NULIDADE DO ACÓRDÃO
RETROATIVIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Sumário


  I – As nulidades da decisão, previstas no artigo 615.º do CPC, são vícios intrínsecos da própria decisão, deficiências da estrutura da sentença que não podem confundir-se com o erro de julgamento que se traduz antes numa desconformidade entre a decisão e o direito (substantivo ou adjetivo) aplicável. 

  II – Um resultado interpretativo situado no âmbito dos sentidos possíveis contidos na lei antiga não viola o princípio da proibição da retroatividade consagrado no artigo 12.º, n.º 1, do Código Civil.

  III – O sentido normativo, segundo o qual a lei protege a autodeterminação de uma pessoa contra quem é proposta uma ação de inabilitação, aplicando a regra da capacidade das pessoas maiores (artigo 130.º), aos atos praticados durante a pendência dessa ação, fase em que a pessoa inabilitanda dispõe de capacidade natural e jurídica porque nunca se provou que padecesse de qualquer incapacidade acidental, encontra-se materialmente fundado nos direitos humanos à liberdade e à autonomia das pessoas (artigos 25.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da CRP).

  IV – Não foi, por isso, violado o princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio, porque a interpretação normativa em causa baseou-se em valores ou critérios objetivos e constitucionalmente merecedores de proteção.

Texto Integral


                        Proc. nº 505/17.4T8LMG.C1.S1

           

                    Acordam, em Conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

 

                     I - Relatório
                    1. AA e marido, BB, instauraram contra CC e marido, DD; EE e marido, FF; GG; e HH, ação declarativa, de condenação, com processo comum, em que pediram:
a) Se declare nula e de nenhum efeito, por constituir pacto sucessório, a escritura pública designada “Cessão gratuita de quinhão hereditário” outorgada em 28 de março de 2015, em que II foi doadora e as RR. CC e EE donatárias;
Se assim se não entender,
b) Se declare a anulação da mesma escritura, em razão da incapacidade da declarante, por anomalia psíquica;

c) De decrete a anulação dos testamentos e atos de última vontade outorgados pela II em 4 de outubro de 2013 e em 15 de novembro de 2013, ambos no Cartório da Dra. JJ, em razão da incapacidade da declarante, que padecia já à data de anomalia psíquica, estando incapaz de perceber o sentido e alcance das declarações que proferia;

Quando assim se não entenda,
d) Que se decrete a anulação da escritura pública designada “Cessão gratuita de quinhão hereditário” outorgada em 28 de março de 2015, em que a II foi doadora e as aqui RR. CC e EE donatárias, bem como dos testamentos e atos de última vontade outorgados pela II em 4 de outubro de 2012 no Cartório Notarial de …, em 21 de junho de 2013 e em 15 de novembro de 2013, estes no Cartório Notarial da Dra. JJ, em virtude de terem sido obtidas as declarações da declarante por coação e/ou dolo, diretamente exercidas pelas beneficiárias de ambos os documentos, para o efeito do seu enriquecimento patrimonial;

Caso assim se não entenda,
e) Declarar-se a incapacidade sucessória das RR. CC e EE para receber da II qualquer deixa testamentária em virtude de indignidade, por haverem determinado a declaração de vontade de II, a qual não obteriam de outra forma, e contra a vontade da declarante.

                     2. A sentença do tribunal de 1.ª instância declarou a ação totalmente improcedente, por não provada, absolvendo-se os Réus dos pedidos contra si formulados pelos autores.


                     3. Inconformados recorreram os autores, tendo o Tribunal da Relação decidido julgar o recurso procedente, revogar a sentença e declarar a anulação da escritura pública designada “Cessão gratuita de quinhão hereditário” outorgada em 28 de março de 2015, em que II foi doadora e as RR. CC e EE donatárias.

                     4. Inconformados, os 1.ºs e 2.ºs Réus apresentaram recurso de revista, recursos que foram admitidos, tendo este Supremo Tribunal de Justiça concedido as revistas e revogado o acórdão recorrido, considerando válida a cessão gratuita enquanto negócio jurídico de doação.

                     5. AAe marido, BB, notificados do acórdão proferido por este Supremo Tribunal de Justiça, que revogou o acórdão recorrido, vêm arguir a respetiva nulidade nos termos do disposto nos artigos 685.º, 666.º e 615.º do Código de Processo Civil (CPC), e com os seguintes fundamentos:

 «Os ora requerentes notificados do teor da decisão proferida não se podem conformar com o decidido que se lhes afigura conter vícios que inquinam a sua validade. 

