EXCESSO DE PRONÚNCIA
AÇÃO DE DIVÓRCIO
IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
CASO JULGADO FORMAL
HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
ABUSO DO DIREITO
Sumário


I - O enquadramento jurídico diverso do pugnado pela parte não integra excesso de pronúncia, antes constitui reflexo do princípio ínsito no n.º 3 do artigo 5.º do CPC (oficiosidade do julgador quanto à matéria de direito), que apenas se mostra cerceado pela imposição do contraditório na perspetiva de proibição das decisões surpresa (n.º 3 do artigo 3.º do CPC).
II – A decisão proferida em incidente de habilitação de herdeiros, no apenso B, não constitui caso julgado formal, em relação à questão do prosseguimento ou não da ação de divórcio para efeitos patrimoniais (artigo 1785.º, n.º 3, do CC) decidida nestes autos.
III – Por aplicação conjugada dos artigos 1785.º, n.º 3, 2132.º e 2133.º, n.º 1, al. a), do CC e 277.º, al. e), do CPC, não pode a herdeira habilitada (representada por curador especial)  prosseguir com a ação de divórcio, para efeitos patrimoniais, em substituição do pai, réu na ação de divórcio e falecido durante a sua pendência, se este não pediu o divórcio por reconvenção.
IV – Em matéria de efeitos sucessórios, que constituem imperativos legais, a invocação do abuso do direito não é de todo admissível, pelo facto de se entrar em considerações subjetivas não controláveis pelo julgador e contrárias ao espírito da lei e à sua razão de ser, que só admitiu a indignidade sucessória (artigo 2034.º) e a deserdação (artigo 2166.º do CC), em casos legalmente previstos sujeitos a pressupostos exigentes e não permeáveis a juízos de valor casuísticos.
  

Texto Integral


     Processo n.º 4136/18.3T8MTS.P1.S1


          Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

 

            I - Relatório

           

           1. AA, intentou ação especial de divórcio e separação sem consentimento do outro cônjuge, ao abrigo do disposto nos artigos 931.° e ss. CPC, contra BB, pedindo que fosse decretado o divórcio nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 1773.°, n.° 3, alínea a), 1782.°, n.°1, e 1785.°, n.°1, do Código Civil, bem como a regulação provisórias das responsabilidades parentais e da atribuição da casa de morada de família, nos termos dos artigos 1793.° , 1906.° do Código Civil.

            Em ... 2018 faleceu o Réu.

            CC, filha de Autora e Réu, representada pela curadora especial nomeada nos autos, DD, requereu habilitação de herdeiros para permitir a continuação dos autos de divórcio, ao abrigo do artigo 1785.°, n.° 3, para que a Autora, a final, perdesse a qualidade de herdeira legitimária do Réu, e a requerente passasse a ser a única e universal herdeira de seu pai.

            Por decisão de … 2019, CC e a Autora foram habilitadas para com elas se prosseguir a ação de divórcio.

            Em … 2019, teve lugar a tentativa de conciliação.

            A Autora declarou que pretendia desistir do pedido formulado, ao que se opôs CC, representada pela curadora especial nomeada.

            Sobre essa pretensão recaiu o seguinte despacho:

«Em face da desistência do pedido, e por se considerar que legalmente é admissível, à luz do disposto nos art. 285°, n°, 289°, n° 2 e 290° todos do Cód. P. Civil, homologo a desistência do pedido, extinguindo-se o direito que se pretendia fazer valer».

            2. Inconformada, apelou CC, representada pela curadora especial nomeada.

            Pela Relatora, no Tribunal da Relação, foi proferido o seguinte despacho:
«Foi interposto recurso da decisão que homologou a desistência do pedido de divórcio e de regulação das responsabilidades parentais formulado pela apelante, na sequência de óbito do apelado.
Nos termos do artigo 269.°, n.° 3, CPC, a morte de alguma das partes não dá lugar à suspensão, mas a extinção da instância, quando se torne impossível ou inútil a continuação da lide.
Por outro lado, afigura-se não ter a apelante legitimidade para prosseguir com a acção, nos termos do artigo 1785.°, n.° 3, CC, por o primitivo R. não ter deduzido pedido reconvencional.
Pelo exposto, entende-se que a causa da extinção da instância não é a desistência do pedido, cuja homologação é questionada, mas a impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277.°, alínea e), CPC, sem possibilidade de continuação do processo.
Por se tratar de enquadramento sobre o qual as partes não tiveram possibilidade de se pronunciar, notifique-as nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 3.°, n.°3, CPC».

                As partes exerceram o contraditório, pronunciando-se a recorrente no sentido de não decorrer do artigo 1785.º, n.º 3, do CPC que o prosseguimento do processo contra os herdeiros do réu esteja dependente da dedução de pedido reconvencional e a autora concordando com a solução da extinção por impossibilidade superveniente da lide.

            Após as partes se terem pronunciado sobre a questão suscitada pela Relatora, o Tribunal da Relação do Porto decidiu, por acórdão, julgar a apelação improcedente e confirmar a decisão recorrida, ainda que com fundamento distinto.

