HABEAS CORPUS
LIBERDADE CONDICIONAL
PERDÃO
DECISÃO DA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
COMPETÊNCIA
TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DE PENAS
IMPROCEDÊNCIA
Sumário

I - Como o STJ vem sistematicamente decidindo, a providência de habeas corpus está processualmente configurada como uma providência excepcional, não constituindo um recurso sobre actos do processo, designadamente sobre actos através dos quais é ordenada ou mantida a privação de liberdade do arguido, nem sendo um sucedâneo dos recursos admissíveis, estes sim, os meios adequados de impugnação das decisões judiciais.
II - Estando vedado ao STJ substituir-se ao tribunal que ordenou a prisão em termos de sindicar os fundamentos que a ela subjazem, ou seja, de conhecer da bondade da decisão, já que, se o fizesse, estaria a criar um novo grau de jurisdição.
III - A procedência do pedido de habeas corpus pressupõe ainda uma actualidade da ilegalidade da prisão reportada ao momento em que é apreciado o pedido. Trata-se de asserção que consubstancia jurisprudência sedimentada no STJ.
IV - O requerente interpôs providência de habeas corpus a favor de recluso sustentando, em suma, que foi proferida decisão pelo Diretor Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, no dia 13-04-2020, concedendo ao dito recluso licença de saída administrativa pelo período de 45 dias, mas que ainda não foi executada, continuando o mesmo no EP, decisão foi impugnada pelo MP do TEP, impugnação essa que ainda não foi decidida pelo respectivo juiz, estando em curso prazo de resposta.
V - Extravasa o âmbito do pedido de habeas corpus todas as questões relacionadas com a legalidade ou mérito da decisão do Diretor Geral e a bondade da interpretação que fez da lei, formalismo da impugnação do MP, correção da argumentação aduzida, situação processual do recluso ou questões relacionadas com a não concessão da liberdade condicional ou não concessão de perdão «extraordinário», questões processuais que devem ser objecto de apreciação e de decisão através dos adequados instrumentos processuais e nos lugares próprios.
VI - As questões que respeitam à concessão ou não concessão das medidas adoptadas pelos órgãos da administração penitenciária no exercício das respectivas competências, nomeadamente as que se prendem com a concessão de licenças administrativas a reclusos constituem vicissitudes ou incidentes no âmbito da execução das respectivas penas em cumprimento; reveladora desta perspectiva, está a circunstância de o regime de licença administrativa de reclusos condenados se inserir, como o expressamente se reconhece na Lei n.º 9/2020, no regime de flexibilização da execução das penas;
VII - Por outro lado, as questões emergentes de procedimentos de impugnação de actos administrativos de tais entidades e do conhecimento judicial dos mesmos extravasam a competência deste STJ e, claramente, não se inserem em nenhuma das situações taxativamente previstas no art. 222.º, n.º 2, do CPP.
VIII - Tendo a prisão sido ordenada por entidade competente, (a autoridade judiciária que condenou o arguido), por facto pelo qual a lei permite (cumprimento da pena de prisão aplicada por ilícitos criminais cometidos pelo condenado) e mantendo-se a prisão dentro do prazo máximo da duração da pena, não se encontra o condenado em situação de prisão ilegal, não se prefigurando a existência dos pressupostos de concessão da providência extraordinária de habeas corpus.

Texto Integral

O Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção, acorda:


I. RELATÓRIO:

1. a petição:

No Tribunal da Relação de Lisboa – … secção, dirigido ao processo em epigrafe, que ali corre termos, o procurado e ora requerente:

- AA de 27 anos, com os demais sinais dos autos,

Apresentou providência de habeas corpus, para remessa imediata remessa ao Supremo Tribunal de Justiça, peticionando a libertação imediata.

Para tanto alega:

“Caso Sub Júdice”

1 - Do Processo nº 207/16.9YRLSB Mandado de Detenção Europeu … Secção Tribunal da Relação de Lisboa.

O respetivo Relatório reza:

2 - “Com tal pedido pretende a autoridade judiciária francesa que o requerido seja entregue para efeitos de procedimento criminal por se mostrar indiciado pela prática de um crime em 1/06/2014 de homicídio voluntário p.e p. pelos artigos a que corresponde em abstrato um pena que pode ir até 30 anos .

“Como medida de coação foi-lhe determinada a prisão preventiva, caso viesse a ser restituído à liberdade no âmbito no processo da qual se encontra detido.”

II - Na Fundamentação:

De acordo com o disposto no nº2 do artigo 21 da Lei de 65/2003 de 23/8 a oposição só pode ter por fundamento o erro do detido ou a existência de causa de recusa de execução do mandado de detenção europeu.

“Diz ainda: “As razoes invocadas pelo requerido não obstam à execução do MDE pois, como bem refere o Srº Procurador Geral adjunto na sua resposta, não se trata aqui de um MDE para efeitos de execução de pena – caso em que estaríamos perante um caso de recusa facultativa previsto na alínea g) do nº1 do artigo 12 da citada lei 65/2003 – mas sim de um procedimento criminal.

Além disso, o crime que é imputado ao requerido pelas autoridades francesas consta da alínea o) do nº2 do artigo 2 da Lei nº 65/2003 de 23/8.

E concluiu:

“E mostrando-se preenchidos os pressupostos legais do presente mandado de Detenção europeu, há que deferir a sua execução.

Contudo

Suspenso a entrega do requerido a França ao abrigo do artigo 31 nº1 da lei 65/2003 de 23/8 a qual será efetuado apos o termo do procedimento criminal em Portugal e cumprimento da pena em que o requerido eventualmente venha a ser condenado.

Sem prejuízo de, oportunamente caso venha a ser requerida pela entidade emitente do MDE, poder ser determinada temporariamente nos termos e condições a que se refere o nº3 do artigo 31 da mesma lei.

III Decisão

“entrega essa que ao abrigo do disposto do artigo 31 nº1 da Lei nº 65/2003 de 23/8 fica suspensa e só será efetuada após o termo do procedimento criminal em curso em Portugal e cumprimento da pena em que o requerido eventualmente venha a ser condenado, sem prejuízo de, oportunamente, caso venha a ser requerida pela entidade emitente de MDE, por ser requerida a entrega temporária nos termos e condições a que se refere o nº3 do artigo 31 da mesma lei.

Apos transito comunique-se com o disposto do artigo 28 da Lei 65/2003 de 23/08 e comunique ao gabinete Nacional da Sirene.

Apos o trânsito, comunique a decisão ao Processo nº 1333/12…. do Tribunal de … – Instrução Central – …ª secção Criminal- J...

Analisando

Ora o que se passa é o seguinte:

1 - O MDE requer que seja entregue somente, não exige nem pode exigir que esteja detido no Estabelecimento Prisional d … a fim de ser entregue às Autoridades Francesas.

2 - O processo em França não pode decretar em Portugal a prisão preventiva nem a detenção. Não tem competência territorial.

3 - Nem o Estado Português pode decretar a prisão preventiva, nem a detenção de um cidadão português por factos ocorridos noutro país.

4 - O requerido está pelo MDE, indiciado pela prática de um crime em 1/06/2014 de homicídio voluntário p.e p. pelos artigos 221 e seguintes do Código Penal Francês a que corresponde em abstrato uma pena que pode ir até 30 anos.

a) Desde logo o requerido tem meios de defesa a utilizar em França que o podem desconetar com a prática do crime, pode estar inocente.

b) Se porem vier a ser condenado a pena de prisão de 30 anos em França é mais severa que a aplicada em Portugal que são no máximo 25 anos.

5 - O Estado Francês não requereu na qualidade de entidade emitente do MDE, que o requerido fosse temporariamente a França, nos termos e condições a que se refere o nº3 do artigo 31 da mesma lei.

6 - “ entrega essa que ao abrigo do disposto do artigo 31 nº1 da Lei nº 65/2003 de 23/8 fica suspensa e só será efetuada após o termo do procedimento criminal em curso em Portugal e cumprimento da pena em que o requerido eventualmente venha a ser condenado , sem prejuízo de, oportunamente, caso venha a ser requerida pela entidade emitente de MDE, ser [autorizada] a entrega temporária nos termos e condições a que se refere o nº3 do artigo 31 da mesma lei.

7 - A execução do MDE ficou suspensa e só será efetuada após o termo do procedimento criminal em curso em Portugal e cumprimento da pena em que o requerido (…) venha a ser condenado no processo (…) nº 1333/12… do Tribunal de …. – Instrução Central – ..ª secção Criminal- J...

8 - A (…) execução da pena [de prisão] terminou no dia 6 de Abril de 2020 conforme liquidação da pena data em que deveria ser libertado e devolvido à liberdade.

Porém desde (…) 06 de abril até hoje mantem-se preso/detido no Estabelecimento Prisional d …. privado da liberdade

9 - desde 6 de Abril de 2020 até hoje o requerente encontra-se preso no Estabelecimento Prisional d … sem que haja uma decisão de prisão preventiva a alicerçar ou justificar, somente uma detenção em virtude do MDE que colocamos neste Habeas Corpus em crise.

10 - Para que haja a detenção em virtude do MDE é necessária que em douta sentença a decrete a justifique.

11 - Na douta sentença do Tribunal da Relação não existe qualquer menção a referida medida de coação mais gravosa em MDE que é a detenção em Estabelecimento Prisional neste caso no … .

Se a pessoa aceitar ser entregue, a decisão de entrega deve ser tomada no prazo de 10 dias. (é este o caso vertido)

12 - A pessoa procurada deve ser entregue o mais rapidamente possível numa data fixada pelas autoridades implicadas, no máximo 10 dias depois da decisão final relativa ao mandado de execução europeu.

Dos prazos perentórios de entrega do requerido

13 - Artigo 29.º

Prazo para a entrega da pessoa procurada

1 - A pessoa procurada deve ser entregue no mais curto prazo possível, numa data acordada entre o tribunal e a autoridade judiciária de emissão.

2 - A entrega deve ter lugar no prazo máximo de 10 dias, a contar da decisão definitiva de execução do mandado de detenção europeu.

3 -Se for impossível a entrega da pessoa procurada no prazo previsto no número anterior, em virtude de facto de força maior que ocorra num dos Estados membros, o tribunal e a autoridade judiciária de emissão estabelecem de imediato os contactos necessários para ser acordada uma nova data de entrega, a qual deverá ter lugar no prazo de 10 dias a contar da nova data acordada.

4 - A entrega pode ser temporariamente suspensa por motivos humanitários graves, nomeadamente por existirem motivos sérios para considerar que a entrega colocaria manifestamente em perigo a vida ou a saúde da pessoa procurada.

14 - Ao terminar o cumprimento da execução da pena o Estado Português tinha que entregar o arguido até no máximo dia 17 de Abril de 2020

15 - O prazo de dez dias é perentório

“2 - A entrega deve ter lugar no prazo máximo de 10 dias, a contar da decisão definitiva de execução do mandado de detenção europeu”.

