PRÉDIOS CONFINANTES
PRÉDIO RÚSTICO
PRÉDIO URBANO
DIREITO DE PREFERÊNCIA
REQUISITOS
EXCEÇÕES
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Sumário

I. O direito real de preferência atribuído pelo artigo 1380º, nº 1, do Código Civil, aos proprietários de prédios rústicos confinantes depende da verificação dos seguintes requisitos:  
i) ter sido vendido ou dado em cumprimento um prédio com área inferior à unidade de cultura;
ii) ser o preferente a dono de prédio confinante com o prédio alienado;
iii) ter o prédio do proprietário que se apresenta a preferir área inferior à unidade de cultura;
iv) não ser o adquirente do prédio proprietário confinante.
II. É  sobre aqueles que se arrogam titulares do direito de preferência e que pretendem que lhes seja judicialmente reconhecido esse direito que recai o ónus de alegação e prova de todos estes requisitos, nos termos do disposto no artigo 342º, nº1 do Código Civil, impendendo sobre  aqueles contra quem é invocado este direito, nos termos das disposições conjugadas do nº 2 do citado artigo 342º, e 1381º, alíneas a) e b), do mesmo código, o ónus de provar factos dos quais se possa concluir pela verificação de alguma das exceções contidas nestas duas alíneas. 
III. O conceito de prédio misto, assente num critério de predominância da parte rústica ou da parte urbano de determinado prédio, vale apenas para efeitos fiscais.
IV. A nossa lei civil não só não reconhece a categoria de prédio misto como um tertium genus nem aceita o critério de predominância da parte rústica ou urbana, como também não atende ao tipo de inscrição matricial nem ao tipo de descrição predial, pelo que, para qualificar um prédio como sendo rústico ou urbano, há que recorrer à definição dada pelo artigo 204º, nº 2, do  Código Civil.
V. Segundo orientação consolidada na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, a distinção entre prédio rústico e urbano deve assentar, numa avaliação casuística, tendo subjacente o critério base de destinação ou afetação económica.
VI. A razão de ser do direito de preferência  atribuído aos proprietários de prédios rústicos confinantes, nos termos do  artigo 1380º, nº 1, do Código Civil, radica no propósito do legislador de propiciar o emparcelamento de terrenos com área  inferior à unidade de cultura, com vista a alcançar-se uma exploração agrícola tecnicamente rentável e evitar-se, assim, a proliferação do minifúndio, considerado incompatível com um aproveitamento fundiário eficiente.
VII. O artigo 1380º, nº 1, do Código Civil vincula o exercício do direito de preferência à efetiva exploração dos terrenos rústicos para fins de cultura florestal e/ou agrícola, não se bastando com o facto de serem aptos para cultura.
VIII. Resultando dos factos provados que os autores utilizam o prédio de que são proprietários essencialmente para a sua habitação e nele não desenvolvem qualquer atividade agrícola, impõe-se concluir que a destinação e afetação deste prédio são próprias de um prédio urbano, não sendo, por isso, os autores titulares do direito de preferência consagrado no artigo 1380º, nº 1 do C. Civil.

Texto Integral



ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL


***



I. Relatório


1. AA, BB e CC intentaram a presente ação declarativa, com processo comum, contra DD e marido EE, FF, GG, HH, pedindo que seja reconhecido o seu direito de preferência na venda a esta ré do prédio dos demais réus.

2. Citados os réus contestaram.

A ré HH, excecionou a sua ilegitimidade bem como a falta de depósito de despesas e impostos pagos com a transmissão por parte dos autores.

Deduziu ainda reconvenção, pedindo a condenação dos autores no pagamento à reconvinte do montante de € 148.846,09, acrescido de juros, à taxa legal, desde a notificação da reconvenção até efetivo pagamento.

Os demais réus defenderam-se por impugnação, concluindo pela improcedência da ação.

3. Realizou-se audiência prévia, no âmbito da qual foi proferido despacho e não admissão da reconvenção.

Fixado o valor da ação, foi proferido despacho saneador que julgou improcedentes as invocadas exceções de ilegitimidade e de falta de depósito de despesas e impostos pagos com a transmissão.

Foi fixado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.

4. Efetuado o julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente, por não provada, e em consequência absolveu os réus dos pedidos contra si deduzidos.

5. Inconformados com esta decisão, dela apelaram os autores para o Tribunal da Relação …. que, por acórdão proferido em 23 de abril de 2020, decidiu:

a) julgar procedente a apelação e revogar a sentença recorrida;

b)  reconhecer aos Autores AA, BB e CC, o direito a preferirem na aquisição do prédio denominado “…”, inscrito na matriz rústica sob o artigo … da secção …, e na matriz urbana sob o artigo …, da freguesia de …., concelho de ….., e assim haver para si o referido prédio, pelo preço de €135.000,00, em substituição da Ré compradora HH, condenando-se esta a entregar aos Autores o referido prédio;

c) determinar a entrega à Ré compradora HH, o valor depositado pelos Autores, no montante de €135.000,00.

 6. Inconformada com este acórdão, a ré HH, dele interpôs  recurso de revista  para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

« I - O objeto do litígio da presente ação, é o seguinte: saber se deve ser reconhecido aos Autores o direito de preferirem na aquisição do prédio identificado no Ponto 2 dos Factos Provados, ou seja, “Prédio Misto, denominado por “…”, sito na freguesia de ……, concelho de …., composto a parte rústica, por cultura arvense, montado de sobro ou sobreiral e oliveiras, com a área de 28,8125 hectares, inscrito na respetiva matriz sob o artigo …. secção …., e a parte urbana composta por morada de casa de rés-do-chão com três compartimentos para habitação e dependências com a área de 174,10 m2, inscrito na matriz sob o artigo ….”

II - Consagra o artigo 1380.º, n.º 1 do Código Civil CC que: “Os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante.”

III - O que é fundamental para decidir sobre a existência de direito de preferência nos termos peticionados pelos Autores é a distinção entre prédio rústico e prédio urbano.

IV - Conforme alegado no douto Acórdão, "O direito de preferência fundado na confinância de prédios rústicos insere-se num conjunto de disposições legais que têm por finalidade lutar contra a excessiva fragmentação da propriedade rústica, atendendo aos inconvenientes de ordem económica que dela resultem, designadamente a baixa produtividade de prédios de reduzida área." (cfr. Assento do STJ de 18 de Março de 1986).

V - Neste mesmo sentido, veio o legislador estabelecer que, nos casos em que está em causa um prédio urbano, não existe direito de preferência, cfr. artigo 1381.º, alínea a) primeira parte do CC.

VI - Veio o Acórdão ora recorrido criar, a partir da sua interpretação do artigo 204.º, n.º 2 do Código Civil, o critério da função dominante do prédio.

VII - Começa por extrair do artigo 204.º, n.º 2 do Código Civil que “o critério legal, para a lei civil, para classificar um o prédio como rústico ou urbano é o da prevalência da afetação, ou seja, da função dominante do prédio, entendida esta à luz da legislação em vigor, ou seja, entendida a função dominante não pela qual é dada pelos proprietários num dado momento, mas pela função potencial do prédio em face das suas caraterísticas”- (pág. 6, último parágrafo).

VIII - Em seguida, distingue a “utilização dominante” da “função dominante”, ou seja: admite que a utilização dominante do prédio dos Autores é a da habitação; contudo, decide que a função dominante desse prédio é a agrícola, pois não interessa a utilização dada, mas antes interessa a “função potencial do prédio face às suas caraterísticas”.

XIX - Concluindo, que ambos os prédios em questão – o prédio dos Autores e o prédio sobre o qual os Autores pretendem exercer o seu direito de preferência – são rústicos.

X - Ora, não pode o ora Recorrente concordar com o critério proposto pelo douto Acórdão, pois não se percebe como pode ser retirado da lei, visto não haver qualquer referência, ou sequer sugestão, à “função potencial”. Para além de esta interpretação ser, acredita o Recorrente contrária à lei, também o é em relação à doutrina e à jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.

