I - Uma vez que a Relação declarou a nulidade da sentença da 1.ª instância por omissão de pronúncia, acabaria por conhecer da questão ex novo, em 1.º grau, afastando a possibilidade de dupla conformidade. O mesmo se diga (com idêntica fundamentação), sobre a existência do crédito exequendo. No que tange à extinção da obrigação por meio da compensação, embora a conclusão seja idêntica entre as duas instâncias, não há dupla conforme, porque a fundamentação é essencialmente diversa.
II - O julgador não tem de se ocupar de todas as considerações das partes. É diferente não conhecer questão de que devia conhecer e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento, ou razão produzida nos autos.
Em consequência, a nulidade por omissão de pronúncia apenas se verificará nos casos em que a omissão de conhecimento, relativamente a cada questão, é absoluta, e já não quando seja meramente deficiente, e mais ainda quando apenas se tenham descurado algumas razões ou argumentos invocados, assim como quando a apreciação das questões fundamentais à justa decisão da lide tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras.
III - A Relação entendeu que o título executivo que serve de base à presente execução é o título de aquisição do crédito pela exequente, emergente da sentença, transitada em julgado em 27-10-2017, no processo n.º 2555/13.0 ..., nos termos dos arts. 775.º, n.º 2, 777.º, n.º 3, e 703.º, n.º 1, do CPC e não a decisão de 30-09-2016, que considerou o crédito litigioso. Ao ter assim decidido, o tribunal emitiu expressa pronúncia sobre a questão suscitada.
IV - Sendo o título executivo constituído pelo título de transmissão do crédito, ao qual é atribuída força executiva (art. 703.º, n.º 1, al. d), do CPC), pode o executado alegar, em sede de oposição, para além dos fundamentos especificados no art. 729.º do CPC na parte em que sejam aplicáveis, quaisquer outros que possam ser invocados como defesa no processo de declaração e daí que lhe seja lícito colocar em causa quer a sua obrigação, quer o crédito do exequente.
Do mesmo modo que ao exequente desta execução incidental apenas é lícito exigir a prestação faltosa como resulta do título executivo previsto no art. 777.º, n.º 3, do CPC, também a oposição a esta execução incidental se circunscreve a esse título executivo.
Os meios de defesa que o debitor debitoris poderá invocar contra o exequente ou o adquirente do crédito são os meios de defesa pessoais que tinha contra o executado nos termos do art. 731.º do CPC (e não contra o exequente).
V - Estando a responsabilidade do terceiro devedor limitada ao valor da sua obrigação em relação ao primitivo executado, os meios de defesa de que o mesmo poderá lançar mão são apenas os que se reportem a essa sua obrigação e não à obrigação do executado perante a exequente, à qual, na realidade, é estranho, carecendo, portanto, de legitimidade para a pôr em causa.
VI - Assistindo ao terceiro devedor o direito de, em sede de oposição à execução, impugnar a existência do crédito ou deduzir exceções perentórias contra o mesmo, nos termos dos arts. 728.º e 731.º do CPC, podendo inclusive alegar quaisquer fundamentos que possam ser invocados no processo de declaração, não se vislumbra como poderia ser inconstitucional a interpretação da norma constante do art. 731.º do CPC nos termos considerados.
VII - E certo que o abuso do direito é de conhecimento oficioso, mas é também pacífico que a sua apreciação pelo tribunal pressupõe a demonstração da respetiva factualidade, i.e., de factos dos quais se extraia a conclusão de que o direito está a ser exercitado de forma abusiva nos termos previstos no art. 334.º do CC. E, in casu, tal factualidade não se vislumbra.
VIII - Não se pode, na compensação, olvidar o requisito da reciprocidade de créditos. No caso, o crédito com o qual os embargantes pretendem operar a compensação tem como credor apenas um dos executados, aqui embargantes, e como devedor o executado originário.
Não se confundido a transmissão do crédito originário para a exequente (através da adjudicação do crédito litigioso) com a cessão de créditos prevista no art. 577.º e ss. do CC, não lhe é aplicável o disposto no art. 585.º do CC, não podendo, assim, quer por esta razão, quer pela falta do requisito da reciprocidade de créditos, operar a invocada compensação nos termos do art. 847.º do CC.
IX - É pacífico que os recursos não se destinam a julgar matéria nova, visando antes a reapreciação das decisões que deles são objeto e, em concreto, a reapreciação das questões que, tendo sido oportunamente suscitadas, ali foram objeto de apreciação.
Assim, não é curial (nem juridicamente admissível) às partes invocar, em sede de recurso, questões que não tenham sido suscitadas e apreciadas pelo tribunal a quo, não sendo igualmente lícito ao tribunal ad quem delas conhecer. Pelo que qualquer questão não apreciada no acórdão recorrido, constitui questão nova que, não sendo de conhecimento oficioso, não cabe a este STJ apreciar.
X - Concluindo-se, assim, que a revista não pode senão ser negada, mantendo-se na sua integralidade o acórdão recorrido.
I
Relatório
2. O executado foi citado e não deduziu oposição.
3. Em 13/11/2014 o Agente de Execução (A.E.) notificou exequente e executado que a instância se encontrava extinta por inutilidade superveniente da lide (falta de bens penhoráveis).
4.A exequente requereu a renovação da instância porquanto, no âmbito do proc. nº 2555/13...., que correu termos na 2ª Secção Cível – Juiz 3 da instância Central de Guimarães, foram CC e Marvalu – Investimentos e Gestão Imobiliária, Lda. condenados a pagar ao executado a quantia de € 99.026,70, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, desde 04/09/2013 sobre € 95.026,70 e desde aquela data (05/03/2015) sobre € 4.000,00.
5. Em 14/09/2016 foi penhorado o referido crédito.
6. Foram efetuadas as citações e os devedores pronunciaram-se dizendo não reconhecer qualquer crédito.
7. A exequente declarou que mantinha a penhora.
8. Em 30/09/2016, foi proferido despacho que considerou o crédito litigioso e como tal será transmitido ou adjudicado (art. 775º nº 2 do C.P.C.). Deste despacho vieram os devedores interpor recurso, o qual veio a ser julgado improcedente (Apenso A).
9. Em 01/02/2017 a A.E. notificou a exequente de que lhe foi adjudicado o crédito litigioso.
10. Em 27/12/2017 a exequente cumulou execução para pagamento de quantia certa contra Marvalu – Investimentos e Gestão Imobiliária, Lda., CC, DD, referindo os factos supra referidos e acrescentado que, não obstante o trânsito em julgado do Proc. nº 2555/13/06..., os devedores e executados, não procederam ao pagamento.
Referiu que nessa data a dívida total é de € 96.783,20, valor que deu a esta execução.
11. Por despacho de 23/01/2018 foi admitida a cumulação de execuções.
12. Os executados foram citados.
13. CC, DD e Marvalu – Investimentos e Gestão Imobiliária, Lda., em 20/02/2018, deduziram embargos de executado pedindo que:
a) seja declarada a inexistência do título executivo;
b) seja declarada a inexistência do crédito exequendo reclamado nos autos originários pela exequente Optifafe, Lda. sobre o executado originário AA;
c) seja declarada a inexistência do crédito exequendo reclamado nos autos cumulados pela exequente Optifafe, Lda. sobre os executados embargantes devendo ser reconhecido aos executados o direito de ver operada a compensação desse crédito nos termos alegados.
Referem que a decisão proferida em 30/09/2016 ainda não transitou em julgado uma vez que foi interposto recurso admitido pelo tribunal da 1ª instância. Mas ainda não foi definitivamente fixado o efeito a atribuir a este recurso. Assim, inexiste título executivo (art. 704 do C.P.C.).
Alegaram, em síntese, que AA tem instaurado várias ações contra os aqui executados: nº 485/06....., no âmbito da qual foi proferido Ac. do S.T.J. a condenar CC a pagar-lhe a quantia de € 383.076,37, acrescida de juros, e condenada Marvalu, Lda. a entregar-lhe um imóvel (Quinta .....); 485/06...., providência cautelar que veio a ser julgada supervenientemente inútil; 199/12...... referente a produção antecipada de prova; e nº 2555/13.... .
A referida Quinta ..... é o único bem propriedade do executado AA pelo que, uma vez penhorado o mesmo, ficava impedido CC de cobrar o seu crédito. Assim, AA em conluio com os seus falsos credores, decidiu simular dívidas, uma das quais a objeto da execução em apenso.
Outra dívida, no valor de € 250.000,00, titulada por letra de que é portador EE, deu origem ao proc. nº 451/13.... Para dificultar a contestação da existência do crédito os intervenientes na letra tratam de a sujeitar a endosso para a retirar das relações imediatas. E EE é sócio gerente da empresa portadora da letra.