            3. Novamente inconformada, CC, filha de Autora e Réu, representada pela curadora especial nomeada nos autos, interpõe recurso de revista, apresentando as seguintes conclusões:
«1. A aqui Recorrente nas conclusões de recurso que apresentou junto do Tribunal da Relação do Porto pretendia colocar em causa o despacho de 2 de Julho de 2019 proferido pelo Tribunal da 1ª Instância que considerou legalmente admissível a desistência do pedido formulado pela Autora AA.
2. Ora o Tribunal da Relação em vez de se pronunciar sobre o objecto do recurso, que como sabemos está delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 635º nº 1 e 639 nº do CPC) pronunciou-se sobre questão diferente: entendeu que tendo falecido o Réu a acção de divórcio não pode prosseguir.
3. E tem o entendimento de que a disposição do artigo 1785º nº 3 do Código Civil ( “ O direito ao divórcio não se transmite por morte, mas a acção pode ser continuada pelos herdeiros do autor para efeitos patrimoniais, se o autor falecer na pendência da causa; para os mesmos efeitos, pode a acção prosseguir contra os herdeiros do réu”) “apenas é reconhecida ao autor ou seus sucessores, o que bem se compreende, pois só o autor deduziu pedidos contra o réu. O Réu só gozará de idêntica faculdade se tiver deduzido pedido reconvencional, o que não sucedeu no caso dos autos”.
4. Ora, desde logo e salvo melhor opinião, entende a aqui recorrente que o acórdão é nulo por violação do vertido no artigo 615º nº 1 alínea d) do CPC : “ É nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento “.
5. E no caso concreto é claro a existência desta nulidade pois o referido normativo processual, quando se refere a “questões” está a querer dizer que o conhecimento do juiz deve abarcar todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir invocadas e todas as excepções suscitadas, o que significa que o juiz só cometerá a indicada nulidade de excesso de pronúncia se conhecer de causa de pedir não invocada, o que é precisamente o caso !
6. Tanto mais que o Tribunal da 1ª Instância quando proferiu o despacho de 2 de Julho de 2019 já se tinha precisamente pronunciado sobre a questão da admissibilidade ou não do prosseguimento dos autos atento o falecimento do Réu!
7. E o Tribunal da 1ª Instância considerou que apesar do falecimento do Réu os autos podiam prosseguir conforme sentença proferida no incidente de habilitação de herdeiros, no apenso B, notificada a 03-04-2019 (ref.: ..., quanto à notificação e ref.: ..., quanto à sentença, com data de conclusão 02-04-2019)!
8. E esta decisão não foi objecto de recurso da apelada! Tendo por isso a mesma transitada em julgado! Não pode agora em sede de apreciação do recurso da aqui apelante vir o tribunal superior repristinar uma questão da qual já existe transito em julgado formal.
9. Ao pronunciar -se novamente sobre esta questão, de que não podia conhecer, além de violar o artigo 618º nº 1, d) do CPC o acórdão violou o caso julgado formal ( artigo 620 º do CPC) pois não pode o mesmo tribunal e no mesmo processo e perante idêntico quadro factual e jurídico pronunciar-se neste acórdão em sentido contrário a uma questão já decidida em sede de primeira instância e que não foi objecto de recurso.
10. Entende assim a apelante que o acórdão recorrido é nulo por manifesta violação dos artigos 620 º e 618º nº 1 alínea d) do CPC.
11. Procedendo assim esta nulidade deve ser apreciada a questão suscitada pela apelante, quanto à possibilidade de a Autora desistir do pedido após despacho de prosseguimento dos autos para efeitos patrimoniais.
12. Ora, entende a aqui Recorrente que a sentença recorrida faz uma errónea aplicação do direito.
13. O direito ao divórcio para além de ser um direito profundamente pessoal, é intransmissível inter vivos et post mortem e só consente a exceção do prosseguimento da instância pelos herdeiros do A. ou contra os sucessores do R., se falecido na pendência da causa, e unicamente para efeitos patrimoniais, pois que o casamento acha-se dissolvido desde o momento da morte, que a ação visava atingir (ut artigos 1785º e 1788º, ambos do C.C.)
14. Tais efeitos respeitam – enquanto a herança estiver jacente - nomeadamente, à partilha dos bens dos cônjuges (arts. 1790º e 1791º) e à eventual indemnização pelos danos não patrimoniais causados pela dissolução do casamento (art. 1792º); ou a exclusão do cônjuge sobrevivo da classe dos sucessíveis do seu ex-cônjuge (art. 2133º-nº 3).
15. A morte de um dos cônjuges dissolve o vínculo conjugal e, assim, o desiderato visado pelo divórcio é alcançado de imediato, seguindo a ação apenas para os referidos efeitos patrimoniais, desaparecendo o direito potestativo da A., no que ao pedido de divórcio diz respeito (ou, consequentemente, à desistência do mesmo), o qual, por esse motivo, deixa de depender da sua vontade e do seu livre arbítrio.
16. Ao referir a lei que o direito ao divórcio não se transmite por morte, permitir a desistência do pedido, quanto ao divórcio, implica admitir que esse direito ainda existe e continua a estar na titularidade e na disponibilidade da A., mesmo após a dissolução do casamento que ocorreu no momento do decesso.
17. No despacho de que se recorre, é referido “homologo a desistência do pedido, extinguindo-se o direito que se pretendia fazer valer”. Ora, o direito que a Autora “pretendia fazer valer” deixou de existir com o mencionado óbito. Ao homologar a desistência do pedido, o tribunal viola o disposto no art. 1785º do Código Civil.
18. Convém efectuar o contexto do presente processo. A Autora AA intentou acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge contra o seu então marido BB. Sucede que o referido Réu faleceu em 06/12/2018 (suicidou-se). Sucederam lhe assim como herdeiros o seu cônjuge, AA e a filha (menor) CC.
 19.  A aqui Recorrente foi nomeada curadora especial de CC tendo a mesma requerido o prosseguimento da acção nos termos do artigo 1785º nº 3 do Código Civil.
20. Ou seja, não existem dúvidas de que a acção de divórcio pode prosseguir após a morte de um dos cônjuges, no caso, prosseguindo contra os herdeiros do réu. A questão que se coloca é se a Autora que intentou a acção de divórcio pode após o falecimento do réu, e tendo os herdeiros do Réu requerido que a acção prosseguisse para efeitos patrimoniais, desistir do pedido.
21. Entendemos que não, pois tal desistência viola os mais elementares princípios do direito e a própria ratio legis do disposto no artigo 1785º nº 3 do Código Civil.
22. Na verdade, com este artigo pretende-se que apesar da morte de um dos cônjuges o processo possa prosseguir para efeitos patrimoniais, nomeadamente que o cônjuge sobrevivo fique excluído da classe dos sucessíveis do seu ex-cônjuge (art.º 2133º nº 3 do Código Civil).
23. Ora no caso concreto a aqui Autora é que avançou com a acção de divórcio. Pretendeu assim a mesma que cessassem quer as relações pessoais quer as relações patrimoniais entre os cônjuges.
24. E caso o Réu tivesse falecido após a marcação da tentativa de conciliação (em que o divórcio iria ser convertido para mútuo consentimento) ou após a sentença que decretasse o divórcio a aqui Autora não seria herdeira daquele!
25. Ao desistir do pedido a Autora está objectivamente a prejudicar a filha menor do casal que seria a única e universal herdeira de BB.
26. Mas a Autora caso o Réu fosse vivo não iria desistir do pedido! Pois pretendia o divórcio! Ou seja, com o falecimento do Réu a Autora ao desistir do pedido conseguiu um efeito patrimonial que não obteria caso o mesmo apenas falecesse após o divórcio!
27. Entendemos assim que a aqui Autora ao desistir do pedido apenas após o pedido de prosseguimento do processo para efeitos patrimoniais está a abusar de um direito nos termos estatuídos no artigo 334º do Código Civil.
28. Citando António Menezes Cordeiro, Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas, Revista Ordem dos Advogados, Ano 65, Setembro 2005, Volume II: “I. Perante a presença efectiva do abuso do direito nas decisões dos nossos tribunais, viramo-nos para a previsão legal: o artigo 334.º. Recordemos, ponto por ponto, o texto em causa, base da subsequente exegese: É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. O preceito começa pela estatuição: é ilegítimo o exercício (…). A ilegitimidade tem no Direito civil, um sentido técnico (7): exprime, no sujeito exercente, a falta de uma específica qualidade que o habilite a agir no âmbito de certo direito. No presente caso, isso obrigaria a perguntar se o sujeito em causa, uma vez autorizado ou, a qualquer outro título, “legitimado”, já poderia exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito em causa. A resposta é, obviamente, negativa: nem ele, nem ninguém. “Ilegítimo” não está, pois, usado em sentido técnico. O legislador pretendeu dizer “é ilícito” ou “não é permitido”. Todavia, para não tomar posição quanto ao dilema (hoje ultrapassado) de saber se, no abuso, ainda há direito, optou pela fórmula ambígua da ilegitimidade.
II. De seguida, o preceito exige que o titular exceda manifestamente certos limites. A expressão (8) liga-se aos superlativos usados por alguma doutrina, anterior ao Código Civil (9). Na época, lidava-se com uma construção sem base legal, de fundamentação doutrinária insegura e ainda desconhecida na jurisprudência. O uso de uma linguagem empolada visava captar o intérprete-aplicador, apresentando-se, além disso, como uma criptojustificação da proibição do abuso. Perante institutos modernos, a adjectivação enérgica não faz sentido. Além desse aspecto, temos outras dificuldades exegéticas. “Manifestamente” contrapõe-se a “ocultamente” ou “implicitamente”. Não parece defendível que se possa atentar contra a boa fé ou os bons costumes, desde que às ocultas. E também os fins económico e social do direito em jogo poderão não ser alcançados perante desvios não manifestos. Em suma: “manifestamente” deixa-nos um apelo a uma realidade de nível superior, mas que a Ciência do Direito terá de localizar, em termos objectivos.
III. Os “limites impostos pela boa fé” têm em vista a boa fé objectiva. Aparentemente, lidamos com a mesma realidade presente noutros preceitos, com relevo para os artigos 227.º/1, 239.º, 437.º/1 e 762.º/2 (10). Teríamos, então, um apelo aos dados básicos do sistema, concretizados através de princípios   mediantes:   a   tutela   da   confiança   e   a   primazia   da   materialidade subjacente. Trata-se de um dado a reter, mas que não poderemos deixar de confirmar.
IV. Os “limites impostos pelos bons costumes” remetem-nos para as regras da moral social. Também aqui é de presumir uma certa coerência sistemática: os bons costumes prefigurados no artigo 334.º equivalerão aos mesmos “bons costumes” presentes no artigo 280.º/1(11): regras de conduta sexual e familiar e códigos deontológicos. Mas assim sendo — e assim é — não se entende o porquê da especialização representada pelo artigo 334.º.
O artigo 280.º/1 parifica, para efeitos de nulidade do negócio, a violação da lei, dos bons costumes e da ordem pública; porque não entender que o próprio exercício dos direitos subjectivos se deve conter dentro das margens desses três factores? Introduzir, a tal propósito, o abuso do direito vem duplicar, sem necessidade, óbvias soluções já alcançadas.
V. Finalmente: o fim social ou económico do direito invoca uma determinada construção historicamente situada, a examinar de modo mais detido (12). Adiantamos que, no fundo, ela apenas apela a uma interpretação melhorada das normas, que dê valor à dimensão teleológica. Não exige a ideia de “abuso”.
VI. Fica-nos, ainda, um ponto: o da presença de um direito subjectivo. Sublinhamos, todavia, que a locução “direito” surge, aqui, numa acepção muito ampla, de modo a abranger o exercício de quaisquer posições jurídicas, incluindo as passivas: abusa do “direito” o devedor que, invocando o artigo 777.º/1, in fine, se apresenta a cumprir, na residência do credor, às quatro da manhã.”
29. No caso é manifesto que o abuso de direito da Autora verifica-se em torno da locução “venire contra factum proprium”. Voltando a citar Menezes Cordeiro na referida obra: “Estruturalmente, o venire postula duas condutas da mesma pessoa, lícitas em si, mas diferidas no tempo. Só que a primeira — o factum proprium — é contraditada pela segunda — o venire. O óbice que justificaria a intervenção do sistema residiria na relação de oposição que, entre ambas, se possa verificar. Há diversas sub-hipóteses. O venire é positivo quando se traduza numa acção contrária ao que o factum proprium deixaria esperar; será negativo caso redunde numa omissão contrária no mesmo factum. Sendo positivo, o venire pode implicar o exercício de direitos potestativos, de direitos comuns ou de liberdades gerais.”
30. E o principio basilar em que se alicerça a fundamentação do abuso de direito é o principio da confiança, ou seja, protege-se um lado ético das relações humanas, em que cada um deve ser coerente, não mudando arbitrariamente de condutas, com isso prejudicando o seu semelhante.
31. É manifesto assim o abuso de direito por parte da aqui Autora/Recorrida. E Citando acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/11/2013 no Processo 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1 in www.dgsi.pt: “O abuso do direito, nas suas várias modalidades, pressupõe sempre que “o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito” (artigo 334.º do CC). E como já tivemos oportunidade de dizer em acórdão desta conferência de 11/6/07 [1], a proibição do comportamento contraditório configura actualmente um instituto jurídico autonomizado, que se enquadra, justamente, na proibição do abuso do direito, nessa medida sendo de conhecimento oficioso. No entanto, não existe no direito civil um princípio geral de proibição do comportamento contraditório, ou, dito de outro modo, “uma regra geral de coerência do comportamento dos sujeitos jurídico-privados, juridicamente exigível” [2]. Assim, o indivíduo é livre de mudar de opinião e de conduta fora dos casos em que assumiu compromissos negociais. Daí que, em princípio, o mecanismo disponibilizado pela ordem jurídica para possibilitar a formação da confiança na palavra dada e, consequentemente, na conduta futura dos contraentes seja só o negócio jurídico. Sabido, porém, que uma das funções essenciais do direito é a tutela das expectativas das pessoas, facilmente se intui que por si só o negócio jurídico, sob pena de cometimento de flagrantes injustiças em muitas situações concretas, não pode constituir o único modo de protecção das expectativas dos sujeitos na não contradição da conduta da contraparte; casos há em que, ainda antes do limiar da vinculação contratual, o agente deve ser obrigado a honrar as expectativas que criou, podendo exigir-se-lhe, então, que actue de forma correspondente à confiança que despertou; casos, isto é, em que não pode venire contra factum proprium. A delimitação de tais casos obrigou a doutrina e a jurisprudência a terem que precisar com o máximo de rigor possível os pressupostos da proibição desta modalidade do abuso, desde logo por se ter a noção de que este instituto, construído, todo ele, a partir da cláusula geral da boa fé, apenas deve funcionar em situações limite, como verdadeira válvula de segurança e de escape do sistema, e não como uma tal ou qual panaceia de que se lança mão sempre que a aplicação das regras de direito estrito pareça ser insuficiente para assegurar a solução justa do caso. Importa evitar a todo o custo, como escreveu o autor atrás citado, “a utilização da boa fé como um “nevoeiro” que serve para tudo” [3].
Assim, há desde logo um primeiro e fundamental pressuposto a considerar: a existência de um comportamento anterior do agente (o factum proprium) que seja susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança. Em segundo lugar exige-se que, quer a conduta anterior (factum proprium), quer a actual (em contradição com aquela) sejam imputáveis ao agente. Em terceiro lugar, que a pessoa atingida com o comportamento contraditório esteja de boa fé, vale por dizer, que tenha confiado na situação criada pelo acto anterior, ignorando sem culpa a eventual intenção contrária do agente. Em quarto lugar, que haja um “investimento de confiança”, traduzido no facto de o confiante ter desenvolvido uma actividade com base no factum proprium, de modo tal que a destruição dessa actividade pela conduta posterior, contraditória, do agente (o venire) traduzam uma injustiça clara, evidente [4]. Por último, exige-se que o referido “investimento de confiança” seja causado por uma confiança subjectiva objectivamente fundada; terá que existir, por conseguinte, causalidade entre, por um lado, a situação objectiva de confiança e a confiança da contraparte, e, por outro, entre esta e a “disposição” ou “investimento” levado a cabo que deu origem ao dano. Os pressupostos enumerados não podem em caso algum ser aplicados automaticamente pois, como observa o autor que vimos a acompanhar, o venire contra factum proprium é, em última análise, “uma técnica....que não dispensa, e antes pressupõe, um controlo da adequação material da solução, com uma valoração global de todos os elementos à luz do ponto de vista da tutela da confiança legítima” [5]; por isso, todos aqueles pressupostos “deverão ser globalmente ponderados, em concreto, para se averiguar se existe efectivamente uma “necessidade ético-jurídica” de impedir a conduta contraditória, designadamente, por não se poder evitar ou remover de outra forma o prejuízo do confiante, e por a situação conflituar com as exigências de conduta de uma contraparte leal, correcta e honesta – com os ditames da boa fé em sentido objectivo”[6]. Dentro desta mesma linha de pensamento, escreveu-se no acórdão do STJ de 12.2.09 (Revª 4069/08) que “no âmbito da fórmula “manifesto excesso” cabe a figura da conduta contraditória (venire contra factum proprium), que se inscreve no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte em função do modo como antes actuara”. Assim tem de ser, acrescentamos nós, justamente porque o princípio da confiança é um princípio ético fundamental de que a ordem jurídica em momento algum se alheia; ele está presente, desde logo, na norma do artº 334º do CC, que, ao falar nos limites impostos pela boa fé ao exercício dos direitos, pretende por essa via assegurar a protecção da confiança legítima que o comportamento contraditório do titular do direito possa ter gerado na contraparte.”
32. É assim manifesto que a sentença recorrida violou o vertido nos artigos 1785° n° 3 e 334° do Código Civil.