XI - Conforme explica o Senhor Professor Doutor Menezes Cordeiro e tal como consta da fundamentação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.03.2010[1] (processo n.º 186/1999.P1.S1) citado na Sentença proferida em primeira instância:

Quando contrapôs imóveis a móveis, diz-nos Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Parte Geral-Tomo II–págs. 121e 122), “o legislador teve o cuidado de precisar os primeiros e de remeter, por defeito, todo o restante, para os segundos. Mas, no tocante à dicotomia prédios rústicos-prédios urbanos, o legislador quis definir uns e outros. As duas definições parcelares daí resultantes não se articulam inteiramente. Resultam, daí, problemas complexos que, até hoje, não têm encontrado uma solução segura.

E, debruçando-se sobre a questão de saber qual a natureza de um prédio que contenha construções, refere o mesmo Autor que a doutrina portuguesa mais recente aponta quatro teorias: “teoria do valor; teoria da afectação económica; teoria do fraccionamento e teoria da consideração social.”

Depois de analisar cada uma dessas teorias, escreve, a págs. 123 e 124:

“Ficam-nos, pois, as noções do Código Civil: o prédio rústico é o terreno, ainda que com construções, desde que estas não tenham autonomia económica e o urbano um edifício, com o logradouro. Vamos avançar a partir da fórmula do artigo 204º… na linha da teoria da afectação económica. Duas precisões prévias devem ser feitas: para efeitos de qualificação civil, é indiferente o tipo de inscrição matricial, dada a especialidade dos critérios fiscais, bem como o tipo de descrição predial; além disso, a lei não admite, aqui, o qualificativo de “prédio misto”…

Temos, depois, os núcleos dos conceitos de prédios rústicos e urbanos: um terreno não construído é rústico; o terreno totalmente coberto por um edifício é, seguramente, urbano.

E como a construção é obra humana, podemos concluir que o proprietário pode, por essa via e dentro da lei, transformar o prédio e logo determinar a sua natureza rústica ou urbana.

Finalmente e ainda em pano de fundo: por defeito, os prédios são rústicos. Não sendo possível qualificá-los como um edifício (ainda que com logradouro), impõe-se a rusticidade.

Prosseguindo…nos halos dos conceitos, encontramos a noção de edifício. Na lógica do art. 204º, nº 2, “edifício” é uma construção importante, ou de habitação ou pronta a habitar; todavia, o prédio urbano não reduz ao espaço delimitado pelas paredes e telhado, antes abrangendo também os terrenos que lhe sirvam de logradouro. A ideia de “logradouro” torna-se, assim, a chave da distinção”.

XII - Ora, tendo em conta os factos provados sob os pontos n.º 10 e 11, que ditam que os Autores, ora Recorridos, residem no prédio de que são proprietários, e que não desenvolvem nesse prédio qualquer atividade agrícola, não é possível, acredita o ora Recorrente, qualificar o prédio como rústico.

XIII - Não desenvolvendo os Autores no prédio qualquer atividade agrícola, uma vez que apenas desenvolvem no seu prédio uma atividade de recolha de plantas que crescem de forma espontânea, que posteriormente utilizam para a produção de óleos essenciais, não sendo realizada qualquer outra exploração do prédio, ou seja, não desenvolvem nenhuma atividade económica, é inevitável determinar que o prédio dos Recorridos deve ser considerado um prédio urbano.

XIV - Se assim não fosse, e o terreno dos Recorridos fosse, de facto, um prédio rústico (o que não se concede), qualquer prédio utilizado para habitação e não sendo nele desenvolvida qualquer exploração agrícola, desde que abrangesse culturas arvenses, mesmo que não as explorasse nem tivesse intenções de o fazer, seria considerado um prédio rústico.

XV - E tal argumento não pode ser procedente. Por isso mesmo explica o Senhor Professor Doutor Menezes Cordeiro que, “edifício” é uma construção importante, ou de habitação ou pronta a habitar; todavia, o prédio urbano não reduz ao espaço delimitado pelas paredes e telhado, antes abrangendo também os terrenos que lhe sirvam de logradouro”.

XVI - O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.02.2008[2] (processo n.º 08A075), em que é Relator Fonseca Ramos, vem desvalorizar o potencial de atividade agrícola (defendido pelo Acórdão ora Recorrido) valorizando, pelo contrário, a efetiva atividade desenvolvida:

“III - A lei civil não conhece o conceito de prédio misto. O prédio misto é um tertium genus, já que os prédios, devem sempre que possível ser considerados de harmonia com a sua parte principal (…) e essa, a priori, ou é rústica ou urbana.

IV -A distinção assenta, pois, numa avaliação casuística, tendo subjacente um critério de destinação ou afectação económica. (…).

V - O núcleo essencial do “prédio misto”, [dos AA.], a sua destinação e afectação, são próprias de um prédio urbano e, assim sendo, o seu logradouro destina-se a proporcionar utilidade a esse prédio com tal natureza, em nada influindo a sua componente rústica, por não se ter provado que gozava de autonomia em relação à casa.

VI - Porque os fins para que o legislador consagrou o emparcelamento e o direito de preferência – arts. 1380º, nº 1, a) e 1382º do Código Civil – não se alcançam quando o prédio confinante não se destina a cultura agrícola, e não relevando o facto de ter logradouro ou terrenos ainda que possam ser cultivados – dado que não estão afectos à rusticidade do prédio por ele se destinar a habitação – não existe o direito de preferência.” (…).

XVII - O caso tratado no Acórdão supra mencionado, é bastante semelhante ao dos presentes autos[3]:

“Partindo da teoria da afectação económica como critério-base para decidir se certo prédio deve ser considerado rústico ou urbano, importa considerar que, com a alteração da resposta ao quesito 3º, é inescapável considerar que, tendo sido eliminada a expressão -“Os AA. não utilizam o prédio referido em C) para qualquer actividade agrícola” - ficando como definitiva a resposta – “Provado apenas que os AA. utilizam a casa implantada no referido prédio para habitação”, temos de convir, à luz dos ensinamentos doutrinais e jurisprudenciais citados, que tal prédio não pode ser considerado prédio rústico, pelo fenecendo um dos requisitos do art. 1380º, nº1, do Código Civil, o direito de preferência teria de ser recusado.”

XVIII - Como expende o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.01.2016[4] (processo n.º 2563/07.0TBVCD.P1.S1), Relator Silva Gonçalves:

“I - Confrontados com um “prédio misto”, o prédio será rústico ou urbano, conforme a sua essencial finalidade seja a exploração agrícola ou se circunscreva tendencialmente à habitação familiar.”

XIX - Há que ter em consideração os factos provados sob os pontos n.º 10 e 11:

“10. Os AA. residem no prédio de que são proprietários;

11. Os AA. não desenvolvem no prédio qualquer atividade agrícola.”

XX - Ora, o fim do prédio dos Autores é de habitação, tal como confirmado pelo douto Acórdão ora recorrido, quando menciona que:

“Em face da matéria de facto dada como assente, e utilizando o critério da prevalência da utilização atual do prédio pelos Autores – critério utilizado pelo Tribunal a quo -, não nos restam dúvidas que, atualmente, a utilização dominante do prédio é de habitação” (página 8, parágrafo 1).

XXI - Pelo que, seguindo o critério estabelecido neste Acórdão, sendo a sua essencial finalidade a habitação e não a exploração agrícola, forçoso será concluir, que se trata de um prédio predominantemente urbano.

XXII - Assim, face a todo o acervo doutrinal e jurisprudencial supra exposto, não poderá o prédio dos Autores, ora Recorridos, ser considerado um prédio rústico, precludindo assim o direito de preferência, nos termos do disposto no artigo 1381.º, alínea a), 1.ª parte, do Código Civil.

