DANO
CAUSA VIRTUAL
RELEVÂNCIA
AJUDA DE TERCEIRA PESSOA
FIXAÇÃO DO MONTANTE INDEMNIZATÓRIO
Sumário


I- Sendo ordenada segunda perícia no mesmo processo, a sentença tem de decidir qual delas merece mais credibilidade, apreciando livremente a questão, nos termos do disposto no art. 489º CPC.
II- Numa situação em que anteriormente ao acidente o lesado já sofria de défices cognitivos, já necessitava de acompanhamento médico de psiquiatria, e, independentemente do acidente sofrido, iria sempre necessitar, em momento futuro não concretamente apurado, de ajuda de terceira pessoa, atento os problemas psíquicos e os défices cognitivos de que sofria, tendo o acidente antecipado tal necessidade em face do agravamento temporário das suas patologias, estamos perante o que a doutrina costuma designar como o problema da relevância negativa da causa virtual.
III- A doutrina e a jurisprudência têm entendido que o nexo de causalidade posto em marcha pelo evento adequado a causar o dano existe e releva para o Direito, ainda que se intrometa na equação uma outra causa, que determine um dano parecido. Dito de outra forma, a causa virtual não possui a relevância negativa de o excluir, pois em nada afecta o nexo causal entre o facto operante e o dano: sem o facto operante o lesado teria um dano idêntico, mas não aquele preciso dano. Daí que exista a obrigação de indemnizar. Pode, porém, a causa virtual ser ponderada pelo Julgador como causa de isenção ou atenuação da obrigação indemnizatória, tudo dependendo das circunstâncias do caso concreto.
IV- Assim, quando o lesado era portador de doença neurológica que iria num futuro não concretamente determinável reduzir as suas capacidades e retirar-lhe a autonomia, mas surge um acidente de viação que antecipa imediatamente esse dano, existe obrigação de indemnização. O lesado, por virtude do acidente, perdeu aquilo que poderemos chamar de “tempo de vida de qualidade”, que ainda teria à sua frente por tempo não determinado, mas que, assim, cessou abruptamente.
V- O dano em causa tem repercussões patrimoniais óbvias, que se traduzem na necessidade de contratar terceira pessoa para colmatar a sua falta de autonomia.
VI- Inexistindo elementos capazes de determinar, de modo seguro e definitivo, o concreto custo, ou dispêndio, com a necessidade de auxílio de terceira pessoa e, bem assim, de calcular o concreto momento em que o lesado necessitaria dessa ajuda de terceira pessoa caso não tivesse ocorrido o evento danoso, é de recorrer ao disposto no art. 566º/3 CC, arbitrando indemnização segundo juízos de equidade.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

M. T., viúva, residente no Complexo Habitacional da …, Bloco .., …, em …, V. N. de Famalicão, intentou contra X – COMPANHIA DE SEGUROS, S. A., com sede na Rua …, …, em Lisboa, a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, pedindo a condenação da Ré a: “a) Pagar à A. a quantia de € 18.410,24, a título de reembolso das despesas já suportadas, até Março de 2017, com o internamento em lares de terceira idade, quantia essa que deverá ser acrescida de juros de mora calculados à taxa legal e contados desde a citação até ao efectivo e integral pagamento daquela soma; b) Pagar à A. a quantia de € 3.743,36, a título de reembolso das despesas já suportadas, até Março de 2017, com internamentos, cirurgias, medicação, consultas médicas e transportes, quantia essa que deverá ser acrescida de juros de mora calculados à taxa legal e contados desde a citação até ao efectivo e integral pagamento daquela soma; c) Pagar à A. a quantia de € 202,46 a título de reembolso com a aquisição da roupa destruída no acidente, de televisor para utilização na Unidade de Cuidados Continuados ... e de sapatos de rede “nursing”, quantia essa que deverá ser acrescida de juros de mora calculados à taxa legal e contados desde a citação até ao efectivo e integral pagamento daquela soma; d) Pagar à A. a indemnização de € 288.343,80, a título de ressarcimento das despesas que terá de suportar até aos 83 anos de idade com o internamento em Lares de terceira idade e com medicamentos, quantia essa que deverá ser acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal e contados desde a citação até ao efectivo e integral pagamento daquela soma; e) Pagar à A. a importância de € 50.000,00€, a título de indemnização por danos não patrimoniais, quantia essa que deverá ser acrescida de juros de mora calculados à taxa legal e contados desde a citação até ao efectivo e integral pagamento daquela soma; f) Pagar à A. a importância de € 50.000,00, a título de indemnização pelo dano biológico, quantia essa que deverá ser acrescida de juros de mora calculados à taxa legal e contados desde a citação até ao efectivo e integral pagamento daquela soma. g) Pagar à A. a quantia que se vier a liquidar para suportar os tratamentos de fisioterapia.”
Alegou, para o efeito, que no dia 3 de Novembro de 2016, pelas 18h30, na Avenida ..., em ..., Vila Nova de Famalicão, desta Comarca de Braga, foi atropelada, na passadeira, pelo veículo com a matrícula BV, seguro na Ré e por culpa da respectiva condutora, o que lhe causou danos vários que descreve, de cariz patrimonial e não patrimonial.

Regular e pessoalmente citada, a Ré contestou alegando que o acidente é imputável apenas à Autora, pois que iniciou a travessia daquela artéria, fora da passadeira que ali existia a cerca de 12 metros e sem se assegurar que o podia fazer em segurança. Mais alegou que a Autora sofria, já antes do acidente, de várias patologias do foro cognitivo e psiquiátrico, nomeadamente, da doença de Alzheimer, necessitando também já então de acompanhamento médico e de terceiros.
Por fim, considerou exagerados os montantes peticionados e pugnou pela sua absolvição do pedido.

Foi citado o I.S.S., I.P., o qual não deduziu pedido de reembolso.

Foi proferido despacho saneador, com fixação do objecto do litígio e elaboração dos temas da prova.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento.

A final, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou a Ré X – Companhia de Seguros, S.A:

a) a pagar à Autora a quantia de € 72.500,00 (setenta e dois mil e quinhentos euros) acrescida de juros moratórios, às taxas legais sucessivamente emergentes do disposto no artº. 559º/1 do Código Civil, contados desde a data da presente sentença e até integral pagamento;
b) a pagar ao Centro Hospitalar do Médio Ave, EPE., a quantia de € 3.629,23 (três mil, seiscentos e vinte e nove euros e vinte e três cêntimos) acrescida de juros moratórios, às taxas legais sucessivamente emergentes do disposto no artº. 559º/1 do Código Civil, desde 24 de Janeiro de 2019 e até integral pagamento;
c) absolveu a Ré do mais que vinha peticionado.

Inconformadas com esta decisão, a ré dela interpôs recurso independente, e a autora recurso subordinado, que foram recebidos como de apelação, a subir nos próprios autos (art. 645º/1,a) do Código de Processo Civil) e com efeito meramente devolutivo (art. 647º/1 CPC).