Desde logo porquanto se sustenta no acórdão a bondade da decisão recorrida, admitindo-se que:

«o preceito do artigo 149.º do CC era aplicável à inabilitação ex vi do disposto no 156.º do mesmo código»

«que o acto de cessão gratuita foi praticado quando já havia sido instaurada a acção de interdição … sendo certo que a inabilitação veio a ser decretada»

«que na situação em apreço a actuação da relação não infringe qualquer comando»

«que vistos estes contornos e mesmo que o acto fosse oneroso os factos provados apontam para a existência de prejuízo»

«assim se concluindo, na perspectiva do homo prudens e numa exegése sagaz mas razoável e sensata, que o acto… seria prejudicial»

E finalmente

«teríamos de concluir que se mostravam preenchidos os pressupostos da anulação da cessão gratuita, sendo que o respectivo pedido foi formulado tempestivamente, nos termos dos artigos 149.º n.º 2 e 287.º do CC»

A entender-se assim, como efectivamente se entendeu neste venerando Tribunal, a consequência teria de ser inevitável e necessariamente o acolhimento e confirmação do acórdão da Relação.

Porém não o foi.

O que constitui contradição insanável que deve ser conhecida e consequentemente reparada a decisão proferida.

 É certo que a sentença que decretou a inabilitação fixou um momento em que considera que se iniciou a incapacidade.

Mas essa fixação é meramente indicativa e não absoluta, como tem vindo a ser jurisprudência dos tribunais superiores.

Pois que é bem sabido que o processo de degradação das capacidades mentais não é, na grossa maioria dos casos, súbito antes evolutivo, de modo lento e gradual.

E que, no caso, necessariamente se desenvolveu no decurso dos longos cinco anos da pendência daquela acção.

Acresce que, transportar a possibilidade da anulação dos actos para o momento fixado na sentença introduz um factor de insegurança jurídica para o incapaz e para os que terceiros que com ele contratem.

Aliás, a razão de ser da necessidade da publicitação da acção e fazer-se decorrer o início do período em que os actos podem ser anulados dessa publicação é, precisamente a proteção dos interesses quer do inabilitando quer de terceiros.

Princípio que também se impõe no novo regime de acompanhamento de maiores:

- artigo 154.º do CC - sem que se vislumbre no acórdão agora impugnado qualquer fundamento que demonstre, ou sequer invoque, o ganho ou mais valia que resulta de se transferir para o momento fixado na sentença - momento que em concreto ninguém conhece - o início do limite temporal da anulabilidade do acto.

Diz-se no acórdão que esta novel interpretação tem por objectivo defender primordialmente os interesses e dignidade do incapaz.

Mas, colocada a questão assim, falta-lhe considerar a outra face do problema, a qual o acórdão agora impugnado omite e desconsidera.

É certo que a liberdade e autonomia individual são princípios inderrogáveis do cidadão, e também do incapaz, a respeitar em todos os casos e em todas as vertentes de modo absoluto.

Porém, para o cidadão incapaz ou limitado na sua vontade e capacidade deverá sempre ser, também, considerada esta sua limitação, o que o acórdão não fez.

Apontar a relevância da autonomia individual como princípio absoluto no caso de pessoa com capacidade intelectual limitada é considerar igual o que, de facto e na realidade, é desigual.

É no confronto entre a regra geral - a plena capacidade dos maiores - e a situação concreta do incapaz, que deve fundar-se, ponderadamente, a determinação do critério ideal para a interpretação da lei.

A não ser assim - a optar-se pela interpretação agora ensaiada - admitir-se-á a validade de actos praticados pelo inabilitando, sem capacidade de entender e querer, e que são aptos a lesá-lo gravemente.

Lesão essa que o atinge do ponto de vista pessoal, mas também na sua vertente patrimonial.

Ou seja, o critério agora inovador da interpretação do artigo 149.º em virtude de deixar de considerar também a redução ou limitação de capacidades e eleger como valor primordial a autonomia tem, ou pode ter, como consequência a omissão da defesa dos incapazes.

Em contradição absoluta com o intuito da lei e com o próprio propósito que o acórdão diz defender, já que é absolutamente contraditório que a interpretação agora sufragada defenda os interesses do inabilitando.