A letra dada à execução foi aceite por AA ao seu mandatário em todos os referidos processos, BB, e na mesma refere-se que a aceitação foi efetuada a título de pagamento de serviços de honorários e despesas. Mas não é crível que o primeiro, que beneficia de apoio judiciário, tenha acordado com o segundo pagar-lhe honorários de € 125.000,00. Uma vez que BB endossou a letra a uma sociedade que comercializa telemóveis, também não é crível que este tivesse para com esta uma dívida de tal valor.
Assim, inexiste o crédito exequendo da Optifafe, Lda. contra AA.
Inexiste igualmente o crédito reclamado nos autos cumulados da Optifafe, Lda. contra os aqui embargantes uma vez que operou a compensação desse crédito.
Referem que no proc. 2555/13.... os aqui executados e aí réus interpuseram recurso da decisão aí proferida e prestaram caução com vista a obter o efeito suspensivo do mesmo, caução essa que foi constituída pelo penhor do crédito que CC detém sobre AA na parte em que excede o crédito hipotecário de € 429.045,93, o que foi aceite pelo tribunal. Transitada em julgado a decisão aí proferida o aqui executado CC, por carta de 05/02/2018, dirigida a AA operou a compensação. Com efeito, em 05/02/18, a dívida dos ora executados para com AA era de € 97.703,90 e a dívida deste para com CC era de € 602.652,60 (no proc. nº 485/06.... foi AA condenado a pagar a CC a quantia de € 383.076,37, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 02/10/2006, até efectiva restituição – para garantia de € 429.045,53 CC efectuou hipoteca judicial sobre o imóvel descrito na C.R.P. de Guimarães sob o nº 353/Fermentões e inscrito na matriz urbana sob o art. 52º e na matriz rústica sob o art. 17º).
14. A exequente /embargada contestou dizendo o seguinte:
A sentença dada à execução é exequível nos termos do art. 703º nº 1 d) do C.P.C. tanto mais que ao referido recurso foi conferido efeito devolutivo.
Nesta fase e nesta execução os embargantes apenas podem tomar posição sobre a presente execução e não acerca existência ou não do crédito da exequente contra AA.
O título executivo dado à presente execução é válido e exequível (os ora embargantes não pagaram a quantia em que foram condenados no processo nº 2555/13......, este crédito foi penhorado nos autos principais tendo sido negado pelos ora embargantes). Os próprios embargantes reconhecem a existência do crédito do executado AA sobre si.
O crédito de AA sobre os executados foi penhorado em 13/07/2016. foi adjudicado à exequente em 01/02/2017, como os ora embargantes não o pagaram assiste à exequente o direito de executar e penhorar o património dos executados para cobrança coerciva da dívida. Os executados apenas concretizaram a compensação depois do crédito estar penhorado e vendido. A alegada compensação realizada no proc. nº 2555/13.... não foi admitida por decisão de 28/02/16. Ora, o momento de constituição do direito de compensação é a data em que exige judicialmente o pagamento ou em que o credor manifesta a sua vontade de exigir o pagamento do contra-crédito de que se diz titular. Mais impugna por desconhecimento a comunicação de 05/02/18.
A exequente nada deve aos embargantes pelo que não há lugar a qualquer compensação.
Por fim, a condenação no proc. 2555/93.... corresponde a uma obrigação conjunta e divisível nos termos do art. 534º do C.P.C. e da mesma resulta que apenas existia crédito do embargante CC sobre AA pelo que os demais embargantes, DD e Marvalu, Lda., não são titulares de qualquer crédito sobre AA susceptível de ser compensado.
Termina pedindo a improcedência dos embargos.
15. Segundo informação solicitada, a decisão proferida no Proc.º 2555/13...... transitou em julgado em 29/11/2017.
16. Foi dispensada a audiência prévia.
17. Por se ter entendido que o estado dos autos o permitia foi proferida sentença, em 23/04/2018, cuja parte decisória reproduzimos na íntegra:
“Pelo exposto, e na ausência de qualquer outra questão de facto e de direito, decido:
8.1.- julgar os presentes embargos improcedentes e, em consequência, determino o prosseguimento da instância executiva.
8.2.- Custas pelos embargantes.
8.3.- Registe e notifique.
8.4.- Informe o AE do teor da presente sentença.”
18. Não se conformando com a sentença, vieram CC, DD e Marvalu – Investimentos e Gestão Imobiliária, Lda. dela interpor recurso de apelação, pugnando pela revogação da sentença recorrida.
19. Contra-alegou a exequente/embargada pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
20. O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
21. Foram colhidos os vistos legais.
22. Apreciando a questão, a Relação delimitou as questões a decidir:
A) A eventual nulidade da sentença por omissão de pronúncia;
B) Apurar se ocorreu erro na apreciação da matéria de facto;
C) Conhecer da (in)existência do título executivo;
D) Apurar se é possível conhecer da alegada inexistência do crédito exequendo originário;
E) Por fim, apurar se o crédito exequendo objeto da execução cumulada se extinguiu por compensação.
23. E começou por “declarar a sentença proferida pelo tribunal a quo nula por omissão de pronúncia (art. 615º nº 1 b) do C.P.C.)”.
24. Reapreciou a matéria de facto, que passou a ter a redação constante no nosso ponto II. Dos Factos, para que se remete.
25. A Relação apreciou ainda os demais pontos.
26. Tendo considerado a apelação improcedente:
“Pelo exposto, os Juízes desta Relação julgam improcedente a apelação e consequentemente confirmam a decisão recorrida ainda que com fundamentação distinta.
Custas pelos apelantes.”
27. Inconformado, o Apelante recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça.
28. A Recorrida, Optifafe - Comércio de Telemóveis, em resposta, veio, em síntese, dizer que não tem meios financeiros para apresentar contra-alegações, que já nada tem acrescentar ao alegado em I.ª e II.ª instâncias.
29. Contudo, suscita a questão da dupla conforme, colocando em crise a aceitação da lide por este Supremo Tribunal, considerando, nos termos do n.º 3 do art.º 671 do CPC, que as decisões de I.ª e II.ª instâncias não são “essencialmente diferentes”.
30. Nas suas alegações, o Recorrente, já havia considerado caber revista normal, mas, subsidiariamente, invocou:
“Sempre caberia nos autos recurso de revista excepcional, porquanto estão em causa questões jurídicas cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
Na revista ora interposta colocam-se perante o Tribunal Superior essencialmente duas questões:
Num e noutro caso estão em causa questões jurídicas de superior relevância, desde logo porque contendem com o direito fundamental do exercício da defesa.
A solução a dar às questões obriga a uma análise profunda e abrangente da legislação, mas sobretudo obriga a que se procure uma solução que tenha em consideração a repercussão do problema jurídico e da respetiva solução na sociedade em geral.
Diz-se da sociedade em geral, porquanto não estão exclusivamente interesses de relevância particular, mas antes interesses de particular relevância social e relacionados com valores sócio-económicos, susceptíveis de afetar um grande número de pessoas e em que existe o risco de fazer perigar a eficácia do direito, designadamente no que respeita ao exercício de defesa em sede executiva.”
31. Em 23 de junho p.p., foi proferido despacho do Relator, que mandava notificarem-se as partes, nos termos e para os efeitos do art. 655, n.º 1 do CPC, anunciando a sua propensão para negar a admissibilidade da revista geral e remeter o recurso à Formação, com vista à apreciação da verificação dos requisitos da revista excecional.
32. Apreciadas as respostas, aliás doutas, de ambas as partes, cumpre ponderar e decidir.
Dos Factos
Foram dados por provados, na Relação de Guimarães, os seguintes factos:
1. A exequente OPTIFAFE intentou contra AA, a acção executiva apensa para cobrança do montante de € 127.500,00, sendo o título executivo uma letra.
2. A letra de câmbio dada à execução foi subscrita em 19/05/2011 e com a data de vencimento em 01/08/2012, no valor de € 125.000,00 (cento e vinte e cinco mil euros).
3. A letra foi endossada por BB e representa o pagamento de uma divida que este tinha para com a Exequente.
4. A letra foi aceite pelo Executado AA, na data da sua emissão.
5. Na data do vencimento não foi paga, nem o seu pagamento se presume.
6. Esta execução não foi objecto de oposição ou embargos de executado.
7. No decurso desta execução foram penhorados os créditos que o executado AA detinha sobre os ora embargantes no âmbito do processo nº 2555/13...... que, nessa data, corria os seus termos na … Secção Cível – J… da Instância Central de … .
