Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça
I
1. O Ministério Público interpôs recurso de decisão proferida, pelo Tribunal de Execução de Penas de Coimbra, contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
1.O despacho recorrido vai contra a jurisprudência fixada no acórdão 7/2019 do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no diário da república de 29/11/2019 – I série.
2.O Ministério Público junto do tribunal de execução das penas/juiz …… adere aos fundamentos do despacho recorrido, pelo que, sendo o recurso obrigatório, se abstém de tecer mais considerações sobre a matéria controvertida.
3.Realça-se, apenas, que a jurisprudência fixada vai implicar que condenados que se encontrem a cumprir pena remanescente por revogação da liberdade condicional e/ou a cumprir penas sucessivas - remanescente por revogação da liberdade condicional acrescido de novas penas – poderão estar cinco e mais anos em reclusão sem verem a sua situação apreciada para fins de liberdade condicional, o que vai claramente ao arrepio do espírito do legislador, subjacente ao código da execução das penas e medidas privativas da liberdade.
Vossas excelências decidirão.
2. Já neste tribunal, o Ministério Público foi de parecer que a interposição do recurso, apesar de ocorrida antes de transitar a decisão final do Tribunal Constitucional, foi tempestiva. No entanto entende que ocorrem outros motivos de inadmissibilidade do recurso: a motivação apresentada com o requerimento de interposição do recurso não preenche os requisitos estabelecidos nos arts 411.º/3 e 412.º, CPP; a declaração inserta no requerimento de interposição de recurso não pode ser considerada como motivação; a falta de motivação, em sentido material, devia ter levado à não admissão do recurso (art. 414.º/2), mas tendo sido admitido e porque se verifica causa que devia ter determinado a sua não admissão, deve o mesmo ser rejeitado, por força do art. 420.º/1/b (aplicável supletivamente), mas também dos arts. 440.º/3 e 441.º/1, CPP. Acresce, segundo o Parecer, que embora a decisão recorrida afirme discordância com a jurisprudência do AFJ, com o argumento de que ofende princípios constitucionais, não é evidente que a estrita parte decisória da peça processual em causa esteja em contradição com o decidido naquele acórdão.
Questiona se a homologação da liquidação da pena remanescente, e só desta trata a decisão recorrida, porque indica o momento em que se perfaz o ½ e os 2/3 daquele remanescente, constitui violação daquela jurisprudência. E responde que a decisão recorrida parece entender dessa forma. No entanto, o que o acórdão de Fixação de Jurisprudência diz é que o arguido/condenado terá de cumprir por inteiro o remanescente da pena resultante da revogação de liberdade condicional com fundamento na prática de crime, não podendo beneficiar quanto a essa pena remanescente de nova liberdade condicional ainda que haja lugar ao cumprimento sucessivo de penas.
E questiona de novo se a indicação desses momentos, no cômputo da pena, pode/deve considerar-se já o início do procedimento tendente à concessão da liberdade condicional. Diz que a resposta tem de ser negativa, mas ainda que a resposta seja afirmativa, questiona se estamos perante a violação da jurisprudência fixada, questão a que responde negativamente.
Em conformidade com o que, considera não estarem preenchidos os requisitos de que depende a admissibilidade do recurso, que deve ser rejeitado, nos termos do disposto nos artigos 420.º/1/b, 440.º/3/4 e 441.º/1, CPP.
3. No exame preliminar (art. 440.º/1, 2.ª parte, ex vi art. 446.º/1, in fine, CPP, e art. 244.º, CEPMPL), considerou-se que o recurso foi interposto por quem tinha legitimidade, mas extemporaneamente.
4. Colhidos os vistos e realizada a conferência (art. 440.º/4, ex vi art. 446.º/1, CPP, e art. 244.º, do CEPMPL), cabe decidir.
II
1. A marcha processual relevante:
1.2 Do despacho proferido em 4.12.2019, no Tribunal de Execução de Penas de Coimbra, consta, entre o mais que agora não releva, o seguinte:
Pelo que, e em conclusão, a impossibilidade de apreciação da liberdade condicional relativamente à pena remanescente decorrente da revogação da liberdade condicional, quando a revogação decorre, como é o caso dos autos, da prática de um crime pelo qual o arguido foi condenado em pena de prisão, e a consequente impossibilidade de formulação do cômputo a que alude o art. 185 nº 8 do CEP, não se poderá ter, pois, como constitucionalmente tolerável. Sendo tal interpretação violadora do princípio da proporcionalidade (art. 18º nº 2 da CRP), na vertente, segundo a qual, a privação da liberdade assume sempre natureza excepcional, e do princípio da socialização, na decorrência do princípio da dignidade humana (art. 1º da CRP), só resta a desaplicação da norma prevista no art. 63 nº 4 do CP, quando interpretada neste sentido, em obediência ao disposto no art. 204º da Lei Fundamental.