                                                                                TERMOS em que deve revogar-se a sentença recorrida por tal ser de JUSTIÇA».

            4. Apesar de estarmos perante um acórdão que confirma, sem voto de vencido, a sentença de 1.ª instância, o recurso de revista foi admitido, em virtude de não estar verificado o requisito negativo da dupla conformidade (artigo 671.º, n.º 3, do CPC), pela circunstância de a fundamentação das decisões das instâncias ser essencialmente diferente e por se tratar de um caso em que o recurso seria sempre admissível, por ter sido invocada a ofensa de caso julgado (artigo 629.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Civil (CPC).

            5. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, as questões a decidir são as seguintes:
            a) Nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia (artigo 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do CPC)
            b) Nulidade do acórdão recorrido por violação do caso julgado formal (artigo 620.º do CPC)
            c) Desistência do pedido, pela autora, e violação do artigo 1785.º, n.º 3, do Código Civil.
            c) Abuso do direito

            Cumpre apreciar e decidir.

            II - Fundamentação

           

            1. Em causa está uma ação de divórcio, sem consentimento do outro cônjuge, instaurada por AA contra BB, com fundamento em rutura definitiva do casamento ao abrigo do disposto no artigo 1781.º, al. d), do CC, na qual, para além disso, vem pedida a fixação de um regime provisório quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais da filha menor de ambos, CC.

O réu foi citado para a tentativa de conciliação a que alude o artigo 931.º, n.º 1, do CPC, sem que tal diligência se tenha chegado a realizar por, entretanto, face ao óbito do réu, ter sido declarada a suspensão da instância nos termos do artigo 270.º, n.º 1, do CPC (cf. despacho de 07-01-2019).