8. Por carta datada de 21/03/2016, o A.E. notificou os ora embargantes CC, DD e MARVALU – INVESTIMENTOS E GESTÃO IMOBILIÁRIA, S.A., na qualidade de putativos devedores do ora executado AA, cujo crédito estava em discussão no processo nº 2555/13..., de que esse alegado crédito estava penhorado à ordem dos presentes autos, até perfazer o valor total de total de € 135.739,34.
9. A esta notificação do A.E. responderam os embargantes nos seguintes termos: “Os aqui intervenientes não reconhecem a existência de qualquer crédito a favor do executado, Bem como não aceitam a existência de qualquer crédito da exequente Optifafe sobre o executado. O crédito mencionado na notificação é inexistente, porquanto a mencionada acção ainda não se mostra decidida por decisão transitada em julgado. Acresce, por outro lado, que ainda que tal decisão viesse a transitar em julgado, ainda assim o crédito do executado inexistiria em virtude do interveniente CC ser titular de um crédito sobre o executado de valor em muito superior àquele.”.
10. Notificada a Exequente OPTIFAFE nos termos e efeitos do art.º 775º do CPC esta declarou que mantinha a penhora, tendo o crédito litigioso sido transmitido à exequente, conforme Título de Transmissão de 01/02/2017.
11. Conforme resulta do auto de penhora, datado de 15/09/2016 foi penhorado ao executado AA o crédito em discussão no processo nº 2555/13.... .
12. O executado AA foi notificado desse auto de penhora por carta datada de 14/09/2016.
13. Por despacho datado de 30/09/2016, ainda não transitado em julgado, foi decidido o seguinte: “Veio o alegado devedor arguir que a penhora é nula porque não existe penhora de créditos futuros. Ora, com total respeito por opinião diversa, aos presentes autos é aplicável as regras de penhora de créditos, as quais se encontram integralmente e corretamente cumpridas. A inexistência do crédito, por ainda não ter transitado em julgado a decisão, por compensação, face da exequente em manter a penhora, determina a aplicação do artº 775º, nº 2, do C. P. Civil. No que concerne à postura do alegado devedor em atacar o próprio crédito exequendo, o mesmo, com total respeito por opinião diversa, não tem enquadramento legal, pois, nesta fase e nesta execução, o alegado devedor apenas pode tomar posição sobre o crédito penhorado. Assim, indefere-se a realização de todas as diligências requeridas pelo devedor. Destarte, nos termos do artº 775º, nº 2, do C. P. Civil, considera-se o crédito litigioso e como tal será transmitido ou adjudicado.”.
14. Os ora embargantes foram condenados no âmbito do Processo nº 2555/13...., onde foi proferida sentença em 10/03/2016 no seguinte: “condeno os RR. CC, DD e Marvalu – Investimentos e gestão imobiliária, SA, a pagarem ao Autor (AA), a quantia de 99.026,70 euros, acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos, calculados às taxas legais….”.
15. Em 27/10/2017, foi proferido douto Acórdão no âmbito do Processo 2555/13.... que correu termos a … Secção Cível do Tribunal da Relação de …, no seguimento do recurso intentado pelos aí réus, que proferiu a seguinte decisão: “Pelo exposto acordam os juízes da Relação em julgar improcedente a apelação do autor e parcialmente procedente a dos réus, fixando-se o montante indemnizatório em 83.026,70 € e os juros desde a citação sobre o montante de 79.026,70 €. No resto mantêm a decisão recorrida.“ conforme certidão junta aos autos, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
16. Este Acórdão já transitou em julgado e os ora Embargantes não procederam ao depósito do crédito penhorado, conforme certidão junta aos autos, cujos dizeres se dão aqui por integralmente reproduzidos.
17. Após, a exequente OPTIFAFE, com vista ao ressarcimento do seu crédito sobre o executado originário AA, dirigiu um requerimento executivo aos autos, peticionando o pagamento do crédito que o AA detém sobre os executados na quantia total de € 96.783,20, sendo que, desse montante, € 83.026,70 são correspondentes a capital em dívida e os remanescentes € 13.756,50 peticionados a título de juros de mora vencidos até à data da interposição do requerimento executivo.
Fundamentação
A. Enquadramento da questão. Síntese factual
1. Estamos perante um Recurso de revista interposto pelos embargantes, tendo por objeto o acórdão da Relação que, julgando improcedente o recurso de apelação que havia sido por si interposto, confirmou a sentença que havia julgado os embargos improcedentes e, em consequência, determinado o prosseguimento da execução.
2. Em causa estão uns embargos de executado deduzidos por apenso a uma execução para pagamento de quantia certa.
Foi instaurada ação executiva para pagamento de quantia certa, fundada numa letra de câmbio, aceite pelo primitivo executado, sem que este tenha deduzido oposição.
Nessa execução, foi penhorado o crédito que o referido executado tinha sobre os aqui embargantes, por estes terem sido condenados, no âmbito de uma ação declarativa, a qual correu termos sob o n.º 2555/13/06...., na … Secção Cível da instância Central ……, Juiz …, a pagar-lhe a quantia de € 99.026,70, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos.
Notificados, nos termos do art. 773º do CPC, os mencionados devedores declararam que o crédito não existia, razão pela qual, tendo a exequente declarado que mantinha a penhora, o crédito passou a considerar-se litigioso, tendo-lhe sido transmitido como tal. Foi nessa sequência que a exequente cumulou execução para pagamento de quantia certa, contra aqueles devedores, alegando, além do mais, que, não obstante a decisão proferida na aludida ação ter transitado em julgado, os executados não procederam ao pagamento da quantia em que foram condenados.
3. A cumulação de execuções foi admitida e os executados foram citados, tendo deduzido os presentes embargos.
4. Alegam os embargantes que:
a) há falta de título, uma vez que a decisão judicial que serve de base à execução – que determinou a transmissão do crédito – não se mostra transitada em julgado em virtude de ter sido da mesma interposto recurso, ao qual ainda não foi fixado o efeito;
b) o crédito exequendo não existe por, na verdade, se tratar de uma dívida simulada pelo primitivo executado em conluio com os seus falsos credores, sendo o título (letra) fabricado para criar uma aparência de dívida;
c) a obrigação encontra-se extinta por compensação.
5. A exequente sustenta, por seu turno, que:
a) há título, uma vez que, tendo sido atribuído ao recurso efeito devolutivo, a decisão é imediatamente exequível;
b) o crédito existe já que os executados foram condenados a pagar ao primitivo executado a quantia reclamada por decisão já transitada em julgado;
c) e a pretendida compensação, apesar de ter sido invocada na ação na qual a dita decisão foi proferida, foi indeferida por despacho também aí proferido, ao que acresce a circunstância de a exequente nada dever aos embargantes.
6. O tribunal de 1.ª Instância, considerando que estava habilitado a conhecer, desde logo, do mérito da causa, proferiu saneador-sentença, no qual julgou os embargos improcedentes, determinando, em consequência, o prosseguimento da execução.
Para tanto, explicitou ter entendido que, face ao trânsito em julgado do acórdão que condenou os executados a pagar o crédito em causa ao primitivo executado, deixou de haver razão para se manter a sua natureza litigiosa, devendo, portanto, os embargantes depositar o valor em que foram condenados, sob pena de prosseguimento da execução nos termos peticionados. Já no que refere à invocada compensação, concluiu o tribunal que a mesma só pode ter lugar entre os mesmos sujeitos e que, nessa medida, os embargantes carecem de razão.
7. Os embargantes apelaram da sentença, de facto e de direito.
8. A Relação, não obstante ter julgado a sentença nula por omissão de pronúncia e de ter julgado parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto, confirmou, sem voto de vencido, a sentença.
Para declarar a sentença nula por omissão de pronúncia, ancorou-se a Relação no facto de o tribunal de 1.ª Instância nada ter dito sobre as questões atinentes à inexistência de título executivo e à inexistência do crédito exequendo reclamado na execução originária, tendo-se limitado a emitir pronúncia acerca da alegada inexistência do crédito reclamado nos autos cumulados (penhora de direitos e compensação).
Por seu turno, e no que tange à impugnação da matéria de facto, a Relação, julgando-a parcialmente procedente, eliminou parte de um facto (por o mesmo não decorrer do documento no qual a mesma assentou: a letra dada à execução originária) e aditou dois factos atinentes à invocada compensação.
9. Perante a factualidade dada como provada, assim reformulada, concluiu a Relação, suprindo a nulidade declarada, pela existência de título executivo por, no caso, o mesmo consistir no título de aquisição do crédito (emergente da sentença transitada em julgado no processo n.º 2555/13...) pela exequente nos termos dos arts. 775.º, n.º 2, 777.º, n.º 3, e 703.º, n.º 1, al. d), do CPC.