Porém a fls 260 do Processo nº 1333/12… do Tribunal de … – Instrução Central – ..ª secção Criminal- J.. reza o seguinte:

Ao abrigo do artigo 23 pontos nº 3 e 4 da Decisão Quadro do Conselho de 13 de Junho de 2020 e artigo 29 nº3 da Lei 65/2003 de 23 de Agosto tendo em conta o cancelamento dos voos decorrentes da pandemia COVID 19, e face ao solicitado pelas autoridades policiais francesas , porque se mantem a situação de detenção de AA para entrega em cumprimento do MDE devendo a mesma ser prorrogada , por motivos de força maior , pelo período estritamente necessário e dando conhecimento ao GNI e à autoridade judiciária da emissão do MDE com vista ao cumprimento imediato, logo que possível, o que se mostra de resto provável em Junho próximo

Assim prorrogou-se [a entrega] nos termos do artigo 29 n nº5 e nº3 e nº4 da lei 65/2003 de 23/8 (…) por 30 dias.

Da lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto Mandado de detenção (versão atualizada)

Contém as seguintes alterações:

Lei n.º 115/2019, de 12/09

O requerido só foi notificado em 22 de Abril de 2020 da prorrogação ferida já de extemporaneidade pois desde 6 de Abril ate 16 de Abril teve de ser notificado para o efeito

Ultrapassado o dia 17 de Abril de 2020 (10 dias prazo perentório) todas as prorrogações são extemporâneas.

De 16 de abril até hoje a detenção em prisão é ilegal.

O prazo da prorrogação só começa apos a notificação e não na data emissão pois dessa o requerido não tem conhecimento formal

Mais

Foi notificado de outra prorrogação em 20 de Maio de 2020

O Requerido foi preso, em 06/05/2020 pois até aí conforme já foi explicitado (…) encontrava-se a cumprir pena de crime cometido em Portugal.

E forçoso é considerar que a prisão do requerente, é ilegal, patente, grosseira, arbitrária ou chocante, verificando-se o fundamento de habeas corpus previsto na al. b) e c) do n.º 2 do art. 222 da respectiva lei.

A consequência é que a detenção seja considerada ilegal com todas as consequências legais.

O que se passa é que o requerente permanece preso até que os efeitos da pandemia COVID 19 passem em França que ninguém sabe precisar havendo por ora somente estimativas.

Equivale a uma detenção sem prazo, ou de prazo incerto.

O primeiro interrogatório de arguido da matéria indiciária ainda não existiu.

O habeas corpus não conflitua com o direito ao recurso, pois que se trata de uma providência excecional que visa, reagir, de modo imediato e urgente - com uma celeridade incompatível com a prévia exaustação dos recursos ordinários e com a sua própria tramitação contra a privação arbitrária da liberdade, caso vertido ,existe um abuso de poder concretizado em atentado ilegítimo à liberdade individual «grave, grosseiro e rapidamente verificável» integrando uma das hipóteses previstas no artigo 222º nº 2, do Código de Processo Penal.

Viola o princípio da legalidade e violando o disposto no art.º 18º nºs 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa a manutenção do requerido em detenção ilícita .

Ac. STJ de 26-06-2003

1. O habeas corpus, tal como o configura a lei (art. 222.º do CPP), é uma providência extraordinária e expedita destinada a assegurar de forma especial o direito à liberdade constitucionalmente garantido, que não um recurso, não visando, pois, submeter ao Supremo Tribunal de Justiça a reapreciação da decisão da instância à ordem de quem está preso o requerente, mas sim colocar a questão da ilegalidade desta prisão

O habeas corpus tem, em sede de direito ordinário, como fundamentos, que se reconduzem todos à ilegalidade da prisão: a motivação imprópria; e o excesso de prazos, sendo ainda necessário que a ilegalidade da prisão seja actual, atualidade reportada ao momento em que é apreciado aquele pedido.

Em sede de previsão constitucional, o acento tónico do habeas corpus é posto na ocorrência de abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, na proteção do direito à liberdade, constituindo uma providência a decretar apenas nos casos de atentado ilegítimo à liberdade individual - grave e em princípio grosseiro e rapidamente verificável - que integrem as hipóteses de causas de ilegalidade da detenção ou da prisão taxativamente indicadas nas disposições legais que desenvolvem o preceito constitucional.

Mais nesse caso é necessária a invocação do abuso de poder, por virtude da detenção ilegal, do atentado ilegítimo à liberdade individual grave e em princípio grosseiro e rapidamente verificável - que integre as hipóteses de causas de ilegalidade da detenção ou da prisão taxativamente indicadas na lei ordinária, para desencadear o exame da situação de detenção ou prisão em sede da providência de habeas corpus.

A lógica do regime do MDE requer que a avaliação do perigo de fuga deva ser efetuada pela autoridade de emissão, que ordena a detenção, em função de critérios de necessidade, adequação e proporcionalidade, que se lhe impõem por força de equivalente sistema de proteção de direitos fundamentais (Convenção de proteção dos direitos humanos, do Conselho da Europa, e Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, vigentes no Estado de emissão) que constituem a base da confiança mútua em que assenta, tendo ainda em conta a possibilidade de recurso a medidas alternativas à prisão preventiva (Decisão-Quadro 2009/829/JAI do Conselho, de 23 de Outubro de 2009, transposta para o direito interno pela Lei n.º 36/2015, de 4 de Maio).

A possibilidade de substituição da detenção por uma medida de coação não detetiva emerge como “válvula de segurança” do funcionamento do sistema de proteção de direitos fundamentais nas relações entre os Estados-Membros, que permite a “libertação provisória” sempre que se mostre assegurada a entrega da pessoa, como finalidade do MDE, que a detenção visa realizar.

Nesta perspetiva também é abusivo a detenção em prisão do caso vertido podendo ser alterado para uma medida não privativa da liberdade Desta perspetiva, dado o regime próprio da detenção em execução do MDE, justificado pelas suas finalidades, a apreciação que se impõe à autoridade de execução não diz respeito à verificação do perigo de fuga para determinar a manutenção da detenção, mas antes à verificação de condições que permitam assegurar a realização da finalidade da detenção (a entrega), por meios menos restritivos do direito à liberdade.

Por exceção à regra de manutenção da detenção, a “colocação provisória” do recorrente em liberdade, mediante a aplicação de medida de coação não a, por permitir concluir, com a segurança devida, que se encontravam asseguradas as condições materiais para efetivação da entrega.

Que é o caso vertido

Esta detenção Ilegal privativa da liberdade não está em harmonia com a natureza e com o regime do MDE, que, sendo uma decisão de uma autoridade judiciária de um outro Estado-Membro da UE, produz, por si mesma, efeitos em Portugal (Estado de execução), por força do princípio do reconhecimento mútuo (art. 1.º, n.º 2, do RJMDE)

A detenção para efeitos de MDE, ao traduzir-se em privação de liberdade da pessoa procurada, assume categoria jurídico-processual específica e autónoma, permitida e prevista em lei especial, de cooperação internacional em matéria penal e não equivale, nem tem a mesma natureza, fundamento e finalidade que a figura da detenção em processo penal português ou da prisão preventiva.

Por essa razão, caracteriza-se pela simplicidade e celeridade e, atentos os fins visados e a natureza urgente, tem tratamento preferencial com prazos de duração mais curtos e inultrapassáveis (art. 30º, do RJMDE)

Entrega não significa perigo de fuga, o qual não está justificado

Enquanto aguardo o requerido pode aguardar com uma medida de coação não privativa da liberdade em Portugal enquanto não se pode entregar à justiça francesa

Esta situação viola a Constituição Portuguesa conforme já explicitado princípio da legalidade.

Nestes termos e nos demais:

Requer-se que o requerido seja de imediato devolvido à liberdade porque a detenção atual no Estabelecimento Prisional d …. é ilegal E porque todas as prorrogações de prazo da detenção foram extemporâneos por isso atos inúteis.

2. informação judicial:

O Ex.mª Juíza Desembargadora, em 22/05/2020, exarou informação sobre os fundamentos e os termos em  foi determinada e as condições em que presentemente se mantém a privação da liberdade do Requerente, esclarecendo:

“Entendemos que a detenção do requerido à ordem destes autos de mandado de detenção europeu não é ilegal e que a entrega do requerido às autoridades francesas só ainda não ocorreu atenta a situação de pandemia que vivemos, devida à Covid-19 e justifica-se nos termos do disposto no art. 29.º n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 65/2003, de 23/8.

Acresce que, ao requerido foi imposta a medida de coacção de prisão preventiva à ordem destes autos, caso fosse restituído à liberdade à ordem do processo 1333/12…., em que se encontrava preso em cumprimento de pena, o que veio a ser reiterado por despacho de 8/4/2020.

O cumprimento da pena à ordem do supra referido processo só terminou em 6/4/2020, data em que o requerido foi colocado à ordem destes autos.

Porém, V.ªs Exas. com maior saber decidirão conforme for devido.


*


Convocada a Secção Criminal, notificado o Ministério Público e a Defensora do requerente, procedeu-se à audiência, de harmonia com as formalidades legais, após o que o Tribunal reuniu e deliberou como segue (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP):

II. SUMÁRIO DA PROVIDÊNCIA:

Porque a alegação do Requerente não prima pela ordenação e síntese, sumariam-se as linhas de força dos seus argumentos:

- alega que está, ilegal e arbitrariamente, privado da liberdade desde 17 de abril último, em prisão preventiva, porque não foi entregue, em execução do MDE, às autoridades francesas, nos 10 dias seguintes à sua colocação, em 6 de abril de 2020, à ordem destes autos;

- que embora tenha sido decidida a prorrogação da entrega, a primeira vez por 30 dias, e, depois, por mais 30 dias, até 17 de junho próximo, essas decisões judiciais são ilegais porque da primeira só foi notificado em 22 de abril e da segunda em 20 de maio;

- alega que a prorrogação só era valida se lhe tivesse sido notificada, a primeira, até 16 de abril porque, assevera, “o prazo da prorrogação só começa após a notificação e não na data” da decisão

- alega ainda que no processo de execução do MDE não lhe pode ser aplicada prisão preventiva.

III. FUNDAMENTAÇÃO:

Dos elementos com que vem instruídos os autos (os demais não nos estão acessíveis no Citius), com relevância para a decisão do vertente pedido de habeas corpus extraem-se os seguintes:

a) factos:

1. O Requerente é cidadão português, nascido em …, em 00/00/1993, concelho onde residia quando foi detido.

2. Em 25 de janeiro de 2016, cerca das 19 horas, foi detido pela PSP, em execução de mandado de detenção emitido pelo Tribunal Judicial da comarca de …, Instância local criminal de … –J.., no âmbito do processo com o NUIPC 1333/12… .