A novel interpretação agora sustentada, como se vê, acarreta como consequência que a inabilitanda tenha aberto mão de metade do seu património a favor de pessoas - da sua intimidade - a favor de quem também já tinha disposto, por testamento, da sua quota disponível.

Sendo certo que o acórdão considerou, e até citou, a págs. 32, o seguinte:

«… não se provaram factos que, de algum modo, compensassem justificassem tal transferência de direito a futuro património de tal magnitude. O acompanhamento, cuidados e apoio moral e afectivo das donatárias à doadora não justificavam tal relevante doação, até porque elas eram remuneradas pelos serviços prestados.

Note-se ainda que se provou ter a Elisa praticado actos que aponta para a necessidade de ela obter liquidez…

Nesta conformidade mal se compreende que perante tal necessidade ainda fosse alienar gratuitamente, e sem para tal se apurar cabal ou até suficiente justificação, parte muito significativa do seu património».

Manifestamente, cremos não ser esta a melhor maneira de defender os direitos e interesses dos incapazes.

Mais ainda:

Sustentam os Senhores Conselheiros - e bem - e até citam o n.º 2 do art.º 9.º do Código Civil, que diz:

«Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ...»

Dispunha o artigo 149.º do CC em vigor à data dos que:

«1. São igualmente anuláveis os negócios jurídicos celebrados pelo incapaz depois de anunciada a proposição da acção...»

Solução que foi mantida pelo legislador na alteração introduzida pela - Lei n.º 49/2018, de 14/08.

Veja-se o teor da alínea b) do n.º 1 do artigo 154.º

Donde a novel interpretação traduzir-se em considerar e fixar uma leitura da lei que não tem um mínimo de correspondência na letra da lei.

E mais, subverte princípios básicos da lei e da jurisprudência maioritária nesta matéria.

Em consequência

1 - Considerando que se mostravam preenchidos os pressupostos da anulação da cessão gratuita, e que o respectivo pedido foi formulado tempestivamente, a consequência teria de ser inevitável e necessariamente o acolhimento e confirmação do acórdão da Relação.

2 - Sofre assim o acórdão do vício de contradição insanável entre os seus fundamentos e a decisão proferida

3 - Sustenta-se no acórdão uma nova interpretação para o artigo 149.º do CC; o que se faz de modo inválido e enfermando de nulidade;

Pois que,

4 - Defende-se que o âmbito de actos permitidos ao incapaz fixado na sentença que determinou a incapacidade, deve ser o critério delimitador da anulabilidade dos seus actos.

5 - Ora, nos termos da sentença proferida nos autos de acção de inabilitação decidiu-se ocorrer a incapacidade da ali requerida, sem que se tenham sido delimitados os actos ou categoria de actos que a inábil poderia praticar.

6 - Neste ponto o acórdão proferido carece, em absoluto, de fundamento porque no caso a decidir não foram fixados quaisquer actos.

7 - O segundo requisito integrante daquela nova interpretação da lei prende-se com o quadro temporal em que foi praticado o acto.

8 - O quadro temporal em que foi praticado a acto é meramente indicativa e não absoluta, como tem vindo a ser jurisprudência dos tribunais superiores, pois que é bem sabido que o processo de degradação das capacidades mentais não é, na grossa maioria dos casos, súbito antes evolutivo, de modo lento e gradual.

9 - Acresce que transportar a possibilidade da anulação dos actos para o momento fixado na sentença introduz um factor de insegurança jurídica para o incapaz e para os que terceiros que com ele contratem.

10 - A razão de ser da necessidade da publicitação da acção e fazer-se decorrer o início do período em que os actos podem ser anulados dessa publicação é, precisamente a proteção dos interesses quer do inabilitando quer de terceiros.

11 - Assim sendo carece, absolutamente, de fundamentação nesta parte, já que não se especificam os fundamentos que levam a esta decisão

Por outro lado

12 - Apontar a relevância da autonomia individual como princípio absoluto no caso de pessoa com capacidade intelectual limitada é considerar igual o que, de facto e na realidade, é desigual.

13 - Terá de ser sempre sopesada a limitação na capacidade de querer e entender do incapaz na apreciação da questão em análise

14 - E é no confronto entre a regra geral da plena capacidade dos maiores - e a situação concreta do incapaz, que deve fundar-se, ponderadamente, a determinação do critério ideal para a interpretação da lei.