Terminam a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

Recurso interposto pela ré:

1ª. A ora Recorrente não pode conformar-se com a douta sentença recorrida, uma vez que, esta não teve na devida conta a matéria de facto provada e posta à discussão, nem o resultado das perícias de especialidade de psiquiatria e neurocirurgia bem como o resultado da segunda perícia, devendo proceder-se à alteração da matéria de facto dada como provada, não tendo fundamento a atribuição da ajuda de terceira pessoa. Por conseguinte, o valor atribuído de €37.500,00 a título de ajuda de terceira pessoa não deve ser mantido.
2ª. Em segundo lugar, os valores fixados como indemnização, a título de danos não patrimoniais no montante de €35.000,00 (neste se incluindo o DF de 3 pontos sem esforços acrescidos), deveriam necessariamente ser inferiores.
3ª. Por último, ainda que se entenda não ser de alterar a matéria de facto dada como provada nem tão pouco revogada a sentença no que respeita à atribuição de ajuda de terceira pessoa, o que só por mera hipótese se admite, sempre a quantia arbitrada a esse título, no montante de €37.500,00, se mostra exagerada, devendo a mesma ser manifestamente reduzida.
4ª. No que respeita à decisão da matéria de facto, a ora Recorrente pugna pela alteração da sentença no sentido de serem eliminados dos Factos Provados a matéria constante dos arts. 37º e 45º dos Factos Provados, uma vez que esses factos estão em contradição com a documentação junta aos autos, nomeadamente a documentação clínica.
5ª. Além disso, o Facto Provado nº 53 deverá ser alterado no sentido de passar a constar que “53. À data do acidente a Autora necessitava de supervisão de tarefas e de terceiros para a toma regular de medicação de acordo com a prescrição médica”.
6ª. Por fim, deve ser incluído nos Factos Provados o Facto Não Provado nº 28, embora parcialmente, fazendo constar dos factos Provados que “À data do atropelamento, a Autora sofria de demência”.
7ª. A Autora, com 66 anos, antes do acidente, estava reformada por invalidez, sofrendo de défice neurocognitivo, predominantemente de memória, com patologia pré-existente de demência, encontrando-se inclusive medicada para o efeito.
8ª. O défice funcional de 3 pontos (facto provado nº 31) atribuído na primeira perícia pela sequelas de fractura do cúbito esquerdo e fractura perna direita por analogia (facto provado nº 30) ou mesmo o défice funcional de 4 pontos atribuído na segunda perícia por essas mesmas sequelas, que nem sequer impedem a mobilidade da Autora tanto do membro superior esquerdo como do membro superior direito, estão em contradição com a matéria de facto provada sob os Factos Provados nºs 37º e 45º e jamais poderiam dar lugar a atribuição de uma indemnização a título de ajuda de terceira pessoa, não existindo nexo de causalidade entre a ajuda de terceira pessoa de que a Autora pode necessitar e as sequelas do acidente.
9ª. Resulta do exame da especialidade de neurocirurgia que não foi atribuída à Autora qualquer incapacidade ou sequela derivada do acidente e, a existir, tal apenas poderá ser valorado e quantificado pela especialidade de psiquiatria.
10ª. Por sua vez, submetida a Autora à avaliação pericial da especialidade de psiquiatria, também não foi atribuída por esta especialidade qualquer incapacidade, concluindo o perito que não é observável qualquer psicopatia ou perturbação psíquica actual, que se possa atribuir ao evento em apreço.
11ª. Assim, não tendo os peritos da especialidade de neurologia e psiquiatria atribuído qualquer incapacidade à Autora decorrente do acidente e tendo em conta que o perito que realizou a primeira perícia apenas atribuiu sequelas à autora do foro ortopédico, avaliado em 3 pontos, sem esforços acrescidos, é totalmente descabido e destituído de fundamento a atribuição de ajuda de terceira pessoa na sequência do acidente descrito nos autos.
12ª. Pelo que mal andou o tribunal em atribuir a ajuda de terceira pessoa, ajuda essa que foi infundada e coerentemente afastada pela segunda perícia, tendo o perito que a realizou fundamentado e explicado a razão pela qual a ajuda de terceira pessoa que a Autora actualmente necessitava não é consequência do acidente, o que não sucedeu no relatório da primeira perícia, mesmo após terem sido solicitados os devidos esclarecimentos.
13ª. Além disso, na resposta aos quesitos formulados pela Ré foi respondido afirmativamente no sentido de que a Aurora, antes do acidente, já necessitava de supervisão de tarefas e que iria necessitar sempre de ajuda de terceira pessoa, independentemente da ocorrência do acidente, atento os seus antecedentes e as patologias prévias de que era portadora.
14ª. Assim, não se pode confundir o que são as lesões e sequelas do acidente com o estado em que a Autora se encontra em virtude da doença que sofria e sofre e as consequências da evolução natural dos seus problemas psiquiátricos e da demência de que já era portadora.
15ª. Pelo que deve ser revogada a sentença na parte que atribuiu à Autora a quantia de €37.500,00 a título de ajuda de terceira pessoa com base na equidade e alterada a matéria de Facto Provada no sentido de serem eliminados dos Factos Provados a matéria constante dos arts. 37º e 45º dos Factos Provados, o Facto Provado nº 53 deverá ser alterado no sentido se passar a constar que ““53. A data do acidente a Autora necessitava de supervisão de tarefas e de terceiros para a toma regular de medicação de acordo com a prescrição médica”. Além disso, deve ser incluído nos Factos Provados o Facto Não Provado nº 28, embora parcialmente, fazendo constar dos factos Provados que “À data do atropelamento, a Autora sofria de demência”.
16ª. Acresce que a ora Recorrente também entende que a importância de €35.000,00 arbitrada a título de indemnização pelos danos não patrimoniais, nestes se incluindo o dano biológico pelo défice funcional de 3 pontos, é excessiva, não se compadecendo com as decisões dos nossos tribunais para casos semelhantes.
17ª. Ora, tendo em conta que a Autora já sofria de problemas de saúde, que não exercida qualquer actividade remunerada, encontrava-se inclusive reformada por invalidez, e o défice funcional de 3 pontos, sem esforços acrescidos, em consequência do acidente não lhe afectou a mobilidade, a compensação a título de danos não patrimoniais nunca deveria ser superior ao montante de €16.000,00.
18ª. Por último, no caso de se entender que a ajuda de terceira pessoa deve ser mantida nos termos em que foi decidida pela primeira instância, o que não se espera por corresponder a uma situação de injusto enriquecimento à custa da seguradora, sempre o montante arbitrado de €37.500,00 com recurso à equidade se mostra exageradíssimo.
19ª. Repara-se que a Autora não sofre de quaisquer sequelas que lhe determinem a ajuda de terceira pessoa nem foi estabelecido pelas especialidades de neurologia ou psiquiatria qualquer nexo de causalidade entre o actual estado da Autora e o acidente ocorrido em 2016.
20ª. A Autora encontra-se actualmente institucionalizada num lar, mas tal situação não se deve nem é consequência do acidente ocorrido em 2016.
21ª. A Autora, antes do acidente, encontrava-se já num processo degenerativo de origem demencial já a solicitar a ajuda de terceira pessoa, não sendo totalmente autónoma.
22ª. Aliás, o facto de o tribunal ter recorrido à equidade para fixar o montante da indemnização é elucidativo de que essa atribuição é forçada e não tem correspondência com as sequelas do acidente.
23ª. Tendo em consideração que o IAS fixou-se nos €438,81 com efeitos a partir de 2020, o montante arbitrado de €37.500,00 corresponderia a 85,45 meses (mais de 7 anos) para pagamento da ajuda de terceira pessoa, o que, face aos antecedentes da Autora e aos resultados das perícias de especialidade de psiquiatria e neurologia e à necessidade de ajuda de terceira pessoa de que a Autora já carecia e iria necessitar independentemente do acidente, se revela totalmente exagerado, devendo ser manifestamente reduzido.
24ª. Ao decidir como decidiu, a douta sentença recorrida não teve na devida conta a matéria de facto provada nem o direito aplicável, tendo violado o disposto nos arts. 562.º, 563.º, 564.º e 566.º do Código Civil.
25ª. Deste modo, deve ser revogada a douta sentença recorrida, proferindo-se acórdão nos termos atrás expostos.