3. Processo à ordem do qual ficou então, em cumprimento de medida de coação que ali lhe foi aplicada.

4. Tinha também Mandado de Detenção Europeu, emitido pelas autoridades judiciárias da República Francesa para procura e entrega para efeitos de procedimento criminal naquele país, onde está indiciado pela prática em 1/06/2014 de um crime de homicídio voluntário p. e p. pelos artigos 221-1, 221-8, 221-9 e 221-10 do Código Penal Francês, com pena de duração máxima até 30 anos de prisão.

5. Por isso, a detenção foi comunicada ao Ministério Público junto da Relação de … que, em 28/01/2016, que, promovendo a execução do MDE, apresentou o Requerente para audição judicial nos termos do art. 18º da Lei n.º 63/2003 de 23 de agosto.

6. Na sequência, na Relação foi instaurado e corre termos o processo em epigrafe.

7. Na diligência de audição, o Requerente, deu conta ao Tribunal que pretendia ser assistido pelo seu defensor constituído, com o fundamento de não o ter podido contactar, precisamente em razão da privação da liberdade em que se encontrava.

8. Deferida a pretensão, o Tribunal logo decidiu: “caso [o requerido] seja por qualquer motivo restituído à liberdade, determina-se a prisão preventiva do arguido à ordem destes autos, o que deverá ser comunicado ao tribunal supra indicado [instância local criminal de ……. –J..], uma vez que existe perigo de fuga, perigo de perturbação da ordem pública e perigo de continuação de actividades criminosas, tendo em conta os elementos constantes do presente MDE e o perfil delineado nos autos”.

9. O Requerente foi ouvido pelo Tribunal coletivo em 3 de marco de 2016, na presença do Ministério Público e com a assistência ao detido do respetivo defensor constituído.

10. Na audição, declarou, para além do mais, que se opõe à execução do MDE e que não renuncia ao princípio da especialidade.

11. No prazo concedido para o efeito deduziu oposição.

12. O Tribunal, por acórdão de 3 de março de 2016, julgando improcedente a oposição deduzida, deferiu a execução do MDE, com a entrega do Requerido [procurado] AA às autoridades judiciárias de França, para efeitos de procedimento criminal pela prática do imputado crime de homicídio voluntário.

13. O Tribunal decidiu também “ao abrigo do disposto no art.º 31º n.º 1 da Lei n.º 65/2003 de 23/08”, que a entrega “fica suspensa e só será efetuada aos o termo do procedimento criminal em curso em Portugal e cumprimento da pena em que o requerido eventualmente venha a ser condenado, sem prejuízo de, oportunamente, caso venha a ser requerida pela entidade competente do MDE, poder ser determinada a entrega temporária”.

14. Determinou ainda que se comunicasse ao proc. n.º 1333/12... para que o respetivo tribunal informasse “com a devida antecedência de qualquer alteração à medida de coação que ao requerido foi imposta no âmbito desses autos”.

15. O Requerente, em 2 de abril de 2020, informando que no dia 6 desse mês terminava o cumprimento da pena aplicada no processo 1333/12…, peticionou que a sua prisão preventiva decretada nos autos, fosse substituída pela obrigação de permanência na habitação, com vigilância eletrónica.

16. O Tribunal, por despachos de 6 e de 7 de abril de 2020, determinou que, cumprida a pena aplicada naquele processo do tribunal judicial de ..., se entregasse o requerente às autoridades judiciárias francesas, conforme havia sido decretado.

17. Contactada pelo Gabinete Nacional Sirene, para marcar a entrega, a NCB France Interpol informou que, em razão da pandemia Covid-19 tinha suspendido o serviço de transferência internacional [de pessoas], não sendo possível marcar a entrega até 17 de abril de 2020.

18. Que previsivelmente, será possível receber o detido em junho, solicitando a prolongação do prazo para a entrega e receção do detido.

19. O Tribunal, por despacho de 17 de abril de 2020, decidiu, “ao abrigo do disposto no art.º 29º n.ºs 3 e 4 da lei n.º 65/2003 de 23/08, prorrogar, por 30 dias, o prazo de entrega do requerido”.

20. Decisão notificada o requerente no EP em 22 de abril de 2020.

21. Em 8 de maio corrente, o NCB Paris através do Gabinete Nacional da Interpol informou que em razão de a pandemia ainda não estar estabilizada em França e não poder receber o detido até 17 de maio, solicitava a prorrogação do prazo da entrega por mais 30 dias, até 17 de próximo mês de junho.

22. O Tribunal, por despacho de 13 de maio corrente, decidiu nos termos peticionados e com os fundamentos aduzidos prorrogar o prazo para a entrega do detido, até 17 de junho de 2020.

23. Decisão que foi notificada ao requerente em 20 de maio corrente.

24. O Requerente está privado da liberdade, detido no estabelecimento prisional do …, à ordem dos presentes autos, desde 6 de abril de 2020.

25. Em 22 do corrente mês de maio apresentou o vertente habeas corpus.

b) o direito:

1. direito fundamental à liberdade:

O direito à liberdade pessoal – liberdade ambulatória - é um direito fundamental da pessoa, proclamado em instrumentos legislativos internacionais e na generalidade dos regimes jurídicos dos países civilizados.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, “considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça ”, no artigo III (3º) proclama a validade universal do direito à liberdade individual.

Proclama no artigo IX (9º) que ninguém pode ser arbitrariamente detido ou preso.

No artigo XXIX (29º) admite-se que o direito à liberdade individual sofra as “limitações determinadas pela lei” visando assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da ordem pública.

O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, no artigo 9.º consagra; “todo o indivíduo tem direito à liberdade” pessoal. Proibindo a detenção ou prisão arbitrárias, estabelece que “ninguém poderá ser privado da sua liberdade, excepto pelos motivos fixados por lei e de acordo com os procedimentos nela estabelecidos”.

Estabelece também: “toda a pessoa que seja privada de liberdade em virtude de detenção ou prisão tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, com a brevidade possível, sobre a legalidade da sua prisão e ordene a sua liberdade, se a prisão for ilegal”.

A Convenção Europeia dos Direitos Humanos/CEDH (Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais), no art. 5º reconhece que “toda a pessoa tem direito à liberdade”. Ninguém podendo ser privado da liberdade, salvo se for preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente, de acordo com o procedimento legal.

Reconhece que a pessoa privada da liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal.

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH/) “enfatiza desde logo que o artigo 5 consagra um direito humano fundamental, a saber, a proteção do indivíduo contra a interferência arbitrária do Estado no seu direito à liberdade. O texto do artigo 5º deixa claro que as garantias nele contidas se aplicam a “todos”. As alíneas (a) a (f) do Artigo 5 §1 contêm uma lista exaustiva de razões permissíveis sobre as quais as pessoas podem ser privadas de sua liberdade. Nenhuma privação de liberdade será compatível com o artigo 5.º, n.º 1, a menos que seja abrangida por um desses motivos ou que esteja prevista por uma derrogação legal nos termos do artigo 15.º da Convenção, (ver, inter alia, Irlanda v. Reino Unido, 18 de janeiro de 1978, § 194, série A n.º. 25, e A. e Others v. O Reino Unido, citado acima, §§ 162 e 163)[1].

Interpreta: “no que diz respeito à «“legalidade” da detenção, a Convenção refere-se essencialmente à legislação nacional e estabelece a obrigação de observar as suas normas substantivas e processuais. Este termo exige, em primeiro lugar, que qualquer prisão ou detenção tenha uma base legal no direito interno”.

E que “a "regularidade" exigida pela Convenção pressupõe o respeito não só do direito interno, mas também - o artigo 18.º confirma - da finalidade da privação de liberdade autorizada pelo artigo 5.º, n.º 1, alínea a). (Bozano v. França , em 18 de dezembro de 1986, § 54, Série A n º 111, e Semanas v. Reino Unido, 2 de Março de 1987 § 42, Série A n º 114). No entanto, a preposição "depois" não implica, neste contexto, uma simples sequência cronológica de sucessão entre "condenação" e "detenção": a segunda também deve resultar da primeira, ocorrer "a seguir e como resultado "- ou" em virtude "-" desta ". Em suma, deve haver uma ligação causal suficiente entre elas (Van Droogenbroeck, citado acima, §§ 35 e 39, e Weeks , citado acima, § 42) [2].

Por sua vez a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia reconhece, no art. 6º, o direito à liberdade pessoal.

Não consagrando o habeas corpus, reconhece, no art. 47º, o direito de ação judicial contra a violação de direitos ou liberdades garantidas pelo direito da União.

Todavia, assinala E. Maia Costa, os textos internacionais relativos aos direitos humanos preveem genericamente um recurso para os tribunais com carácter urgente contra a privação da liberdade ilegal, mas tal garantia não se confunde com o habeas corpus[3].

A Constituição da República, no artigo 27º n.º 1, reconhece e garante do direito à liberdade individual, à liberdade física, à liberdade de movimentos. 

O direito a não ser detido, preso ou total ou parcialmente privado da liberdade não é um direito absoluto.

À semelhança da CEDH, a Constituição da República, no art. 27º n.º 2, admite expressamente que o direito à liberdade pessoal possa sofrer restrições.

Entre estas sobressai, desde logo “a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar” (n.º 3), nos casos de: “c) prisão, detenção ou outra medida coactiva sujeita a controlo judicial, de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradição ou de expulsão.

A detenção para execução de Mandado de Detenção Europeu, está prevista na Lei n.º 65/2003 de 23 de agosto que, em cumprimento da Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho, estabeleceu em Portugal o regime jurídico dessa modalidade de cooperação judiciária em matéria penal entre os Estados Membros da União Europeia.

A detenção é uma medida privativa da liberdade que só deve ser aplicada quando se revele necessária para assegurar a entrega ao Estado de emissão da pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade. A drástica restrição ao direito fundamental à liberdade ambulatória que encerra, não permite que seja aplicada se não surgir como a única adequada a acautelar o normal desenvolvimento do procedimento e a execução do MDE.

Ademais da reserva de lei, está também submetida à reserva de juiz (só pode ser aplicada em decisão judicial). E está submetida a prazos estritos 

2. a providência da habeas corpus:

A Constituição da República, em linha com CEDH, também de certo modo, na sequência das duas Constituições que a precedem (a de 1911 e a de 1933), aderindo à tradição anglo-saxónica[4], consagra no art. 31º, o habeas corpus como garantia extraordinária, expedita e privilegiada contra a prisão (e a detenção) arbitrária ou ilegal[5].

A privação do direito à liberdade por meio da prisão só não configura abuso de poder e, consequentemente, será legal se se contiver nos estritos parâmetros do art. 27º n.ºs 2 e 3 da Constituição. A prisão é ilegal quando não tenha sido decretada pelo tribunal competente em decisão judicial (fundamentada) que aplica medida de coação verificados os respetivos pressupostos ou em sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou com a aplicação de medida de segurança; tiver sido ordenada por autoridade incompetente; tiver sido efetuada por forma irregular; ultrapassar a duração da medida de coação aplicada ou da pena concretamente fixada pelo tribunal; ocorra em locais ou estabelecimentos que não sejam os oficialmente destinados à sua execução; não respeite o regime jurídico da execução das medidas de coação ou as penas ou medidas de segurança privativas da liberdade.