15 - A solução aqui encontrada conduz a admitir a validade de actos praticados pelo inabilitando, sem capacidade de entender e querer, e que são aptos a lesá-lo gravemente.

16 - Em divergência absoluta com o intuito da lei e com o próprio propósito que o acórdão diz defender, já que é absolutamente contraditório que a interpretação agora sufragada defenda os interesses do inabilitando.

17 - A novel interpretação traduz-se em considerar e fixar uma leitura da lei que não tem um mínimo de correspondência na letra da lei, e mais, subverte princípios básicos da lei e da jurisprudência maioritária nesta matéria.

18 - É assim nulo o acórdão nos termos das alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC quando não especifica os fundamentos de facto e de direitos que justificam a decisão

19.º - E, quando o faz, os fundamentos invocados estão em oposição com a decisão proferida.

                            TERMOS EM QUE DEVEM SER CONHECIDAS E SANADAS AS AGORA ARGUIDAS NULIDADES».

                     2. A ré, HH, veio apresentar a sua resposta à arguição de nulidade apresentada pelos Autores, tendo formulado as seguintes conclusões:

«I. Entende a Ré que o douto Acórdão terá que ser revogado, sendo do interesse de todas as partes que tal suceda, porquanto quaisquer futuros passos processuais só podem ser dados, se estiverem assentes em fundações sólidas e sem possibilidade de serem abaladas;

II. O douto Acórdão está ferido de nulidade prevista na alínea b) do artigo 615º do Código de Processo Civil;

III. Os Senhores Conselheiros optam por uma interpretação diferente do Tribunal da Relação relativamente ao artigo 149º do Código Civil, sem fundamentarem tal opção;

IV. Impedindo as partes de impugnarem tal opção.

V. Os Senhores Conselheiros não demonstram a razão pela qual não merece acolhimento a interpretação do Tribunal da Relação, não obstante referirem expressamente que “creio que a mera interpretação das normas dos artigos 149º e 156º nos conduzem a uma solução que não a adotada pela Relação, pese embora a sua aparente bondade.”

VI. O douto Acórdão está ainda ferido de nulidade prevista na alínea c) do artigo 615º do Código de Processo Civil;

VII. Os Senhores Juízes Conselheiros citam o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, expressando concordância com o teor do mesmo,  seguindo a sua linha de raciocínio, referindo que “se mostram preenchidos os pressupostos da anulação da cessão gratuita, sendo que o pedido foi formulado tempestivamente (…)” e acolhendo a “aparente bondade” da decisão da Relação;

VIII. Contudo, a final, seguem um caminho diferente, motivado por uma interpretação totalmente nova não sendo inteligível o motivo de tal interpretação;

IX. Os Senhores Juízes Conselheiros parecem hesitar entre dois sentidos diferentes, tendo, a final, optado por um que está em contradição com toda a linha de raciocínio montada;

X. A opção dos Senhores Juízes Conselheiros viola expressamente o artigo 12º do Código Civil, violando ainda o princípio da igualdade estatuído no art.º 13.º da Constituição, já que, ao basearem a sua decisão numa lei que não estava em vigor à data dos factos, estão a atribuir à mesma um efeito retroactivo, colocando em causa a dignidade social e a igualdade de todos perante a lei;

XI. Os Senhores Juízes Conselheiros parecem, efetivamente, querer adotar o douto entendimento do Tribunal da Relação, já que concordam com toda a linha de pensamento. Contudo e, na parte final, optam por uma interpretação diferente e em clara violação da lei e da Constituição;

XII. Os Senhores Juízes Conselheiros não podem querer dar um entendimento a um artigo baseado numa lei que não estava em vigor à data dos factos;

XIII. Nem podem fazer uma interpretação restritiva de uma norma, baseada nessa mesma lei;

XIV. Não obstante, mesmo que o pudessem fazer, a verdade é que a alínea b) do nº 1 do artigo 154º do Código Civil na sua versão atual, salvaguarda as situações como a do caso em apreço;

XV. Pelo que mesmo seguindo esta linha de raciocínio, a conclusão dos Senhores Juízes Conselheiros teria que ser a de acolher e confirmar a decisão do Tribunal da Relação;