Recurso interposto pela autora e contra-alegações:

1. Quanto ao facto provado n.º 37, (A Autora necessita da ajuda de outra pessoa para todas as suas actividades diárias básicas, nomeadamente, para realizar a sua higiene pessoal e para andar), não se entende como o Tribunal “a quo” poderia responder de forma diversa.
2. A prova deste facto que consta dos autos é insofismável, nomeadamente, o teor da declaração médica subscrita em 22.11.2016 pelo médico psiquiatra, Dr. T. R., (doc. 4 junto com a p.i.),
3. Bem como, o relatório de urgência do HSJ – Pólo Porto, datado de 22.02.2017, (cerca de 4 meses após o sinistro) e que constitui o doc. 5 junto com a petição.
4. Também a Nota de Alta, emitida em 20.03.2017, (cerca de 5 meses após o acidente), indica que a doente é dependente em grau moderado para todos os autocuidados, dependente nas AVD e AFVD após TCE por atropelamento.
5. A perícia médica realizada nos autos em primeiro lugar é reveladora da manifesta necessidade da recorrida na ajuda de terceira pessoa para as actividades de vida diária, referindo, expressamente que o evento colocou a examinada totalmente dependente de terceiros para a realização daquelas actividades e concluindo que existe nexo de causalidade entre a necessidade da ajuda de terceira pessoa e o sinistro ocorrido.
6. O mesmo se diz quanto à matéria de facto que se considera provada no n.º 45, porquanto e independentemente das sequelas decorrentes das fracturas sofridas, o certo é que, a recorrida encontrando-se dependente em elevado grau da realização das suas actividades diárias, nomeadamente, higiene, vestir e despir, com desorientação, instabilidade emocional e discurso e pensamento confuso e desorientado, está limitada nos seus movimentos e impossibilitada de sair do Lar.
7. A prova documental e testemunhal do facto constante de 53.º é avassaladora e é totalmente no sentido que a recorrida vivia sozinha antes do atropelamento e apenas necessitava da supervisão de terceiros para tomar regularmente a medicação.
8. E, consequentemente, não necessitava da ajuda de terceira pessoa para a realização das suas actividades diárias básicas.
9. Desta forma e de toda a demais prova que resulta dos autos – aliás não existe qualquer prova que o contrarie – deve manter-se inalterável o facto que consta do n.º 53 da lista dos factos considerados provados.
10. Não existe contradição entre o facto provado que consta do n.º 31 da respectiva lista e os factos nºs. 37 e 45 da mesma lista, porquanto foi atribuído um défice funcional de integridade físico-psíquica de 3 pontos e, para além disso, a recorrida necessita da ajuda de terceira pessoa e encontra-se limitada nos seus movimentos e impossibilitada de sair do Lar pelos seus próprios meios.
11. Alega a recorrente que as sequelas do acidente não se podem confundir com o actual estado da recorrida que advém dos problemas de que sofria anteriormente e que a ajuda de terceira pessoa era anteriormente necessária mas esquece toda a prova produzida nos autos, nomeadamente, que a recorrida vivia sozinha há cerca de três anos de forma autónoma e independente.
12. O relatório da especialidade de neurocirurgia conclui que o acidente e o internamento prolongado terão antecipado a evolução natural da doença e, como resultado do acidente, a recorrida deixou de poder viver de forma independente na sua casa e passou a estar internada num Lar sem conseguir sozinha, sequer, fazer a sua higiene pessoal e demais actividades de vida diária.
13. O retrocesso do estado da recorrida relaciona-se com o seu estado confusional agudo resultante da hemorragia intracraniana e nunca quererá dizer que a recorrida voltou ao estado em que se encontrava antes do acidente.
14. Toda a prova produzida nos autos foi no sentido que a recorrida nunca voltou a ser a pessoa autónoma e independente que era antes do atropelamento de que foi vítima.
15. A Não é verdadeiro que a recorrida sofra da doença de Alzheimer e, ao contrário do que refere a segunda perícia e a recorrente, a substância donepezilo não é apenas utilizada no tratamento daquela doença mas também, e variadas vezes, prescrito para perturbações depressivas como é o caso em apreço.
16. Não faz qualquer sentido a pretensão da recorrente no aditamento aos factos provados que, à data do atropelamento, a autora sofria de demência não existindo qualquer prova nos autos que permita a afirmação que a recorrida nem sempre tomava a medicação.
17. Tendo em consideração os factos considerados provados em 43, não poderia o Mmo. Juiz a “quo” utilizar outra redação no facto provado com o n.º 53.
18. Da leitura do relatório da primeira perícia e daquele que se relaciona com a especialidade de neurocirurgia, resulta clara a sua fundamentação e o nexo de causalidade entre a atual situação da recorrida e o acidente.
19. Deverá manter-se inalterável a Douta Sentença recorrida, no que se refere à ajuda de terceira pessoa e na redacção da matéria de facto constante dos nºs. 37.º, 45.º e 53.º da lista dos factos provados e 28.º da lista dos factos não provados.
20. Não tem qualquer fundamento, tendo em consideração as circunstâncias do sinistro e as suas graves consequências, a pretensão da recorrente na redução da indemnização arbitrada a título de danos não patrimoniais fixada em € 35.000,00 para a quantia de € 16.000,00.
21. A recorrida, após o atropelamento, foi transportada de ambulância para o serviço de urgência do Hospital do Médio Ave, sofreu as lesões que constam de 15 da lista dos factos provados, foi sujeita a intervenção cirúrgica e manteve-se internada no referido Hospital até 06.12.2016.
22. Continuou internada até 20.03.2017 e, a partir dessa data, encontra-se a viver no Lar, denominado ResiY e, como resultado do acidente, ficou com as sequelas constantes de 30 da lista dos factos provados, consequentemente, com um défice funcional da integridade físico-psíquica de 3 pontos.
23. Com um défice funcional temporário total de 34 dias e um défice funcional temporário parcial de 385 dias, sofreu dores na cabeça, no braço esquerdo e perna direita, quantificáveis em grau 4 numa escala de 1 a 7, e padece de um dano estético permanente de grau 2 numa escala crescente de 1 a 7.
24. O contexto do estado confusional mental foi clinicamente associado à hemorragia intracraniana e ao stress provocado pela cirurgia ortopédica levada a cabo por causa das fracturas sofridas no atropelamento.
25. A recorrida necessita da ajuda de terceira pessoa para todas as actividades diárias básicas, nomeadamente, para realizar a sua higiene pessoal e para andar.
26. Em determinados períodos não reconhece algumas das pessoas que lhe estão próximas, sendo certo que à data do acidente vivia em casa própria, realizando todas as tarefas quotidianas, bem como a respectiva higiene pessoal, o que, após o acidente não consegue fazer sem o auxílio de outra pessoa, o que muito a desgosta e entristece.
27. Encontra-se limitada nos seus movimentos e impossibilitada de sair do Lar pelos seus próprios meios e constrangida a passar grande parte do seu tempo deitada numa cama, o que tudo muito a desgosta e entristece, pois estava habituada a passear a pé pela freguesia onde vivia.
28. Actualmente, manifesta desorientação no tempo e no espaço, alterações do sono, alucinações visuais, lentidão e falta de iniciativa, lentidão psicomotora e infantilismo, com uma linguagem mal articulada, afecto e pensamento pobres, grave alteração da memória imediata e recente, alteração grave do equilíbrio.
29. O Mmo. Juiz “a quo” e bem, no entendimento da recorrida, recorreu ao disposto no n.º 3 do art. 566.º do CC, no sentido de atribuir a indemnização da ajuda de terceira pessoa segundo juízos de equidade.
30. Considera-se, porém, que a fórmula encontrada não atribui à recorrida a compensação pela totalidade dos danos futuros que são previsíveis, (n.º 2 do art. 564.º do CC).
31. Sendo assim, a recorrente também não tem qualquer razão ao pretender que esta indemnização se mostre reduzida.
32. Sem prejuízo do que se alega em sede de recurso subordinado, sempre se dirá que a pretensão da recorrente não tem qualquer fundamento.
33. Face à jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal de Justiça, o valor da indemnização dos danos não patrimoniais nunca deveria ser inferior ao montante de € 65.000,00, (incluindo o dano biológico).
34. No Acórdão daquele Tribunal, datado de 2016, (proc. 2603/10.6TVLSB.L1.S1), verifica-se a atribuição de uma indemnização na quantia de € 35.000,00 por danos não patrimoniais sofridos por pessoa com 47 anos e um quantum doloris de cinco numa escala de sete e dano estético de 2 numa escala de sete.
35. A aqui sinistrada, para além de ter sofrido de um quantum doloris e de um dano estético idênticos, o certo é que as circunstâncias e consequências do acidente são bem mais graves.
36. No que se refere às lesões sofridas, período de internamento, dores, intervenção cirúrgica, agravamento da doença com desorientação no tempo e no espaço, alterações do sono, alucinações visuais, lentidão e falta de iniciativa, lentidão psicomotora e infantilismo, com linguagem mal articulada, afecto e pensamento pobres, grave alteração da memória imediata e recente e alteração grave do equilíbrio.
37. Tudo acrescido do desgosto e tristeza de não poder fazer a sua higiene pessoal e demais actividades da vida diária sem o auxílio de outra pessoa, de se encontrar limitada nos seus movimentos e impossibilitada de sair do Lar pelos seus próprios meios e constrangida a passar grande parte do seu tempo deitada numa cama, pois estava habituada a passear a pé pela freguesia onde vivia.
38. A indemnização decorrente dos danos não patrimoniais sofridos, (com excepção do dano biológico), sempre deveria ter sido fixada em € 45.000,00.
39. O Mmo. Juiz “ a quo” fixou em € 10.000,00 a indemnização do dano biológico, valor extremamente reduzido tendo em consideração as particularidades e os graves resultados do sinistro.
40. A sinistrada ficou, em consequência do acidente, impedida de realizar qualquer actividade diária, incluindo a higiene, limitada nos seus movimentos e impossibilitada de sair do Lar pelos seus próprios meios, quando, anteriormente, vivia sozinha e independente, efectuando todas as tarefas quotidianas, aquela indemnização não deverá ser fixada em montante inferior a € 20.000,00.
41. Sendo certo que a quantia a atribuir em sede de danos não patrimoniais, (incluindo o dano biológico), não deve, assim, ser inferior a € 65.000,00.
42. Quanto à ajuda de terceira pessoa, entende-se que a Douta Sentença recorrida deveria ter considerado como base de cálculo o valor do salário mínimo nacional e não o indexante dos apoios sociais, (IAS), até porque este valor corresponde a cerca de metade do que é pago mensalmente ao Lar ResiY.
43. E considerar que a ajuda de terceira pessoa ocorreu com uma antecipação de 12 anos na sequência da verificação do atropelamento.
44. A vítima vivia sozinha há cerca de 3 anos na sua habitação e de forma independente, pelo que, atendendo à sua idade aquando a produção do evento – 66 anos – e à esperança média de vida – 18 anos – é de presumir que se manteria na situação em que se encontrava anteriormente, pelo menos, pelo período de 8 anos, isto é, até aos 74 anos de idade.
45. O que se traduz numa indemnização de € 70.000,00 que, a este título, deve ser arbitrada.
46. Não se concorda com a absolvição da R. seguradora no que se refere ao pagamento das quantias consideradas provadas em 21, 22, 40 e 41 da respectiva lista.
47. Tais despesas são consequência directa e necessária do acidente, foram realizadas no período que se enquadra no défice temporário parcial fixado em 26.12.2017 e não ocorreriam se o acidente não tivesse surgido.
48. No pagamento destas quantias, cujo valor somado ascende a € 2.238,13, deve a seguradora também ser condenada.
49. A Douta Sentença recorrida violou o disposto nos artigos 562.º; 564.º e 566,º do CC.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, as questões a decidir consistem em saber se:

a) ocorreu erro no julgamento da matéria de facto
b) legalidade e razoabilidade da atribuição da quantia de € 37.500,00 a título de ajuda de terceira pessoa
c) qual o valor correcto a fixar a título de danos não patrimoniais

III
A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1. A Autora está reformada auferindo, em 2017, a pensão mensal de € 1.715,33 (com 50% duodécimo 13º mês).
2. No dia 03.11.2016, a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros com a circulação do veículo de matrícula BV estava transferida para a Ré através de contrato de seguro titulado pela apólice nº. …………01.
3. Nesse dia 03.11.2016, pelas 18H30, o veículo de matrícula BV, propriedade de S. R., era por si conduzido na Avenida ..., em ..., concelho de Vila Nova de Famalicão.
4. Pela metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido Fradelos – Estrada Nacional 14 e já próximo do entroncamento com esta Estrada Nacional.
5. A condutora do BV não se apercebeu que a Autora atravessava a estrada, da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do veículo que conduzia.
6. E foi embater, sem sequer travar, com o veículo na A.
7. Em consequência desse embate, a A. colidiu com o pára-brisas do BV.
8. Caindo na estrada, onde permaneceu imóvel.
9. No local, a faixa de rodagem tem cerca de 9,10 metros de largura.
10. É uma recta com dois sentidos contrários de trânsito atravessada por uma passagem para peões.
11. O piso encontrava-se em bom estado.
12. O BV circulava a uma velocidade de cerca de 30 km/h.
13. A A. nasceu em - de Junho de 1950.
14. Após o atropelamento, a Autora foi transportada de ambulância para o serviço de urgência do Centro Hospitalar do Médio Ave onde lhe foi atribuída pulseira amarela (urgente) e foi assistida.
15. Em consequência do embate, a A. sofreu as seguintes lesões: traumatismo cranioencefálico (TCE), com sinais de hemorragia subaracnoidea pós traumática sulco parietal com foco hemático parafalcino posterior direito sem efeito de massa; fractura dos ossos da perna direita e fractura da diáfise do cúbito esquerdo.
16. Em 08.11.2016, no mesmo Centro Hospitalar do Médio Ave, a Autora foi submetida a intervenção cirúrgica com redução e osteossíntese com placa e parafusos do cúbito esquerdo e encavilhamento fechado, estático, da tíbia direita com vareta T2.
17. A A. manteve-se internada no Centro Hospitalar do Médio Ave desde a data do acidente até ao dia 06.12.2016.
18. Os cuidados, assistência, cirurgia e consultas prestadas pelo Centro Hospitalar do Médio Ave à Autora em consequência do atropelamento ascenderam a € 3.629,23 (três mil, seiscentos e vinte e nove euros e vinte e três cêntimos), conforme factura de fls.7 verso (cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
19. Em 6 de Dezembro de 2016, a Autora foi admitida na Unidade de Cuidados Continuados ..., em Fafe.
20. Em 21.12.2016 e até 20.03.2017, a A. manteve-se internada no serviço de Cuidados Continuados Integrados – Unidade Média Duração Reabilitação da Santa Casa da Misericórdia de ....
21. A A. teve de pagar à Unidade de Continuados ... a quantia de € 297,15.
22. À Santa Casa da Misericórdia de ... a A. pagou a quantia de € 1.763,09.
23. Em 12.01.2017 foi-lhe concedida alta no serviço de neurocirurgia do Hospital de Braga.
24. Em 26.12.202017 consolidaram-se médico-legalmente lesões da Autora.
25. Em 20.03.2017 foi celebrado contrato com a ResiY, Residências e Serviços para a Terceira Idade Lda., NIPC n.º ………, com sede no Largo …, n.º … Braga, cujo objecto consiste na prestação à A. dos serviços de alojamento, alimentação, tratamento de roupa, cuidados de saúde elementares, higiene e conforto pessoal e apoio psicossocial com inclusão dos consumíveis de enfermagem.
26. Desde essa data a Autora mantém-se no Lar da ResiY.
27. Pelos serviços prestados pela ResiY a Autora já pagou a quantia de € 16.350,00, a título de fundo de compensação e primeira mensalidade.
28. A mensalidade no valor de € 1.350,00 é actualizada anualmente em função do índice de inflação.
29. A Autora terá de continuar a suportar tal mensalidade.
30. Em consequência do acidente, a Autora ficou com as seguintes sequelas: a) cicatriz no bordo medial do membro superior esquerdo com 10 cm; b) duas cicatrizes no joelho do membro inferior direito, com respectivamente, 10 e 15 cm.
31. Em consequências das lesões e sequelas sofridas, a Autora ficou a padecer de um défice funcional da integridade físico-psíquica de 3 pontos.
32. E de um défice funcional temporário total de 34 dias e um défice funcional temporário parcial de 385 dias.
33. Em consequência do atropelamento, a Autora sofreu dores na cabeça, no braço esquerdo e na perna direita, quantificáveis em grau 4 numa escala crescente de 1 a 7.
34. Em consequência do atropelamento, a Autora padeceu de um dano estético Permanente de grau 2 numa escala crescente de 1 a 7.
35. As lesões sofridas agravaram temporariamente o estado cognitivo deficitário da Autora, com desorientação no espaço, no tempo, heteropsiquicamente, discurso incoerente, com confabulações, sem actividade alucinatória ou delirante, com insónia e inquietação psicomotora associada a confusão mental.
36. O contexto do estado confusional mental foi clinicamente associado à hemorragia intracraniana e ao stress provocado pela cirurgia ortopédica levada a cabo por causas das fracturas sofridas no atropelamento.
37. A Autora necessita da ajuda de outra pessoa para todas as suas actividades diárias básicas, nomeadamente, para realizar a sua higiene pessoal e para andar.
38. Em determinados períodos a Autora não reconhece algumas das pessoas que lhe são mais próximas.
39. A Autora encontra-se medicada, nomeadamente, com paracetamol, alprazolam, donepezilo, venlafaxina, declofenac, quetiapina, esomeprazol, lactulose e memantina.
40. Em 30 de Dezembro de 2016, a Autora adquiriu sapatos de rede “nursing” para utilização na Unidade de Cuidados Continuados no que gastou a quantia de € 19,60.
41. Em 17 de Dezembro de 2016, com a aquisição de televisor e cabo para utilização na Unidade de Cuidados Continuados ..., a Autora despendeu a quantia de € 158,29.
42. Em resultado do acidente, até 06.12.2017, a A. esteve sujeita a internamento
hospitalar e completamente limitada nos seus movimentos, o que a incomodou e entristeceu.
43. À data do acidente, a Autora vivia em casa própria, realizando todas as tarefas quotidianas, bem como a respectiva higiene pessoal.
44. Após o acidente, a Autora não consegue fazer a sua higiene pessoal e demais actividades da vida diária sem o auxílio de outra pessoa, o que muito a desgosta e entristece.
45. A Autora encontra-se limitada nos seus movimentos e impossibilitada de sair do Lar pelos seus próprios meios e constrangida a passar grande parte do seu tempo deitada numa cama, o que tudo muito a desgosta e entristece, pois estava habituada a passear a pé pela freguesia onde vivia.
46. Actualmente, a Autora manifesta desorientação no tempo e no espaço, alterações do sono, alucinações visuais, lentidão e falta de iniciativa, lentidão psicomotora e infantilismo, com uma linguagem mal articulada, afecto e pensamento pobres, grave alteração da memória imediata e recente, alteração grave do equilíbrio.
47. A Autora esteve internada no Hospital Magalhães Lemos, que é uma unidade de saúde mental, pelo menos desde 09.07.2013 a 06.09.2013.
48. Em 2006 foi sujeita a uma cirurgia no IPO a um neunioma do acústico.
49. Em data anterior ao acidente, a Autora foi reformada por invalidez devido, além do mais, a depressão major recorrente.
50. Em data anterior ao acidente, a Autora sofria de défices cognitivos (predominantemente de memória).
51. Em consequência dessas patologias, a Autora já necessitava de acompanhamento médico na especialidade de psiquiatria à data do acidente.
52. E já se encontrava medicada com donepezilo, venlafaxina, xanax, alzen SR 50, alprazolam e quetiapina.
53. À data do acidente a Autora necessitava apenas da supervisão de terceiros para toma regular de medicação de acordo com a prescrição médica.
54. A Autora, independentemente do acidente sofrido, iria sempre necessitar, em momento futuro não concretamente apurado, de ajuda de terceira pessoa, atento os problemas psíquicos e os défices cognitivos de que sofria, tendo o acidente antecipado tal necessidade em face do agravamento temporário das suas patologias.