“Não é qualquer abuso de poder que justifica habeas corpus”. A providência de habeas corpus exige a verificação “cumulativa de dois requisitos: o abuso de poder; a existência de prisão ou detenção ilegal”. O “abuso de poder exterioriza-se nomeadamente na existência de medidas ilegais de prisão e detenção decididas em condições especialmente arbitrárias ou gravosas[6].

Entre nós, é na Constituição da República de 1911[7] que pela primeira vez surge consagrado o habeas corpus –no título II (Dos Direitos e Garantias Individuais), art. 3º n.º 31[8] –, por influência da Constituição brasileira de 1891[9], (transcrevendo o § 22º do artigo 72º[10]) que, por sua vez, se inspirou na constituição norte-americana[11] (se bem que o Código de Processo Penal do Brasil de 1832, já previa esta providência (artigo 340º)[12].

A Constituição de 1933 reafirmou o habeas corpus como providência excecional contra o abuso de poder, remetendo a sua regulamentação para lei especial[13] (remissão eliminada na revisão de 1971[14]).

Observando a imposição constitucional, o Decreto-Lei nº 35.043, de 20 de Outubro de 1945[15], estabeleceu o regime jurídico do habeas corpus.

Da exposição de motivos, pela consistência das justificações e da finalidade da providência transcreve-se que o habeas corpus:

“(…) consiste na intervenção do poder judicial para fazer cessar as ofensas do direito de liberdade pelos abusos da autoridade.

Providência de carácter extraordinário, só encontra oportunidade de aplicação, (…) quando o jogo normal dos meios legais ordinários deixa de poder garantir eficazmente a liberdade dos cidadãos.

O habeas corpus não é um meio de reparação dos direitos individuais ofendidos (…). É antes um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não haja qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade. (…) De outro modo tratar-se-ia de simples duplicação dos meios legais de recurso”.

Instituiu-se o habeas corpus liberatório em duas modalidades, um contra a detenção abusiva, o outro, diferenciado, para a prisão ilegal.

Segundo Adriano Moreirao habeas corpus não tem nenhuma característica substancial, mas é apenas como que, entre os vários processos normais de tutela da liberdade, um processo de reserva para os casos em que não existe esse processo normal, ou de facto o indivíduo está impossibilitado de a ele recorrer”.

“O habeas corpus, na sua função normal, não é pois mais do que – um processo destinado a restituir a pessoa, ilegalmente privada da sua liberdade física pela autoridade, à tutela do processo comum[16].

No entendimento de M. Cavaleiro de Ferreira, “diz-se providência extraordinária, porque os trâmites processuais e o mecanismo normal do funcionamento da administração devem, por si, ser salvaguarda suficiente para evitar a contingência de prisões ilegais[17]”.

Regime que, mantendo a conceção e a arquitetura[18], transitou para o Código de Processo Penal de 1929 – artigos 312º a 324º.

E transitou também para a atual Constituição da República, estabelecendo-se o prazo de 8 dias para a decisão da providência.

Na alteração do CPP de 1929 que se seguiu à proclamação da Constituição de 1976, operada pelo Decreto-Lei n.º 320/76 de 4 de maio, estatuiu-se que o esgotamento do prazo sem decisão, determinava a imediatamente restituição do detido ou preso à liberdade[19].

E, ainda que simplificado (concentrado em dois artigos substantivos, e outros dois procedimentais), o regime passou para o vigente Código de Processo Penal (de 1987), e que, na parte substantiva referente à prisão ilegal (art. 222º) não sofreu qualquer alteração.

O habeas corpus é, pois, uma garantia (“direito-garantia”), não um direito fundamental autónomo (“direito-direito”). O bem jurídico-constitucional que o habeas corpus visa proteger é o direito fundamental à liberdade[20] pessoal, permitindo reagir imediata e expeditamente “contra o abuso de poder, por virtude de detenção ou prisão ilegal” .

No habeas corpus discute-se exclusivamente a legalidade da prisão à luz das normas que estabelecem o regime da sua admissibilidade”. “Procede-se necessariamente a uma avaliação essencialmente formal da situação, confrontando os factos apurados no âmbito da providência com a lei, em ordem a determinar se esta foi infringida. Não se avalia, pois, se a privação da liberdade é ou não justificada, mas sim e apenas se ela é inadmissível. Só essa é ilegal”.

“De fora do âmbito da providência ficam todas as situações enquadráveis nas nulidades e noutros vícios processuais das decisões que decretaram a prisão”

“Para essas situações estão reservados os recursos penais, (…). O habeas corpus não pode ser reconvertido num “recurso abreviado”, (…) O processamento acelerado do habeas corpus não se coaduna, aliás, com a análise de questões com alguma complexidade jurídica ou factual, antes se adequa apenas à apreciação de situações de evidente ilegalidade, diretamente constatáveis pelo confronto entre os factos sumariamente recolhidos e a lei[21].

3. regime legal e procedimento:

Dando expressão legislativa ao texto constitucional [22], o art. 222º n.º 2 do CPP estabelece que a petição de habeas corpus “deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

Tem como denominador comum configurar situações extremas de detenção ou prisão determinadas com abuso de poder ou por erro grosseiro, patente, grave, isto é, erro qualificado na aplicação do direito.

A jurisprudência deste Supremo Tribunal vai no sentido de “os fundamentos do «habeas corpus» são aqueles que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos susceptíveis de pôr em causa a regularidade ou a legalidade da prisão”[23].

Tem sublinhado que a providência de habeas corpus constitui uma medida expedita perante ofensa grave à liberdade com abuso de poder, sem lei ou contra a lei. Não constitui um recurso sobre atos de um processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade do arguido, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais. Esta providência não se destina a apreciar erros de direito ou a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes de privação da liberdade[24].

Atento o carácter extraordinário da providência, para que se desencadeie exame da situação de detenção ou prisão em sede de habeas corpus, há que deparar com abuso de poder, consubstanciador de atentado ilegítimo à liberdade individual – grave, grosseiro e rapidamente verificável – integrando uma das hipóteses previstas no art. 222.º, n.º 2, do CPP”[25].

O habeas corpus contra a prisão ilegal por abuso de poder é um procedimento especial, no qual se requer ao tribunal competente o restabelecimento do direito constitucional à liberdade pessoal, vulnerado por uma prisão ordenada, autorizada ou executada fora das condições legais ou que sendo originariamente legal se mantém para além do tempo ou da medida judicialmente decretada ou em condições ilegais.

É também um procedimento de cognição limitada e instância única no qual somente é possível valorar “a legitimidade de uma situação de privação de liberdade, a que [o Juiz] pode por fim ou modificar em razão das circunstâncias em que a prisão se produziu ou se está realizando, mas sem extrair destas -do que as mesmas têm de possíveis infracções ao ordenamento- mais consequências que a da necessária finalização ou modificação daquela situação da privação da liberdade[26] .

Não é um recurso, - ordinário ou extraordinário. É uma providência que visa colocar perante o Supremo Tribunal de Justiça a questão da ilegalidade da prisão em que o requerente se encontra nesse momento ou do grave abuso com que foi imposta. Visa apreciar se a prisão foi determinada pela entidade competente, se o foi por facto pelo qual a lei a admite, se se mantem pelo tempo decretado e nas condições legalmente previstas. Para o que pode ser necessário equacionar da legalidade formal ou intrínseca do ato decisório que determinou a privação de liberdade, mas não mais que isto.

Não é uma via procedimental para submeter ao STJ a reapreciação da decisão da instância que determinou a prisão ou à ordem da qual o requerente está privado da liberdade. Não se destina a questionar o mérito do despacho judicial ou da sentença condenatória que impôs a prisão nem a sindicar eventuais nulidades ou irregularidades de que possam enfermar.

Na conformação constitucional e no seu desenho normativo, o habeas corpos é uma providência judicial urgente. “Visa reagir, de modo imediato e urgente, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal” decretada ou mantida com violação “patente e grosseira dos seus pressupostos e das condições da sua aplicação[27].

O Juiz decide-a em 8 dias, em audiência contraditória –art. 31º n.º 3 da Constituição.

Conhecendo da petição de habeas corpus, o STJ, nos termos do art. 223º (procedimento) n.º 4 do CPP, delibera no sentido de:

a) Indeferir o pedido por falta de fundamento bastante;

b) Mandar colocar imediatamente o preso à ordem do Supremo Tribunal de Justiça e no local por este indicado, nomeando um juiz para proceder a averiguações, dentro do prazo que lhe for fixado, sobre as condições de legalidade da prisão;

c) Mandar apresentar o preso no tribunal competente e no prazo de vinte e quatro horas, sob pena de desobediência qualificada; ou

d) Declarar ilegal a prisão e, se for caso disso, ordenar a libertação imediata.

4.  pressuposto da atualidade:

Na arquitetura traçada pela Constituição da República e na conformação normativa do CPP, a providência em apreço pressupõe a efetividade e atualidade da prisão ilegal. A doutrina vai maioritariamente neste sentido[28], havendo, contudo quem sustente que a nossa Magna Carta não exclui o denominado habeas corpus preventivo[29].

A Jurisprudência deste Supremo Tribunal tem sido unanime[30] na exigência da verificação do pressuposto da atualidade da prisão ilegal. No Ac. de 18/07/2014[31] sustenta-se: “A procedência do pedido de habeas corpus pressupõe, além do mais, uma actualidade da ilegalidade da prisão aferida em relação ao tempo em que é apreciado aquele pedido”.

E no Ac de 11/02/2016[32] entendeu-se que: “A viabilidade do habeas corpus, como meio direccionado exclusivamente para a tutela da liberdade, exige uma privação de liberdade actual, não servindo, por isso, como mecanismo declarativo de uma ultrapassada situação de prisão ilegal. Do mesmo modo, também o habeas corpus não pode ser utilizado como meio preventivo de uma eventual futura prisão ilegal. Só a efectiva privação de liberdade pode fundamentar aquela providência”.

Entende-se que é esta a interpretação que melhor se conjuga com a evolução desta providência na nossa ordem constitucional. Como se referenciou, a Constituição de 1911 previa expressamente o habeas corpus preventivo, estabelecendo: “Dar-se-á o habeas corpus sempre que o individuo sofrer ou se encontrar em iminente perigo do sofrer violência, ou coacção, por ilegalidade, ou abuso de poder”. Modalidade que a Constituição de 1933 não manteve: E que a Constituição de 1976 também não adotou. Seguramente que o legislador constituinte não desconhecia o texto e, consequentemente, as modalidades daquela primeira inscrição constitucional do habeas corpus e também não ignorava a modificação conformada pela Constituição de 1933. Neste quadro histórico-constitucional certamente que se a sua vontade tivesse sido a de admitir o habeas corpus preventivo ter-se-ia servido de uma fórmula igual ou equivalente aquela que era dada à providência na Constituição da primeira República. Mas não adotou, nem na versão de 1976, nem nas quatro subsequentes alterações. pelo que não existe base constitucional, para sustentar o referido entendimento.