10. Já no que se refere ao crédito exequendo originário, considerou a Relação que do mesmo modo que só é licito ao exequente desta execução incidental exigir a prestação faltosa tal como resulta do título executivo previsto no art. 777, n.º 3, do CPC (e não a prestação devida pelo executado originário, objecto da execução principal), o objeto da oposição a esta execução incidental circunscreve-se a esse mesmo título executivo, o que significa que apenas é lícito aos embargantes impugnar a existência do crédito do primitivo executado sobre si (art. 777., n.º 4, do CPC).
11. Por último, e no que concerne à invocada compensação, entendeu a Relação que nesta execução é credora a exequente (a quem foi adjudicado, em 01-02-2017, o crédito penhorado de que era titular o executado originário) e são devedores os executados que foram condenados no âmbito do processo n.º 2555/13......, ao passo que o crédito com o qual os embargantes pretendem operar a compensação tem como credor apenas um dos executados, aqui embargantes, e como devedor o executado originário.
12. Concluiu, por isso, que as pessoas envolvidas não são reciprocamente credoras e devedoras e que o facto de o crédito que é objeto desta execução ter tido anteriormente como devedor o primitivo executado não releva, na medida em que o momento para aferir da verificação deste requisito é o da declaração da vontade de compensar e esta, quer se atenda à carta de 05-02-2018, quer se atenda à data da dedução dos embargos (20-02-2018), é posterior à aquisição do crédito pela exequente.
13. Para além disso, entendeu a Relação que, ainda que com a adjudicação do crédito litigioso à exequente se tenha verificado uma transmissão do crédito do executado originário para aquela, essa transmissão não se confunde com a cessão de créditos prevista no art. 577.º e ss. do CC, não lhe sendo, portanto, aplicável o disposto no art. 585.º do CC.
14. Por estas razões e na falta do requisito da reciprocidade de créditos, concluiu a Relação, tal como a 1.ª Instância, pela impossibilidade de operar a invocada compensação nos termos do art. 847 do CC, julgando, assim, improcedente a apelação.
B. Admissibilidade do recurso
1. Continuando inconformados com o decidido pela Relação, interpuseram os embargantes recurso de revista normal e, subsidiariamente, excecional para este Supremo Tribunal de Justiça, pedindo, a final, que o acórdão da Relação seja revogado.
2. Invocaram, com vista a justificar a admissibilidade do recurso de revista normal, que, por força da nulidade da sentença, a Relação proferiu decisão em 1.º grau sobre as questões da inexistência de título executivo e da inexistência do crédito exequendo, sendo que quanto à extinção da obrigação por meio de compensação, apesar de ter confirmado a decisão de 1.ª instância, a Relação fez uso de fundamentação essencialmente diferente.
3. Para o caso de assim não se entender, sustentaram que sempre será admissível a revista excecional por estarem em causa questões cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.
4. Configurando-se a possibilidade de o recurso de revista normal não ser admitido em face da equacionada verificação da dupla conforme, foram as partes notificadas para, querendo, se pronunciarem, o que as mesmas fizeram, como se disse já.
5. Numa melhor ponderação, considera-se que o recurso será de acolher, na sua integralidade. Porquanto:
a) Uma vez que o Tribunal da Relação declarou a nulidade da sentença da 1.ª Instância por omissão de pronúncia, acabaria por conhecer da questão ex novo, em 1.º grau (a nulidade apagou a primeira decisão), afastando, no caso, a possibilidade de existência de dupla conformidade.
Aliás, tem sido esta a posição do STJ em casos similares (quer no que se refere às hipóteses de não reapreciação da matéria de facto decididas apenas pelo Tribunal na Relação e suscitadas em sede de revista, quer no que se refere a questões de direito apreciadas pela primeira vez em 2.ª instância):
I - Ao instituto da dupla conforme – que determina a irrecorribilidade para o STJ das decisões da Relação que confirmem por unanimidade a decisão recorrida – subjaz a ideia de que a concordância de duas instâncias é factor indiciador do acerto da decisão.
II - Quando a Relação não tenha chegado a reapreciar a matéria de facto, não obstante a sua impugnação, a confirmação da sentença da 1.ª instância não ganha relevância jurídica para permitir a aplicação da regra da irrecorribilidade do acórdão daquele tribunal com base em dupla conforme.
(…).
(10-12-2015 - Revista n.º 1497/08.6TVLSB.S1 - 2.ª Secção. Relator: Conselheiro Álvaro Rodrigues).
Não existe dupla conformidade, permitindo-se o conhecimento parcial do recurso de revista normal (art. 671, n.º 1 do CPC), quando o acórdão da Relação, pela primeira vez, aprecia a questão suscitada pelos recorrentes de constituição de uma servidão legal de passagem em benefício do seu prédio, que ficaria encravado, e de preterição de litisconsórcio necessário.
(10-05-2016 - Revista n.º 376/12.7TBABT.E1.S1- 6.ª Secção. Relator: Conselheiro Júlio Gomes).
I - Tendo o acórdão da Relação conhecido de «questão nova», relativamente à qual a sentença se não pronunciou, inexistindo, obviamente, por manifesta impossibilidade material, a hipótese de «fundamentação essencialmente diferente» entre as duas decisões em confronto, tal abre caminho a que a parte respetiva, servindo-se desse pretexto, venha recolocar a questão, em recurso de revista que, assim, será admissível. (…)
(22-11-2016 - Revista n.º 74/11.9TBSTS.P1.S1 - 1.ª Secção. Relator: Conselheiro Helder Roque).
I - A decisão da Relação de não conhecimento da impugnação da matéria de facto forma-se ex novo na própria Relação, não tendo qualquer paralelo, afinidade ou contiguidade com a decisão produzida na 1.ª instância. Nesta hipótese, nunca se pode formar, por natureza, uma situação de dupla conformidade decisória.
II - Isto, porém, só vale relativamente a essa decisão. Não se pode aproveitar a decisão para abrir o recurso a outras matérias em que se regista uma dupla conformidade decisória.
(…)
(18-01-2018 - Revista n.º 668/15.3T8FAR.E1.S2 - 6.ª Secção. Relator: Conselheiro José Raínho - http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d78206b576b1be5180258219005c3ba6?OpenDocument).
I - Em caso de rejeição do recurso em matéria de facto estamos perante uma decisão criada ex novo no próprio tribunal da Relação, sem qualquer paralelo, afinidade ou contiguidade com a decisão produzida na 1.ª instância, pelo que nunca se poderá formar, por natureza, uma dupla conformidade decisória. E assim, verificando-se os demais requisitos legais, é admissível a revista.
(…)
(24-04-2018 - Revista n.º 140/11.0TBCVD.E1.S1 - 6.ª Secção. Relator: Conselheiro José Raínho).
I - Não existe dupla conformidade de decisões, isto é, duas apreciações sucessivas da mesma questão de direito, se a questão da não reapreciação da matéria de facto decidida apenas pelo tribunal da Relação e suscitada no recurso de revista, constitui tema novo. (…)
(22-05-2018 - Revista n.º 4601/13.9TBBRG.G1.S2 - 1.ª Secção. Relator: Conselheira Fátima Gomes).
I – Apesar da ocorrência de sobreposição quanto aos respectivos veredictos finais, tendo sido posta uma questão que a Relação pela primeira vez conheceu – constituindo, nessa medida uma questão nova, também designada “ius novarum; nova” – não ocorre a dupla conforme impeditiva do accionamento do recurso ordinário de revista.
II - Tendo a problemática traduzida nessa “questão nova” surgido apenas no acórdão da Relação, o recurso de revista perspectiva-se como a única possibilidade do recorrente conseguir a infirmação, por si pretendida, do que no arresto foi decidido a esse respeito.
(24-05-2018. Revista n.º 3432/13.0TBBCL-B.G1-A.S1 - 7.ª Secção. Relator: Conselheiro Helder Almeida).
I - Constando do acórdão recorrido a análise de uma questão que só em sede de recurso foi apreciada, não pode dizer-se que, quanto a ela, hajam sido proferidas duas decisões conformes, pelo que se não verifica a dupla conformidade impeditiva de recurso de revista.(…)
(12-07-2018. Revista n.º 2069/14.1T8PRT.P1.S1 - 2.ª Secção. Relatora: Conselheira Rosa Ribeiro Coelho
I - No caso de a Relação rejeitar o recurso em matéria de facto estamos perante uma decisão criada ex novo no próprio tribunal da Relação, sem qualquer paralelo, afinidade ou contiguidade com a decisão produzida na 1.ª instância, pelo que nunca se poderá formar, por natureza, uma dupla conformidade decisória.