II. Factos não provados:

1. A condutora do BV circulava a uma velocidade muito superior a 50 Kms/h.
2. A Autora atravessava a estrada na passadeira existente nesse local.
3. Naquele momento e local, existia um intenso tráfego de peões.
4. O embate na Autora foi com a parte frontal do BV.
5. A Autora foi projectada vários metros pelo ar.
6. A Autora ficou caída junto do separador central localizado na proximidade do referido entroncamento.
7. A condutora do BV circulava com atenção ao trânsito.
8. O atropelamento ocorreu após o BV passar a passadeira de peões ali existente.
9. A Autora iniciou a travessia sem se certificar previamente de que o podia fazer em segurança e indiferente à circulação dos veículos e, nomeadamente, do veículo BV.
10. E surgiu subitamente na via, invadido a faixa de rodagem por onde circulava o veículo BV quando este se encontrava a menos de 10 metros de distância.
11. O embate na Autora foi com parte lateral esquerda da frente do veículo BV.
12. A Autora podia avistar o veículo BV se tivesse olhado para a via antes de iniciar a sua travessia.
13. A Autora iniciou a travessia da estrada saindo logo após a passagem de um veículo que transitava em sentido contrário ao do veículo BV, pelo que só se tornou visível para a condutora do veículo BV quando já estava na faixa de rodagem em que este circulava.
14. A cerca de 12 m. do local onde ocorreu o atropelamento existia uma passadeira destinada à travessia de peões, que a Autora não usou para efectuar a travessia da faixa de rodagem em segurança.
15. A Autora quis correr os riscos inerentes a uma travessia desatenta e perigosa, e tentado, intencionalmente, provocar o atropelamento.
16. À data do acidente, a Autora estava saudável.
17. Em consequência do acidente, a Autora necessita de tratamentos frequentes de fisioterapia.
18. A Autora pagou ao Centro Hospitalar do Médio Ave a quantia de € 3.546,23 em internamento, cirurgias e consultas médicas.
19. Com a aquisição da roupa destruída no acidente, a Autora gastou a quantia de € 40,50.
20. Em consequência do atropelamento, a Autora, até ao final do mês de Março de 2017, consultas médicas e transportes suportou a despesa de € 133,68 (cento e trinta e três euros e sessenta e oito cêntimos) da qual não foi ressarcida.
21. Em consequência do atropelamento, a Autora tem de comprar, periodicamente, medicamentos.
22. Por causa do acidente, em Março de 2017, a Autora gastou a quantia de € 63,45 em medicamentos.
23. Em consequência do atropelamento, a Autora terá de continuar a suportar o valor médio mensal de € 63,45 em medicamentos.
24. A impossibilidade de visitar os seus filhos durante o fim de semana, como sempre aconteceu, desgosta e entristece a Autora.
25. O referido em I.38, I.45 e I.46 foi consequência directa do atropelamento.
26. A Autora foi internada na ResiY como consequência directa do acidente.
27. A Autora foi reformada por invalidez devido perturbação neurocognitiva.
28. À data do atropelamento, a Autora sofria de demência de Alzheimer.
29. A Autora sofria desorientação, tendo momentos de actividade alucinatória.
30. Antes do acidente, a Autora já necessitava de acompanhamento permanente de terceiros.

IV
Conhecendo do recurso.
Constam do art. 640º CPC os requisitos formais de admissibilidade do recurso sobre matéria de facto. No caso, temos como pacífico que a recorrente respeitou os mesmos, pelo que vamos sem mais apreciar esta parte do recurso.
Os factos provados que a recorrente não aceita e que quer que sejam dados como não provados são estes, que podem ser tratados em conjunto:

37. A Autora necessita da ajuda de outra pessoa para todas as suas actividades diárias básicas, nomeadamente, para realizar a sua higiene pessoal e para andar.
45. A Autora encontra-se limitada nos seus movimentos e impossibilitada de sair do Lar pelos seus próprios meios e constrangida a passar grande parte do seu tempo deitada numa cama, o que tudo muito a desgosta e entristece, pois estava habituada a passear a pé pela freguesia onde vivia.

Fazendo uma síntese destes dois factos, o que está em discussão é se a autora, em consequência do acidente, ficou de tal forma limitada nos seus movimentos e impossibilitada de sair do Lar pelos seus próprios meios e constrangida a passar grande parte do seu tempo acamada, ao ponto de necessitar da ajuda de outra pessoa para todas as suas actividades diárias básicas, nomeadamente, para realizar a sua higiene pessoal e para andar.
Este facto complexo, como bem se compreende, sobretudo por ter na sua raiz a existência de um nexo de causalidade adequada entre o atropelamento dos autos e o estado de saúde descrito, só poderá ser devidamente esclarecido com recurso a prova pericial. A prova testemunhal poderá ser usada como coadjuvante, naturalmente, mas no essencial é um juízo médico que está em causa.