É também essa a interpretação que o legislador ordinário fez daquele comando constitucional. Como alguns autores reconhecem, no regime do Código de Processo Penal, a providência dirige-se contra a prisão ilegal, isto é, a efetiva privação da liberdade, pois que somente a atualidade da prisão ilegal pode justificar qualquer dos atos que podem decorrer do seu deferimento: mandar colocar imediatamente o preso à ordem do STJ; mandar apresentar o preso ao juiz em 24 horas; ordenar a libertação imediata.

Evidentemente que só pode libertar-se quem já está encarcerado, privado da liberdade ambulatória, seja porque a ilegalidade da prisão resulta de ter sido ordenada ou executada por entidade incompetente, seja porque o foi por facto que não admite essa medida de coação ou essa sanção, seja porque foi mantida para além do prazo legal ou judicialmente fixado ou fora das condições legalmente estabelecidas.

A colocação do preso à ordem do Supremo Tribunal de Justiça, tal como a apresentação do preso ao juiz determinado, somente tem sentido (jurídico e prático) se a pessoa está efetivamente privada da liberdade ambulatória. Não sendo assim, o habeas corpus requerido em favor da conservação da sua liberdade era-lhe penosamente prejudicial. Nessa situação (se está em liberdade), deferida que fosse a providência – e estando fora de causa a libertação imediata pela simples razão de não estar encarcerado -, tinha de ser preso para, nessa situação, ser colocado à ordem do STJ ou para ser apresentado em 24 horas ao juiz determinado. A lei não prevê, nem teria qualquer sentido, que o requerente ou beneficiário da providência seja colocado em liberdade à ordem do STJ, ou que em liberdade se apresente perante o juiz em 24 horas.

Consequentemente, se a pessoa não está presa, não se verifica um dos pressupostos nucleares da providência de habeas corpus.

5. a entrega em execução de MDE:

O Conselho da União Europeia, em 13 de Junho de 2002, adotou a Decisão-quadro 2002/584/JAI relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados-Membros

O objeto do mecanismo do mandado de detenção europeu é permitir a detenção e a entrega duma pessoa procurada, para que, tendo em conta o objetivo prosseguido pela referida decisão‑quadro, a infração cometida não fique impune e o seu agente seja julgado ou cumpra a pena privativa de liberdade em que foi condenado, num processo justo.

Sustenta-se no princípio do reconhecimento mútuo, que, por sua vez, enquanto «pedra angular» da cooperação judiciária, assenta na confiança mútua entre os Estados Membros para alcançar o objetivo que a União fixou de se tornar um espaço de liberdade, segurança e justiça. Princípio que impõe aos Estados Membros que considerem, genericamente, que todos os outros Estados Membros respeitam os direitos fundamentais reconhecidos pelo direito europeu e pelo direito convencional neste acolhido.

O mecanismo do MDE tem, no direito da União, uma importância fundamental, permitindo a criação e a manutenção de um espaço comum de justiça, sem fronteiras internas. As relações de cooperação clássicas que até então prevaleciam entre Estados-Membros foram abolidas, erigindo-se um sistema de livre circulação das decisões judiciais em matéria penal, tanto na fase pré-sentencial como transitadas em julgado.

O MDE é, pois, uma decisão judiciária emitida por um Estado Membro para que noutro Estado Membro se detenha e lhe seja entregue, uma pessoa que naquele é procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade –art. 1º n.º 1 daquela Decisão-quadro e artº 1º da Lei n.º 65/2003.

O regime interno do MDE, - vertido entre nós na Lei n.º 65/2003, substituiu, desde 1 de janeiro de 2004 -, as convenções sobre a extradição entre os Estados-membros da União Europeia.

O MDE é um procedimento urgente – art. 17º da Decisão e 33º da Lei n.º 65/2003 – com prazos para a apresentação do detido –art. 16º da Lei -, a audição – art. 18º da Lei -, a decisão –art. 17º da Decisão e 22º e 26º da Lei -, a entrega – art. 23º e 24º da Decisão e 29º da Lei -, e a duração da detenção – art. -30 da Lei -, legalmente definidos.

Compete à autoridade judiciária do Estado Membro de execução decidir da manutenção da detenção da pessoa procurada, de acordo com o respetivo direito interno, na condição de tomar todas as medidas que considerar necessárias a fim de evitar a fuga –art. 12º da Decisão e 16º n.º 6 e 26º n.º 4 da Lei.

A Decisão-quadro não estabelece, expressamente, limites temporais para a detenção da pessoa procurada no âmbito de execução do MDE. Não assim a Lei n.º 65/2003 (doravante, identificada somente por Lei), que no art, 30º (“prazos de duração máxima da detenção”) dispõe que “cessa quando, desde o seu início”, tiverem decorrido 60 dias sem que a Relação tenha decidido a execução do MDE, 90 dias se for interposto recurso da decisão sobre a execução, e 150 dias se for interposto recurso para o Tribunal Constitucional. Prazos máximos da detenção estipulados pelo legislador interno por referência aos prazos para decisão do MDE estabelecidos na Decisão quadro – art. 17.

Atingido aqueles prazos máximos, a pessoa procurada que esteja detida é libertada, podendo aplicar-se-lhe medidas de coação prevista no CPP que não impliquem a privação da liberdade, ou o confinamento em estabelecimento prisional, centro de detenção ou espaço oficial equivalente.

Decretada a execução do MDE pela autoridade judiciária do Estado de execução, a entrega da pessoa procurada deve efetuar-se o mais rapidamente possível, em data acordada entre as autoridades dos dois Estados Membros, o de emissão e o de execução, de modo a que a entrega ocorra no prazo máximo de 10 dias – art.º 23º n.º 1 2 2 da Decisão e da Lei – contados da data em que a decisão de execução se tornou definitiva ou da data para a qual foi deferida a entrega ao abrigo do disposto no art. 24º da Decisão e 31º da Lei..

Sendo impossível efetuar a entrega naquele prazo, em virtude de caso de força maior num dos Estados-Membros, as autoridades judiciárias de execução e de emissão, acordam nova data para a entrega, que deve realizar-se num dos 10 dias seguintes (“a contar da nova data acordada”)  –art. 23º n.º 3 da Decisão e 29º n.º 3 da Lei.

Entrega que pode ser temporariamente suspensa por motivos humanitários graves, por exemplo, se existirem motivos válidos para considerar que colocaria manifestamente em perigo a vida ou a saúde da pessoa procurada. Nestas situações, a entrega deve efetuar-se logo que tais motivos deixarem de existir. Neste caso, autoridade judiciária de execução informa imediatamente do facto a autoridade judiciária de emissão e acordam nova data para a entrega, a qual se deve efetuar no prazo de 10 dias a contar dessa nova data –art.º 23º n.º 4 da Decisão e 29º n.º 4 da Lei.

Quando a entrega não se tenha efetuado até ao 10º dia posterior à data acordada para efeito seja no termo do prazo da primeira prorrogação – determinada pela impossibilidade por algum caso de força maior inerente a qualquer dos dois Estados -,seja no termo da suspensão temporária da entrega – por motivos humanitários graves -, estando a pessoa procurada detida no Estado-Membro de execução, dever ser colocada, imediatamente, em liberdade. – art. 23º n.º 5 da Decisão.

A Lei 65/2003 não transpôs esta norma do n.º 5 do art.º 23º citado pelo que não é possível encontrar aí uma norma que solucione diretamente o caso aqui em apreço.

Impõe-se, pois, cuidar atentamente na interpretação da norma do art.º 23º da Decisão quadro. E, nesse domínio, o mais apropriado é buscar amparo na  Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), que é o órgão especialmente vocacionado para interpretar a aplicação do direito da União Europeia. Que tem, precisamente decisões que versam sobre a interpretação da norma em apreço.

Interpretando o artigo 23º da Decisão quadro, o TJUE, no Acórdão de 25 de janeiro de 2017 – 3ª secção -, tirado num pedido de reenvio prejudicial, decidiu:

21.   No que respeita, em especial, à última fase do processo de entrega, o artigo 23.°, n.º 1, da decisão‑quadro prevê que a pessoa procurada deve ser entregue o mais rapidamente possível, numa data acordada entre as autoridades interessadas.

22.    Este princípio é concretizado no artigo 23.º, n.° 2, da decisão-quadro, que enuncia que a pessoa procurada deve ser entregue no prazo máximo de dez dias, a contar da decisão definitiva de execução do mandado de detenção europeu.

23.    Não obstante, o legislador da União autorizou determinadas derrogações a esta regra ao prever, por um lado, a possibilidade de as autoridades interessadas acordarem uma nova data de entrega em certas situações definidas no artigo 23.°, n.os 3 e 4, da decisão-quadro e, por outro, que a entrega da pessoa procurada deve então ser realizada no prazo de dez dias a contar da nova data acordada.

24.    Mais especificamente, o artigo 23.° n.° 3, primeiro período, da decisão-quadro enuncia que a autoridade judiciária de execução e a autoridade judiciária de emissão devem acordar uma nova data de entrega, se a entrega da pessoa procurada, no prazo previsto no artigo 23.°, n.° 2, da decisão-quadro, for impossível em virtude de caso de força maior num dos Estados-Membros.

25.    Por conseguinte, afigura-se que o artigo 23.°, n.° 3, da decisão-quadro não limita expressamente o número de novas datas de entrega que podem ser acordadas entre as autoridades interessadas, quando a entrega da pessoa procurada, no prazo previsto, seja impossível em virtude de caso de força maior.

26.     No entanto, o órgão jurisdicional de reenvio salienta que o artigo 23.°, n.° 3, primeiro período, da decisão‑quadro só se refere expressamente a uma situação em que a entrega da pessoa procurada é impossível em virtude de caso de força maior, «no prazo previsto no [artigo 23.°, n.° 2, da decisão-quadro]», a saber, «no prazo máximo de dez dias, a contar da decisão definitiva de execução do mandado de detenção europeu».

27.     Consequentemente, o órgão jurisdicional de reenvio interroga-se sobre a aplicabilidade da regra enunciada no artigo 23.°, n.° 3, primeiro período, da decisão-quadro às situações em que a ocorrência de um caso de força maior depois de expirar esse prazo tenha impossibilitado a entrega da pessoa procurada, no prazo de dez dias a contar da primeira nova data de entrega acordada em aplicação desta disposição.