XVI. Com o nº 1 do artigo 149º do Código Civil, o legislador quis proteger os negócios realizados depois de anunciada a propositura da ação, até porque criou o artigo específico para estas situações;

XVII. Tendo igualmente estipulado como requisitos para a anulabilidade dos atos que:  a interdição seja decretada e que o negócio cause prejuízo ao interdito;

XVIII. Os Senhores Juízes Conselheiros invocam expressamente os factos provados, dos quais se retira que a cessão em causa ocorreu em momento posterior ao do anúncio da propositura da ação, que a inabilitação veio a ser decretada e que o negócio causou prejuízo à Sra. II (inabilitada);

XIX. Era então forçoso concluir no mesmo sentido do Tribunal da Relação, acolhendo e confirmando tal decisão.

XX. Os Senhores Juízes Conselheiros dão a volta ao tema e decidem em sentido diverso, verificando-se uma clara ambiguidade.

Termos em que devem as NULIDADES Arguidas pelos Autores serem julgadas procedentes e o Acórdão proferido ser REVOGADO e substituído por outro que ACOLHA e CONFIRME a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra.

Assim, se fará, como sempre, inteira

J U S T I Ç A»

                     3. EE e marido, FF, reclamados, vêm apresentar resposta ao requerimento apresentado pelos autores, pugnando para que este mereça indeferimento in totum, mantendo-se intocado o Acórdão proferido.

                     Cumpre apreciar e decidir.

                     II - Fundamentação

                     As questões a decidir na presente reclamação, de acordo com as alegações dos reclamantes, são as seguintes: 1) Nulidade do acórdão reclamado por falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e por contradição entre os fundamentos e a decisão, respetivamente previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC; 2) Violação dos princípios da proibição da retroatividade (artigo 12 .º do CC) e da igualdade (artigo 13.º da Constituição) pela interpretação do artigo 149.º do Código Civil adotada pelo acórdão reclamado.

                  Para além destas questões, desenvolvem as reclamantes uma múltipla argumentação de direito substantivo relacionada com a interpretação do artigo 149.º do Código Civil e com os requisitos estipulados na citada norma para a anulabilidade do negócio praticado pelo inabilitando durante a pendência da ação, nos casos em que a inabilitação vem a ser decretada. Contudo, esses alegados erros de interpretação não constituem vícios de nulidade, mas refletem apenas o inconformismo das reclamantes com a decisão em si, da qual discordam, pelo que não cabe aqui discuti-los. Como se afirma no acórdão deste Supremo Tribunal, de 28 de janeiro de 2020 (Revista n.º 392/18.5T8STR-C.E1-A.S1 - 6.ª Secção) «A circunstância das partes não estarem de acordo com a decisão produzida, não é fundamento para sustentar a reclamação por nulidades e/ou reforma do acórdão, constituindo um incidente extravagante».
                     A observação da realidade judiciária mostra que é vulgar a arguição da nulidade da decisão, em confusão com o erro de julgamento. E a verdade é que, por vezes, se torna difícil distinguir o error in judicando - o erro na apreciação da matéria de facto ou na determinação e interpretação da norma jurídica a eles aplicável - e o error in procedendo, como é aquele que está na origem da nulidade decisão (cf. Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos, Quid Iuris, Lisboa, 2009, p. 117). No mesmo sentido, afirma o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30/9/2010, Proc. n.º 341/08.9TCGMR.G l.S2, que o “o erro de julgamento (error in judicando) resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), para que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa” e distingue-se da nulidade do acórdão.

          Na verdade, as reclamantes parecem confundir a sua discordância em relação à decisão, à qual imputam erros de julgamento, com as causas de nulidade do acórdão. As nulidades da decisão, previstas no artigo 615.º do CPC, são vícios intrínsecos da própria decisão, deficiências da estrutura da sentença que não podem confundir-se com o erro de julgamento que se traduz antes numa desconformidade entre a decisão e o direito (substantivo ou adjetivo) aplicável. 

                     I - Nulidade do acórdão
                     1.1. Nulidade por falta de fundamentação, de facto e de direito

                     A nulidade em razão da falta de fundamentação, de facto e de direito, está relacionada com o comando que impõe ao juiz o dever de fundamentar as suas decisões, discriminando os factos que considera provados, e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.  