(…) recuso a aplicação da norma constante do art.63 nº 4 do CP que estatui que o disposto nos nºs 1, 2 e 3, do mesmo artigo não é aplicável ao caso em que a execução da pena resultar de revogação da liberdade condicional, quando se extrai da mesma, tal como se considerou no acima referido Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 7/2019 que, havendo lugar à execução sucessiva de várias penas pelo mesmo condenado, caso seja revogada a liberdade condicional de uma pena com fundamento na prática de um crime pelo qual o arguido foi condenado em pena de prisão, o arguido terá de cumprir o remanescente dessa pena por inteiro, não podendo quanto a ela beneficiar de nova liberdade condicional.
Face ao supra exposto, e ao abrigo do disposto nos arts 64, nº 3 e 61, ambos do CP, e art. 185, nº 8 do CEP, importa apreciar o cômputo da pena remanescente, decorrente da anterior revogação da liberdade condicional, concedida relativamente à pena de 5 anos e 6 meses de prisão imposta no proc. 793/11………., da qual resta cumprir 1 ano, 8 meses e 18 dias de prisão.
Tendo o condenado sido ligado à ordem do referido proc. 793/11…….. no dia 18/11/2019, atingirá ½ da mesma em 27/9/2020, os 2/3 em 9/1/2021 e o termo em 5/8/2021, tal como indicado pelo Ministério Público, cômputo este que homologo.
1.3 O Ministério Público interpôs recurso desse despacho, em 11.12.2019, para o Tribunal Constitucional.
1.4 Em 10.7.2020, o Tribunal Constitucional (ac. 341/2020), decidiu não tomar conhecimento do objeto do recurso, porque considerou que havendo lugar a recurso obrigatório por parte do Ministério Público, para o Supremo Tribunal de Justiça, não se pode conhecer do objeto do recurso de constitucionalidade. Em consequência ordenou a remessa dos autos imediatamente após trânsito em julgado da [sua] decisão, por ser o momento a partir do qual renascerá o prazo para a interposição de recurso previsto no art.º 242.º, n.º 1, alínea a), do CEPMPL, interrompido por efeito do art.º 75.º, n.º 1, da LTC.
1.5 Antes de transitado o acórdão do Tribunal Constitucional, alegadamente com vista a «acautelar a interposição desse recurso obrigatório», o Ministério Público junto do TEP, ao abrigo do disposto nos artigos 446.º do código de processo penal e 242.º, n.º1, al. a), do código da execução das penas e medidas privativas da liberdade, interpôs o presente recurso obrigatório do despacho proferido e constante de fls. 116/119 dos autos, porque contraria a jurisprudência fixada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2019.
III
Questão a decidir: saber se o recurso contra jurisprudência fixada pode ser interposto antes de esgotados os recursos ordinários e antes de transitada em julgado a decisão.
1. O recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, foi interposto pelo recorrente, «ao abrigo do disposto nos artigos 446.º do código de processo penal e 242.º, n.º 1, al. a), do código da execução das penas e medidas privativas da liberdade».
2. Dispõe o artigo 446.º/1, CPP, que é admissível recurso direto para o Supremo Tribunal de Justiça de qualquer decisão proferida contra jurisprudência por ele fixada, a interpor no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida, sendo correspondentemente aplicáveis as disposições do presente capítulo. Donde se conclui que, segundo o regime do processo penal, o recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, só pode ser interposto depois de esgotados os recursos ordinários, com o sentido de que à data da interposição do recurso extraordinário, já não é possível a interposição de recurso ordinário, independentemente de, em momento anterior, ter sido possível ao recorrente a interposição de recurso ordinário que o recorrente não interpôs e independentemente das razões por que não o interpôs (ac. STJ de 6.7.2011, SOUTO DE MOURA, disponível em www.dgsi.pt). Exige-se, assim, que a decisão objeto do recurso extraordinário, tenha transitado em julgado e o recurso seja interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida (art. 446.º, CPP), exigências legais formais taxativas.