28.     A este respeito, há, por um lado, que constatar que uma interpretação literal do artigo 23.°, n.° 3, da decisão-quadro não se opõe necessariamente a essa aplicabilidade.

29.     Com efeito, como referiu o advogado-geral no n.° 25 das suas conclusões, quando a entrega da pessoa procurada, no prazo de dez dias a contar de uma primeira nova data de entrega acordada em aplicação do artigo 23.°, n.° 3, da decisão-quadro, for impossível em virtude de um caso de força maior, a condição da impossibilidade de proceder à entrega dessa pessoa no prazo de dez dias a contar da decisão definitiva de execução do mandado de detenção europeu teve, por hipótese, de ser cumprida para que essa primeira nova data de entrega fosse fixada.

30.    Por outro lado, de acordo com jurisprudência constante do Tribunal de Justiça, para interpretar uma disposição do direito da União, deve ter-se em conta não só os seus termos mas também o seu contexto e os objetivos prosseguidos pela regulamentação em que se integra (acórdãos de 19 de dezembro de 2013, Koushkaki, C-84/12, EU:C:2013:862, n.° 34, e de 16 de novembro de 2016, Hemming e o., C-316/15, EU:C:2016:879, n.° 27).

31.   A este respeito, recorde-se que, ao instituir um novo sistema simplificado e mais eficaz de entrega das pessoas condenadas ou suspeitas de ter infringido a lei penal, a decisão-quadro pretende facilitar e acelerar a cooperação judiciária com vista a contribuir para realizar o objetivo, atribuído à União, de se tornar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça, baseando-se no elevado grau de confiança que deve existir entre os Estados-Membros (acórdãos de 16 de julho de 2015, Lanigan, C-237/15 PPU, EU:C:2015:474, n.° 28, e de 5 de abril de 2016, Aranyosi e Căldăraru, C‑404/15 e C‑659/15 PPU, EU:C:2016:198, n.° 76).

32.    Neste âmbito, o artigo 23.° da decisão‑quadro tem designadamente por objetivo, à semelhança dos artigos 15.° e 17.° da mesma, acelerar a cooperação judiciária ao impor prazos de adoção das decisões relativas ao mandado de detenção europeu que os Estados-Membros estão obrigados a respeitar (v., neste sentido, acórdãos de 30 de maio de 2013, F, C-168/13 PPU, EU:C:2013:358, n.° 58, de 16 de julho de 2015, Lanigan, C-237/15 PPU, EU:C:2015:474, n.os 29 e 33).

33.    Ora, considerar que a autoridade judiciária de execução não pode beneficiar de um novo prazo para entregar a pessoa procurada, quando, na prática, a sua entrega no prazo de dez dias a contar de uma primeira nova data de entrega acordada em aplicação do artigo 23.°, n.° 3, da decisão-quadro é impossível em virtude da ocorrência de um caso de força maior, seria sujeitar esta autoridade a uma obrigação impossível de cumprir e não contribuiria minimamente para o objetivo prosseguido, de acelerar a cooperação judiciária.

34.    Além disso, há que interpretar o artigo 23.°, n.º 3, da decisão-quadro tendo igualmente em conta o artigo 23.°, n.º 5, da mesma.

35.    Esta última disposição prevê que, findos os prazos fixados no artigo 23.°, n.os 2 a 4, da decisão-quadro, se a pessoa procurada ainda se encontrar detida, deve ser posta em liberdade.

36.    Daqui resulta que se o artigo 23.°, n.° 3, da decisão‑quadro fosse interpretado no sentido de que a regra enunciada no seu primeiro período não se aplica quando a entrega da pessoa procurada, no prazo de dez dias a contar de uma primeira nova data de entrega acordada em aplicação desta disposição, seja impossível em virtude de caso de força maior, essa pessoa teria obrigatoriamente, numa situação assim, de ser posta em liberdade, se ainda se encontrasse detida, independentemente das circunstâncias do caso em questão, uma vez que o prazo previsto nessa disposição teria expirado.

37.    Consequentemente, esta interpretação poderia reduzir significativamente a eficácia dos procedimentos previstos na decisão-quadro e, por conseguinte, obstar à plena realização do objetivo prosseguido pela mesma, que consiste em facilitar a cooperação judiciária através da instituição de um sistema mais eficaz de entrega das pessoas condenadas ou suspeitas de terem infringido a lei penal.

38.    Além disso, a referida interpretação poderia levar à libertação da pessoa procurada, em situações em que a prorrogação da duração da sua detenção não é devida à falta de diligência por parte da autoridade de execução e em que a duração total da detenção desta pessoa não é excessiva, atendendo, designadamente, à eventual contribuição da pessoa procurada para o atraso no procedimento, à pena a que essa mesma pessoa se expõe e à existência, dado o caso, do risco de fuga (v., neste sentido, acórdão de 16 de julho de 2015, Lanigan, C-237/15 PPU, EU:C:2015:474, n.° 59).

39.    Nestas circunstâncias, deve considerar-se que o artigo 23.°, n.° 3, da decisão-quadro deve ser interpretado no sentido de que as autoridades interessadas também devem acordar uma nova data de entrega, nos termos desta disposição, quando a entrega da pessoa procurada, no prazo de dez dias a contar de uma primeira nova data de entrega acordada em aplicação desta disposição, seja impossível em virtude de caso de força maior.

40.    Esta conclusão não é posta em causa pela obrigação de interpretar o artigo 23.°, n.° 3, da decisão-quadro em conformidade com o artigo 6.° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que prevê que toda a pessoa tem direito à liberdade e segurança (v., neste sentido, acórdão de 16 de julho de 2015, Lanigan, C-237/15 PPU, EU:C:2015:474, n.° 54).

41.    É verdade que a interpretação do artigo 23.°, n.° 3, da decisão-quadro que figura no n.° 39 do presente acórdão implica que a autoridade judiciária de execução não é necessariamente obrigada a libertar a pessoa procurada, se esta ainda se encontrar detida, quando a entrega desta pessoa procurada, no prazo de dez dias a contar da primeira nova data de entrega acordada em aplicação desta disposição, for impossível em virtude de caso de força maior.

42.    Não obstante, como referiu o advogado-geral no n.° 37 das suas conclusões, esta interpretação não obriga a manter a pessoa procurada em detenção, uma vez que o artigo 12.° da decisão-quadro especifica que cabe à autoridade judiciária de execução decidir se deve manter essa pessoa em detenção em conformidade com o direito do Estado-Membro de execução e que a libertação provisória é possível a qualquer momento de acordo com esse direito, na condição de a autoridade competente tomar todas as medidas que considerar necessárias a fim de evitar a fuga da pessoa procurada.

43.     Neste contexto, quando as autoridades interessadas acordem uma segunda nova data de entrega em aplicação do artigo 23.°, n.° 3, da decisão-quadro, a autoridade judiciária de execução só poderá decidir manter a pessoa procurada em detenção, em conformidade com o artigo 6.° da Carta dos Direitos Fundamentais, se o procedimento de entrega tiver sido realizado com diligência suficiente e, portanto, se a duração da detenção não for excessiva. Para garantir que é esse o caso, essa autoridade deverá efetuar um controlo concreto da situação em causa, tomando em consideração todos os elementos pertinentes (v., neste sentido, acórdão de 16 de julho de 2015, Lanigan, C-237/15 PPU, EU:C:2015:474, n.os 58 e 59).

44.  Nestas circunstâncias, importa determinar se a autoridade judiciária de execução e a autoridade judiciária de emissão devem acordar uma segunda nova data de entrega, nos termos do artigo 23.°, n.°3, da decisão‑quadro, numa situação como a que está em causa no processo principal, (…).

45.   a 52 (…)

53.    Ora, resulta de jurisprudência constante, fixada em diversos domínios do direito da União, que o conceito de força maior deve ser entendido no sentido de circunstâncias alheias a quem o invoca, anormais e imprevisíveis, cujas consequências não poderiam ter sido evitadas, apesar de todas as diligências efetuadas (v., neste sentido, acórdãos de 18 de dezembro de 2007, Société Pipeline Méditerranée et Rhône, C-314/06, EU:C:2007:817, n.° 23; de 18 de março de 2010, SGS Belgium e o., C-218/09, EU:C:2010:152, n.° 44; e de 18 de julho de 2013, Eurofit, C‑99/12, EU:C:2013:487, n.° 31).

54.      a 56. (…).

57.      Além disso, há que salientar que resulta da redação do artigo 23.°, n.° 3, da decisão-quadro que a ocorrência de um caso de força maior só pode justificar a prorrogação do prazo de entrega da pessoa procurada se esse caso de força maior implicar que a entrega dessa pessoa no prazo fixado seja «impossível». (…)


58     a  67 (…)

67.     Embora o artigo 15.°, n.° 1, da decisão-quadro preveja claramente que a autoridade judiciária de execução decide da entrega da pessoa nos prazos definidos na decisão-quadro, a redação desta disposição não é suficiente para determinar se a execução de um mandado de detenção europeu deve ser efetuada, findos esses prazos, e, em especial, se a autoridade judiciária de execução está obrigada a proceder à entrega, findos os prazos fixados no artigo 23.° da decisão-quadro, e se deve, para o efeito, acordar uma nova data de entrega com a autoridade judiciária de emissão (v., por analogia, acórdão de 16 de julho de 2015, Lanigan, C-237/15 PPU, EU:C:2015:474, n.° 34).

68.    A este respeito, importa referir que resulta de jurisprudência constante do Tribunal de Justiça que o princípio do reconhecimento mútuo, que constitui a «pedra angular» da cooperação judiciária, implica, nos termos do artigo 1.°, n.° 2, da decisão-quadro, que os Estados-Membros estejam, em princípio, obrigados a dar seguimento a um mandado de detenção europeu (v., por analogia, acórdão de 16 de julho de 2015, Lanigan, C-237/15 PPU, EU:C:2015:474, n.° 36).

69.    Por conseguinte, tendo em conta, por um lado, o caráter central da obrigação de executar o mandado de detenção europeu no sistema instituído pela decisão-quadro e, por outro, a inexistência nesta de qualquer referência explícita a uma limitação da validade temporal dessa obrigação, a regra consagrada no artigo 15.°, n.° 1, da decisão-quadro não pode ser interpretada no sentido de que implica que, findos os prazos fixados no artigo 23.° da decisão-quadro, a autoridade judiciária de execução já não possa acordar uma nova data de entrega com a autoridade judiciária de emissão ou que o Estado-Membro de execução já não esteja obrigado a prosseguir o procedimento de execução do mandado de detenção europeu (v., por analogia, acórdão de 16 de julho de 2015, Lanigan, C-237/15 PPU, EU:C:2015:474, n.° 37).