XXIII - Será também necessário analisar o que estipula o artigo 1381.º, al. a) 2ª parte, nomeadamente, aferir qual a finalidade do prédio. O douto Acórdão recorrido defende que:

“Em tese, no nosso entender, só se justificaria a atribuição do direito de preferência ao proprietários de determinado prédio, se estes tivessem o objetivo de alargar uma exploração agrícola, por forma a otimizá-la, ou de estabelecer uma exploração agrícola viável o que alias poderia conduzir a eliminar um conjunto de “preferências” que não têm por fito a exploração agrícola, mas apenas uma apetência pelo prédio vizinho, sem qualquer objetivo de fomento agrícola ou ecológico.

Mas o legislador assim não entendeu, não exigindo a prova desses objetivos como requisitos do exercício do direito de preferência, bastando-se pela existência de dois prédios rústicos aptos para a cultura, confinantes, em que um deles tenha área inferior à unidade de cultura.” (pág. 5 do Acórdão, parágrafos 4 e 5).

XXIV - Argumenta o douto Acórdão, que o artigo 1380.º do CC se basta “pela existência de dois prédios rústicos aptos para a cultura, confinantes, em que um deles tenha área inferior à unidade de cultura”, sendo irrelevante o objetivo dos pretensos adquirentes ser de estabelecer ou alargar uma exploração agrícola.

XXV - Continua, expondo que:

“No entanto, o legislador estabeleceu um conjunto de exceções ao direito de preferência, de que citamos a que para o caso interessa, prevista na alínea a) do art.º 1381 do Cód. Civ., que determina que:

Não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes:

a) Quando algum dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura.

Daqui que importe apurar-se o prédio daquele que invoca a preferência é um prédio urbano ou rústico.” (pág. 6 do Acórdão, parágrafos 3 e 4).

XXVI - A partir daqui o Acórdão que ora se recorre, estabelece a distinção entre prédio rústico e prédio urbano, tal como analisado supra.

XXVII - Porém, e apesar de mencionar a alínea a) do artigo 1381.º do CC, o Acórdão ora recorrido, apenas aborda/interpreta a sua primeira parte, ou seja, “quando algum dos terrenos constitua para componente de um prédio urbano”, desatendendo, por completo, a sua segunda parte - “quando algum dos terrenos (…) se destine a algum fim que não seja a cultura”.

XXVIII - Relativamente à exploração agrícola reitera, apenas, que:

“Em face do espírito da lei, que, como acima dissemos, não vincula o exercício do direito de preferência à efetiva exploração dos prédios para fins agrícolas –tanto o dos preferentes, como o prédio sobre o qual é exercida a preferência -, bastando-se com o facto de serem ambos prédios rústicos, aptos para cultura, tendo um deles área inferior à unidade de cultura (…)” (pág. 8 do Acórdão, parágrafo 1).

XXIX - Ora, também aqui, salvo melhor opinião, não andou bem o Acórdão ora recorrido.

XXX - Como já supra mencionado, o Acórdão ora recorrido faz esforços no sentido de excluir a aplicação da primeira parte da alínea a) do artigo 1381.º – prédio urbano –, mas desatende/desconsidera completamente a segunda parte da mesma alínea, que exceciona os casos em que exclui o direito de preferência, quando algum dos terrenos se destine a fim que não seja a cultura.

XXXI - A respeito da exploração agrícola, apenas afirma que, no entender do legislador, para a aplicação do artigo 1380.º “bastando-se pela existência de dois prédios rústicos aptos para a cultura, confinantes, em que um deles tenha área inferior à unidade de cultura”, não se vinculando “o exercício do direito de preferência à efetiva exploração dos prédios para fins agrícolas” (pág. 5 do Acórdão, parágrafo 5).

XXXII - Antes de mais, impõe-se a questão: então e o artigo 1381.º, al. a), segunda parte do CC. Como pôde o douto Acórdão argumentar que a lei não exige uma efetiva exploração agrícola, quando a al. a) do artigo 1381.º do CC o refere expressamente?

XXXIII - Como já vimos, a alínea a) exceciona o direito de preferência por terrenos confinantes, nos casos em que algum dos terrenos se destine a fim que não seja a cultura.

Ora, consta expressamente dos factos provados, que os Autores. não desenvolvem no prédio qualquer atividade agrícola (facto provado 11), automaticamente preenchendo a segunda parte da al. a) do artigo 1381.º do CC.

XXXIV- O artigo 1381.º al. a) do CC, determina que não haverá lugar a direito de preferência quando um dos terrenos confinantes se destine a um fim que não seja a cultura. É certo, que o fim a que se destina o prédio dos Recorridos não é a atividade agrícola, mas antes a recolha de ervas que crescem de forma espontânea, utilizando as mesmas para a produção de óleos essenciais.

XXXV - Ou seja, trata-se de uma atividade industrial, holística desenvolvida pelos Autores no prédio do qual são proprietários, uma vez que apenas se está perante um processo de produção, que visa transformar matérias primas, ou seja, as plantas espontâneas recolhidas em mercadoria, através do trabalho humano, no caso concreto, através da sua transformação pelos Autores para a produção de óleos essenciais.

XXXVI - Por contraposição com o termo cultura, no sentido de agricultura.

XXXVII - No entanto, temos que ter presente o significado do termo Agricultura; esta, é o conjunto de técnicas utilizadas para cultivar plantas, com o objetivo de obter alimentos, bebidas, fibras, energia, matéria prima para roupas, construções, medicamentos, ferramentas; ou seja, todas as atividades que tenham a ver com a atividade de cultivar a terra, a qual inclui todos os trabalhos relacionados com o tratamento do solo e a plantação de vegetais; as actividades agrícolas, destinam-se à produção de alimentos e à obtenção de verduras, frutas, hortaliças e cereais, obtendo-se as matérias primas para serem usadas pelo ser humano como alimento e outros fins, como por exemplo o vestuário.

XXXVIII - O termo agrícola, provém da palavra agricultura, isto é, da cultura de cultivar e trabalhar na terra, que permite não depender de maneira tão direta do que a natureza oferece, e sim plantar para conseguir o próprio alimento.

XXXIX - Foi dado como provado que “Os AA. não desenvolvem no prédio qualquer actividade agrícola ”- ver ponto 11 dos fatos dados como provados.

XL - Os Autores, apenas recolhem as plantas que crescem de forma espontânea, utilizando essas plantas para a produção de óleos essenciais, a serem utilizados por humanos.

XLI - Pelo que, para a ora Recorrente, a atividade desenvolvida pelos Autores, ora Recorridos no seu prédio, do qual são proprietários e que é confinante com o prédio da ora Recorrente, não se configura, tal como bem entendeu a Sentença proferida em primeira instância, como atividade agrícola, nem tão pouco que esta seja a sua afetação principal.

XLII - Estamos antes perante uma Atividade Industrial, holística, conforme supra mencionado.

XLIII - Pelo que, entende a ora Recorrente, que se encontram verificados os requisitos para a procedência da exceção prevista na segunda parte da al. a) do artigo 1381.º do CC, uma vez que os ora Recorridos pretendem afetar o prédio adquirido pela Recorrente a um fim distinto da cultura- a atividade recolectora de plantas espontâneas para produção de óleos essenciais- ou seja- a uma atividade industrial.

XLIV - Sucede, que “A disposição final da al. a) do artigo 1381.º do CC está em perfeita conexão com a al. a) do artigo 1377.º, permitindo logicamente a exclusão do direito de preferência desde que o fracionamento seja autorizado, por imperativo legal, quando o terreno se destina a algum fim que não seja a cultura”- (RE, de 19.07.1979: BMJ, 292.º-444.)

XLV - No mesmo sentido, vai o Acórdão do STJ, de 23.05.1996: BMJ, 457.º-370, que esclarece que:

III - Não goza do direito de preferência o proprietário confinante quando o prédio rústico vendido se destina a fim diferente do de cultura.