II - Nesta situação não há espaço jurídico-processual para a revista excecional, que pressupõe uma dupla conformidade decisória das instâncias.
(…)
(08-01-2019. Revista n.º 1601/16.0T8STS-A-P1.S2 - 6.ª Secção. Relator: Conselheiro José Raínho).
b) O mesmo se diga (com idêntica fundamentação), sobre a existência do crédito exequendo.
c) No que tange à extinção da obrigação por meio da compensação, embora a conclusão seja idêntica entre as duas Instâncias, globalmente se considerando uma interpretação válida da situação a que é dada, nos seguintes termos, pelos requerentes, aliás de forma algo enfática (a qual, obviamente, não interfere no juízo que ora se faz):
“Relativamente à terceira questão (c) EXTINÇÃO DA OBRIGAÇÃO POR MEIO DA COMPENSAÇÃO) a decisão proferida pelo Tribunal da Relação é essencialmente diferente da decisão proferida pelo Tribunal da 1ª Instância e a revista normal é legalmente admissível.
Enquanto que este decidiu que a compensação só pode ter lugar quanto a créditos existentes entre os mesmos sujeitos,
Aquele decidiu que com a adjudicação do crédito litigioso à exequente, ocorreu uma transmissão de crédito de AA para aquela, que não pode ser qualificada como uma cessão de créditos prevista nos art. 577º e ss do C.C., pelo que sendo uma forma de aquisição distinta não é aplicável ao caso em apreço o disposto no art. 585º do C.P.C..
Lida e relida a sentença do Tribunal da 1ª Instância nela nenhuma, absolutamente nenhuma, alusão se faz à transmissão do crédito por via da adjudicação, à natureza dessa transmissão e os meios de defesa que são assegurados ao devedor!!!!
Pelo contrário, o Tribunal da Relação, de forma absolutamente inovatória, sustenta a decisão exactamente na apreciação jurídica que fez da transmissão do crédito por via da adjudicação, da natureza dessa transmissão e dos meios de defesa que são assegurados ao devedor !!!!
Resulta, assim, à saciedade que a questão jurídica foi decidida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, de forma essencialmente diversa e com fundamento em normas, interpretações normativas, institutos jurídicos e argumentos jurídicos totalmente diversos, autónomos e inovatórios em relação aos que haviam justificado a decisão proferida pela 1ª Instância!!!”
Ou seja: a fundamentação é essencialmente diversa.
E assim, como este Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado, repetidamente, só pode considerar-se existente uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radical ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1.ª instância (cf. neste sentido, a título exemplificativo, Acórdãos do STJ de 28-04-2014, Revista n.º 473/10.3TBVRL.P1-A.S1 – 2.ª Secção, Relator: Conselheiro Abrantes Geraldes; de 18-09-2014, Revista n.º 630/11.5TBCBR.C1.S1 – 7.ª Secção, Relator: Conselheiro Silva Gonçalves; de 19-02-2015, revista n.º 302913/11.6YIPRT.E1.S – 7.ª Secção, Relator: Conselheiro Lopes do Rego; de 27-04-2017, Revista n.º 273/14.1TBSCR.L1.S1 – 2.ª Secção, Relator: Conselheiro Tomé Gomes; de 29-06-2017, Revista n.º 398/12.8TVLSB.L1.S1 – 7.ª Secção, Relator: Conselheiro António Joaquim Piçarra; de 30-11-2017, Revista n.º 579/11.1TBVCD-E.P1.S1 – 7.ª Secção, Relator: Conselheiro António Joaquim Piçarra; de 15-02-2018, Revista n.º 28/16.9T8MGD.G1.S2 – 2.ª Secção, Relatora: Conselheira Rosa Ribeiro Coelho; de 12-04-2018, Revista n.º 1563/11.0TVLSB.L1.S2-A – 7.ª Secção, Relator: Conselheiro Helder Almeida; todos disponíveis em www.dgsi.pt, sublinhados nossos).
C. Thema decidendum: enunciação e desenvolvimento
1. Os temas essenciais, que constituem objeto do recurso, serão, por conseguinte, os seguintes, constituindo o thema decidendum:
a) Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia;
b) Inexistência de título executivo;
c) Inexistência do crédito exequendo originário;
d) Extinção da obrigação por meio de compensação.
2. No que concerne à 1.ª questão – nulidade do acórdão por omissão de pronúncia – sustentam os recorrentes que, apesar de terem alegado em sede de apelação que a decisão judicial de 30-09-2016, que ordenou a transmissão/adjudicação do crédito, não se mostrava transitada em julgado no momento em que a exequente cumulou, contra si, a presente ação executiva, não existindo, portanto, título executivo, a Relação teria omitido pronúncia sobre essa questão, o que conduziria à nulidade do acórdão nos termos do art. 615, n.º 1, al. d), do CPC.
3. Por acórdão de 16-05-2019, a Relação pronunciou-se no sentido de não se verificar a invocada nulidade porque, ao ter considerado que o título executivo desta execução cumulada é a decisão de 01-02-2017, que adjudicou o crédito litigioso à exequente e que transitou em julgado, ficou prejudicado o conhecimento das consequências da falta de trânsito em julgado daquela outra decisão de 30-09-2016, por esta não consubstanciar o título desta execução incidental. Não existindo, por isso, a alegada omissão de pronúncia.
Na verdade, a omissão de pronúncia, geradora de nulidade da decisão, a que alude o art. 615, n.º 1, al. d), do CPC, está em correspondência direta com o dever imposto ao juiz no sentido de o mesmo ter de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outra (artigo 608, n.º 2, do CPC).
Tal não significa, porém, que o juiz se tenha de ocupar de todas as considerações feitas pelas partes, já que são coisas diferentes deixar de conhecer de questão de que devia conhecer; e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento, ou razão produzida nos autos.
Em consequência, a nulidade por omissão de pronúncia apenas se verificará nos casos em que a omissão de conhecimento, relativamente a cada questão, é absoluta, e já não quando seja meramente deficiente ou quando se tenham descurado as razões e argumentos invocados pelas partes, e nem quando a apreciação das questões fundamentais à justa decisão da lide tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras.
Vejam-se, neste sentido, a título exemplificativo e no que ora releva, os arestos do Supremo Tribunal de Justiça de 07-04-2016 (proc. 6500/07.4TBBRG.G2.S3, 7.ª Secção, Lopes do Rego, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/276bfdbe55cf43e980257f920037af98?OpenDocument), de 31-05-2016, (proc. 163/06.1TBVRM.G1.S1, 1.ª Secção, Martins de Sousa, com sumário disponível em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/civel/Civel2016.pdf), de 15-02-2017 (proc. 3254/13.9TBVCT.G1.S1, 7.ª Secção, António Joaquim Piçarra, com sumário disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/06/civel2017.pdf) e de 22-01-2019 (proc. 432/15.0T8PTM.E1.S1, 7.ª Secção, Olindo Geraldes, com sumário disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2019/06/sum_acor_civel_janeiro_2019.pdf).
Consequentemente, à luz destas considerações, é a todos os títulos impossível, no caso, divisar razão nos recorrentes.
4. Com efeito, resulta do acórdão recorrido que a Relação entendeu que o título executivo que serve de base à presente execução – que considerou ser um título judicial impróprio (já que, apesar de formado no âmbito de um processo, não consiste em decisão judicial que ordenou o cumprimento de uma obrigação) – é o título de aquisição do crédito pela exequente, emergente da sentença, transitada em julgado em 27-10-2017, no processo n.º 2555/13..., nos termos dos arts. 775, n.º 2, 777, n.º 3, e 703, n.º 1, do CPC e não a decisão de 30-09-2016, que considerou o crédito litigioso.
Ora, ao ter assim decidido, o Tribunal emitiu expressa pronúncia sobre a questão suscitada, que era a de saber se havia ou não título que servisse de base à execução, sendo certo que ao ter respondido afirmativamente a esta questão nos termos acima enunciados, prejudicada ficou, naturalmente, a questão de saber quais as consequências de, à data da cumulação de execuções, ainda não ter transitado em julgado aquela outra decisão de 30-09-2016, invocada pelos recorrentes como sendo o suposto título executivo, mas que a Relação assim não considerou. Já a questão de saber se essa decisão foi acertada, essa é questão que não integra o vício da nulidade por omissão de pronúncia, podendo, quando muito, reconduzir-se a erro de julgamento.