70.     Além disso, constate-se que, embora o legislador da União tenha especificado expressamente no artigo 23.°, n.° 5, da decisão-quadro que a expiração dos prazos fixados no seu artigo 23.°, n.os 2 a 4, implicava a libertação da pessoa procurada, se esta ainda se encontrasse detida, o referido legislador não atribuiu nenhum outro efeito à expiração destes prazos e, em especial, não previu que essa expiração impedia as autoridades interessadas de acordar uma data de entrega em aplicação do artigo 23.°, n.° 1, da decisão-quadro ou liberava o Estado-Membro de execução da obrigação de executar um mandado de detenção europeu (v., por analogia, acórdão de 16 de julho de 2015, Lanigan, C-237/15 PPU, EU:C:2015:474, n.° 38).

71.     Acresce que uma interpretação do artigo 15.°, n.° 1, e do artigo 23.° da decisão-quadro segundo a qual a autoridade judiciária de execução já não deve proceder à entrega da pessoa procurada nem acordar, para o efeito, uma nova data de entrega com a autoridade judiciária de emissão, findos os prazos fixados no artigo 23.° da decisão-quadro, poderá prejudicar o objetivo de aceleração e de simplificação da cooperação judiciária prosseguido pela decisão-quadro, uma vez que esta interpretação seria suscetível, designadamente, de forçar o Estado-Membro de emissão a emitir um segundo mandado de detenção europeu para permitir a realização de um novo procedimento de entrega nos prazos previstos pela decisão-quadro (v., por analogia, acórdão de 16 de julho de 2015, Lanigan, C-237/15 PPU, EU:C:2015:474, n.° 40).

72.     Decorre do exposto que a mera expiração dos prazos fixados no artigo 23.° da decisão-quadro não dispensa o Estado-Membro de execução da sua obrigação de prosseguir o procedimento de execução de um mandado de detenção europeu e de proceder à entrega da pessoa procurada, devendo as autoridades interessadas, para o efeito, acordar uma nova data de entrega (v., por analogia, acórdão de 16 de julho de 2015, Lanigan, C-237/15 PPU, EU:C:2015:474, n.° 42).

73.    Contudo, em tal situação, decorre do artigo 23.°, n.° 5, da decisão-quadro que, em razão da expiração dos prazos fixados neste artigo, a pessoa procurada deve ser posta em liberdade se ainda se encontrar detida.

74.    Face às considerações que antecedem, há que responder da seguinte forma às questões colocadas:

– O artigo 23.°, n.° 3, da decisão-quadro deve ser interpretado no sentido de que, numa situação como a que está em causa no processo principal, a autoridade judiciária de execução e a autoridade judiciária de emissão devem acordar uma nova data de entrega, nos termos desta disposição, quando a entrega da pessoa procurada, no prazo de dez dias contados a partir de uma primeira nova data de entrega acordada em aplicação desta disposição, seja impossível (…).

– O artigo 15.°, n.° 1, e o artigo 23.° da decisão-quadro devem ser interpretados no sentido de que as mesmas autoridades continuam obrigadas a acordar uma nova data de entrega, findos os prazos fixados neste artigo 23.o

O acórdão do TJUE, longamente citado, evidencia por um lado que o prazo geral de 10 dias para a entrega da pessoa procurada, contados da data em que a decisão de execução se torna definitiva ou da data para a qual se deferiu a entrega (designadamente em razão de procedimento criminal ou de pena que o requerido tem pendente ou a cumprir no Estado-Membro de execução), admite derrogações, em virtude de caso de força maior num dos dois Estados interessados, ou por suspensão temporária da entrega por razões humanitárias graves – do procurado -, permitindo que, verificadas tais causas, as autoridades judiciárias envolvidas acordem uma data posterior, naturalmente fixada em função da previsível cessação daqueles motivos ou imediatamente seguida àquela suspensão.

Da norma do n.º 5 do art. 23º da Decisão quadro resulta inequivocamente que a pessoa a entregar que esteja detida será libertada sempre que, sendo a entrega possível, tiver transcorrido o prazo geral de 10 dias estabelecido no n.º 2 sem que se tenha concretizado.

Não sendo possível efetuar a entrega por causa de forma maior, num ou em ambos os Estados, ou suspensa temporariamente por razões humanitárias, a pessoa procurada será igualmente libertada, mas apenas se ou depois de decorrerem mais de 10 dias sobre a nova data acordada pelas autoridades judiciárias dos Estados-Membros de emissão e de execução, naturalmente, fixada para o momento mais próximo possível da cessação daquelas causas.

Impossibilidade da entrega no prazo previsto no art.º 23º n.º 2 da Decisão quadro e 29º n.º 2 da Lei n.º 65/2003, que se verifica no caso, por pública e notória causa de força maior inerente ao Estado Português e também ao Estado Francês, ambos assolados pela pandemia – França com maior incidência -, declarada pela Organização Mundial de Saúde em 13 de março de 2020, gerada pelo vírus Covid-19.

Causa de força maior que impossibilitou justificadamente a entrega do Requerido no prazo «normal» de 10 dias, contados da data em que foi colocado à ordem destes autos. Que deve levar as autoridades judiciárias dos dois Estados Membros a acordar uma data para a entrega do Requerente, tendo, naturalmente, em consideração por um lado que deve efetuar-se o mais rapidamente possível e, pelo outro lado, que seja efetivamente concretizável por então terem cessado os motivos de força maior que impediram se tivesse efetuado até ao 10º dia posterior à colocação do Requerente à ordem do processo.

Nestas circunstâncias especiais que existiam à data e ainda persistem e que impossibilitaram a entrega, a manutenção da detenção e a consequente privação da liberdade do Requerente para além do prazo dos 10 dias previstos no art.º 23º n.º 2 da Decisão quadro e 29º n.º 2 da Lei n.º 65/2002, não é abusiva nem arbitrária. Mantêm-se licitamente, por agora e enquanto outra razão não sobrevier, ao abrigo da norma do art.º 23º n.º 3 da Decisão e do art.º 29º n.º 3 da Lei citada.

Enquanto se mantiver a impossibilidade da entrega do Requerente pela causa de força maior indicada – a pandemia causada pelo Covid-19 em França -, e enquanto não se esgotem os prazos máximos da detenção, não se invocando outras causas que a pudessem tornar ilícita e abusiva, não existe fundamento legal para determinar a imediata cessação da sua privação da liberdade.

Assim, e em conformidade com o exposto, conclui-se que a não entrega do Requerente às autoridades judiciárias da República Francesa, até 16 de abril de 2020, em razão de caso de força maior decorrente da pandemia que vivemos nos dois Estados, não obsta a que as autoridades judiciárias envolvidas na emissão e na execução do MDE acordem outra data para a entrega, o mais próxima possível permitido pelos motivos que impossibilitaram que ainda não se tenha realizado, e que até lá e contanto se não esgote o prazo máximo de duração da detenção, o Requerido se mantenha detido.

Com o que fica resolvida a questão nuclear apresentada pelo Requerente, consistente em saber se os prazos da entrega são perentórios, se a não entrega no prazo de 10 dias contados desde que foi colocado à ordem dos prestes autos, converte a sua detenção em ilícita e arbitrária.

Não são prazos perentórios, como corrobora a citada decisão do TJUE.

Da não entrega do Requerente nos 10 dias contados da data da sua colocação à ordem dos autos, detido, uma vez que a entrega foi, logo na decisão de execução, deferida para depois do procedimento penal e da pena que lhe foi aplicada em Portugal, não resulta que a sua detenção se mantenha ilícita e abusivamente. Ao invés, por ora, mantêm-se legalmente porque ainda não cessou a causa de forma maior que impossibilitou a entrega e ainda se não esgotou o prazo máximo da sua detenção à ordem do vertente procedimento.

6. notificação da decisão:

O Requerente, aparentemente, não muito convicto da alegada ilegalidade e arbitrariedade da detenção, decorrente tão-somente da não entrega naquele prazo de 10 dias, ou seja, até 16 de abril de 2020, argumenta que a ilicitude advém da circunstância de a decisão judicial da primeira prorrogação por 30 dias  (até 17 de maio corrente) – proferida em 17 de abril passado – apenas lhe ter sido notificada em 22 do mesmo mês, portanto para além do tal prazo dos 10 dias contados desde que foi colocado, detido, à ordem do vertente processo. E que da segunda prorrogação por mais 30 dias – até 17 de junho - apenas lhe foi notificada em 20 de maio corrente.

Ao invés do que argumenta a data da sua notificação ou do seu defensor, não tem outra relevância que não seja para efeitos de impugnação da decisão judicial notificada e do posterior trânsito em julgado.

Sem dúvida que o visado deve ser notificado da decisão judicial que defere a entrega por razões humanitárias ou que verifica a impossibilidade da entrega no prazo normal por causa de força maior. Não se tratando de despachos de mero expediente e, sobretudo, porque intercedem com o direito do Requerente à liberdade pessoal, tinham de notificar-se ao visado para que, querendo pudesse reagir, impugnando-as pelas vias processuais ordinárias ou extraordinárias – como fez – que a lei coloca ao seu dispor.

Não é, pois, pela circunstância de a notificação da decisão judicial que prorrogou a entrega que a detenção do Requerente à ordem dos autos se mantém arbitrariamente, não a torna ilegal e abusiva.

Aliás, a jurisprudência deste Supremo Tribunal é uniforme no sentido de que o prazo da prisão preventiva se conta por referência ao ato processual ou à decisão judicial que marca o termo de cada um dos respetivos prazos e que a notificação aos sujeitos processuais, em data posterior ao termo do prazo, é irrelevante.

Com a particularidade de, neste âmbito (da entrega em execução do MDE), a lei não estabelecer qualquer possibilidade de o detido a entregar poder influir na marcação da nova data para a entrega. A marcação dessa data faz-se por acordo das autoridades judiciárias dos Estados Membros envolvidos, sem audição e sem possibilidade de oposição da pessoa a entregar. A lei é clara: “se for impossível a entrega da pessoa procurada no prazo previsto no número anterior, em virtude de facto de força maior que ocorra num dos Estados membros, o tribunal e a autoridade judiciária de emissão estabelecem de imediato os contactos necessários para ser acordada uma nova data de entrega, a qual deverá ter lugar no prazo de 10 dias a contar da nova data acordada”.

Não tem, pois, razão o recorrente nesta sua argumentação.

7. prazos da detenção:

Esclarecida e ultrapassada a questão dos prazos da entrega – e da notificação -, todavia, a conformidade legal da detenção nessas circunstâncias tem de apreciar-se não somente à luz deste regime, como também do que se encontra estabelecido para os prazos máximos da detenção, que, como se referiu, a Lei n.º 65/2003 fixou no art. 30º, ainda que em função da definitividade da decisão de execução do MDE.

Questão que nos transporta forçosamente para outra consistente em delimitar a dimensão da aplicabilidade na execução do regime processual penal das medidas de coação e, especificamente, da prisão preventiva.