IV - Sempre que o adquirente alegue que a sua intenção foi dar ao terreno outra afetação ou destino, será de considerar invocada a exceção da al. a) do art. 1381.º do CC.”

E ainda,

O Acórdão da RC, de 10.05.1988: BMJ.377.º-563:

“Fica excluído o direito de preferência do proprietário de prédio confinante, se o adquirente pretende dar ao terreno alienado um destino que não seja a cultura.”

XLVI - Acresce, que teremos que analisar também o critério utilizado no Acórdão ora recorrido, quando defende que o critério da “função potencial”.

XLVII - Como supra mencionado, o Acórdão ora recorrido nunca abordou a segunda parte da al. a) do artigo 1381.º; Como citámos supra, referiu o douto Acórdão que, para que exista direito de preferência, basta que ambos os prédios sejam rústicos, aptos para cultura, confinantes e que um deles tenha área inferior à unidade de cultura, não se vinculando o direito de preferência à efetiva exploração agrícola.

XLVIII - No entanto, mesmo aqui, não se pode encontrar uma referência à segunda parte da alínea em questão, visto que o Acórdão se está a reportar ao artigo 1380.º do CC e não ao artigo 1381.º do CC.

XLIX - O douto Acórdão ora recorrido, defende que retira o seu critério de “função potencial” da interpretação da lei, mas nada na lei sugere aquele critério. Mas muito menos o sugere o artigo 1381.º, al. a) do CC, que dispõe o seguinte:

“Não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes:

a) Quando algum dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura”.

L - Pelo que, nada na supra citada norma legal nos remete para uma “função potencial”;

Aliás a redação é clara: “ (…) se destine a algum fim que não seja a cultura” .

LI - Devemos atender à utilização/ função presente, efetiva e não a uma putativa utilização.

LII - A utilização presente do prédio dos Autores, ora Recorridos, tal como é facto provado (Facto provado n.º 11), não passa pela exploração agrícola- “ Os Autores não desenvolvem no prédio qualquer actividade agrícola.”

LIII - Passa antes pela sua habitação (Facto provado n.º 10 – fim habitacional), e pela colheita de ervas para produção de óleos essenciais (fim industrial).

LIV - Isso mesmo é mencionado no Acórdão ora recorrido quando menciona que:

Em face da matéria de facto dada como assente, e utilizando o critério da prevalência da utilização actual do prédio pelos Autores, critério utilizado pelo Tribunal “a quo”, não nos restam dúvidas que, actualmente, a utilização dominante do prédio e a de habitação.” (sublinhados nossos).

LV - Não pode, portanto, salvo melhor entendimento, ser o critério da “função dominante” aplicado ao artigo 1381.º do CC, estando assim por força do artigo 1381º al. a) segunda parte do CC, precludido o direito de preferência previsto no artigo 1380.º do CC.

LVI - Vejamos ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.09.2008[5] (Revista n.º 2356/08 -6.ª Secção Silva Salazar (Relator) Nuno Cameira Sousa Leite) que tem em consideração o fim subjectivo da al. a) do artigo 1381º do CC.

“V - O fim, porém, a que a dita al. a) se refere, não se apura só objectivamente, mas também através da intervenção do elemento subjectivo que é a vontade do adquirente, a sua intenção ao adquirir. E a intenção constitui matéria de facto, susceptível de ser provada por qualquer meio, tanto mais que a finalidade da aquisição não tem que constar da respectiva escritura pública, uma vez que a mencionada al. a) não o exige, se bem que se tenha por bem impor ao adquirente a prova de que a finalidade visada com a aquisição é lícita, viável e séria.

VI - Tendo, pois, o destino do imóvel adquirido pelos segundos réus sido a construção e não a exploração agrícola, tem de se considerar verificada a situação excepcional prevista na mencionada al. a) do art. 1381.°, o que afasta o direito de preferência que porventura assistisse aos autores, independentemente do prédio dever ser classificado como rústico ou como urbano.” (sublinhados nossos).

LVII - O Acórdão supra citado, valoriza, portanto, a intenção do adquirente, que é suscetível de ser provada por qualquer meio, afastando o direito de preferência, visto que o destino do imóvel não era a exploração agrícola.

LVIII - A atividade desenvolvida pelos Autores, ora Recorridos no seu prédio, é a atividade recolectora de plantas espontâneas para produção de óleos essenciais; o que, tal como ficou provado (Ponto 11 dos factos provados), não constitui uma atividade agrícola.

LIX - Conforme o discutido em sede de primeira instância, tudo indica, que a intenção dos Autores para aquisição do prédio sobre o qual pretendem exercer o direito de preferência, passa por utilizar este para o mesmo fim.

LX - De acordo com o entendimento vertido no Acórdão supra citado, pouco interessa se o imóvel também inclui culturas arvenses, visto que não há intenção por parte dos Autores de conduzir atividade agrícola sobre elas.

LXI - Pelo que, pelo supra exposto, é mais uma vez excluído o critério da “função potencial”, sugerindo o Acórdão supra mencionado, que se analise objetiva e subjetivamente o fim consignado na al. a) do artigo 1381.º do CC.

LXII - Ficou provado que os Autores destinam o prédio à sua habitação, e não desenvolvem nele qualquer atividade agrícola- pontos 10 e 11 factos provados.

LXIII - Mas, como se não fosse suficiente, revisitemos Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.02.2008[6] (processo n.º 08A075) –, onde se concluiu:

“VI - Porque os fins para que o legislador consagrou o emparcelamento e o direito de preferência - arts. 1380º, nº1, a) e 1382º do Código Civil – não se alcançam quando o prédio confinante não se destina a cultura agrícola, e não relevando o facto de ter logradouro ou terrenos ainda que possam ser cultivados – dado que não estão afectos à rusticidade do prédio por ele se destinar a habitação – não existe o direito de preferência.” (sublinhados nossos).

LXIV - Tendo em conta tudo o supra exposto, concluímos que:

a) Interessa a intenção dos potenciais preferentes, Autores e ora Recorridos, em relação à afetação a dar ao prédio sobre o qual pretendem exercer o direito de preferência; pois, pelo simples facto de o prédio em causa abranger culturas arvenses e montado de sobro, não pode significar que os putativos preferentes lhe vão dar uma utilização agrícola;

b) Pois, se o seu próprio prédio já possui essa mesma cultura arvense e montado de sobro com áreas semelhantes às do prédio sobre o qual pretendem exercer o direito de preferência (ou seja, montado de sobro cerca de 8 ha e cultura arvense cerca de 20 ha), mesmo assim, foi dado como facto provado, e utilizando o critério da prevalência da utilização atual do seu prédio, que não o utilizam para exploração agrícola, sendo atualmente a “utilização dominante do prédio a de habitação”, conforme menciona o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora;

c) Porque haveriam, agora, os Autores, Recorridos, de o começar a fazer no novo prédio sobre o qual pretendem exercer o direito de preferência? »

Termos em que requer seja revogado e acórdão recorrido, mantendo-se a sentença proferido em sede de primeira instância.

7. Os autores responderam, terminando as suas alegações, com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1. A Recorrente sustenta a sua posição quanto à inexistência do direito de preferência dos AA, defendendo a tese da errada classificação do prédio enquanto rústico,

2. Argumentando para tal a R que, o prédio rústico dos AA deverá ver a sua natureza transfigurada para urbana dado que, de acordo com a teoria da afectação, limitam-se a habitar a casa existente na sua propriedade sem praticar nele qualquer, dado que apenas recolhem “ervas” de geração espontânea para a produção de óleos essenciais.