Por despacho de 23-05-2019, foi declarada cessada a suspensão da instância e designada nova data para realização da tentativa de conciliação.

À tentativa de conciliação compareceram a autora e DD (a curadora da filha menor da autora e do réu), a qual – fazendo fé no teor da ata e bem assim nos demais elementos que constam do processo –, terá sido declarada habilitada para prosseguir os autos no lugar que era ocupado pelo réu, na qualidade de curadora especial da filha menor daquele, para efeitos patrimoniais, em concreto, com vista a que a autora deixasse de ter a qualidade de herdeira do réu e a recorrente passasse a ser a única e universal herdeira do seu pai.

Nessa diligência, a autora declarou desistir do pedido, pretensão à qual a habilitada se opôs.

Porém, o tribunal de 1.ª instância, considerando tal desistência legalmente admissível, homologou-a por sentença, declarando extinto o direito que se pretendia fazer valer, nos termos dos artigos 285.º, 289.º, n.º 2, e 290.º do CPC.

O Tribunal da Relação proferiu acórdão, confirmando a sentença de 1.ª instância, mas com um outro fundamento, pois entendeu que a ação se extinguiu não por desistência, aqui completamente inócua, mas por impossibilidade superveniente da lide, nos termos conjugados do disposto nos artigos 1785.º, n.º 3, 2132.º e 2133.º, todos do CC, e do artigo 277.°, alínea e), do  CPC), com fundamento na circunstância de o réu não ter deduzido pedido reconvencional e de, como tal, a instância não poder prosseguir.

O fundamento do acórdão recorrido, conforme se transcreve, foi o seguinte:

«A morte dissolve o vínculo matrimonial, tornando impossível a continuação da lide para efeitos pessoais.

De acordo com o artigo 1785.°, n.º 3, CC, o direito ao divórcio não se transmite por morte, mas a acção pode ser continuada pelos herdeiros do autor para efeitos patrimoniais, se o autor falecer na pendência da causa; para os mesmos efeitos, pode a acção prosseguir contra os herdeiros do réu.

Segundo a apelante, com o artigo 1785.°, n.° 3, CC, pretende-se que, apesar da morte de um dos cônjuges, o processo possa prosseguir para efeitos patrimoniais, nomeadamente que o cônjuge sobrevivo fique excluído da classe dos sucessíveis do seu ex-cônjuge (artigo 2133.°, n,° 3, CC).

É nesse pressuposto que a apelante, sucessora do réu, pretende o prosseguimento da acção para excluir a apelada herança do ex-cônjuge.

Sem razão, porém.

A legitimidade para o prosseguimento da acção para efeitos patrimoniais apenas é reconhecida ao autor ou seus sucessores, o que bem se compreende, pois só o autor deduziu pedidos contra o réu.

O réu só gozará de idêntica faculdade se tiver deduzido pedido reconvencional, o que não sucedeu no caso dos autos.

Assim sendo, falecido o réu, a acção apenas poderia prosseguir contra os seus herdeiros, por impulso da apelada.

Não se pode, pois, acompanhar a apelante quando afirma que, ao desistir do pedido, a apelada estaria objectivamente a prejudicar a filha menor do casal — ora apelante, representada pela sua avó paterna — que seria a única e universal herdeira de BB,

Nem quando diz que, ao desistir do pedido, a apelada conseguiu um efeito patrimonial que não obteria caso o mesmo apenas falecesse após o divórcio.

Com o óbito do réu, dissolveu-se o casamento e a apelada adquiriu ipso facto a qualidade de herdeira (cf r. artigo 2132.° CC).

E, de acordo com o n.° 3 do artigo 2133.° CC, o cônjuge apenas não é chamado à herança se à data da morte do autor da sucessão se encontrar divorciado ou separado judicialmente de pessoas e bens, por sentença que já tenha transitado ou venha a transitar em julgado, ou ainda se a sentença de divórcio ou separação vier a ser proferida posteriormente àquela data, nos termos do n.° 3 do artigo 1785.°,

Não tendo a apelante legitimidade para o prosseguimento da acção, a desistência do pedido formulada pela apelada é absolutamente inócua.

A qualidade de herdeira da apelada resulta da lei, e não de qualquer desistência do pedido, razão por que não se pode falar em abuso do direito por parte da apelada.

A sentença recorrida declarou extinta a instância por desistência do pedido.

Pelas razões expostas, entendemos que a acção se extinguiu por impossibilidade superveniente da lide (artigo 277.°, alínea e), CPC)

Assim, mantém-se a decisão de extinção da instância, ainda que por fundamento distinto».

 

            2. Nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia

Entende a recorrente, que o acórdão recorrido cometeu uma nulidade por excesso de pronúncia, alegando que nas conclusões de recurso que apresentou junto do Tribunal da Relação do Porto pretendia colocar em causa o despacho de 2 de julho de 2019 proferido pelo Tribunal da 1.ª instância que considerou legalmente admissível a desistência do pedido, e o tribunal recorrido em vez de se pronunciar sobre essa questão, que integrava o objeto do recurso, pronunciou-se sobre questão diferente: entendeu que tendo falecido o Réu a ação de divórcio não pode prosseguir por impossibilidade superveniente da lide.

Mas não tem razão.

Na verdade, a recorrente confunde questão com argumento. A questão colocada no recurso de apelação é a de saber se prossegue ou não a ação de divórcio para efeitos patrimoniais; já a legitimidade e efeitos da desistência da autora e a impossibilidade superveniente da lide são argumentos jurídicos para fundamentar a decisão da questão de saber se a filha do réu pode ou não continuar a ação de divórcio, mas não são a questão em si mesma. Nos termos de Acórdão desta 1.ª Secção, de 8-01-2019, proc. n.º 1699/16.1T8PNF.P2.S2, «As questões a apreciar – que se centram nos pontos essenciais do objecto do recurso, delimitado pelas conclusões – não se confundem com as razões ou argumentos aduzidos pelas partes para fazer valer o seu ponto de vista».

Por outro lado, a recorrente usa a invocação de nulidades do acórdão recorrido como uma estratégia de manifestar a sua discordância em relação ao mérito da decisão. Contudo, como também se afirma no supra citado acórdão,  «O regime das nulidades destina-se apenas a remover aspectos de ordem formal que, eventualmente, inquinem a decisão, não sendo adequado para manifestar discordância e pugnar pela alteração do decidido» (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08-01-2019, proc. n.º 1699/16.1T8PNF.P2.S2 - 1.ª Secção).

Nos termos da jurisprudência deste Supremo Tribunal, a omissão ou o excesso de pronúncia afere-se pelo thema decidendum, isto é, pelas questões suscitadas pelas partes e que integram o objeto de recurso, no sentido de vincularem o juiz a decidi-las, e não pelos argumentos ou fundamentos invocados pelas partes para defender os seus pontos de vista:
 
- Acórdão de 23-06-2016 (proc. n.º 397/09.7TBPVL.G1.S1-7.ª Secção):
«Só existe omissão de pronúncia quando o tribunal deixe de apreciar questões submetidas pelas partes à sua apreciação e não quando deixe de apreciar os argumentos ou o conteúdo de documentos explicativos desses argumentos, invocados a favor da versão por eles sustentada – art. 615.º, al. d), 1.ª parte, do NCPC».


- Acórdão de 30-03-2017 (proc. n.º 460/11.4TVLSB.L1.S2 - 7.ª Secção
 «O juiz deve pronunciar-se sobre todas as questões que sejam submetidas à sua apreciação. Mas não deve tomar conhecimento de questões não submetidas ao seu conhecimento. No primeiro caso existirá uma omissão de pronúncia. No segundo ocorrerá um excesso de pronúncia. A lei fala em «questões», isto é, em assuntos juridicamente relevantes, pontos essenciais de facto ou direito em que as partes fundamentam as suas pretensões. Aí não devem ser abrangidos razões ou argumentos usados pelas partes para concluir sobre questões. (…)»

- Acórdão de 03-10-2017 (Revista n.º 610/12.3TBGMR.G1.S1 - 1.ª Secção):

«O não conhecimento de todos os argumentos aduzidos pelas partes ou a errada interpretação dos factos feita na sentença não acarretam omissão ou excesso de pronúncia geradores da nulidade a que alude o art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, uma vez que inexiste esse vício quanto a fundamentos.»