Porque a lei é clara, estabelecendo que esgotados o prazo máximo da detenção esta pode “ser substituída por medida de coação prevista no Código de Processo Penal”, não restam dúvidas sobre a aplicação das medidas de coação que não impliquem a privação da liberdade.

Evidentemente, está excluída a “substituição” da detenção pela medida de coação processual penal de prisão preventiva. Se assim não fosse estava encontrada a maneira, ínvia, de contornar os prazos máximos da detenção fixados na lei. Em termos de privação da liberdade tudo se resumiria a uma questão de pura semântica. Até determinado prazo a pessoa procurada estaria privada da liberdade, detido. Esgotado o prazo da detenção, continuava igualmente privado da liberdade, preventivamente preso.

Se bem que o cerne da destrinça não deva assentar apenas nos prazos, a aludida substituição, se admissível, teria ainda o gravame de os prazos da prisão preventiva serem muito superiores aos que a lei estabelece para a detenção.

Relevante é que a confusão conceitual e de regimes está constitucionalmente excluída porque a “detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso” e a “prisão, detenção ou outra medida coactiva sujeita a controlo judicial, de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradição ou de expulsão” são duas realidades diferenciadas, fundadas em situações da vida que não tem a mesma valência jurídica nem a mesma repercussão comunitária.

Ademais da autonomia inconstitucional, a interpretação adotada resulta também da Lei 65/2003. Não seria razoável nem sensato que o legislador estabelecesse prazos máximos autónomos para a detenção, se tivesse querido obter o mesmo desiderato que alcançaria com a prisão preventiva, que, afinal, sempre poderia substituir aquela e com a prazos menos exigentes.

Não é, pois, aplicável em processo de execução do MDE a medida de coação da prisão preventiva. A remissão constante do art. 12º da Decisão quadro manter ou libertar a pessoa procurada “em conformidade com o direito do Estado-Membro de execução”, ou “de acordo com o direito nacional do Estado-Membro de execução” e da parte final do art.º 30º n.º 1 da Lei para “medida de coacção prevista no Código de Processo Penal”, não suportam a interpretação de nas medidas destinadas a evitar a fuga se possa lançar mão da prisão preventiva. Para isso existe a detenção.

O efetivo cumprimento decisão de execução do MDE, desde que proferida em prazo, é garantido pela detenção que, como se referiu, tem regime Constitucional e regime legal próprio, autónomo e excludente da prisão preventiva.

Nesta conformidade impõe-se concluir que, não obstante os despachos proferidos nos autos a aplicar ao Requerente a medida de coação de prisão preventiva, o que realmente está e se mantém - licitamente - é “simplesmente” detido para assegurar a entrega decretada no acórdão que decidiu deferir a execução do MDE.

Detenção que tem os prazos máximos estabelecidos no art.º 30 da lei n.º 65/2003. O primeiro dos quais é de 60 dias contados desde a data da detenção da pessoa procurada.

Em casos como o dos autos, em que a entrega foi deferida para o termo de cumprimento do procedimento criminal e da pena aplicada no nosso país ao Requerente, o prazo da detenção conta-se, não desde a data da decisão, mas sim desde que a pessoa procurada foi colocada à ordem do processo do MDE.

No caso, a fazer fé nos elementos fornecidos pelos autos, o prazo da detenção do requerente iniciou-se em 6 de abril. E atingirá os 60 dias assinalados em 6 de junho. Caso tenha havido recurso para o STJ do acórdão que mandou executar o MDE, esse prazo sobe para 90 dias, E então terminaria (ou terminará) em 5 de julho de 2020. E se tiver havido recurso para o Tribunal Constitucional, passa a ser de 150 dias, contados desde 6 de abril passado.

Pelo que, se não se efetuar a entrega até termo do prazo máximo da detenção que for aplicável – e o mais curto é de 60 dias -, terá de cessar logo que se atinja o esgotamento do prazo que for de aplicar ao caso. A suceder tal, nessa ocasião, o Tribunal da Relação, decidirá da aplicação ao Requerente de medidas de coação admissíveis – e disse-se já que não admite substituição por prisão preventiva.

Como ainda faltam 8 dias para que se esgote o referido prazo mais curto ou mais tempo se outro dos previstos tiver cabimento em razão da aludida tramitação processual legalmente influente no prazo da detenção, até lá, ou seja, até 5 de junho próximo, a manutenção da atual detenção do Requerente à ordem destes autos, não é ilegal nem, consequentemente arbitrária nem abusiva.

Ao invés, mantêm-se dentro do prazo legalmente estipulado, por decisão do Tribunal competente e em situação em que a Constituição da República e a lei a permitem.

IV. DECISÃO:

Pelo exposto, o Supremo Tribunal de Justiça -3ª secção criminal-, deliberando nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 223.º do CPP, decide:

- indeferir por falta de fundamento bastante - art. 223º n.º 4 al.ª a) do CPP -, a petição de habeas corpus, apresentada pelo Requerente AA.


*


Custas pelo requerente, fixando-se a taxa de justiça em 4UCs (art. 8.º, n.º 9, e da Tabela III do Regulamento das Custas Judiciais).

*


Supremo Tribunal de Justiça, 27 de maio de 2020.


Nuno Gonçalves (Juiz Conselheiro relator)


*


Atesto o voto de conformidade do Ex.mº Sr. Juiz Conselheiro Paulo Ferreira da Cunha – art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 de 13 de março na redação dada pelo DL n.º 20/2020 de 1/05 aplicável ex vi do art.º 4 do CPP)[33] .

Paulo Ferreira da Cunha (Juiz Conselheiro adjunto)

António Pires da Graça (Juiz Conselheiro Presidente da Secção)

__________

[1] Grand Chamber, Case of AL-JEDDA v. THE UNITED KINGDOM, (Application no. 27021/08). JUDGMENT, in 7 July 2011
[2] Grand Chambre, Affaire KAFKARIS c. CHYPRE. (Requête n.º 21906/04), ARRÊT du 12 février 2008.
[3] Habeas corpus: passado, presente, futuro, revista JULGAR - N.º 29 – 2016, pag. 223.
[4] Iniciada ou pelo menos desde o «Habeas corpus Act» de 1679.
[5] Autores e obra citada, pag. 508.
[6] Autores e obra citada, pag 508.
[7] Aprovada pela Assembleia Nacional Constituinte, na sessão do 19 de Junho do 1911.
[8] 31.º Dar-se-á o habeas corpus sempre que o individuo sofrer ou se encontrar em iminente perigo do sofrer violência, ou coacção, por ilegalidade, ou abuso de poder.
A garantia do habeas corpus só se suspende nos casos do estado do sitio por sedição, conspiração, rebelião ou invasão estrangeira.
Uma lei especial regulará a extensão desta garantia e o seu processo.
[9] Jorge Miranda, O constitucionalismo liberal luso-brasileiro, Lisboa, 2001, págs. 51/52.
[10] § 22. Dar-se-ha o habeas-corpus sempre que o individuo soffrer ou se achar em imminente perigo de sofrer violencia, ou coacção, por illegalidade, ou abuso de poder.
[11]  Jorge Miranda, ob. cit. pág. 48/49;
[12] E. Maia Costa, HABEAS CORPUS: PASSADO, PRESENTE, FUTURO, Revista Julgar, N.º 29 – 2016.
[13] Artigo 8º, § 4º: “Poderá contra o abuso de poder usar-se da providência excepcional do habeas corpus, nas condições determinadas em lei especial
[14] Lei nº 3/71, de 16 de Agosto.
[15] Diário do Govêrno n.º 233/1945, Série I de 1945-10-20.
[16] Sobre o Habeas corpus, “Jornal do Fôro”, Ano 9º, nºs. 70/73, 1945, págs. 228/229.
[17] Curso de Processo Penal, vol. II, reimpressão, Lisboa, 1981, págs. 477/478.
[18] Na exposição de motivos do DL n.º 185/72 fez-se constar: “Em virtude de as garantias da legalidade da prisão deverem inserir-se no sistema do Código de Processo Penal, incluiu-se nele, substancialmente inalterada, a regulamentação do habeas corpus, a que procedera o Decreto-Lei n.º 35043, de 20 de Outubro de 1945, para dar cumprimento à parte final do § 4.º do artigo 8.º da Constituição. Quer dizer: realiza-se, neste ponto, uma pura e simples «codificação» de normas vigentes, e não qualquer mudança de conteúdo (…)”.
[19] Funcionando a secção do STJ com todos os Juizes em exercício.
[20] E. Maia Costa, publicação cit., pag. 236.
[21] E. Maia Costa, publicação cit., pag.
[22] Ao art. 31º da Constituição da República.
[23] Ac. STJ de 19-05-2010, CJ (STJ), 2010, T2, pág.196
[24] Ac. STJ de 20/09/2017, Proc. 82/17.6YFLSB, e jurisprudência aí citada (máxime: por remissão para o Ac. de 4.02.2016, proc. 529/03.9TAAVR-E.S1), ECLI:PT:STJ:2017:82.17.6YFLSB.D4.
[25] Ac. STJ de 10/08/2018, Proc. 398/17.1PASXL-B.S1, www.dgsi.pt/jstj.
[26] Tribunal Constitucional de Espanha (Sala Primeira), Sentença 21/2018 de 5.03.2018 (recurso de amparo 3766-2016), in BOE (Boletim Oficial do Estado) n.º 90 de 12.04.2018
[27] Ac. STJ de 9/08(2017 cit.
[28] Assim Maia Costa In Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar, Santos Cabral, Maia Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Pires da Graça 2016. Almedina -2ª edição revista, pág. 854; Paulo Pinto de Albuquerque, inComentário do Código de Processo Penal, 4º ed., pág. 638.
Também assim Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada I, 2010, pág. 346 para quem, “a providência de habeas corpus é, desde a sua efectiva introdução na nossa ordem jurídica, uma providência meramente conservatória, liberatória ou desconstitutiva e não também preventiva. Reage a uma detenção ou prisão efectiva e actual, e não ao simples perigo iminente de detenção ou de prisão” -
[29] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada (artigos 1º a 107º), Coimbra Editora, 4ª ed. Revista (2007), pag. 510.
[30] Cfr Ac. de 8/02/2017, proc. 404/11.3PULSB-A; Ac. de 7/11/2012, proc. 19996/97.1TDLSB-H.S1; Ac. de 11/11/2010, proc. 610/08.8PBSXL-B.S1, in www.dgsi.pt.
[31] 211/12.6GAMDB-A.S1. in www. Dgsi.pr
[32] Proc. 741/12.0TXPRT-F, in www. dgsi.pt
[33]   Artigo 15.º-A: (Recolha de assinatura dos juízes participantes em tribunal coletivo)
A assinatura dos outros juízes que, para além do relator, tenham intervindo em tribunal coletivo, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 153.º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, na sua redação atual, pode ser substituída por declaração escrita do relator atestando o voto de conformidade dos juízes que não assinaram.