3. A Recorrente pretende convencer este Tribunal que os 29,1125 hectares do prédio dos AA, mais não são do que um simples logradouro do edifício habitacional de 175,30 metros quadrados, isto é, que o 0.06 porcento de área total do prédio, correspondente à área do edificado, deverá determinar pela aplicação do critério da destinação ou afectação económica do prédio, a natureza do mesmo, desconsiderando a afectação dos restantes 99,94 porcento.

4. A R. desconsidera ostensivamente a afectação económica dos cerca de 29 hectares de cultura arvense, de montado, olival e vinha, que a mesma não alegou nem provou estarem votados ao abandono, apesar do notório esforço para extrair essa conclusão ao longo do seu articulado, procurando convencer que mais não são do que o logradouro da habitação dos AA.

5. No entendimento deste Tribunal (vide Ac. STJ de 6.7.1993, BMJ,429-761) “um logradouro é um espaço complementar e serventuário de um edifício com o qual constitui uma unidade predial.”

6. Parece-nos indefensável enquadrar os 29,1125 hectares de cultura arvense diversificada que compõe o “…..” dos AA, como espaço complementar e serventuário da sua habitação.

7. Veja-se que os AA vivem na habitação, mas vivem da “exploração do prédio” rústico, sendo que a primeira afirmação não anula a segunda.

8. No depoimento da testemunha II, agricultor e destilador de óleos essenciais, com quem os AA mantêm uma relação de parceria profissional, um litro de óleo essencial, vendido a granel, tem um preço de mercado de €800.

9. Também nas palavras desta testemunha, a exploração dos AA não é desenvolvida como “uma plantação de batatas”, com a tradicional sementeira, antes através de um processo criterioso de eliminação de plantas incompatíveis com os rosmaninhos, estevas, medronho e outras plantas aromáticas em exploração, regenerando não só o coberto vegetal, como também as culturas arvenses existentes.

10. Nas declarações de parte do A BB, no ano agrícola anterior, recolheram cerca de 500 quilos de azeitona e fizeram a venda da cortiça, igualmente recolhida no prédio.

11. O A. não poderia ter produzido estas declarações se fosse proprietário de um prédio urbano com um mero logradouro com caracter complementar e serventuário da sua habitação.

12.A R. conclui o seu raciocínio afirmando, que os AA se dedicam “à recolha de ervas que crescem de forma espontânea” (o que não será inteiramente verdade, pois a erva é, primordialmente, o alimento para os cavalos da exploração que ali fazem pastoreio),(…) “utilizando as mesmas para a produção de óleos essenciais”.

13. Acrescentando ainda a R. “Ou seja, trata-se de uma actividade industrial, holística, (…) por contraposição com o termo cultura, no sentido de agricultura.”

14. Aqui reside a falha da tese da R/ recorrente ao confundir o conceito de cultura com agricultura, como se o primeiro se esgotasse no segundo, para assim forçar a aplicação da segunda parte da alínea a) do artigo 1381.º do Código Civil ao tema em crise e excepcionar o direito de preferência dos AA.

15. Atente-se na definição proposta pela Senhora Eng. Agrícola Mafalda Reis Pereira in A Cientista Agrícola, plataforma agrícola online), a “agricultura é uma atividade do homem inserido numa sociedade para a qual produz bens e serviços através de sistemas complexos resultantes da artificialização de ecossistemas. Todavia, o conceito que uma sociedade tem da agricultura modifica-se quando se alteram as condições ecológicas e socioeconómicas pelo que apenas de uma forma incompleta pode ser explicada por uma definição. Esta dificuldade acentua-se particularmente numa altura em que a atividade agrícola se insere cada vez com actividades não agrícolas.”

16. O legislador, na verdade, recorreu o termo “cultura” e não agricultura, como a R refere de forma indiferenciada, fazendo-o com um claro propósito de lhe conferir maior abrangência e não se prender ao conceito redutor de “actividade produtora de alimentos, bebidas, fibras, energia, matéria prima para roupas, construções, medicamentos ferramentas; ou seja, todas as actividades que tenham a ver com a actividade de cultivar a terra (…)”

17. Pelo que, deverá inferir-se uma amplitude do conceito que compreende, para além da agricultura, também as culturas silvo-pastoris e florestais.

18. Neste sentido, elaborou o aresto de 24.05.2011, deste Tribunal, no qual se determinou que, “Não existe o direito de preferência do proprietário de terreno confinante, fundado naquele normativo, quando o prédio rústico alienado está exclusivamente afectado, em termos administrativamente lícitos, a uma exploração agro-pecuária que envolve a implantação, em prédio misto contíguo, de um estabelecimento de exploração agro pecuária, - destinando-se, deste modo, o prédio alienado a fins de produção animal que extravasam manifestamente uma primacial função agrícola ou a exploração florestal ou silvo-pastorícia dos terrenos.” (sublinhado nosso).

19. Também nesta senda, veja-se o Acórdão do STJ 19-02-2013:

“IV - Estando classificado o solo dum prédio como rural e qualificado como predominância a floresta, mesmo que seja permitida a construção de uma habitação unifamiliar e anexos de apoio à exploração do prédio, esta permissão não afecta a classificação e qualificação do solo, continuando a prevalecer a destinação originária.”

20. Num trabalho de Maria do Loreto Monteiro, intitulado Silvicultura Próxima da Natureza, publicado pela ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA, em 2015, a propósito do significado de Silvicultura e as suas grandes orientações ao longo do tempo, lê-se:

“(….) em 1985 aparece, na Europa, o movimento PROSILVA que corresponde à união de florestais, que concebem e aplicam uma Silvicultura Próxima da Natureza (SPN) baseada na gestão florestal a partir do rendimento sustentado. Este movimento recomenda que a silvicultura se apoie em processos naturais, com o objectivo de se minimizarem os riscos ecológicos e económicos. A silvicultura de acordo com os princípios Prosilva é uma estratégia que visa optimizar a conservação, a protecção e a gestão económica. Prosilva é, pois, uma associação de florestais reunidos para promover uma silvicultura irregular, contínua e próxima da Natureza, visando defender uma floresta atraente e natural, irregular e consociada, e sustentável. A silvicultura Prosilva baseia-se igualmente na gestão da qualidade, no respeito pelos processos naturais dos ecossistemas florestais e na viabilidade económica. Esta silvicultura do “indivíduo” permite   obter colheitas sustentadas em florestas multifuncionais, contínuas e estáveis. O movimento considera que as florestas europeias representam quatro funções principais: função natural; função de protecção; função de produção; função cultural. A cada tipo de função correspondem diversos elementos. Assim, à função produção estão associados os elementos ligados à diversidade das plantas e animais; diversidade e qualidade genéticas; variabilidade das estruturas florestais; bom funcionamento dos processos ecológicos; relações ecológicas internas; influências ecológicas da floresta no ambiente; influências sobre os elementos da 9 paisagem envolvente. Os elementos relativos à função protecção assentam na protecção e restabelecimento da fertilidade natural do solo; protecção de associações florestais naturais; protecção de espécies particulares, raras e ameaçadas; protecção contra o escorrimento das águas, erosão e deslizamentos de terras; protecção das reservas de água; manutenção ou aumento da fixação do carbono; protecção ou melhoramento da qualidade do ar; protecção contra o ruído; dissimulação de instalações chocantes na paisagem; protecção e melhoria do clima florestal. Já os elementos respeitantes à função produção devem respeitar a conservação da fertilidade do solo; manutenção da continuidade do estado natural da floresta e da produção lenhosa; conservação dos circuitos naturais de energia e de matérias. Por último, o principal elemento a ter em conta é o do respeito pelo valor cultural na gestão florestal.”

21. Pois bem, de acordo com a matéria provada, o prédio objecto do litígio, bem como o prédio dos AA, compõe-se de cultura arvense, montado e olival, culturas que se subsumem à silvicultura e exploração florestal, assim como se subsumem nesta classificação as actividades conexas praticadas pelos AA na gestão florestal, que  com um fito regenerador da floresta e dos seus habitats autóctones, são simultaneamente fonte de recursos naturais e económicos.