Acórdão de 08-02-2018 (Revista n.º 2/14.0T8PMS.C1.S1 - 7.ª Secção):

«I - A nulidade por omissão e por excesso de pronúncia apenas se verifica quando o juiz deixe de se pronunciar sobre as “questões” submetidas pelas partes ao seu escrutínio ou das que deva conhecer oficiosamente ou quando conheça de questões que não faziam parte do objecto do recurso (arts. 608.º, n.º 2, e 615.º, n.º 1, al. d), do CPC).

II - As questões a conhecer são as que tenham sido suscitadas pelas partes ou que sejam de apreciação oficiosa, como tais se considerando as pretensões formuladas por aquelas, mas não os argumentos invocados, nem a mera qualificação jurídica oferecida pelos litigantes (arts. 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º do CPC)».

            Acresce que, analisada a fundamentação do acórdão recorrido, deteta-se que afinal o Tribunal da Relação respondeu ao argumento utilizado pela apelante para fundamentar a sua pretensão,  relacionado com a impugnação da desistência do pedido da autora da ação de divórcio, simplesmente, apesar de não atribuir efeitos à desistência homologada pelo tribunal de 1.ª instância, como pretendia a apelante, entendeu que a ação não podia prosseguir, nem para efeitos patrimoniais, por impossibilidade superveniente da lide:
               «Com o óbito do réu, dissolveu-se o casamento e a apelada adquiriu ipso facto a qualidade de herdeira (cfr. artigo 2132.° CC).
               E, de acordo com o n.° 3 do artigo 2133.° CC, o cônjuge apenas não é chamado à herança se à data da morte do autor da sucessão se encontrar divorciado ou separado judicialmente de pessoas e bens, por sentença que já tenha transitado ou venha a transitar em julgado, ou ainda se a sentença de divórcio ou separação vier a ser proferida posteriormente àquela data, nos termos do n.° 3 do artigo 1785.°.
              Não tendo a apelante legitimidade para o prosseguimento da acção, a desistência do pedido formulada pela apelada é absolutamente inócua.

A qualidade de herdeira da apelada resulta da lei, e não de qualquer desistência do pedido, razão por que não se pode falar em abuso do direito por parte da apelada.

A sentença recorrida declarou extinta a instância por desistência do pedido.

Pelas razões expostas, entendemos que a acção se extinguiu por impossibilidade superveniente da lide (artigo 277.°, alínea e), CPC)

Assim, mantém-se a decisão de extinção da instância, ainda que por fundamento distinto».

O excesso de pronúncia pressupõe que o tribunal tenha ultrapassado os limites do que lhe é permitido conhecer no recurso, apreciando questões não solicitadas e que não sejam de conhecimento oficioso.  

Ora, no caso concreto, não estamos perante qualquer questão que não tenha sido suscitada pela recorrente e que não integre o objeto de recurso, dando lugar a um excesso de pronúncia. O tribunal recorrido decidiu todas as questões colocadas pela apelante, e não decidiu qualquer questão que não tivesse sido suscitada.

A impossibilidade superveniente da lide é apenas o fundamento para a decisão recorrida não admitir a prossecução da ação de divórcio, para efeitos patrimoniais, pela herdeira habilitada, filha da autora e do réu na ação de divórcio. E, em sede de determinação do direito aplicável e de interpretação das normas jurídicas, o tribunal é soberano e não depende das alegações dos recorrentes. Conforme se afirma, no artigo 5.º, n.º 3, do CPC, «O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação e aplicação das regras de direito».

Segundo jurisprudência deste Supremo Tribunal, «O facto de o acórdão recorrido ter dissentido da interpretação do quadro legal formulada pelas instâncias não integra o vício do excesso de pronúncia (Acórdão de 19-12-2018, proc. n.º 301/12.5TCGMR.G2.S1 – 6.ª Secção). Veja-se, ainda, o acórdão de 25-10-2018 (proc. n.º 2909/10.4TBVCD.P1.S1 - 7.ª Secção), onde se afirma que «O enquadramento jurídico diverso do pugnado pela parte não integra excesso de pronúncia, antes assume assentimento no princípio ínsito no n.º 3 do art. 5.º do CPC (oficiosidade do julgador quanto à matéria de direito), que apenas se mostra cerceado pela imposição do contraditório na perspectiva de proibição das decisões surpresa (n.º 3 do art. 3.º do CPC)». Com efeito, não há qualquer nulidade, quando o tribunal apenas aplicou o direito aos factos dados como provados.

Sendo assim, o facto de o Tribunal da Relação ter usado um argumento novo na fundamentação da decisão, não invocado pelas partes, não constitui qualquer excesso de pronúncia. Acresce que, como resulta do relatório do presente acórdão, a apelante teve a oportunidade de se pronunciar sobre este argumento antes de proferido o acórdão recorrido, tendo sido respeitado o princípio do contraditório, consagrado no artigo 3.º, n.º 3, do CPC.

Fica, portanto, comprovado que não se verifica qualquer nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do CPC.

3. Violação do caso julgado

3.1. Entende a recorrente que o tribunal recorrido, ao ter decidido, face ao óbito do réu, que a habilitada não podia prosseguir a ação de divórcio no lugar daquele, por ser impossível a continuação da lide atenta a inexistência de pedido reconvencional, o acórdão recorrido violou o caso julgado formal (artigo 620.º do CPC), que se formou sobre a sentença proferida no apenso de habilitação (Apenso B), com data de conclusão de 2 de abril de 2019, posto que nesta decisão a questão do prosseguimento foi decidida positivamente, sem que de tal decisão tenha sido interposto recurso.

3.2. Nos termos do Acórdão deste Supremo Tribunal, de 08-03-2018 (proc. n.º 1306/14.7TBACB-T.C1.S1), «Pressuposto essencial do caso julgado formal é que uma pretensão já decidida, em contexto meramente processual, e que não foi recorrida, seja objecto de repetida decisão. Se assim for, a segunda decisão deve ser desconsiderada por violação do caso julgado formal assente na prévia decisão».

3.3. O artigo 620º do Código de Processo Civil dispõe: «1. As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força, obrigatória dentro do processo. 2. Excluem-se do disposto no número anterior os despachos previstos no artigo 630».

A doutrina tem contribuído também para a delimitação do conceito de caso julgado. Segundo Antunes Varela, «Manual de Processo Civil», 2ª ed., p. 307, «Caso julgado é a alegação de que a mesma questão foi já deduzida num outro processo e nele julgada por decisão de mérito que não admite recurso ordinário. É material o que assenta sobre decisão de mérito proferida em processo anterior; nele a decisão recai sobre a relação material ou substantiva litigada; é formal quando há decisão anterior proferida sobre a relação processual. Ele pressupõe a repetição de qualquer questão sobre a relação processual dentro do mesmo processo (Antunes Varela, ob. cit., 308). Ambos pressupõem o trânsito em julgado da decisão anterior».

Como ensina Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 304), «o caso julgado formal consiste na força obrigatória que os despachos e as sentenças possuem relativa unicamente à relação processual, dentro do processo, excepto se não for admissível o recurso de agravo “consiste na preclusão dos recursos ordinários, na irrecorribilidade, na não impugnabilidade”».

No mesmo sentido, João Castro Mendes (Direito Processual Civil, A.A.F.D.L, 1980, vol. III, pág. 276), ensina que o «(…) caso julgado formal traduz a força obrigatória dentro do processo», contrariamente ao caso julgado material, cuja força obrigatória se estende para fora do processo em que a decisão foi proferida.

No caso em apreço estamos perante a figura do caso julgado formal, já que está em causa uma decisão proferida no processo que, alegadamente, já tinha sido decidida com trânsito em julgado e que foi de novo suscitada.

Conforme afirmado na doutrina citada, o caso julgado formal, tal como o caso julgado material, visa evitar a repetição de decisões judiciais sobre a mesma questão.

A doutrina do caso julgado formal é construída como abrangendo não só a decisão, mas também os seus fundamentos. Contudo, a este propósito a doutrina divide os fundamentos consoante a relação lógica que mantêm com a decisão, restringindo a eficácia do caso julgado formal aos fundamentos que constituem um antecedente lógico ou um passo necessário para a decisão final.