3. Por sua vez, dispõe o art. 242.º do CEPMPL:
1 - O Ministério Público recorre obrigatoriamente, sendo o recurso sempre admissível:
a) De quaisquer decisões proferidas contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça;
b) De decisão proferida em processo especial de impugnação que, no domínio da mesma legislação e quanto a idêntica questão de direito, esteja em oposição com outra proferida por tribunal da mesma espécie;
2 - Para o efeito previsto no n.º 1, o sujeito contra o qual foi proferida a decisão recorrida pode requerer ao Ministério Público a interposição do recurso.
3 - Para o efeito previsto no n.º 1, os serviços prisionais e os serviços de reinserção social comunicam ao Ministério Público a oposição de decisões, logo que dela tomem conhecimento.
4 - O recurso é interposto nos 30 dias subsequentes à prolação da decisão em causa, pelo Ministério Público junto do tribunal que a tenha proferido, ao qual são dirigidas as comunicações a que se refere o número anterior e o requerimento previsto no n.º 2.
5 - O recurso interposto de decisão ainda não transitada em julgado suspende, até ao respectivo julgamento:
a) O prazo para interposição de recurso para a Relação;
b) Os termos subsequentes de recurso já instaurado, no que concerne à questão jurídica controvertida.
6 - Na hipótese prevista no número anterior, o recurso só tem efeito suspensivo da decisão recorrida se esse for em concreto o efeito legalmente atribuído à interposição de recurso para a Relação.
A congruência das soluções normativas, aparentemente contraditórias, entre o regime consagrado no Código de Processo Penal, para o recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada, que estabelece o prazo de 30 dias, a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida (art. 446.º/1, CPP), para interpor o recurso extraordinário e a disciplina constante do art. 242.º/4, CEPMPL, que fixa como prazo de recurso, 30 dias subsequentes à prolação da decisão em causa, impõe uma interpretação cuidada.
4. O Capítulo II, a que pertence art. 242.º, CEPMPL, trata dos «recursos especiais para uniformização de jurisprudência». São os casos de oposição de acórdãos da Relação/recurso para fixação de jurisprudência (arts. 240.º e 243.º), do recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça (art. 242.º/1/a), de recurso de decisão proferida em processo especial de impugnação que, no domínio da mesma legislação e quanto a idêntica questão de direito, esteja em oposição com outra proferida por tribunal da mesma espécie (por um dos TEP), art. 242.º/1/b, CEPMPL) e, finalmente, o recurso no interesse da unidade do direito (art. 245.º, CEPMPL).
5. A novidade, no elenco do CEPMPL, é o recurso de decisão proferida em processo especial de impugnação que, no domínio da mesma legislação e quanto a idêntica questão de direito, esteja em oposição com outra proferida por tribunal da mesma espécie (por um dos TEP), art. 242.º/1/b, CEPMPL). Visa esse novo instrumento uniformizar a jurisprudência dos tribunais de execução das penas, na sugestiva formulação do art. 24.º do Anteprojeto da Proposta de Lei-Quadro da Reforma do Sistema Prisional, de modo a assegurar, como se dizia no Preâmbulo do Anteprojeto, uma efetiva igualdade na apreciação judicial das mesmas questões de direito [Relatório da comissão de estudo e debate da reforma do sistema prisional (presidida por Diogo Freitas do Amaral), Coimbra: Almedina, 2005, p.114].
6. A questão da uniformização de jurisprudência no âmbito da execução de penas foi tratada na exposição de motivos do Anteprojeto da Proposta de lei-Quadro da Reforma do Sistema Prisional, de fevereiro de 2004, apresentado pela Comissão de Estudo e Debate da Reforma do Sistema Prisional, nos seguintes termos: «cria-se, no domínio da execução das penas, a figura do recurso para uniformização de jurisprudência, de modo a assegurar uma efetiva igualdade na apreciação judicial das mesmas questões de direito». No articulado consta o artigo 24.º (Uniformização da Jurisprudência) com o seguinte teor: «A lei dos tribunais das penas determinará os termos em que a instância judicial que for competente para conhecer dos recursos referidos no artigo anterior é também competente, nos termos por ela estabelecidos, para uniformizar a jurisprudência dos tribunais de execução das penas, nos casos em que essa uniformização se justifique, e a pedido de qualquer recluso, do Ministério público, bem como dos serviços prisionais ou de reinserção social», [Relatório da comissão de estudo e debate da reforma do sistema prisional (presidida por Diogo Freitas do Amaral), Coimbra: Almedina, 2005, p.114].