                    O dever de fundamentar as decisões (artigo 154.º do CPC) impõe-se por razões de ordem substancial – cabe ao juiz demonstrar que soube extrair da norma geral e abstrata a disciplina ajustada ao caso concreto – e de ordem prática, posto que as partes precisam de conhecer os motivos da decisão a fim de, podendo, a impugnar.

                    Só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade ou erroneidade – integra a previsão da al. b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, cabendo o putativo desacerto da decisão no campo do erro de julgamento (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de junho de 2016, processo n.º 781/11.6TBMTJ.L1.S1).

                   Ora, a decisão reclamada não padece deste vício. A sua fundamentação é, como exige a lei e a Constituição, completa, clara e rigorosa, enunciando os factos, bem como expondo a interpretação das normas aplicáveis, de acordo com os critérios hermenêuticos da teoria do direito, sem a violação de qualquer princípio ou cânone argumentativo, e esclarecendo de forma clara o caminho adotado na fixação do sentido da norma e os motivos da construção jurídica a que procedeu.

        

                     Pelo que, não se verifica a nulidade do acórdão recorrido prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.

                     1.2. Nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão, ou por ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível
          

                     a) Esta causa de nulidade remete-nos para o princípio da coerência lógica da sentença. Não está em causa o erro de julgamento, quer quanto aos factos, quer quanto ao direito aplicável, mas antes a estrutura lógica da sentença, o que sucede quando a decisão proferida seguiu um caminho diverso daquele que era indicado pelos seus fundamentos.          

                     A contradição a que a lei impõe o efeito da nulidade é a oposição entre os fundamentos e a decisão – artigo 615.º, nº 1, al. c), do CPC. Só ocorrerá nulidade do acórdão, por contradição entre os seus fundamentos e a decisão, quando os fundamentos invocados conduziriam não ao resultado expresso no dispositivo da decisão, mas a um resultado oposto, ou seja, quando das premissas de facto e de direito que o julgador teve por apuradas, ele haja extraído uma conclusão oposta à que, logicamente, deveria ter extraído.   

                     Para que tal ocorra, não basta uma qualquer divergência inferida entre os factos provados e a solução jurídica, pois tal divergência consubstanciaria, a existir, um mero erro de julgamento (error in judicando), sem a gravidade de uma nulidade do acórdão. Na verdade, o que as reclamantes invocam é um erro de interpretação de uma norma jurídica, o artigo 149.º do CC, o que nunca seria suscetível de gerar qualquer vício de nulidade do acórdão. Como escreve Amâncio Ferreira «a oposição entre os fundamentos e a decisão não se reconduz a uma errada subsunção dos factos à norma jurídica nem, tão pouco, a uma errada interpretação dela. Situações destas configuram-se como erro de julgamento» (Amâncio Ferreira, Manual de Recursos em Processo Civil, 9ª edição, p. 56).

                     A contradição entre os fundamentos e a decisão prevista na alínea c) do nº 1 do artigo 615.º do CPC, ainda nas palavras do citado autor, verifica-se quando «a construção da sentença é viciosa, uma vez que os fundamentos referidos pelo Juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente» (ibidem, sendo nosso o sublinhado).

                        Conforme afirma a jurisprudência:

«Há contradição entre os fundamentos e a decisão, quando estes dois aspectos cruciais da sentença, na sua sustentação, enfermam de um vício lógico insanável, através do qual se evidencie que a concreta fundamentação utilizada pelo julgador, seja ancorada na matéria de facto ou na matéria de direito, jamais poderia ter conduzido ao resultado alcançado que, assim, não pode ser considerado inteligível e coerente desfecho por estar inquinado de um vício no raciocínio lógico-dedutivo; ou seja, o caminho trilhado na via da fundamentação nunca poderia, de uma maneira lógica e razoável, desaguar naquele concreto resultado plasmado na sentença» (acórdão de 20-11-2012, processo n.º 176/06.3TBMTJ.L1.S2).