Como afirma Miguel Teixeira de Sousa (Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2.ª edição,  Lex, Lisboa, 1997, pp. 578-579, «O caso julgado abrange a parte decisória do despacho, sentença ou acórdão, isto é, a conclusão extraída dos seus fundamentos (…), que pode ser, por exemplo, a condenação ou absolvição do réu ou o deferimento ou indeferimento da providência solicitada. Como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto e de direito), o respectivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independentemente dos respectivos fundamentos (sublinhado nosso). Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão». 

No mesmo sentido, Rodrigues Bastos (Notas ao Código de Processo Civil, 3.°-253), entende que «A economia processual, o prestígio das instituições judiciárias, reportando à coerência das decisões que proferem, e o prosseguido fim de estabilidade e certeza das relações jurídicas, são melhor servidas por aquele critério ecléctico, que sem tornar extensiva a eficácia de caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença reconhece todavia essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que foram antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado».

Como se entendeu no citado acórdão deste Supremo Tribunal, de 08-03-2018, a propósito de uma decisão proferida no mesmo processo, contraditória com outra anterior já transitada em julgado, acerca da remuneração do liquidatário judicial:

«A fundamentação das decisões, alegadamente em violação do caso julgado, in casu, é relevante para que não se possa considerar, cruamente, que, apenas porque houve alteração da remuneração, a segunda decisão viola o caso julgado formado pela primeira. Assentando a segunda decisão em alterações consentidas pela lei, importaria que fosse atacada a decisão de fundo com base na contestação dos seus fundamentos, alegando-se e demostrando-se erro de direito na decisão que alterara o despacho inicial, não estando, pois, presente a violação do caso julgado formal».

3.4. Importa analisar e interpretar, para determinar se estamos ou não perante uma ofensa ao caso julgado, nos termos descritos, o dispositivo e os fundamentos da decisão invocada, proferida no processo de habilitação de herdeiros (Apenso B).

Esta decisão visa responder a um requerimento de habilitação de herdeiros, feito pela filha do réu e da autora, representada pela sua curadora especial, por apenso à ação de divórcio por mútuo consentimento.

Nesta decisão o tribunal afirma que o pedido da herdeira, filha do réu e da autora, se dirige à “mera habilitação em si, perante o disposto no artigo 1785.º, n.º 3, do CCivil”, (…) e que “(…)atento o teor da certidão de óbito junta a fls. 7 a 8 do Apenso A e de casamento e nascimento junta a fls 34 a 39 dos autos principais, resulta que a requerente e a requerida são os únicos e universais herdeiros do Réu (cfr. art. 353.º, n.º 3, do CPC).

Nestes termos, julgo a requerente e a requerida como sucessoras do falecido e, consequentemente, como habilitados para com elas prosseguir a acção de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge a que este incidente está apenso”.

Esta decisão dirigiu-se apenas a reconhecer à autora da ação de divórcio sem consentimento e à sua filha, a qualidade de herdeiras do falecido réu. Para o efeito, é certo, de prosseguimento da ação de divórcio, mas tem de se interpretar esta decisão como reportando-se apenas à eventualidade de essa continuação da ação de divórcio vir a ocorrer no futuro, consoante verificação posterior dos pressupostos da mesma, mas não decreta efetivamente esse prosseguimento, nem se pronuncia sobre os seus requisitos legais. Na verdade, isso apenas veio a acontecer, nos presentes autos, através da desistência do pedido manifestado pela autora da ação de divórcio, homologada por despacho de 2 de julho de 2019, que extinguiu a ação de divórcio, e pelo acórdão recorrido, que declarou a impossibilidade superveniente da lide, decretando também a extinção da ação de divórcio, mas com outro fundamento.

Neste sentido, atribuindo um alcance semelhante ao incidente de habilitação de herdeiros, vide, na jurisprudência deste Supremo Tribunal, o Acórdão de 12-09-2019 (proc. n.º 424(13.3T2AVR.P1.S1 – 7.ª Secção):

«I - A habilitação incidental tem por finalidade permitir o andamento de um processo - evitando a sua suspensão indefinida -, colocando no lugar da parte primitiva o seu sucessor.

II - Tal substituição, normalmente, justifica-se por ter ocorrido a morte da parte primitiva, embora possa haver outras causas que despoletem este mecanismo incidental.

III - A habilitação mortis causa deve ser prosseguida em relação àqueles que, no momento, se apresentam como os sucessores do falecido, ainda que estes percam posteriormente esta qualidade (designadamente, porque repudiaram a herança) ou surjam depois novos sucessores (por exemplo, porque foi reconhecida judicialmente a filiação em acção decidida muito mais tarde).»

Ou ainda, o acórdão de 09-03-2006 (Agravo n.º 175/06 – 2.ª secção), onde se afirmou que:
«Em sede de apreciação da viabilidade do incidente de habilitação e da legitimidade dos habilitandos, o Tribunal não tem que fazer um juízo prévio acerca da titularidade do direito invocado. Releva é que na pendência da acção principal a parte falecida se arrogava a titularidade do direito, no caso do direito de preferência do arrendatário. Saber se, em definitivo, tal direito lhe assiste é questão estranha à finalidade do incidente de habilitação de herdeiros»

No mesmo sentido, o acórdão de 03-03-2009 (Agravo n.º 84/09 - 1.ª Secção):

 

I - Com o incidente de habilitação de herdeiros apenas se pretende substituir processualmente a parte falecida na pendência da acção, pelo que se mostra adjectivamente correcta a decisão que atendeu à habilitação notarial realizada. 

II - É certo que, nos termos do art. 58.º, n.º 1, do NRAU, o contrato de arrendamento para fins não habitacionais cessará com a morte do arrendatário, excepto se sobreviver ao falecido sucessor que com ele tenha vindo a explorar o estabelecimento há mais de três anos. Mas a apreciação deste pressuposto contende já com a apreciação do fundo da questão, ultrapassando o aspecto adjectivo/formal em que a discussão sobre a habilitação processual por falecimento de parte se deve desenrolar».

   Por último, nos termos do acórdão 16-02-2012 (Revista n.º 11/1999.L1-A.S1 - 7.ª Secção), e atestando o caráter  instrumental do incidente de habilitação de herdeiros, «A habilitação de herdeiros visa apenas o prosseguimento da lide e não torna as habilitadas em titulares da relação material controvertida.» No mesmo sentido, afirma-se no acórdão de 14-04-2015 (proc. n.º 1837/10.8TBCTB.C1.S1 - 1.ª Secção, que «O incidente de habilitação visa promover a substituição de uma parte primitiva pelo seu sucessor na situação jurídica litigiosa; não opera, por si, nenhuma transmissão de direitos nem de obrigações».

Sendo assim, constituindo a citada decisão um incidente de habilitação de herdeiros, não constitui caso julgado formal, em relação à questão do prosseguimento ou não da ação de divórcio para efeitos patrimoniais (artigo 1785.º, n.º 3, do CC) decidida nestes autos.

Pelo que o acórdão recorrido não padece de qualquer nulidade, por violação do caso julgado formal.

4. Desistência do pedido e violação do artigo 1785.º, n.º 3, do Código Civil. 

Entende a recorrente que, tendo sido julgada habilitada para prosseguir o processo no lugar que era ocupado pelo réu na qualidade de curadora especial da sua herdeira (a filha menor daquele) e tendo sido requerido o prosseguimento da ação de divórcio para efeitos patrimoniais, não é lícito à autora desistir do pedido.

O que a recorrente pretende é que este Supremo Tribunal se pronuncie sobre a validade da homologação da desistência do pedido pela autora, a que procedeu o tribunal de 1.ª instância, reproduzindo no recurso de revista os argumentos do recurso de apelação. Contudo, este Supremo Tribunal já não se pode pronunciar sobre a sentença homologatória, mas apenas sobre o acórdão recorrido, que, como já se esclareceu, também não reconheceu efeitos à desistência do pedido da autora na ação de divórcio, por entender que, encontrando-se o casamento já extinto por morte do réu, a desistência é inócua e não produz qualquer efeito, resultando o estatuto de herdeira legitimária da autora, enquanto cônjuge, direta e automaticamente, da lei (artigos 2132.º e 2133.º, n.º 1, al. a), ambos do CC). Em consequência, entendeu o acórdão recorrido que se extinguiu a instância por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277.º, al. e), do CPC.