22. Este é o novo paradigma da actividade agrícola, silvícola e florestal, numa perspectiva holística e ambiental, pouco compatível com os conceitos fossilizados do passado.

23. Para que se verifique o direito de preferência reconhecido pelo Tribunal da Relação de Évora aos AA, bastaria que estes invocassem e fizessem prova bastante de que:   

i. Os AA são proprietários do prédio confinante ao prédio da R;

ii. Algum dos prédios rústicos dos AA ou da R têm área inferior à unidade de cultura;

iii. A R não é proprietária de qualquer outro prédio rústico confinante.

O que fizeram!

24. Incumbiria, por sua vez, à R, o ónus da prova de que algum dos terrenos se destinaria a fim diferente da cultura, o que salvo melhor entendimento, não alcançou».

Termos em que requerem seja negado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser mantido do douto acórdão recorrido.


8.  Dados os vistos, cumpre apreciar e decidir.


***


II. Delimitação do objeto do recurso


Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[7].

Assim, a esta luz, a única questão a decidir consiste em saber se os autores são titulares do direito de preferência que invocam.



***


III. Fundamentação


3.1. Fundamentação de facto

A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:

«1. Os AA são os titulares inscritos do prédio misto denominado “….”, situado na freguesia de …., concelho de …., inscrito na respectiva matriz cadastral rústica sob o artigo … da Secção … (resultou da divisão do artigo …. da secção …) e na matriz urbana sob o artigo …., o qual proveio do artigo …., descrito na Conservatória do Registo Predial de …. sob o número …. da freguesia de …., concelho de ….;

2. O A. foi notificado por carta datada de 7 de Dezembro de 2017, enviada pelos RR a 11 de Dezembro de 2017 em nome de LL, na qual lhe foi comunicado:

“Pela presente, venho na qualidade de proprietário e legítimo possuidor dos prédios:

1) Misto, denominado “….”, inscrito na matriz rústica sob o artigo ….. da secção …, e na matriz urbana sob o artigo …., da freguesia de ….., concelho de …., dar conhecimento a V. Exa. que é nossa pretensão celebrar, contrato de compra e venda do mesmo.

O referido contrato encontra-se agendado para o Cartório Notarial de ….. no dia 20 de Dezembro de 2017, quarta feira, pelas 12.30h.

O referido negócio será efectuado em nome de HH pelo preço de €135.000,00 (cento e trinta e cinco mil euros), pago na totalidade na data do contrato(…).

(…) devendo no prazo de 8 dias conforme o n.º 2 do art.º 416º do mesmo diploma legal, dizer se pretende exercer o seu direito de preferência pelo preço e nas condições indicadas.

Na falta de resposta no prazo legal, presumir-se-á a falta de interesse no exercício de tal faculdade. (…)”;

3. Através de carta enviada em 19 de Dezembro de 2017 os RR. manifestaram à cabeça de casal da herança de a intenção de preferir na aquisição do prédio;

4. No dia seguinte, à hora da escritura, os AA marido e mulher apresentaram-se no cartório notarial de ….;

5. Os AA. não possuíam a quantia correspondente ao valor de venda do prédio;

6. A escritura de compra e venda veio a concretizar-se nas condições projectadas pelos RR;

7. Da escritura consta além do mais o seguinte:

“Que foram efectuadas as notificações aos proprietários dos prédios rústicos confinantes, pelo que neste acto compareceram duas pessoas de nacionalidade estrangeira, que não compreendem ou falam a língua portuguesa, não estando acompanhadas de tradutor, e que se identificaram como confinantes, pretendendo exercer o direito de preferência, mas sem documentos bastante para exercer o referido direito, nomeadamente os impostos liquidados e o valor do preço.”

8. O prédio dos AA. tem uma área inferior à unidade de cultura;

9. O prédio alienado pelos 1.º a 4.º RR à 5.ª R, compõe-se de uma área de 28,8125 hectares de cultura arvense, montado de sobro ou sobreiral, cultura arvense e oliveiras;

10. Os A.A. residem no prédio de que são proprietários;

11. Os AA. não desenvolvem no prédio qualquer actividade agrícola».



*


B - Factos não provados

Da discussão da causa não resultou provado que a carta referida em 2 foi enviada após uma conversa com os A.A. e nos quais os mesmos declararam perentoriamente que não pagariam mais que 80.000,00 (oitenta mil euros) pelo prédio a alienar pelos R.R.”



***



3.2. Fundamentação de direito

Conforme já se deixou dito, o objeto do presente recurso prende-se, essencialmente, com a questão de saber se os autores são titulares do direito de preferência que invocam, o que passa essencialmente por decidir se o seu prédio é rústico.


*


3.2.1 Antes, porém, de entrarmos na apreciação desta questão, importa, em desenvolvimentos dos factos supra descritos no nº 1 do ponto 3.1 e visto estarmos perante matéria de facto resultante do teor dos documentos juntos a fls. 10 (certidão predial), 11 ( caderneta predial rústica) e 12 (caderneta predial urbana) dos presentes autos, para os quais os autores remeteram no artigo 1º da petição inicial e que foi expressamente aceite pelos réus (cfr. artigo 29º da contestação da ré HH e artigo 1º da contestação dos demais réus), considerar, ao abrigo do preceituado no art. 607º, nº 4, 2º parte, aplicável por via da sucessiva remissão dos arts. 663º, nº 2 e 679º, todos do CPC, ainda assente que:

12. O prédio dos autores, referido em 1, confronta a sul com …. e …..  de JJ e é constituído por uma parte urbana com a área bruta de construção de 175,30 m2, correspondente a “casa de rés do chão com 5 compartimentos para habitação, cozinha e dependência, com o valor  patrimonial de € 8180,00, e por uma parte rústica, com a área total de 29,11250 ha, composta por diversas parcelas classificadas com cultura  arvense (a maior parte de  Classe 4ª ), com a área de 20 ha; montado de sobro com a área de 8,4938 ha e oliveira e vinha, esta com 4 ha, tudo com o valor patrimonial de € 557,22.


*



3.2.2. É, assim, perante esta factualidade e os demais factos dados como provados no ponto 3.2.1. que importa os autores indagar se os autores são, ou não, titulares do direito de preferência a que alude o art. 1380º, nº 1, do C. Civil.

No sentido negativo pronunciou-se o Tribunal de 1ª Instância, porquanto, tendo ficado  provado que  os autores  residem no prédio de que são proprietários  e não  desenvolvem  qualquer atividade agrícola neste mesmo prédio,  considerou que « seja pela previsão da al. a) do art. 1383º do Código Civil seja pelo critério da afectação económica do prédio, forçoso é  concluir que os autores  não gozavam sequer do direito de preferência  na venda do prédio dos réus», e, consequentemente, julgou improcedente a ação.

Diferente entendimento teve o Tribunal da Relação, que, defendendo resultar do disposto no art. 204º, nº 2, do C. Civil,  que «  o critério legal, para a lei civil, para classificar um prédio como rústico ou urbano, é o da prevalência da afectação, ou seja da função dominante do prédio, entendida esta à luz da legislação em vigor, ou seja, entendida a função dominante não pela que é dada pelos proprietários num dado momento, mas pela função potencial do prédio em face das suas características».