Vejamos então a prova que temos nos autos.

Primeiro relatório pericial (16.5.2019): de relevante diz-nos que “da análise cuidada de todos os elementos clínicos constantes do processo, dos obtidos na entrevista clínica e no exame do estado mental, não é observável qualquer psicopatologia ou perturbação psíquica actual, que se possa atribuir ao evento em apreço nestes autos. Foi feita perícia de neurocirurgia em 21.1.2019, que diz que actualmente apresenta um quadro clínico de deterioração cognitiva muito acentuado. Na opinião do perito o TCE registado não é passível de condicionar o actual estado clínico que tem a ver com a deterioração de um quadro demencial eventualmente associado a um quadro depressivo conforme informação do seguimento psiquiátrico que já tinha desde Outubro de 2013. Deverá ser considerado que as circunstâncias do acidente nomeadamente o internamento prolongado poderão ter despoletado o agravamento da doença pré-existente, o que no entender do perito é valorizável médico-legalmente, dado que poderá ter antecipado a evolução natural da doença. Essa valorização poderá ser quantificada pela especialidade de Psiquiatria.
Mais adiante: a patologia demencial é de causa natural, mas admite-se que o seu aparecimento possa ter sido mais precoce devido ao evento em estudo, o que condiciona uma dependência total para as actividades da vida diária, com necessidade de ajuda de terceira pessoa.
Respondendo aos quesitos apresentados pela ré e ora recorrente, a Perita escreve: a deterioração cognitiva apresentada pela examinada anteriormente ao evento poderá, nesta data, ser considerada como sinal da evolução inicial de uma síndrome demencial. Estão descritos alguns episódios de desorientação ligeira temporo-espacial.
É feita depois referência a um internamento no Hospital Magalhães Lemos, entre 9.7.2013 e 6.9.2013.
Faz-se ainda referência a uma cirurgia a um neunioma do acústico, em 2006, sendo referido no período logo após a cirurgia a manutenção de um síndrome vertiginoso crónico, não havendo nova referência a esse facto posteriormente (na documentação facultada à perita). A restante sintomatologia foi associada a patologia do foro neurológico já referida anteriormente.
Em resposta ao quesito 12º da ré (a autora, independentemente do acidente ocorrido em 2011, necessitava de ajuda de 3ª pessoa ?) responde a perita que “antes do evento em estudo, e pela informação presente na documentação facultada, a examinada precisava de supervisão de tarefas (efectuada por vizinha/amiga) mas vivia sozinha”. Em resposta ao quesito 13 (a autora, independentemente do acidente ocorrido em 2011, iria, no futuro, necessitar de ajuda de 3ª pessoa?), a perita responde afirmativamente.
E, elaborando algo mais, escreve: “relativamente à questão do parâmetro de dano de necessidade de ajuda de terceira pessoa para todas as actividades da via diária, prende-se com o facto da examinada, à data do evento e como atrás referido, viver só e apenas precisar de supervisão. Entende-se que o evento em estudo acelerou a evolução da doença demencial de que era portadora (conforme relatório de perícia de neurocirurgia), o que colocou a examinada totalmente dependente de terceiros para a realização das actividades da vida diária muito mais preocupante do que iria acontecer, caso o evento não se tivesse verificado, pelo que existe, de facto, o nexo de causalidade entre este facto e o evento em estudo.
Tendo-se realizado segunda perícia (5.2.2020) a pedido da ré, pode ler-se no respectivo relatório: “no âmbito do período de danos permanentes a necessidade de ajuda de terceira pessoa da examinada deriva da sua patologia do foro psiquiátrico nomeadamente depressão major crónica com défice cognitivo e não das sequelas das fracturas que sofreu no vento traumático. A patologia psiquiátrica de que padece é anterior e a examinanda já se encontrava medicada com medicamentos para tratamento da demência previamente ao evento traumático. A examinanda já apresentava um grau de dependência de terceiros previamente ao evento em apreço, nomeadamente para provisão de medicação e supervisão de toma de medicação, medicação esta que é frequentemente abandonada ou esquecida pelos doentes, principalmente pelos que apresentam défice cognitivo. O facto de que a examinanda viveria sozinha à data do evento, com apoio, não nos garante que este apoio era o ideal para a mesma data, nomeadamente se aquela situação preenchia todas as necessidades e dependências da examinanda. A sua situação de dependência prévia, deriva do défice neurocognitivo, patologia pré-existente ao evento em apreço, que cursa com uma evolução natural progressiva, irreversível e de agravamento das dependências e perda progressiva de autonomia do ser humano. A mera aceleração do curso natural da doença e das dependências por traumatismo, embora admissível clinicamente, depende maioritariamente do estado pré-existente e é clinicamente indistinguível da evolução natural da demência, que se verifica progressivamente, mas muito frequentemente em patamar com perda mais ou menos abrupta de autonomia. Mesmo sem evento traumático a examinada poderia manifestar deterioração da sua situação clínica e perda de autonomia como já se havia verificado em 2013, aquando do internamento no Hospital de Magalhães Lemos, sem termos conhecimento de qualquer traumatismo nessa data. Se dúvidas houvesse quanto à dependência da examinanda, ainda que estas dúvidas fossem escassas, tais dúvidas são dissipadas com a descrição inequívoca e reiterada nos registos clínicos do Hospital Magalhães Lemos (fls. 555 do Citius), de que a doente não teria capacidade para regressar sozinha ao domicílio após aquele internamento. As demências em geral comportam agravamento natural com perda de dependência de evolução mais ou menos rápida, expectável a partir do diagnóstico.
Assim, entende-se, ao contrário da primeira perícia, que a dependência de terceira pessoa é derivada à patologia do foro psiquiátrico, incapacitante e devastadora na vida do ser humano e não atribuível às fracturas que sofreu, das quais evoluiu favoravelmente, com sequelas”.