Tudo para concluir que, como parece óbvio, nos termos explicitados, e independentemente do acerto ou não da dita decisão, a conclusão não pode deixar de ser no sentido de que a Relação não omitiu pronúncia sobre questão de que devia conhecer, improcedendo, em consequência, a invocada nulidade assacada ao acórdão impugnado.
5. No que concerne à 2.ª questão – inexistência de título executivo - e tal como já se aflorou, concluiu a Relação (suprindo a nulidade de que padecia, neste particular, a sentença) pela existência de título executivo por, no caso, o mesmo consistir no título de aquisição do crédito (emergente da sentença transitada em julgado no processo n.º 2555/13...) pela exequente nos termos dos arts. 775, n.º 2, 777, n.º 3, e 703, n.º 1, al. d), do CPC.
Por seu turno, os recorrentes, apesar de declararem que aceitam que, tal como decidiu a Relação, o título executivo é a aquisição do crédito nos termos do art. 777, n.º 3, do CPC, ainda que litigioso, insistem em afirmar que, à data em que a exequente instaurou a execução, não existia título, já que, tendo sido interposto recurso da decisão judicial de transmissão/adjudicação do crédito que serve de título à execução e que data de 30-09-2016, o qual apenas veio a ser conhecido por acórdão de 05-04-2018, quando, em 27-12-2017, a exequente requereu a cumulação de execuções, aquela decisão ainda não se mostrava transitada em julgado.
Porém, também aqui se afigura que lhes não assiste razão.
6. Porquanto: dispõe o art. 773, n.º 1, do CPC que A penhora de créditos consiste na notificação ao devedor, feita com as formalidades da citação pessoal e sujeita ao regime desta, de que o crédito fica à ordem do agente de execução; acrescentando o n.º 2 do mesmo normativo que Cumpre ao devedor declarar se o crédito existe, quais as garantias que o acompanham, em que data se vence e quaisquer outras circunstâncias que possam interessar à execução.
Conforme se afirmou no acórdão do STJ de 22-02-2018 (Revista n.º 329/14.0TBPSR-E.E1.S1 – 2.ª Secção, Conselheira Rosa Ribeiro Coelho - http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/51c22f82005c3f648025823c005d9ce7?OpenDocument.), perante a notificação de penhora, feita nos termos do anterior art. 856º, nº 1, equivalente ao art. 773º, nº 1, do atual CPC, o terceiro pode assumir uma das seguintes atitudes:
a. reconhecer a existência do crédito, tacitamente – nada dizendo – ou de modo expresso – art. 856º, nº 3, equivalente ao art. 773º, nº 4 do atual CPC e 856º, nº 2, equivalente ao art. 773º, nº 2 do atual CPC, respetivamente;
b. reconhecer a existência do crédito, mas declarar que a sua exigibilidade depende de prestação do executado, ou seja, invocar a exceção de não cumprimento de obrigação recíproca – art. 859º, nº 1, equivalente ao atual art. 776º, nº 1 do CPC;
c. impugnar a existência do crédito – art. 858º, nº 1, equivalente ao atual art. 775º, nº 1 do CPC.
d. fazer qualquer outra declaração sobre o crédito penhorado que interesse à execução.
Na hipótese aludida em c., mantendo o exequente a penhora, o crédito passa a ser tido como litigioso – art. 858º, nº 2, idêntico ao atual art. 775º, nº 2 do CPC.
Prevê-se, pois, neste último preceito legal que se o exequente mantiver a penhora, apesar de a existência do crédito ter sido contestada, o crédito passa a considerar-se litigioso e como tal será adjudicado ou transmitido (art. 775, n.º 2, do CC).
No caso vertente, os recorrentes/devedores impugnaram a existência do crédito penhorado e daí que, tendo a exequente mantido a penhora, tenha sido proferido despacho (em 30-09-2016), no qual, além do mais, se declarou que o crédito passaria a considerar-se litigioso nos termos do supra transcrito normativo e que como tal seria adjudicado ou transmitido; mas nada aí se decidiu quanto à sua efetiva adjudicação ou transmissão.
Ora, os recorrentes partem do pressuposto – que não se pode considera válido – de que o título dado à execução é essa decisão de 30-09-2016, que apelidam de decisão de transmissão/adjudicação do crédito, quando, na verdade, nessa decisão, o tribunal não transmitiu, nem adjudicou o citado crédito à exequente, nem o declarou transmitido para qualquer outro adquirente, antes se tendo limitado a emitir pronúncia quanto à então invocada nulidade da penhora “de créditos futuros”, que indeferiu, e a extrair as consequências legais do facto de os recorrentes/devedores, quando notificados da dita penhora, terem negado a existência do crédito e de a exequente a ter declarado manter, tudo nos termos do art. 775, n.º 2, do CPC (vide facto provado sob o ponto 13.).
Já a adjudicação do crédito apenas ocorreu por ato do agente de execução, sendo que é a este que pertence essa competência (art. 799.º, n.º 4, do CPC) – conforme, de resto, atesta o título de transmissão de 01-02-2017, a que se alude no ponto 10. da factualidade provada.
Com efeito, e tal como se refere no acórdão recorrido, e louvando-nos na doutrina (Rui Pinto, A Acção Executiva, Lx., AAFDL, 2018, pp. 588 e 589), nada impede que o adquirente do crédito litigioso seja o próprio exequente, situação essa em que o título de aquisição de crédito constituirá título executivo, havendo presentes os termos conjugados dos arts. 775, 777, n.º 3, in fine, 827, n.º 1, e 828, todos do CPC.
Trata-se, pois, de um título executivo judicial impróprio – já que, apesar de se formar num processo, não consiste em decisão judicial que ordene o cumprimento duma obrigação – que permite ao adquirente (no caso, a exequente), exigir diretamente a prestação do debitor debitoris. Havendo-se ponderado, nesta senda, António Santos Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Coimbra, Almedina, 2020, p. 162 e Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 13.ª edição, Coimbra, Almedina, p. 255.
Ora, in casu, é precisamente esse título de aquisição do crédito, que se formou no processo (execução originária) que constitui o título que serve de base à presente execução (que é incidental e instrumental daquela) e não aquele outro despacho de 30-09-2016, que os recorrentes insistem em afirmar que não estava transitado em julgado à data da instauração da execução – facto que, naturalmente, não se estando perante o título executivo da ação, não releva para o caso.
7. Assim se devendo concluir que, tendo por certa a existência de título executivo, os argumentos que, em sentido contrário, são invocados pelos recorrentes têm, necessariamente, de não proceder.
8. No concernente à 3.ª questão – inexistência do crédito exequendo originário – considerou a Relação que, do mesmo modo que só é licito ao exequente desta execução incidental exigir a prestação faltosa tal como resulta do título executivo previsto no art. 777, n.º 3, do CPC (e não a prestação devida pelo executado originário, objeto da execução principal), o objeto da oposição a esta execução incidental circunscreve-se a esse mesmo título executivo, o que significa que apenas é lícito aos embargantes impugnar a existência do crédito do primitivo executado sobre si (art. 777, n.º 4, do CPC).
Já os recorrentes sustentam que se o devedor não está impedido de deduzir embargos nos casos em que não tenha aceite o crédito, ou em que se tenha remetido ao silêncio (art. 773, n.ºs 2 e 4, do CPC). Então, a fortiori, nos casos em que tenha negado a existência do crédito, é inequívoco o seu direito de colocar em causa a dívida, seja por via da contestação da ação que seja intentada para seu reconhecimento, seja por via dos embargos de executado na execução que lhe seja movida para cobrança do crédito (art. 777, n.º 4, do CPC).
Pelo que, no caso, sendo o título executivo constituído pelo título de transmissão do crédito, ao qual é atribuída força executiva (art. 703, n.º 1, al. d), do CPC), pode o executado alegar, em sede de oposição, para além dos fundamentos especificados no art. 729 do CPC na parte em que sejam aplicáveis, quaisquer outros que possa ser invocados como defesa no processo de declaração e daí que lhe seja lícito colocar em causa quer a sua obrigação, quer o crédito do exequente.
Mais invocam que qualquer interpretação que se faça do art. 731 do CPC no sentido de o executado, em execução cumulada na sequência da adjudicação do crédito penhorado, não poder colocar em causa, por via de embargos, o crédito exequendo originário, é inconstitucional por violação do acesso ao direito, à defesa dos seus direitos legalmente protegidos, do direito a um processo equitativo e do direito a obter a tutela efetiva nos termos do art. 20, n.ºs 1, 4 e 5, da CRP, para além de conduzir ao absurdo jurídico de os embargantes, perante evidente fraude e simulação processual, bem como abuso de direito e fraude à lei, se verem obrigados a cumprir uma obrigação para pagamento de um crédito inexistente.