Assim, e não obstante estar provado que os autores residem no prédio de que são proprietários e nele não desenvolvem qualquer atividade agrícola (factos dados como provados nos nºs 10 e 11º), considerando resultar «das Cadernetas Predial Rústica e Predial Urbana, constantes de fls. 11 e 12, que o prédio dos Autores é constituído por uma parte urbana com a área bruta de construção de 175,30 m2, correspondente a “casas de rés do chão com 5 compartimentos para habitação, cozinha e dependência”, com o valor patrimonial de €8.180,00, e por uma parte rústica, com a área total de 29,11250 ha, composta por diversas parcelas classificadas com cultura arvense (a maior parte de 4ª Classe), com a área de cerca de 20 ha, montado de sobro com a área de 8,4938 ha, oliveiras e vinha, esta com cerca de 0,4 ha, tudo com o valor patrimonial de €557,22 » e que o  espírito da lei «não vincula o exercício do direito de preferência à efectiva exploração dos prédios para fins agrícolas - tanto o dos preferentes, como o prédio sobre o qual é exercida a preferência - , bastando-se com o facto de serem ambos prédios rústicos, aptos para cultura, tendo um deles área inferior à unidade de cultura, e tendo presente que o prédio dos Autores tem uma área rústica de mais de 29 ha, com montado de sobro (cerca de 8 ha) e potencialidade de exploração com cultura arvense (cerca de 20 ha) -  que não podemos, necessariamente, reduzir a um mero logradouro da parte habitacional - » concluiu que a « função dominante do prédio dos Autores é a agrícola, principalmente para cultura arvense e exploração de montado de sobro», devendo, por isso, ser qualificado como prédio rústico.

E com base nesta fundamentação reconheceu aos autores o direito de preferir na compra do prédio vendido pelos réus, DD e marido, EE, FF, GG e MM à ré HH, nos termos do disposto no art. 1380º, nº 1, do C. Civil.


É contra este entendimento que se insurge a recorrente HH, sustentando, no essencial, que resultando dos factos provados sob os nºs 10 e 11  que os autores residem no prédio de que são proprietários e que não desenvolvem nesse prédio qualquer atividade agrícola, não é possível qualificar este prédio como rústico para efeitos do disposto no citado artº 1380º, nº 1.


Vejamos

Dispõe o art. 1380º, nº 1, do Código Civil que «Os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a que não seja proprietário confinante».

Trata-se, no dizer de Henrique Mesquita[8], de um direito que visa proporcionar e assegurar ao preferente uma posição de prioridade na aquisição, por via negocial, de certo direito, logo que se verifiquem os pressupostos que condicionam o seu exercício.

Segundo Pires de Lima e Antunes Varela[9], «  são os seguintes os pressupostos do direito real de preferência atribuído  por este preceito: a) que tenha sido vendido ou dado em cumprimento um prédio  com área inferior  à unidade de cultura; b) que o preferente seja dono de prédio confinante  com o prédio alienado; c) que o prédio do proprietário que se apresenta a preferir tenha  área inferior à unidade de cultura; d) que o adquirente  do prédio  não seja proprietário confinante».

E por se tratarem de factos constitutivos  é sobre aqueles que se arrogam titulares do direito de preferência e que pretendem que lhes seja  judicialmente reconhecido esse direito  que recai o ónus de alegação e prova de todos estes  requisitos, nos termos do disposto no art. 342º, nº 1 do C. Civil [10].

Por sua vez, é sobre  aqueles contra quem é invocado este direito que recai, nos termos das disposições conjugadas dos art. 342º, nº 2 e 1381º, als. a) e b), ambos  do C. Civil, o ónus de provar factos dos quais se possa concluir  pela verificação de alguma das  exceções   contidas  nestas duas alíneas.  

Analisando, agora, à luz destas considerações a factualidade dada como provada, vejamos, então, se os autores lograram provar os requisitos de que depende o reconhecimento do direito legal de aquisição por eles invocado.

Neste contexto, diremos, no que respeita ao primeiro e terceiro os requisitos supra enunciados, que, tendo a Portaria nº 219/2016, de 9 de agosto, publicada ao abrigo do disposto no art.º 4.º, n.º 3 e art.º 49.º da Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto, fixado a unidade de cultura a que se refere o art.º 1376.º do Código Civil, estabelecendo  para a Nuts III do …, onde se integram os prédios em causa, para os terrenos de regadio 4 (hectares) e para o terreno de sequeiro 44 (hectares),  fácil é concluir,  ante os factos dados como provados nos  nºs 8, 9 e 12, quer o prédio dos autores, quer o prédio vendido à ré ora recorrente  têm área inferior à unidade de cultura fixada.  

E se é certo, no que concerne ao segundo dos requisitos enunciados, resultar claro dos factos dados como provados no nº 12, estarmos perante dois prédios confinantes, mais problemática é a questão de saber se os factos tidos como assentes nos nºs 1, 2, 9 e 12 permitem qualificar quer o prédio dos autores, quer o prédio vendido à ré, ora recorrente, como prédios  rústicos.

Desde logo, porque o  art. 1380º, nº 1 do C. Civil, limitou-se a conferir  o direito de preferência aos proprietários  de terrenos confinantes, sem esclarecer se estes terrenos rústicos são os terrenos aptos  para a cultura  ou os efetivamente aplicados à exploração agrícola e/ou florestal e se estes terrenos rústicos abrangem também aqueles que contenham uma parte urbana, deixando, por isso, a cargo do julgador  a tarefa de decidir se os prédios  com estas caraterísticas  se subsumem, ou não,  àquela  norma legal.    

Ora, o que decorre dos factos dados como provados nos nºs 1 e 12 é que os autores são titulares do prédio misto denominado “….”, situado na freguesia de ….., concelho de ……, inscrito na respetiva matriz cadastral rústica sob o artigo …. da Secção …. e na matriz urbana sob o artigo ….,  concelho de ….., descrito na Conservatória do registo Predial de … sob o número …. da referida freguesia  e concelho, constituído por uma parte urbana com a área bruta de construção de 175,30 m2, correspondente a “casa de rés do chão com 5 compartimentos para habitação, cozinha e dependência, com o valor patrimonial de € 8180,00, e por uma parte rústica, com a área total de 29,11250 ha, composta por diversas parcelas classificadas com cultura arvense (a maior parte de Classe 4ª ), com a área de 20 ha; montado de sobro com a área de 8,4938 ha e oliveira e vinha, esta com 4 ha, tudo com o valor patrimonial de € 557,22.

Do mesmo modo, decorre dos factos dados como provados nos nºs 2, 6, 7,  9 e da cópia da escritura pública de compra e venda, junta a fls. 17 a 19, que foi vendido à ré e ora recorrente, HH, o prédio misto, denominado “….”, sito em …., freguesia de …., concelho de ….., inscrito na matriz rústica sob o artigo ….. da secção …, e na matriz urbana sob o artigo ……, da freguesia de …., concelho de …., descrito na Conservatória do Registo Predial de ….. sob o número …. e   composto de uma área de 28,8125 hectares de cultura arvense, montado de sobro ou sobreiral, cultura arvense e oliveiras e casa de rés-do-chão para habitação e dependência.

De sublinhar que o conceito de prédio misto, vale apenas para efeitos fiscais, estatuindo  o art. 5º, nº 1 do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (Dl nº 287/2003, de 12 de novembro, vigente à data da aquisição do prédio  pelos autores )[11], que “Sempre que um prédio tenha partes rústicas e urbana é classificado, na íntegra, de acordo com a parte principal” e estabelecendo o seu nº 2 que “Se nenhuma das partes puder ser classificada como principal, o prédio é havido como misto”.

Trata-se, na expressão do acórdão do STJ, de 28.02.2008 (processo nº 08A075)[12], de uma definição fiscal, assente num critério de predominância da parte principal, «ou seja, a parte que avultar no conjunto é que determina a qualificação como prédio rústico ou urbano; se tal juízo de predominância não for alcançável, o prédio é considerado misto».

A verdade, porém, é que a nossa lei civil não só não reconhece a categoria de prédio misto como um tertium genus nem aceita o critério de predominância da parte rústica ou urbana, como também não atende ao tipo de inscrição matricial nem ao tipo de descrição predial, pelo que, para qualificar um prédio como sendo rústico ou urbano,  há que recorrer à definição dada pelo artigo 204º do C. Civil.

Segundo o nº 2 deste artigo, “Entende-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica, e por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro”.