Perante estes dois pareceres periciais divergentes sobre a mesma questão, a sentença recorrida formou a sua convicção com base no primeiro relatório pericial, com esclarecimentos prestados a fls. 215, em conjugação com os relatórios periciais das especialidades de psiquiatria e neurocirurgia.
Com efeito, escreve-se na motivação da sentença: “tal relatório final, subscrito por Perita de elevada craveira técnica e competência, com vasta experiência na avaliação médico-legal do dano, mostra-se devidamente fundamentado e atesta, de modo fiável e objectivo, as lesões sofridas, sequelas e incapacidades de que ficou a padecer a Autora e permite retratar, com rigor médico-legal objectividade e imparcialidade aquela factualidade. Efectivamente, a Srª. Perita que subscreveu o relatório da primeira perícia socorreu-se de Peritos das especialidades de neurocirurgia e psiquiatria e aplicou de forma que consideramos mais correcta – e em termos idênticos para casos semelhantes de fracturas – os códigos da Tabela constante do Anexo II do DL 352/07, de 23 de Outubro). Ademais, afigura-se-nos que a opção exarada neste relatório pericial relativamente à necessidade de auxílio de terceira pessoa é bem mais consistente e está apoiada no entendimento médico-legal do Perito da especialidade de neurocirurgia – que, salvo melhor opinião, é quem está em melhor condições para avaliar as repercussões do acidente para o agravamento da doença pré-existente e para a antecipação da evolução natural da mesma – mostrando-se também mais consentâneo com a real situação da Autora no momento temporal anterior mais próximo da data em que ocorreu o atropelamento. Com efeito, é de salientar que do depoimento das testemunhas filhos da Autora e do médico psiquiatria que observava e acompanhava a Autora resulta que esta vivia sozinha e fazia a sua higiene autonomamente, apenas não procedendo à confecção de alimentos (posto que tomava, por opção, todas as refeições num café para onde se deslocava sozinha), deslocando-se também sozinha para as compras e conhecendo o valor do dinheiro.
Aliás, esta descrição não é fantasiosa posto que compatível com registos anteriores e contemporâneos do sinistro, como é o caso da declaração de fls. 28 (em que se refere que na última observação antes do acidente a Autora estava estável a nível afectivo e comportamental, “orientada no tempo, espaço e pessoas, com discurso coerente e lógico”) e do episódio de urgência do próprio dia do sinistro onde está mencionado, por enfermeira, que a Autora se apresentava “consciente, orientada na identidade e no T/E (…). Previamente autónoma para as AVD’s”.
E, bem assim, com os próprios registos do Hospital Magalhães Lemos, rejeitando-se frontalmente as ilações que são retiradas do teor desta documentação na segunda perícia relativamente à autonomia da Autora nomeadamente quanto a uma pretensa incapacidade de regresso da Autora ao seu domicílio sem acompanhamento.
De facto, lidos e relidos atentamente tais registos o que deles se retira é que a Autora verbalizava sentimentos de solidão (por exemplo, a p.6 desses registos a fls.135 dos autos, onde consta, com relação ao dia 2 de Agosto de 2013: “Não quer ir embora, porque tem medo de ir para casa, da solidão e dos seus pensamentos”; ou, já no dia 5 de Agosto de 2013, “evitante em relação a ir para casa, onde se sente desapoiada. Não quer Centro de Dia”; ou, ainda, a p.8 desses registo, a fls.137 dos autos, aos 14 de Agosto de 2013, onde se fez constar “Refere não sentir capacidades para ir para casa só mas não encontra alternativa” e que “será necessário apoio do serviço social”; ou, por fim, a p. 9 desses registos e a fls.138 dos autos, onde se escreveu que a Autora diz “que lhe faz bem estar internada porque senão passo o dia sozinha”), mas não denotava uma situação clínica tal que demandasse o auxílio permanente de terceira pessoa para as actividades diárias.
Ora, se então se propunha (apenas) a frequência de um Centro de Dia à Autora como se pode concluir desses registos daquele Hospital que a Autora estava dependente do apoio de terceira pessoa ou que não tinha condições clínicas para passar a viver sozinha, passar a noite sozinha em casa ou que não era capaz de fazer autonomamente as suas actividades diárias, nomeadamente, a higiene e a alimentação?
Se assim fosse, com toda a certeza que as propostas apresentadas à paciente e familiares seriam bem mais drásticas e passariam por negar a alta ou por exigir a transferência para uma unidade de cuidados continuados…
Não se ignora, contudo, que se fez constar nesses registos que a Autora seria integrada num Lar e que os Clínicos suscitam, nesses registos e algumas vezes, a necessidade de avaliação posterior em ambulatório e a necessidade de apurar “quais são os défices reais nas suas actividades de vida/rotina”.
Porém, não constam evidências nos autos que tenha sido esse o destino da Autora em momento posterior à alta do Hospital Magalhães Lemos, pois a testemunha J. N. referiu que a Autora foi viver para sua casa durante cerca de um ano e, após melhoria do seu estado de saúde, voltou a viver sozinha na casa dela em Vila Nova de Famalicão (cfr. ponto I.43), desenrolando-se essa situação com total normalidade, como referido por aquela testemunha, posto que a Autora beneficiava de apoio informal, além do mais, no que tange à supervisão da organização e toma de medicamentação (cfr. ponto I.53).
Do que se conclui que a prova produzida não mostra que, no período entre a alta de Hospital Magalhães Lemos e a data do sinistro, tenham ocorridos défices tais nas actividades diárias da Autora, em especial na autonomia para a locomoção autónoma e orientada, para a realização de higiene diária e para o cumprimento de horários de alimentação e pernoita que exigissem o apoio permanente de terceira pessoa, pelo que não podia ser outra a decisão constante de II.30.
Em face disso, tem de se concluir que o estado funcional da Autora era, em data anterior ao acidente, incompatível com o juízo e as conclusões da segunda perícia, pelo que se defende a prevalência da primeira perícia realizada pelo GML no confronto com aquela segunda, sendo manifesto o contributo do acidente para o aceleramento e antecipação temporal da dependência total de terceira pessoa (cfr. ponto I.54 dos factos provados).
Tal relatório da primeira perícia, por mais equidistante, imparcial e credível desmentiu o depoimento da testemunha L. M. (psiquiatra que presta serviços para a Ré há cerca de 9 anos) o qual tentou evidenciar que, ainda que não tivesse ocorrido o acidente, a Autora sempre estaria, no mesmo espaço de tempo, num estado de dependência total, o que não foi demonstrado, nem comprovado face às concretas patologias anteriores da Autora, nada de objectivo se tendo apurado que o pudesse sequer indiciar minimamente”.

Ora, não vemos qualquer erro de percepção ou de julgamento nesta decisão da primeira instância.
A Recorrente afirma que devem ser eliminados dos Factos Provados a matéria constante dos arts. 37º e 45º, uma vez que esses factos estão em contradição com a documentação junta aos autos, nomeadamente a documentação clínica. Mais afirma que não existe nexo de causalidade entre a ajuda de terceira pessoa de que a Autora pode necessitar e as sequelas do acidente.

Porém, assim não é.
Confrontada com dois pareceres periciais divergentes, a sentença recorrida tinha de decidir qual deles merecia mais credibilidade. Para tal, regia o art. 489º CPC, segundo o qual “a segunda perícia não invalida a primeira, sendo uma e outra livremente apreciadas pelo tribunal”.
O Tribunal fez essa apreciação, levando em atenção a restante prova produzida, de forma esclarecida e lógica, e cabalmente explicada na fundamentação.
E esta Relação concorda com essa decisão.
A situação trazida aos autos é a de uma pessoa que em data anterior ao acidente já sofria de défices cognitivos (predominantemente de memória), já necessitava de acompanhamento médico de psiquiatria, e que, independentemente do acidente sofrido, iria sempre necessitar, em momento futuro não concretamente apurado, de ajuda de terceira pessoa, atento os problemas psíquicos e os défices cognitivos de que sofria, tendo o acidente antecipado tal necessidade em face do agravamento temporário das suas patologias.
Ou seja, se fizermos um raciocínio hipotético, e retirarmos o atropelamento de toda esta equação, mesmo assim a autora iria sempre necessitar, em momento futuro não concretamente apurado, de ajuda de terceira pessoa, atento os problemas psíquicos e os défices cognitivos de que sofria, tendo o acidente antecipado tal necessidade em face do agravamento temporário das suas patologias.
Como vimos, o Tribunal recorrido baseou-se no primeiro relatório pericial, no qual se refere que “o actual estado clínico tem a ver com a deterioração de um quadro demencial eventualmente associado a um quadro depressivo conforme informação do seguimento psiquiátrico que já tinha desde Outubro de 2013. Deverá ser considerado que as circunstâncias do acidente nomeadamente o internamento prolongado poderão ter despoletado o agravamento da doença pré-existente, o que no entender do perito é valorizável médico-legalmente, dado que poderá ter antecipado a evolução natural da doença. Essa valorização poderá ser quantificada pela especialidade de Psiquiatria”. …
Mais adiante: “a patologia demencial é de causa natural, mas admite-se que o seu aparecimento possa ter sido mais precoce devido ao evento em estudo, o que condiciona uma dependência total para as actividades da vida diária, com necessidade de ajuda de terceira pessoa”.
O facto de a sentença recorrida ter optado por dar mais credibilidade ao primeiro relatório pericial em detrimento do segundo é também por nós acompanhado. É que são certeiras as críticas da sentença ao segundo relatório, na parte em que se refere aos registos do Hospital Magalhães Lemos, que não suportam as ilações que aquele relatório dele retirou, sobre a autonomia da Autora nomeadamente quanto a uma pretensa incapacidade de regresso da Autora ao seu domicílio sem acompanhamento.
E não podemos esquecer que o exercício hipotético que fizemos supra mais não é do que isso mesmo: a formulação de uma hipótese analítica, retirando o atropelamento da equação. Sucede que não faz sentido nenhum retirar o atropelamento da equação, pois é por causa dele que estamos aqui e sem ele este processo não existiria.
O Tribunal fez constar essa ponderação no facto provado 54, cujo teor é: “a Autora, independentemente do acidente sofrido, iria sempre necessitar, em momento futuro não concretamente apurado, de ajuda de terceira pessoa, atentos os problemas psíquicos e os défices cognitivos de que sofria, tendo o acidente antecipado tal necessidade em face do agravamento temporário das suas patologias”.
Estamos perante o que a doutrina costuma designar como o problema da relevância negativa da causa virtual.
Tal questão não cabe nesta sede, de julgamento da matéria de facto, mas sim na apreciação de Direito, pelo que a remetemos para lá.
Outra linha argumentativa da sentença que merece realce é a que diz que a análise do primeiro relatório pericial se mostra mais consentânea com a real situação da Autora no momento temporal anterior mais próximo da data em que ocorreu o atropelamento. Para tal, recorda que do depoimento dos filhos da Autora e do médico psiquiatria que observava e acompanhava a Autora resulta que esta vivia sozinha e fazia a sua higiene autonomamente, apenas não procedendo à confecção de alimentos (posto que tomava, por opção, todas as refeições num café para onde se deslocava sozinha), deslocando-se também sozinha para as compras e conhecendo o valor do dinheiro.
Mais se acrescenta que “esta descrição não é fantasiosa posto que compatível com registos anteriores e contemporâneos do sinistro, como é o caso da declaração de fls. 28 (em que se refere que na última observação antes do acidente a Autora estava estável a nível afectivo e comportamental, “orientada no tempo, espaço e pessoas, com discurso coerente e lógico”) e do episódio de urgência do próprio dia do sinistro onde está mencionado, por enfermeira, que a Autora se apresentava “consciente, orientada na identidade e no T/E (…). Previamente autónoma para as AVD’s”.
Perante a frieza destes factos objectivos, a diferença abissal que o atropelamento veio trazer para a vida e autonomia da autora, e um relatório pericial (o primeiro) que suporta a decisão sobre matéria de facto, não merece censura a decisão da primeira instância quanto aos factos provados 37 e 45.