Crê-se, porém, mais uma vez, que não lhes assiste razão.
9. Com efeito, e tal como se refere, de forma acertada, no acórdão recorrido, do mesmo modo que ao exequente desta execução incidental apenas é lícito exigir a prestação faltosa como resulta do título executivo previsto no art. 777, n.º 3, do CPC (o mesmo é dizer, o crédito penhorado que o executado originário tinha sobre os devedores e não o crédito que o exequente tinha sobre aquele executado), também a oposição a esta execução incidental se circunscreve a esse título executivo.
Está-se perante execução contra o terceiro devedor que é incidental e instrumental relativamente à execução originária, uma vez que está dependente das vicissitudes que naquela aconteçam. E daí que a extinção, total ou parcial, da execução principal possa alterar o seu objeto ou até mesmo fazê-la perder a utilidade.
Todavia, ainda que se trate de execução incidental e instrumental em relação à execução originária, certo é que com esta não se confunde. O que resulta, desde logo, do facto de o título que lhe serve de base se reportar à prestação do terceiro perante o próprio executado e não à prestação deste perante o exequente.
Em consequência, os meios de defesa que o debitor debitoris poderá invocar contra o exequente ou o adquirente do crédito são os meios de defesa pessoais que tinha contra o executado nos termos do art. 731 do CPC (e não, sublinhe-se, contra o exequente, até porque o terceiro devedor é estranho em relação ao crédito exequendo originário que, de resto, não está sequer em discussão na execução incidental).
É, com efeito, este o entendimento que tem sido seguido pela doutrina.
Conforme se colhe, neste particular, da obra de Rui Pinto (op. cit., p. 587), a execução do crédito do executado contra o seu devedor é tradicionalmente vista como formalmente autónoma, mas o artigo 777º nº 3 vem expressamente admitir – opcionalmente, diríamos – que ela corra ‘nos próprios autos da execução’. Obviamente, não se confunde com a própria execução pendente da sua própria dívida, sendo diversas tanto a dívida, como as partes. (sublinhado nosso). Veja-se ainda, no mesmo sentido, António Santos Abrantes Geraldes et al., op. cit., p. 162.
10. Em conclusão: estando a responsabilidade do terceiro devedor limitada ao valor da sua obrigação em relação ao primitivo executado, os meios de defesa de que o mesmo poderá lançar mão são apenas os que se reportem a essa sua obrigação e não à obrigação do executado perante a exequente, à qual, na realidade, é estranho, carecendo, portanto, de legitimidade para a pôr em causa.
Ora, assistindo ao terceiro devedor o direito de, em sede de oposição à execução, impugnar a existência do crédito ou deduzir exceções perentórias contra o mesmo, nos termos dos arts. 728 e 731 do CPC, podendo inclusive alegar – por se estar perante um título judicial impróprio – quaisquer fundamentos que possam ser invocados no processo de declaração, não se vislumbra, como bem refere o Tribunal da Relação, em que medida será inconstitucional a interpretação da norma constante do art. 731 do CPC nos termos supra expostos.
A propósito do art. 20 da CRP escrevem, Gomes Canotilho e Vital Moreira:
Há-de assinalar-se como parte daquele conteúdo conceitual "a proibição de indefesa", "que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito a violação do direito à tutela efectiva, sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não observância das normas processuais ou de princípios gerais do processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses. (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição, 1993, p. 163 e 164).
No caso vertente, nada disso acontece, posto que a norma que os recorrentes invocam – art. 731 de CPC – enumera precisamente quais os fundamentos de oposição de que o executado pode lançar mão na execução que lhe seja movida, assegurando-lhe desse forma a possibilidade de se defender e de carrear para os autos os factos que entenda com vista a demonstrar a inexistência do crédito.
Com efeito, ao permitir-se que o terceiro devedor deduza, contra o exequente ou contra o adquirente do crédito, os meios de defesa de que dispunha contra o executado (nos termos dos arts. 731 e 777, n.ºs 3 e 4, do CPC), fica garantido o respeito pelos princípios constitucionais que os recorrentes invocam e que, assim sendo, em nada são ofendidos, nem sequer superficialmente.
O que os recorrentes não podem pretender é que essa tutela se estenda a um crédito ao qual são estranhos e que não lhes está sequer a ser exigido, posto que, conforme se referiu, a sua responsabilidade, enquanto terceiros devedores, está limitada ao valor da sua obrigação em relação ao primitivo executado.
11. Por último, e no que se refere ao invocado abuso do direito, embora seja certo que este é de conhecimento oficioso, é também pacífico que a sua apreciação pelo tribunal pressupõe a demonstração da respetiva factualidade, i.e., de factos dos quais se extraia a conclusão de que o direito está a ser exercitado de forma abusiva nos termos previstos no art. 334.º do CC. Neste sentido: acórdãos do STJ de 04-02-2010, Revista n.º 2620/06.0TJPRT.S1 - 7.ª Secção, Relator: Conselheiro Custódio Montes; de 07-12-2010, Revista n.º 631/2002.C1.S1 - 6.ª Secção, Relator: Conselheiro João Camilo; e de 12-03-2015, Revista n.º 427/13.8TBMCN.P1.S1 - 7.ª Secção, Relatora: Conselheira Fernanda Isabel Pereira.
E a verdade é que, in casu, tal factualidade efetivamente não se vislumbra.
A revista vem, por isso, alicerçada, nesta parte, em factos que não se mostram provados, quando, na realidade, a matéria de facto está definitivamente assente e a este Supremo Tribunal de Justiça só cabe aplicar o regime jurídico que julgue adequado, estando-lhe vedado conhecer da matéria de facto (art. 682, n.º 1, do CPC).
Por estas razões, na falta da pertinente factualidade demonstrativa do invocado abuso de direito e estando a solução a que a Relação chegou, no acórdão recorrido – no sentido de não assistir aos recorrentes/devedores o direito de porem em causa o crédito exequendo originário - alicerçada nos normativos aplicáveis ao caso (solução essa que, de resto, é consentânea com a doutrina), a revista revela-se insuscetível de ganho de causa.
12. No que refere à 4.ª questão – extinção da obrigação por compensação – entendeu a Relação que, sendo credora nesta execução a exequente (a quem foi adjudicado, em 01-02-2017, o crédito penhorado de que era titular o executado originário) e sendo devedores os executados que foram condenados no âmbito do processo n.º 2555/13..., falta o requisito da reciprocidade de créditos pressuposto pela compensação, já que o crédito com o qual os embargantes pretendem operar a compensação, tem como credor apenas um dos executados, aqui embargantes, e como devedor o executado originário, sendo que o momento que releva para aferir da verificação deste requisito é o da declaração da vontade de compensar e esta, quer se atenda à carta de 05-02-2018, quer se atenda à data (20-02-2018) da dedução dos embargos, é ulterior à aquisição do crédito pela exequente.
Para além disso, considerou a Relação que, não se confundido a transmissão do crédito originário para a exequente (através da adjudicação do crédito litigioso) com a cessão de créditos prevista no art. 577 e ss. do CC, não lhe é aplicável o disposto no art. 585 do CC, não podendo, assim, quer por esta razão, quer pela falta do requisito da reciprocidade de créditos, operar a invocada compensação nos termos do art. 847 do CC.
Ou seja, ainda que se tenha reconhecido no acórdão recorrido que, em tese, a litigiosidade do crédito exequendo não impediria a invocação contra ele da compensação, desde que verificados os requisitos desta forma de extinção das obrigações, concluiu-se que, no caso, faltando o referido requisito da reciprocidade, a compensação não pode operar.
Contudo, os recorrentes insistem que o crédito se encontra extinto por compensação e que, enquanto devedores, lhes assiste o direito de oporem ao adquirente/adjudicatário do crédito todos os meios de defesa que lhes seria lícito invocar contra o transmitente, designadamente a compensação que, conforme resulta do art. 585 do CC, procede contra o cessionário. Pelo que, sendo credores do executado originário e sendo devedores perante esse, fizeram operar validamente a compensação, dando por extinta a sua obrigação, por comunicação à contraparte.
13. Ponderemos então a situação. Dispõe o art. 847, n.º 1, do CC que
“Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor, verificados os seguintes requisitos: a) Ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele exceção, perentória ou dilatória, de direito material; b) Terem as duas obrigações por objeto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade.”
Acrescenta, por sua vez, o art. 848, n.º 1, do mesmo diploma legal que “A compensação se efectiva mediante declaração de uma das partes à outra.”