Vejamos:

A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto corrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo, dando lugar à extinção da instância sem apreciação do mérito da causa.

A jurisprudência associa-a precisamente ao desaparecimento de uma das partes na pendência da ação, quando está em causa o exercício de direitos de natureza pessoal (cf. acórdão de 21-03-2012, Agravo n.º 2154/07.6TBPVZ.P1.S1 - 2.ª Secção):

 

«I - A impossibilidade superveniente da lide como causa anormal da extinção da instância, depois de instaurada a ação, ocorre, por exemplo, quando por facto posterior ao início da instância, desaparecer uma das partes e não for, juridicamente, admissível o fenómeno da sua sucessão e substituição, por ser, estritamente, pessoal o direito substancial por ela invocado ou que lhe era atribuído, sucumbindo, entretanto, a relação jurídica, porque se tornou impossível.»

Falecendo uma das partes numa ação de divórcio, em princípio, o direito ao divórcio é intransmissível e a ação extingue-se.

A legitimidade para as ações de divórcio tem um caráter estritamente pessoal. O direito ao divórcio, sem consentimento de um dos cônjuges ou por mútuo consentimento, é um direito potestativo, pessoal e irrenunciável (cf. Pereira Coelho/Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, Vol. I, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, p. 692 e ss). O direito ao divórcio é um direito pessoal porque relativo ao estado das pessoas e, como tal, a lei atribui esse direito exclusivamente aos cônjuges ou a um deles. À natureza pessoal está ligada o seu caráter irrenunciável, na medida em que a lei quer que o cônjuge a quem pertença esse direito tenha, sempre, a faculdade de decidir sobre a oportunidade do divórcio, com inteira liberdade. A principal manifestação do caráter pessoal do direito ao divórcio é a sua intransmissibilidade, quer intervivos, quer mortis causa. Este princípio tem, contudo, a exceção consagrada no n.º 3 do artigo 1785.º do CC, que permite que a ação seja continuada pelos herdeiros do autor ou contra os herdeiros do réu para efeitos patrimoniais.

A lei admite desde a reforma de 1977, que a ação de divórcio possa ser continuada pelos herdeiros do autor para efeitos patrimoniais, nomeadamente, antes da Reforma de 2008, os decorrentes da declaração de cônjuge culpado (artigo 1787.º do CC – revogado pela Lei n.º 61/2008, de 31-10), ou, para os mesmos efeitos, pode a ação prosseguir contra os herdeiros do réu, se um ou o outro falecer na pendência da causa.

Tendo acabado o divórcio por violação culposa dos deveres conjugais e o estatuto de cônjuge ofendido, e, constituindo o divórcio, hoje, uma forma de extinção do vínculo conjugal que pode ser pedida por mera constatação da rutura do casamento,  qualquer dos cônjuges tem legitimidade para pedir o divórcio, por via de ação ou reconvenção, com o fundamento das alíneas a) e d) do artigo 1781.º do Código Civil.

O artigo 1785.º, n.º 3, do CC dispõe o seguinte: «O direito ao divórcio não se transmite por morte, mas a ação pode ser continuada pelos herdeiros do autor para efeitos patrimoniais, se o autor falecer na pendência da causa; para os mesmos efeitos, pode a ação prosseguir contra os herdeiros do réu».

Os efeitos patrimoniais a que este preceito se refere são sobretudo os efeitos sucessórios, em litígio no caso sub judice.  

Na interpretação do artigo 1785.º, n.º 3, do CC, adotada pelo acórdão recorrido, que subscrevemos como legal e tecnicamente correta, a ação de divórcio só pode ser continuada pelos herdeiros do autor para efeitos patrimoniais, se o autor falecer na pendência da causa; para os mesmos efeitos, pode a ação prosseguir contra os herdeiros do réu, mas apenas se este tiver deduzido pedido reconvencional, o que não sucedeu no caso dos autos. Apesar de a letra da lei não referir expressamente a necessidade de o réu ter pedido o divórcio por reconvenção para que os seus herdeiros o possam substituir na ação de divórcio para efeitos patrimoniais, tal exigência legal resulta do paralelismo com o que a lei estipula em relação ao autor. A expressão autor de uma ação de divórcio implica que este cônjuge, que tem a iniciativa de propor a ação, manifesta a sua vontade de se divorciar, logo, falecendo na pendência da ação, os herdeiros podem substitui-lo na prossecução da ação para efeitos patrimoniais. O mesmo não se pode afirmar em relação ao réu, que pode ou não ter manifestado a sua intenção de se divorciar, por meio de reconvenção. Daí que, para que seja respeitado o espírito da norma – a primazia da dimensão pessoal dos direitos familiares, maxime o direito ao divórcio, sobre a dimensão patrimonial – terá que se exigir, como fez o acórdão recorrido, que o réu, para que os seus herdeiros prossigam com a ação de divórcio, tenha manifestado vontade de pedir o divórcio, por meio de reconvenção.

Na verdade, esta é a única solução compatível com a natureza estritamente pessoal do direito ao divórcio: constituindo a continuação de uma ação de divórcio, depois da morte de um dos cônjuges, pelos herdeiros do falecido, uma solução excecional restrita aos efeitos patrimoniais, ainda assim ela tem de depender, dada a primazia dos aspetos pessoais sobre os patrimoniais, bem como a necessária dependência destes em relação àqueles, da circunstância de o cônjuge falecido ter manifestado vontade, em vida, por ação ou por reconvenção, de se divorciar. O que no caso vertente não sucedeu. O réu marido nunca manifestou vontade de se divorciar. Caso pretendesse fazê-lo, teria que ter pedido também o divórcio, por reconvenção, ou ter consentido numa conversão do divórcio litigioso em divórcio por mútuo consentimento, facto que também não se verificou.  

A substituição do falecido pai pela herdeira habilitada, sua filha, na continuação da ação de divórcio para efeitos patrimoniais, pressupõe necessariamente o exercício prévio, pelo cônjuge que vem a falecer, do exercício do direito ao divórcio. Não cabe aos herdeiros presumir vontades hipotéticas ou conjeturais do de cujus, num assunto tão estritamente pessoal e íntimo, como a decisão de pedir ou não o divórcio, nem tecer considerações morais sobre as intenções do cônjuge sobrevivo que, tendo intentado uma ação de divórcio, dela desiste depois da morte do réu. Até porque às putativas intenções patrimoniais da autora de manter o estatuto de sucessora legitimária do marido, também correspondem as intenções putativas e, neste caso, expressas nas alegações, pela herdeira habilitada (representada pela curadora especial), de ser a única e universal herdeira do pai e de excluir a autora da ação de divórcio da classe de sucessíveis.

Na verdade, o estatuto de herdeira legitimária da autora resulta diretamente da lei (artigo 2133.º, n.º 1, al. a), do CC) e não da desistência da ação de divórcio. Ou seja, a autora só poderia perder o estatuto de herdeira se pretendesse prosseguir a ação de divórcio para efeitos patrimoniais ou se o réu tivesse pedido o divórcio por reconvenção e os herdeiros deste pretendessem prosseguir a ação para efeitos patrimoniais. Não tendo o réu manifestado essa vontade, decorre da lei o estatuto da autora, enquanto cônjuge não separada de pessoas e bens, de herdeira legitimária do réu, seu marido, que não lhe pode ser retirado por vontade da filha (herdeira habilitada representada por curadora especial) de continuar a ação de divórcio para efeitos patrimoniais em substituição do seu falecido pai, porque este não pediu o divórcio em reconvenção.

 

Pelo que, por aplicação conjugada dos artigos 1785.º, n.º 3, 2132.º e 2133.º, n.º 1, al. a), do CC e 277.º, al. e), do CPC, não pode a herdeira habilitada (representada por curador especial)  prosseguir com a ação de divórcio, para efeitos patrimoniais, em substituição do pai, réu na ação de divórcio e falecido durante a sua pendência, se este não pediu o divórcio por reconvenção.

           Assim, declara-se a extinção da ação de divórcio, por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277.°, alínea e), do CPC.