«A nulidade por contradição entre a fundamentação e a decisão supõe um vício intrínseco à sua própria lógica, traduzido em a fundamentação em que se apoia não poder suportar o sentido da decisão que vem a ser proferida» (acórdão 03-02-2011, processo n.º 1045/04.7TBALQ.L1.S1).
                                   Ora, no caso sub judice, as reclamantes não apontam qualquer erro lógico na argumentação jurídica do acórdão reclamado, nem demonstram ter havido uma conclusão inesperada e adversa à linha de raciocínio adotada nos fundamentos do acórdão. A decisão de considerar válida a doação impugnada pelos autores decorre, por inferência lógica e sem contradições ou ambiguidades, da argumentação técnico-jurídica usada. Na verdade os autores, como já se afirmou, manifestam apenas a sua discordância ou inconformismo relativamente à decisão dessa questão – a validade da doação – como decorrência de um raciocínio jurídico que desenvolvem, visando com o seu argumentário que o Supremo Tribunal repondere a decisão proferida, à luz das razões e fundamentos que tecem na reclamação.

                                   Em consequência, no que respeita a esta nulidade, é igualmente evidente a sua inexistência, pois que o raciocínio lógico seguido na fundamentação da decisão teria, forçosamente, de conduzir à negação da revista e à improcedência do pedido.
           
                                   
b) Importa ainda averiguar se se verifica nulidade do acórdão, por ambiguidade ou obscuridade da fundamentação, que torne a decisão ininteligível.
                                   
A nulidade ancorada na ambiguidade ou obscuridade da decisão proferida, remete-nos para a questão dos casos de ininteligibilidade do discurso decisório, concretamente, quando a decisão, em qualquer dos respetivos segmentos, permite duas ou mais interpretações (ambiguidade), ou quando não é possível saber com certeza, qual o pensamento exposto na sentença (obscuridade).                          

Relativamente a esta alegada obscuridade ou ambiguidade do acórdão, entende este Supremo Tribunal que o acórdão impugnado não padece de qualquer defeito na sua fundamentação, esclarecendo de forma clara e rigorosa a recorrente acerca dos motivos que fundamentaram a negação da revista. Com efeito, da análise de todos os passos seguidos na fundamentação resulta um discurso claro e coerente do ponto de vista lógico-jurídico, facilmente compreensível, sem obscuridades e sem contradições, pelo que, também, deste ponto de vista, nada há a censurar ao acórdão reclamado.
              

                            

II – Da violação dos princípios da proibição da retroatividade (artigo 12.º do CC) e da igualdade (artigo 13.º da Constituição)           

    2.1. Princípio da proibição da retroatividade

                                   

Invoca ainda a segunda reclamante, para além das nulidades invocadas pela 1.ª reclamante, que o acórdão recorrido aplicou ao caso vertente a nova redação do artigo 149.º do Código Civil, introduzida pela Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, que criou o regime jurídico do maior acompanhado e eliminou os institutos da interdição e da inabilitação, assim violando o princípio da proibição da retroatividade.

           

Ora, da análise da fundamentação do acórdão recorrido, o que dela resulta é que foi aplicada a versão antiga do artigo 149.º, proveniente do Código Civil de 1966, tendo-se aderido a uma interpretação restritiva da norma a fim de promover a autonomia do incapaz e a sua dignidade enquanto pessoa e sujeito de direitos.

                                   

A norma do artigo 149.º do Código Civil dispunha, sob a epígrafe «Atos praticados no decurso da ação», o seguinte:

1. São igualmente anuláveis os negócios jurídicos celebrados pelo incapaz depois de anunciada a proposição da ação nos termos da lei de processo, contanto que a interdição venha a ser definitivamente decretada e se mostre que o negócio causou prejuízo ao interdito.

2. O prazo dentro do qual a ação de anulação deve ser proposta só começa a contar-se a partir do registo da sentença.

                                              

Contudo, o acórdão reclamado fez uma interpretação restritiva (redução teleológica) desta norma, considerando que aos atos praticados num momento em que a pessoa, cuja incapacidade vem a ser decretada, ainda é capaz, estão sujeitos à regra geral da capacidade, invocando para o efeito a evolução social e científica entretanto verificada em relação às pessoas portadoras de anomalia psíquica ou habitual prodigalidade e o reconhecimento de um espaço de autodeterminação variável consoante a natureza da limitação de que padecem e o âmbito da incapacidade que vem a ser decretada na sentença.

                                              

Com efeito, afirma o acórdão reclamado o seguinte: «Quer no regime do Código Civil vigente à data da celebração da cessão, quer na redacção introduzida pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, o legislador pretendeu proteger o incapaz ou inabilitado, estabelecendo um sistema para acautelar os seus interesses nos casos em que ocorra uma incapacidade ou uma inabilitação (utilizaremos estes termos, por serem os aplicáveis à data da celebração da cessão), sendo certo que fora do âmbito da respectiva incapacidade a regra é da capacidade plena dos maiores».