Conforme ensinam, neste particular, Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, vol. II, 4.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, p. 130), “trata-se de uma forma de extinção das obrigações em que, no lugar do cumprimento, como sub-rogado dele, o devedor opõe o crédito que tem sobre o credor. Ao mesmo tempo que se exonera da sua dívida, cobrando-se do seu crédito, o compensante realiza o seu crédito libertando-se do seu débito, por uma espécie de acção directa.”
Acresce que, conforme resulta do preceituado no supra transcrito art. 848 do CC, a compensação deixou de se verificar ipso jure como sucedia no regime pretérito (Cfr. art. 768 do Código “do Visconde de Seabra”, de 1867), para passar a ficar dependente da declaração de vontade de uma das partes à outra, sendo que, estando em causa uma declaração recetícia (com um destinatário certo), a mesma só se torna eficaz quando chegue ao poder do destinatário ou seja deste conhecida (art. 224 do CC).
No caso vertente, invocam os recorrentes que, tendo exercido a compensação do crédito que detêm sobre o primitivo executado e assistindo-lhes o direito de oporem esse meio de defesa à exequente, adquirente do crédito (que, por sua vez, o executado tinha sobre eles), a obrigação se encontra extinta.
E dúvidas não restam que, efetivamente, assistia aos recorrentes, na qualidade de devedores do primitivo executado, o direito de, em sede de oposição à execução, no âmbito da ação executiva que lhes foi movida ao abrigo do disposto no art. 777, n.º 3, do CPC, invocarem os meios de defesa pessoais que tinham contra aquele executado, designadamente deduzindo exceções perentórias contra o crédito que é objeto de cobrança coerciva. Porém, os meios de defesa que podem ser deduzidos contra a pretensão executiva são apenas os já existentes à data da penhora e não outros ulteriores. Neste sentido, veja-se António Santos Abrantes Geraldes et al., op. cit., p. 162 e 163.
É que, consumando-se a penhora do crédito com a notificação do terceiro, devedor, a partir desse momento ficam vedados (por serem inoponíveis à execução) os atos de extinção do crédito, como a compensação (sublinhamos), a novação ou a remissão (cf. António Santos Abrantes Geraldes e outros, ob. cit., p. 157). O mesmo é dizer, citando Rui Pinto, que
“Consumada a notificação, o terceiro devedor não poderá, com eficácia, concluir atos de extinção do crédito, como decorre do artigo 820º CC. Já as declarações a que se referem os nºs 2 e 3 do artigo 773º são atos (eventuais) do notificado e já não integram a efetivação da penhora, sendo-lhe posteriores. (…) A ineficácia relativa, imposta pelo artigo 820º CC, dita que apenas podem ser opostos com eficácia processual factos extintivos anteriores à penhora (op. cit., p. 588), valendo idêntica regra para os factos modificativos ou impeditivos. No mesmo sentido: Fernando Amâncio Ferreira, op. cit., p. 255.
É, pois, esta a solução que resulta expressamente da lei, dispondo o art. 820 do CC que
“Sendo penhorado algum crédito do devedor, a extinção dele por causa dependente da vontade do executado ou do seu devedor, verificada depois da penhora, é igualmente ineficaz em relação ao exequente.”
Ora, considerando que a compensação, conforme acima se deixou dito, não opera ipso jure, mas antes por declaração de uma das partes à outra, é indubitável que se trata de uma forma de extinção da obrigação que depende da vontade do executado ou do devedor e que, por isso, se enquadra na previsão do citado normativo. Indo neste sentido neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., p. 93.
E compreende-se que assim seja, uma vez que, caso se permitisse a extinção do crédito por causa dependente da vontade do executado ou do seu devedor em data ulterior à penhora, o exequente correria o risco de, por essa via, poder ver frustrado o seu direito de crédito.
14. Força é que, neste momento, se recordem factos provados. No caso sub judice, provou-se com relevância para a apreciação desta questão que:
- Por carta de 21-03-2016, foram os devedores, aqui recorrentes e executados, notificados de que o crédito que o executado detinha sobre si, por força da condenação proferida no processo n.º 2555/13..., se encontrava penhorado à ordem dos autos (cf. ponto 8. dos factos provados);
- Tendo os devedores negado a existência do crédito e a exequente declarado manter a penhora, foi o mesmo considerado litigioso e, como tal, adjudicado àquela, conforme atesta o título de transmissão de 01-02-2017 (cf. ponto 10. dos factos provados);
- Os recorrentes requereram a extinção, por compensação, do crédito do primitivo executado sobre o recorrente CC por requerimento que apresentaram, em 06-02-2018, no processo n.º 2555/13... (cf. ponto 18. dos factos provados);
- Por carta registada, datada de 05-02-2018, dirigida ao primitivo executado, AA, o recorrente CC comunicou àquele que considerava extinta a sua dívida emergente da decisão proferida no processo n.º 2555/13.... por compensação com o seu crédito emergente da decisão proferida no processo n.º 485/06..., carta essa que os CTT consignaram ter sido entregue (cf. pontos 18. e 19. dos factos provados).
15. Ora, da análise que se faça desta factualidade à luz das considerações expendidas, forçoso é concluir que apenas com a carta registada, datada de 05-02-2018, o recorrente CC declarou à contraparte a vontade de compensar o crédito (arts. 224, e 848 do CC).
Sucede, porém, que, tendo a penhora do crédito ficado consumada com a notificação a que acima se fez referência – que foi feita por carta de 21-03-2016 – e sendo aquela declaração de compensar muito ulterior à penhora, se tem por certo que a invocada compensação, independentemente do preenchimento ou não dos respetivos requisitos, é inoponível à execução ou, dito de outro modo, ineficaz em relação à exequente.
Note-se, de resto, que no momento em que os recorrentes declararam à contraparte a vontade de compensar (05-02-2018), já há muito que o crédito tinha sido inclusive adjudicado à exequente, sendo certo que o art. 585 do CC, que os recorrentes chamam à colação, ressalva igualmente dos meios de defesa oponíveis ao cessionário os que provenham de facto ulterior ao conhecimento da cessão, como seria o caso (art. 848, n.º 1, do CC).
Destarte, sendo a compensação ineficaz, forçoso é concluir que o crédito não se encontra extinto. Claudicando, em consequência, todos os argumentos que, em sentido contrário, os recorrentes vieram alegar.
16. Por último, sustentam os recorrentes, na esteira da invocada questão da compensação, que o crédito penhorado e adjudicado à exequente se encontra garantido por penhor do crédito que os executados sucessivos detêm sobre o executado originário e que, como tal, iniciando-se as diligências de penhora pela execução do penhor, não restava alternativa à exequente senão aceitar a compensação face à existência de créditos recíprocos e compensáveis (art. 666 e ss. do CC, e art. 752 do CPC).
É pacífico que os recursos não se destinam a criar decisões sobre matéria nova, visando antes a reapreciação das decisões que deles são objeto e, em concreto, a reapreciação das questões que, tendo sido oportunamente suscitadas, ali foram objeto de apreciação.
Em consequência, não é curial (nem juridicamente admissível) às partes invocar, em sede de recurso, questões que não tenham sido suscitadas e apreciadas pelo tribunal a quo, não sendo igualmente lícito ao tribunal ad quem delas conhecer. Neste sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 08-01-2019, Revista n.º 26688/15.0T8LSB.L1.S2 - 1.ª Secção, Relator: Conselheiro Acácio das Neves; de 09-01-2019, Revista n.º 3747/16.6T8VCT.G1.S1 - 7.ª Secção, Relatora: Conselheira Maria do Rosário Morgado; e de 14-07-2020, Revista n.º 989/19.6T8BCL.G1.S1 - 1.ª Secção, Relator: Conselheiro Jorge Dias.
Pelo que, não tendo a enunciada questão sido apreciada no acórdão recorrido, constitui a mesma questão nova que, não sendo de conhecimento oficioso, não cabe a este Supremo Tribunal de Justiça apreciar.
17. Concluindo-se assim que a revista não pode senão improceder, in totum.
Dispositivo
Custas pelo recorrente.
Supremo Tribunal de Justiça, 12 de janeiro de 2021
Paulo Ferreira da Cunha (Relator)
Maria Clara Sottomayor
Ao abrigo do disposto no artigo 15.º-A da Lei n.º 20/2020, de 1 de maio, o relator atesta o voto de conformidade da Ex.ma Senhora Juíza Conselheira Adjunta, Dr.ª Maria Clara Sottomayor.
Alexandre Reis
Ao abrigo do disposto no artigo 15.º-A da Lei n.º 20/2020, de 1 de maio, o relator atesta o voto de conformidade do Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro Presidente, Dr. Alexandre Reis.