7. A disciplina especial agora em questão (art. 242.º/4, CEPMPL), vale apenas no âmbito do recurso de decisão proferida pelo TEP, no caso de oposição com outra decisão proferida em processo especial de impugnação que, no domínio da mesma legislação e quanto a idêntica questão de direito, esteja em oposição com outra proferida por tribunal da mesma espécie (por um dos TEP), art. 242.º/1/b, CEPMPL). O que vale por dizer que o n.º 4 do art. 242.º, CEPMPL, apenas se aplica às decisões a que alude o art. 242.º/1/b (assim, ac STJ de 12.11.2020, HELENA MONIZ, proferido no processo n.º 1283/11.6TXPRT-O.S1). Só assim ganha sentido o sistema normativo cerzido pelo legislador quer no CPP, quer no CEPMPL. O 242.º/4, tem em vista os antecedentes n.ºs 2 e 3, normas estas que, por sua vez, só ganham sentido quando referidas ao n.º1/b. Este regime especial, tem em vista um tipo de procedimento específico, e só nesse contexto se percebe a intervenção da DGRSP (art. 242.º/3). Só assim é plena de sentido a remissão do art. 244.º, CEPMPL, «à interposição, tramitação e julgamento dos recursos anteriormente previstos e à publicação e eficácia da respetiva decisão aplicam-se, com as necessárias adaptações, os artigos 438.º a 446.º do Código de Processo Penal.». Se o legislador tivesse consagrado no CEPMPL, a disciplina do recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada, não fazia sentido a antecedente remissão. A remissão é necessária e já faz sentido, se a norma do art. 242.º/4, CEPMPL, disciplinar apenas o novo recurso consagrado no CEPMPL, consoante já referido.
8. A unidade do sistema processual e a congruência da resposta, a uma e mesma questão jurídica, reclama também esta solução. Um legislador que sabe qual o percurso legislativo e jurisprudencial realizado para chegar à atual formulação do art. 446.º, CPP, se quisesse voltar atrás, e consagrar no art. 242.º, CEPMPL, uma solução normativa de rotura com a norma que acabara de consagrar no CPP, não teria consagrado, mediante técnica remissiva expressa (art. 244.º, CEPMPL), a aplicação subsidiária do CPP; por outro lado, não seria tão inábil na formulação da norma, teria dito, inequivocamente, claro clarinho que o art. 242.º/4, se aplicava ao recurso interposto de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça. É isso que se espera das soluções legislativas de ruptura com norma e/ou solução normativa jurisprudencial anterior diversa, e tal não se verifica no caso.
9. Como resulta da marcha processual, o MP interpôs o recurso extraordinário a que alude o art. 446.º, CPP, ainda antes de transitada a decisão do TC, o que implica que a interposição desse recurso ocorreu antes de ter começado a correr de novo o prazo para a interposição de recurso ordinário, da decisão do TEP, para o Tribunal da Relação. Assim, o recurso extraordinário é duplamente prematuro: foi interposto quando o acórdão do Tribunal Constitucional ainda não tinha transitado em julgado, quer ainda porque, em vista do pressuposto exigido pelo art. 446.º/1, CPP, a decisão recorrida, à data em que foi interposto o presente recurso, ainda não tinha transitado, pois ainda era suscetível de recurso ordinário para o Tribunal da Relação.
10. Se o Ministério Público pretendia interpor recurso direto para o STJ, devia ter aguardado quer o trânsito da decisão do TC, quer o decurso do prazo em que o despacho recorrido ainda era suscetível de recurso ordinário (art. 446.º/1, CPP). Não o fez, pelo que à data em que foi interposto o recurso era inadmissível, pelo que por tal motivo se rejeita o recurso interposto (art. 441.º/1, CPP).
11. Rejeitado o recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, porque interposto antes do trânsito em julgado da decisão, sobra a questão de saber, lançando-se mão do disposto no art. 193.º/3, CPC, ex vi art. 4.º, CPP, da possibilidade de aproveitamento do ato processual como recurso ordinário, matéria da competência do Tribunal da Relação de Coimbra para onde se ordena a remessa dos autos.
III
Face ao exposto, acordam os juízes da 5.ª secção deste Supremo Tribunal, em rejeitar o recurso, por extemporâneo.
Ordena-se a remessa dos autos para o Tribunal da Relação de Coimbra.
Informe de imediato o TEP.
Sem custas.
Supremo Tribunal de Justiça, 10 de dezembro de 2020.
António Gama (Relator)
Helena Moniz