre si e com a Comissão as suas ações, a fim de fazer cumprir essa legislação e de assegurar o bom funcionamento do mercado interno, e de reforçar a proteção dos interesses económicos dos consumidores.” (cfr. artigo 1.º e 2.º).
No mais, é o artigo 3.º do Regulamento 2017/2394, sob a epígrafe “definições”, expresso em ressalvar que os termos aí referidos apenas valem para efeitos do Regulamento em causa, não se podendo transpor ou considerar aplicável, por conseguinte, para efeitos de outra legislação europeia e muito menos de cada Estado-membro.
Como tal, o conceito aí adoptado de consumidor como “qualquer pessoa singular que atue com fins que não se incluem no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional”, não pode justificar um pedido de reenvio prejudicial no caso presente em que está em causa uma graduação de créditos num processo de insolvência e a qualificação do crédito reclamado como comum ou garantido por efeito do direito de retenção previsto no artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do CC.
No mais, e mesmo que se apelasse ao conceito de “Legislação da União de proteção dos interesses dos consumidores”, a que alude a definição constante do n.º 1 do artigo 3.º do mencionado Regulamento e que remete para a lista de regulamentos e directivas constante do Anexo [note-se que na lista enunciativa dos 26 diplomas da União identificados no Anexo ao Regulamento 2017/2394, não se vislumbra que qualquer deles tenha como objecto a graduação de créditos referindo-se antes a diversos aspectos da relação contratual estabelecida com consumidores e contendo esses mesmos Regulamentos e Directivas uma definição de consumidor de âmbito limitado aos efeitos desse instrumento (v.g. art. 2.º, n.º 1, da Directiva n.º 2011/83/UE)], também não se vislumbra em que medida se poderia justificar a submissão de uma questão ao TJUE com recurso ao mecanismo do reenvio prejudicial uma vez que, do que nos é possível conhecer, a matéria do concurso de credores não é objecto dos Tratados ou de actos legislativos da União Europeia, pelo que se encontra arredada do direito primário ou derivado da União.
Em sede de processo insolvencial, a única regulada pelo Direito da União é aquela que respeita às insolvências transfronteiriças, sendo estas objecto do Regulamento n.º 2015/848 (Reformulado), de 20-05-2015, que não alterou fundamentalmente o quadro estabelecido pelo Regulamento n.º 1346/2000, de 29-05-2000, relativo aos processos de insolvência.
Conforme resulta do Considerando n.º 8, o Regulamento só pode ser aplicado aos processos de insolvência internacionais, ou seja, aqueles que produzam efeitos transfronteiriços, ficando os processos meramente internos excluídos do seu âmbito de aplicação (Cfr. Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, Almedina, 9.ª Edição, p. 399).
E mesmo tendo este por objecto regras de atribuição de competência internacional, de direito internacional privado e disposições relativas ao reconhecimento de decisões proferidas por diferentes Estados-membros, no que se refere à reclamação de créditos apenas disciplina aspectos de natureza formal (cfr. artigos 53.º a 55.º), sem que discipline, de forma alguma, a qualificação ou a graduação de créditos.”.
Assim sendo, como se mostra mencionado no acórdão não se vislumbrando qualquer norma de Direito da União que se possa aplicar ou careça de interpretação conforme ao Direito da União, em particular no que se refere à pretensão formulada pelos Recorrentes (de verem o seu crédito qualificado como garantido por efeito do direito de retenção consagrado internamente), ao ter sido decidido que não se encontravam reunidos “os requisitos para que se proceda à formulação de uma questão ao TJUE através do mecanismo do reenvio prejudicial”, não foi cometida qualquer nulidade por omissão de formalidade de cumprimento obrigatório a influir na decisão, pelo que, ao invés do pugnado pelos Reclamantes, não padece o acórdão de nulidade por excesso de pronúncia.
2. A nulidade por omissão de pronúncia (nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 1ª parte, do CPC, é nulo o acórdão quando “deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”) decorre da exigência prescrita no n.º 2 do artigo 608.º, do CPC, nos termos do qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.
Constitui posicionamento pacífico na doutrina e na jurisprudência quanto ao sentido a dar ao termo legal “questões”, distinguindo-o dos “argumentos” ou “razões” invocados pela parte, pelo que só a ausência de apreciação daquelas é determinante da nulidade em referência.
Igualmente tem vindo a ser uniformemente entendido que não há omissão de pronúncia sempre que a matéria tida por omissa ficou decidida, ainda que implícita ou tacitamente, no julgamento da matéria com ela relacionada.
Acresce que nada obriga a que o tribunal aprecie todos os argumentos invocados pelas partes, impondo-se apenas que indique a razão que serve de fundamento à decisão proferida.
2.1 Pugnam os Reclamantes pela nulidade do acórdão considerando que este tribunal não emitiu juízo sobre a questão que colocaram nas conclusões 20ª a 25ª do recurso.
Carecem de razão.