            5.  Abuso do direito

            Pugna a recorrente para que este Supremo Tribunal de Justiça considere que desistência do pedido, por parte da autora, em ação de divórcio, depois de na sequência do óbito do réu ter sido requerido pela herdeira deste o prosseguimento da ação, para efeitos patrimoniais nos termos do artigo 1785.º, n.º 3, do CC, se traduz num abuso do direito nos termos do artigo 334.º do CC.

Vejamos:

Pretende a recorrente que a autora da ação de divórcio, que, por força da lei, enquanto cônjuge não divorciada ou separada de pessoas e bens, é herdeira legitimária do cônjuge falecido durante a pendência da ação, perca o seu estatuto sucessório, por aplicação do instituto do abuso do direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil, designadamente considerando que estamos perante um comportamento contraditório ou um venire contra factum proprium.

Tem-se entendido, na doutrina e na jurisprudência, que «Não basta, para se falar em abuso do direito, nos termos e para os efeitos do art. 334.º do CC, que o titular do direito, ao exercer o direito, se exceda. É necessário que se esteja perante uma situação gritante, ofensiva do sentimento ético-jurídico dominante, clamorosamente contrária aos ditames da lealdade e da correção imperantes na ordem jurídica e nas relações sociais» (cf., por todos, acórdão 14-03-2019, Revista n.º 225/13.9YHLSB.L1.S1 - 7.ª Secção).

Por outro lado, no próprio acórdão citado pela recorrente (acórdão de 12-11-2013, proc. n.º 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1), se afirma que a figura do abuso do direito só se aplica dentro de pressupostos definidos com o máximo de rigor possível  e  apenas deve funcionar em situações limite, sem se cair na tentação de a ela recorrer como se fosse uma panaceia de que se lança mão sempre que a aplicação das regras de direito estrito pareça ser insuficiente para assegurar a solução justa do caso. 

Ora, sendo este estatuto sucessório do cônjuge um imperativo legal que foi introduzido no Código Civil pela Reforma de 1977, que visou proteger a relação conjugal, a comunhão de vida e a entreajuda entre os cônjuges, não há motivos ético-jurídicos relevantes para paralisar o exercício deste direito por força da circunstância de a autora da ação de divórcio dela ter desistido, em vez de continuar a ação, para efeitos patrimoniais, como era intenção da filha, representada por curadora especial. A desistência da ação de divórcio é, como já foi afirmado, um ato inócuo para este efeito, porque a morte do réu, que não pediu o divórcio em reconvenção, provoca necessariamente a extinção da ação de divórcio.

A aplicação do instituto do abuso do direito nas relações familiares e sucessórias será sempre excecionalíssima, dada a natureza imperativa das normas jurídicas e dos efeitos jurídicos decorrentes do estatuto de filiação ou do estatuto de cônjuge. Nomeadamente em matéria de efeitos sucessórios, que constituem imperativos legais, a invocação do abuso do direito não é de todo admissível, pelo facto de se entrar em considerações subjetivas não controláveis pelo julgador e contrárias ao espírito da lei e à sua razão de ser, que só admitiu a indignidade sucessória (artigo 2034.º) e a deserdação (artigo 2166.º do CC), em casos legalmente previstos sujeitos a pressupostos exigentes e não permeáveis a juízos de valor casuísticos.

Pelo que, a desistência da autora da ação de divórcio na continuação da mesma, após o óbito do réu, não constitui qualquer abuso do direito.

III – Decisão

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 30 de junho de 2020

Nos termos do artigo 15.º-A do DL 20/2020, de 1 de maio, atesto o voto de conformidade do Juiz Conselheiro Alexandre Reis (1.º Adjunto) e que o Juiz Conselheiro Pedro de Lima Gonçalves (2.º Adjunto) apresenta declaração de voto de vencido.

Maria Clara Sottomayor - (Relatora)

Alexandre Reis

Pedro de Lima Gonçalves (Declaração de voto vencido)

_____________________

Processo n.º 4136/18 JT8MTS.P1.S1

Voto vencido por:
Como consta no relatório do Acórdão, "1. ...
... intentou ação especial de divórcio e separação sem consentimento do outro cônjuge, ao abrigo do disposto nos artigos 931.° e ss. CPC, contra ...., pedindo que fosse decretado o divórcio nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 1773.°, n.° 3, alínea a), 1782.°, n.° l, e 1785.°, n.° l, do Código Civil, bem como a regulação provisórias das responsabilidades parentais e da atribuição da casa de morada de família, nos termos dos artigos 1793.° , 1906.° do Código Civil.

Em ... 2018 faleceu o Réu.

...., filha de Autora e Réu, representada pela curadora especial nomeada nos autos, ...., requereu habilitação de herdeiros para permitir a continuação dos autos de divórcio, ao abrigo do artigo 1785.°, n.° 3, para que a Autora, a final, perdesse a qualidade de herdeira legitimaria do Réu, e a requerente passasse a ser a única e universal herdeira de seu pai.

Por decisão de 02 de abril de 2019, .... e a Autora foram habilitadas para com elas se prosseguir a ação de divórcio.

Em 02 de julho de 2019, teve lugar a tentativa de conciliação.

Após o Juiz ter tentado conciliar os cônjuges, a Autora declarou que pretendia desistir do pedido formulado, ao que se opôs ..., representada pela curadora especial nomeada.

Sobre essa pretensão recaiu o seguinte despacho:

«Em face da desistência do pedido, e por se considerar que legalmente é admissível, à luz do disposto nos art. 285°, n°, 289°, n° 2 e 290° todos do Cód. P. Civil, homologo a desistência do pedido, extinguindo-se o direito que se pretendia fazer valer».

2. Inconformada, apelou ...., representada pela curadora especial nomeada.

Pela Relatora, no Tribunal da Relação, foi proferido o seguinte despacho: «Foi interposto recurso da decisão que homologou a desistência do pedido de divórcio e de regulação das responsabilidades parentais formulado pela apelante, na sequência de óbito do apelado,
Nos termos do artigo 269.°, n.° 3, CPC, a morte de alguma das partes não dá lugar à suspensão, mas a extinção da instância, quando se torne impossível ou inútil a continuação da lide. Por outro lado, afigura-se não ter a apelante legitimidade para prosseguir com a acção, nos termos do artigo 1785.°, n.° 3, CC, por o primitivo R. não ter deduzido pedido reconvencional. Pelo exposto, entende-se que a causa da extinção da instância não é a desistência do pedido, cuja homologação é questionada, mas a impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277.°, alínea e), CPC, sem possibilidade de continuação do processo.
Por se tratar de enquadramento sobre o qual as partes não tiveram possibilidade de se pronunciar, notifique-as nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 3.°, n.°3 CPC»".

A minha discordância reside, no essencial, no seguinte:
O Tribunal de Ia instância, no incidente de habilitação, transitado em julgado» julgou habilitadas a Autora e a filha da autora e do Réu para com eles prosseguir os presentes autos, perante o falecimento do Réu (escusa-se de referir a natureza do incidente e dos direitos que este reconhece, pois é do conhecimento de todos).
- A questão não se pode colocar no erro do Tribunal de Iª instância na admissão do incidente, na decisão (aliás, admitiu que a Autora passasse também a figurar como Ré, embora noutra qualidade).
Ora, com fundamento na mesma morte do Réu, não pode o Tribunal da Relação decidir que os autos não podem prosseguir porque se verificava a impossibilidade superveniente da lide, por muita razão que tenha (e é manifesta), porquanto não pode violar uma decisão do Tribunal de Ia instância que transitou em julgado.

Assim, e encontrando-se o processo tramitado (com manifestos erros, é certo), o Tribunal da Relação só tinha de se pronunciar sobre a homologação do pedido de desistência do pedido formulado pela Autora e era objeto do recurso.

Quanto à questão do artigo 1785.°, n.°3, do Código Civil, concordo com a afirmação contida no Acórdão que "não pode a herdeira habilitada (representada por curador especial) prosseguir com a ação de divórcio, para efeitos patrimoniais, em substituição do pai, réu na ação de divórcio e falecido durante a sua pendência, se este não pediu o divórcio por reconvenção." (apesar de sobre esta questão serem feitas afirmações que não concordo) e não é esta a minha divergência.

Aquela primeira questão é o motivo da minha divergência

Lisboa, 30 de junho de 2020

Pedro de Lima Gonçalves