                       

Prossegue o acórdão reclamado, citando o Comentário ao Código Civil da Universidade Católica (Lisboa, 2014), segundo o qual o âmbito de aplicação da norma do artigo 149.º do CC não se aplica a todos os atos do inabilitando, estando excluídos aqueles que o incapaz teria, de qualquer modo, capacidade para praticar mesmo depois de decretada a inabilitação ou a interdição (p.ex. por força do artigo 127.º do CC), os quais não estariam sujeitos a anulação mesmo que causassem prejuízo ao incapaz. Assim, conclui-se no acórdão impugnado, por maioria de razão, terá de se tratar da mesma forma os atos equivalentes praticados no decurso da ação, quando o interdito (ou inabilitado) ainda possuía plena capacidade de exercício de direitos.

                       

Ora, tendo em conta que a sentença de inabilitação visa obter um âmbito de incapacidade delimitado temporalmente e quanto ao tipo de atos abrangidos, o critério interpretativo a aplicar para decidir acerca da validade ou invalidade do ato praticado no decurso da ação deve ser a regra da capacidade jurídica dos maiores (artigo 130.º do CC). Daí que não baste, segundo o acórdão reclamado, para decretar a anulação de um ato praticado pelo inabilitando no decurso da ação, o preenchimento formal dos requisitos fixados no artigo 149.º (aplicável, por força da remissão do artigo 156.º), sendo necessário, também, que o ato praticado esteja abrangido pela delimitação da incapacidade declarada na sentença de inabilitação.

                       

Ora, no caso vertente, a sentença veio a decretar a inabilitação, 5 anos após a data de interposição da ação, sem que se tivesse provado qualquer anomalia psíquica ou incapacidade acidental na data da celebração da doação, pelo que, decidiu o acórdão reclamado, pela validade da doação.

Este método de argumentação e o resultado interpretativo assim atingido não se confundem com qualquer aplicação retroativa da lei nova, pois o intérprete situa-se ainda no âmbito dos sentidos possíveis contidos na lei antiga. Pelo que não foi violado o princípio da proibição da retroatividade consagrado no artigo 12.º do CC.

           

                        2.2. Violação do princípio da igualdade

                        Entende ainda a reclamante que a interpretação do artigo 149.º, aplicável à inabilitação por força da remissão do artigo 156.º, adotada pelo acórdão reclamado, viola o princípio da igualdade, na medida em que trata igualmente o que é diferente, equiparando indivíduos com capacidade intelectual limitada a indivíduos plenamente capazes, retirando aos primeiros a proteção de que necessitam.

                        Todavia, não tem razão.

                       

Sobre o princípio da igualdade, tem-se entendido que este se reconduz a uma proibição de arbítrio, sendo inadmissíveis, quer a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objetivos, constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais. 

                       

Ora, no presente caso, o sentido normativo segundo o qual a lei protege a autodeterminação de uma pessoa contra quem é proposta uma ação de inabilitação, aplicando a regra da capacidade das pessoas maiores (artigo 130.º), aos atos praticados durante a pendência dessa ação, fase em que a pessoa inabilitanda dispõe de capacidade natural e jurídica, porque nunca se provou que padecesse de qualquer incapacidade acidental, encontra-se materialmente fundado nos direitos humanos à liberdade e à autonomia das pessoas (artigos 25.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, da CRP). O facto estar em causa tráfico jurídico gratuito não implica a anulação do ato, pois a doação em litígio, feita a pessoas que cuidaram da doadora, reflete uma dimensão da personalidade que a pessoa tem o direito de assumir como projeção de si mesma. Não foi, por isso, violado o princípio da igualdade, porque a interpretação normativa em causa baseou-se em valores ou critérios objetivos e constitucionalmente merecedores de proteção.

            III – Decisão

Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação.

Supremo Tribunal de Justiça, 2 de junho de 2020

Maria Clara Sottomayor – (Relatora)

Nos termos do artigo 15.º-A do DL 20/2020, de 1 de maio, declaro que votam em conformidade os Juízes Conselheiros Alexandre Reis (1.º Adjunto) e Pedro de Lima Gonçalves (2.º Adjunto).