Referiram os Recorrentes nas indicadas conclusões:
“20ª – Tendo em conta o disposto no Regulamento Europeu, deveriam os Recorrentes ter sido considerados consumidores e, em consequência, ser-lhes reconhecido o direito de retenção, tal como se decidiu na Sentença da 1ª Instância;
21ª – Tanto mais que não se provou que os Recorrentes tenham afetado os imóveis prometidos ao exercício de qualquer atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional;
22ª - Assim, mesmo a acolher o conceito de consumidor constante do AUJ nº 4/2019, não podia ter-se concluído, como se conclui no Acórdão recorrido, que os Recorrentes não eram consumidores (negando-lhes, dessa forma, do direito de retenção);
23ª – Para além disso, não se apurou qual o valor recebido pelos Recorrentes a título de rendas nem os custos suportados por estes (nomeadamente a título de IMI, condomínio ou obras necessárias para poder locar os imóveis a terceiros);
24ª - Assim, os factos assentes nos presentes autos não permitem concluir que o arrendamento das frações fosse lucrativo para os Recorrentes;
25ª – Por tudo, pois, os Recorrentes deveriam ter sido considerados consumidores, à semelhança do decidido no Tribunal de 1ª Instância;
Conforme decorre do teor das referidas conclusões, a questão que os Recorrentes consideram não apreciada pelo tribunal constituiu o objecto da revista propriamente dito, no sentido da alteração do acórdão da Relação que, rejeitando a qualidade de consumidores atribuída aos Reclamantes na sentença, qualificou o crédito como comum.
Os Recorrentes ao pugnarem pela qualificação de consumidores centraram-se na defesa de um conceito amplo de consumidor (caracterizado pela não afectação dos imóveis ao exercício de actividade profissional nem a actividade lucrativa) que não foi (e, bem, a nosso ver) o acolhido pelo tribunal da Relação pois, como realçado no acórdão objecto de reclamação, o mesmo teve em conta a jurisprudência fixada pelo AUJ n.º 4/2019, optando pelo conceito restrito de consumidor (utilização do imóvel objecto do contrato-promessa para o uso particular, excluindo as situações de afetação a actividade profissional ou finalidade lucrativa, constituindo entendimento seguido neste Supremo que o arrendamento constitui destino com intuito lucrativo).
Os Recorrentes, na revista, vieram colocar em causa tal conceito através da invocação da inconstitucionalidade da interpretação feita pelo acórdão recorrido do artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil, e da necessidade de se proceder a reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia (com fundamento em que a decisão recorrida, ao adoptar o conceito de consumidor constante do AUJ n.º 4/2019, contrariou o disposto no artigo 3.º, n.º 12, do Regulamento (UE) 2017/2394, de 12-12-2017).
Foi perante tais contornos, como ressalta da transcrição que segue, que o acórdão proferido enquadrou, analisou e manteve o teor da decisão da Relação, dando com isso resposta às questões suscitadas na revista, designadamente, tendo em conta o entendimento sufragado pelos Recorrentes nas indicadas conclusões das suas alegações:
“Entendeu, pois, o acórdão, na esteira do que tem vindo a ser o posicionamento do STJ quanto à questão, citando vários arestos proferidos por este tribunal, que tendo ficado provado que os credores, aqui Recorrentes, destinavam as fracções objecto dos contratos-promessa a locação, e por isso, com intuito lucrativo, não revestiam a qualidade de consumidor por forma a lhes poder ser aplicável o AUJ n.º 4/2014, de 23-03 (…).
Com efeito, se é certo que o regime ínsito no artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil (doravante CC), não faz depender o direito de retenção atribuído ao beneficiário da promessa de transmissão do direito de propriedade sobre o imóvel da circunstância de o mesmo ser um consumidor, importa esclarecer que a aplicabilidade do segmento uniformizador do citado AUJ n.º4/2014 redunda numa “extensão” do regime do artigo 755.º, n.º1, alínea f), do CC, a situações que, à partida e em compaginação com o regime especial insolvencial (cfr. artigo 102.º, do CIRE), não se poderiam integrar naquele regime geral, que pressupõe a ocorrência de uma situação de incumprimento definitivo do contrato promessa.
Na verdade, o âmbito de aplicação daquele AUJ circunscreve-se às situações em que o credor promitente-comprador não obteve cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência (os denominados negócios em curso caracterizados por quanto a eles não se ter verificado incumprimento definitivo antes da declaração da insolvência), já que os contratos promessa que se encontrem incumpridos à data da declaração da insolvência (sujeitos ao regime geral do artigo 755.º, n.º1, alínea f), do CC) não podem configurar a situação de o administrador não os cumprir.
É de acordo com estes parâmetros que importa apreciar a pretensão dos Recorrentes de lhes ser reconhecido o direito de retenção sobre o crédito reconhecido (atenta a qualidade de promitentes compradores no negócio firmado com a Insolvente) sob a invocação da inconstitucionalidade da interpretação feita pelo acórdão recorrido do artigo 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil, e suscitando ainda a necessidade de se proceder a reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia (doravante TJUE).”.
Assim sendo, tendo em linha de conta o teor do acórdão proferido e as razões nele exaradas em termos de justificar a manutenção da decisão da Relação, somos de entender que se mostra plenamente evidenciada a não verificação da nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
III – Decisão
Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em indeferir as nulidades suscitadas.
Custas pelos Requerentes.
Lisboa, 12 de Janeiro de 2021
Graça Amaral (Relatora)
Henrique Araújo
Maria Olinda Garcia
Tem voto de conformidade dos Senhores Conselheiros Adjuntos (artigo 15ºA, aditado ao DL 10-A/2020, de 13/3, pelo DL 20/2020, de 1/5).
Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).