De entre as teorias do valor; da afetação económica; do fracionamento e da consideração social propostas pela doutrina com base neste preceito, como critério de distinção entre prédio rústico e urbano[13], julgamos, na esteira da orientação consolidada na jurisprudência deste Supremo Tribunal [14], que tal distinção deve assentar, numa avaliação casuística, tendo subjacente o critério base de destinação ou afetação económica.

Assim, de acordo com este critério, «um prédio será rústico ou urbano conforme a habitação for fundamentalmente um meio de ligação à terra cultivada ou antes a terra constituir apenas um complemento da habitação e não um fim essencial da ocupação da habitação»[15].

Um prédio com parte rústica e parte urbana, qualificado, no seu conjunto, como misto para efeitos fiscais, será qualificado, para efeitos civis, designadamente do disposto no nº 1 do art. 1380º do Código Civil, «como prédio rústico quando, essencialmente utilizado para cultura ou cultivo agrícola, a parte urbana estiver ao serviço da parte rústica desse prédio, não gozando de autonomia funcional»[16].

E uma parcela de terreno, contígua a casa de habitação, será qualificada de prédio rústico ou logradouro de um prédio urbano, consoante não se destine ou seja destinada a proporcionar utilidade a este prédio[17].

Será logradouro, na expressão do Acórdão do STJ, de 06.07.1993[18], se se apresentar como « um espaço complementar e serventuário de um edifício com o qual constitui uma unidade predial», ou, nas palavras do Acórdão do STJ, de 25.03.1993[19], como «o terreno contíguo a prédio urbano que é ou pode ser fruído por quem se utilize daquele, constituindo um e outro uma unidade».

De realçar que, não definindo a lei o que entende por logradouro, nem estabelecendo limites para o mesmo nem exigindo qualquer proporção entre a área urbana e a área rústica de um mesmo prédio, a circunstância de a parte rústica do prédio dos autores ter a área total de 29,11250 ha não impede a qualificação deste prédio como urbano.

E o mesmo vale dizer quanto ao facto desta mesma área, segundo a inscrição matricial rústica, ser composta por  diversas parcelas classificadas com cultura arvense (a maior parte de 4ª Classe), com a área de cerca de 20 ha, montado de sobro com a área de 8,4938 ha, oliveiras e vinha, esta com cerca de 0,4 ha, pois, tal como já se deixou dito, o teor da  inscrição matricial não releva para efeitos de qualificação de um prédio como sendo urbano ou rústico.

Acresce ser sobre os autores que recaía, nos termos do disposto no art. 342º, nº 1 do C. Civil, o ónus de alegar e provar, que praticam nestes terrenos qualquer tipo de exploração  florestal e/ou atividade  agrícola, pelo que, não tendo os mesmos alegado, no caso dos autos, quaisquer factos demonstrativos do aproveitamento destes terrenos, são eles que têm de sofrer as consequências dessa falta de prova.

De referir ainda que, contrariamente ao afirmado no acórdão recorrido, não se vê que se possa defender resultar do espírito da lei que o citado art. 1380º, nº 1 não vincula o exercício do direito de preferência à efetiva exploração dos prédios para fins agrícolas, bastando-se com o facto de serem prédios aptos para cultura, quando é certo que, como se escreveu no Acórdão  do STJ, de 28.02.2008 (processo nº 08A075)[20], «a razão de ser do regime legal consagrado no art. 1380º, nº1, do Código Civil, ancora num propósito propiciador do emparcelamento de terrenos com área inferior à unidade de cultura, visando uma exploração agrícola tecnicamente rentável, evitando-se, assim, a proliferação do minifúndio, considerado incompatível com um aproveitamento  fundiário eficiente».

Daí que, aceitando-se o critério de destinação ou afetação económica como critério base para qualificar determinado prédio como rústico ou urbano e tendo ficado provado que os autores residem no prédio de que são proprietários (nº 10 dos factos provados) e nele não desenvolvem qualquer atividade agrícola (nº 11 dos factos provados), evidente se torna que os autores utilizam o prédio em causa essencialmente para a sua habitação, o que tudo quer dizer, nas palavras do citado Acórdão do STJ, de 28.02.2008, que o núcleo essencial do “prédio misto”, dos autores, a sua destinação e afetação, são próprias de um prédio urbano, não se alcançando, deste modo, os fins para que o legislador consagrou, no art. 1380º, nº 1 do C. Civil, o direito de preferência.

E sendo assim, ou seja, não podendo o prédio dos autores ser considerado prédio rústico, indemonstrado fica, desde logo, um dos requisitos do art. 1380º, nº 1, do Código Civil, o que tanto basta para se concluir não serem os autores titulares de direito de preferência sobre o prédio vendido à ré, ora recorrente.

Termos em que procede o recurso interposto pela ré.


IV – Decisão


Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em julgar procedente a revista interposta pela ré HH e, consequentemente, revoga-se o acórdão recorrido, ficando a valer a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância. 

Custas pelos autores recorridos.

Notifique.


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Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade da Exmª. Senhora Conselheira Catarina Serra e do Exmº Senhor Conselheiro Paulo Rijo Ferreira que compõem este coletivo.

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Supremo Tribunal de Justiça, 14 de janeiro, de 2021

Maria Rosa Oliveira Tching (Relatora)

Catarina Serra

Paulo Rijo Ferreira

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[1] In http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d58935c2f88ba0b980257703002f9a5 c?OpenDocument
[2]http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/779037159ca9662d802573fd0 043d598.
[3] Importa notar que no caso do Acórdão do STJ supramencionado, não foi dado como provado que “os AA. não utilizam o prédio referido em C) para qualquer actividade agrícola”. Mesmo assim, prevaleceu o entendimento de se tratar de um prédio urbano.
[4] In http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a94f43c04daad71a80257f4100 51fab3?OpenDocument.
[5] Cujo sumário se encontra disponível em http://www.pgdlisboa.pt/jurel/stj_mostra_doc.php?nid=28005&codarea=1
[6] http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/779037159ca9662d802573fd0 043d598
[7] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[8] In “Obrigações Reais e Ónus Reais”, pág. 225.
[9] In “Código Cvil, Anotado”, Vol. III, págs. 270 e 271
[10] Cfr. Henrique Mesquita, “Direito de Preferência”, in CJ, Ano XI, 1986, tomo V, pág. 50.
[11] DL nº 287/2003, de 12.11.
[12] Acessível in www.dgsi/stj.pt
[13] A este respeito, vide Menezes Cordeiro, in, “Tratado de Direito Civil Parte Geral”, tomo II, pp. 121 e segs. e “Direitos Reais”, págs. 197 e 198.
[14] Cfr. entre outros, os Acórdãos  do STJ, de  31.01.1991, in, BMJ nº 403, pág. 416; de 20.06.2000 ( processo nº 217/00) não publicado; de 06.07.2006 ( processo nº 1637/06); de 24.10.2006 ( processo nº 2493/06); 15.01.2008  ( processo nº 4320/07) não publicado;  de 28.02.2008 ( processo  nº08A075); 22.06.2010 ( processo nº 237/1999), não publicado; de 25.03.2010 ( processo nº 186/1999.P1.S1); 03.11.2011 ( processo nº 7712/05.0TBBRG.G2.S1); de 21.01.2016 ( processo nº 2563/07.0TBVCD.P1.S1) e de 19.05.2020 ( processo 908/17.4T8GRD.C1.S1), acessíveis in www.dgsi/stj.pt.
[15] Cfr, citado Acórdão do STJ de 31.01.1991.
[16] Cfr. Acórdão do STJ, de 29.04.2004, in, www.dgsi.pt
[17] Vide citado Acórdão do STJ de 28.02.2008.
[18] In BMJ nº 429, pág. 761.
[19] In CJ/STJ, Ano I, Tomo II, pág. 33.
[20] Acessível in www dgsi/stj.pt.