Nesta parte o recurso improcede.

Seguidamente, insurge-se contra o facto provado nº 53 (à data do acidente a Autora necessitava apenas da supervisão de terceiros para toma regular de medicação de acordo com a prescrição médica), sugerindo antes a seguinte redacção: “à data do acidente a Autora necessitava de supervisão de tarefas e de terceiros para a toma regular de medicação de acordo com a prescrição médica”.
Aqui pouco mais há a dizer, além do que já dissemos supra. O Tribunal baseou a sua convicção no primeiro relatório pericial, enquanto que o recorrente baseia as suas alegações no segundo. Sucede que o art. 489º CPC diz expressamente que a segunda perícia não invalida a primeira, sendo uma e outra livremente apreciadas pelo tribunal.
A própria diferença de redacção pretendida pela recorrente é de difícil percepção. Limita-se a pretender o acrescento da palavra “tarefas”, sem explicar a que tarefas se refere. O que a prova a que já nos referimos nos diz é que antes do atropelamento a autora vivia sozinha, e apenas necessitava da supervisão de terceiros para a toma regular de medicação. O facto de viver sozinha já nos diz que tipo de tarefas a autora desempenhava, tais como levantar-se sozinha, vestir-se e despir-se, fazer a sua higiene, alimentar-se e ir à rua fazer as compras de que necessitava. Não se percebe o que a recorrente pretende com o acrescentar a este quadro que a autora, apesar de viver sozinha, com tudo o que isso implica, ainda necessitava de supervisão para “tarefas”.
Não ignoramos que em resposta ao quesito 12º da ré (a autora, independentemente do acidente ocorrido em 2011, necessitava de ajuda de 3ª pessoa ?) respondeu a perita que “antes do evento em estudo, e pela informação presente na documentação facultada, a examinada precisava de supervisão de tarefas (efectuada por vizinha/amiga) mas vivia sozinha”. Parece-nos segura a interpretação de que as “tarefas” a que a perita se quis referir se resumem ao controlo diário da toma da medicação. Mais uma vez temos de fazer referência ao depoimento dos filhos da Autora e do médico psiquiatria que a observava e acompanhava resulta que esta vivia sozinha e fazia a sua higiene autonomamente, apenas não procedendo à confecção de alimentos (posto que tomava, por opção, todas as refeições num café para onde se deslocava sozinha), deslocando-se também sozinha para as compras e conhecendo o valor do dinheiro.
Não vemos pois razão para alterar o ponto 53, acrescentando um termo abstracto, que nada nos diz sobre a autonomia da autora antes do atropelamento.
Improcede também esta pretensão da recorrente.

Finalmente, pretende a recorrente que deve ser incluído nos Factos Provados o Facto Não Provado nº 28, embora parcialmente, fazendo constar dos factos Provados que “À data do atropelamento, a Autora sofria de demência”.
O facto não provado nº 28, recordemos, é este: “À data do atropelamento, a Autora sofria de demência de Alzheimer.
Ora, de uma breve consulta online, resulta que no DSM-5 (1) a demência foi reclassificada como uma desordem neurocognitiva grave, com vários degraus de severidade, e com várias causas: doença de Parkinson, doença de Huntington; demência vascular; doenças neuro degenerativas como a doença de Alzheimer, etc.
Ora, o que resulta do primeiro relatório pericial é que segundo informação de Psiquiatria CHMA, datada de 15.11.2017, a autora iniciou acompanhamento em consultas de Psiquiatria do CHMA em Outubro de 2013 (…). Trata-se de paciente com acompanhamento psiquiátrico por Perturbação depressiva e que vinha desenvolvendo défices cognitivos (predominantemente de memória), tendo necessitado de apoio e supervisão sobretudo na gestão da toma de medicação e na alimentação (fazia as refeições em estabelecimento de restauração). (…) Impressão: demência de Alzheimer + sequelas de TCE (ou demência de Alzheimer com agravamento abrupto no contexto de TCE). (…) Relativamente à patologia demencial de que é portadora, entende-se que esta é de causa natural, admitindo-se no entanto que o seu aparecimento possa ter sido mais precoce devido ao evento em estudo, o que condiciona uma dependência total para as actividades da vida diária, com necessidade de ajuda de terceira pessoa.
Na fundamentação da sentença recorrida pode ler-se: “a referida perícia, em conjugação com os esclarecimentos de fls. 215 e a demais documentação clínica já mencionada, estribou ainda a convicção do julgador no que tange à factualidade dos pontos I.39, I.46 a I.48, I.50 a I.53, II.16, II.28 e II.29 pois que aí se alude aos anteriores internamentos e intervenções cirúrgicas e se referem as concretas patologias de que sofria a Autora anteriormente (não constando que à mesma tivesse sido diagnosticado Alzheimer, não obstante já evidenciar sinais iniciais de síndrome demencial), a medicação que lhe era anteriormente ministrada e a que actualmente consome, bem como, o seu estado de saúde no presente.
Assim, não vemos qualquer impedimento a que se introduza a alteração que a recorrente pretende, já que a mesma corresponde até, no essencial, à fundamentação exposta na sentença recorrida. E como vimos, o conceito de demência é o de uma desordem neurocognitiva grave, que pode ter várias causas e manifestar-se de várias maneiras, sendo uma delas a doença de Alzheimer.
Assim, a alteração pretendida pelo recorrente pode ser introduzida, se bem que a sua utilidade seja muito duvidosa, para não dizer nula, atento o que já está provado nos pontos 50 e 54.
Em conclusão, esta parte do recurso merece provimento, e em consequência altera-se o facto não provado 28, que desaparece, e converte-se no facto provado 55, com o seguinte teor: “À data do atropelamento, a Autora sofria de demência”. Considera-se o mesmo aditado à lista dos factos provados.

Aplicação do Direito

Resulta das alegações de recurso que a recorrente não se conforma com o valor atribuído de €37.500,00, a título de ajuda de terceira pessoa, o qual no seu entender não deve ser mantido.
Igualmente não se conforma com o valor fixado como indemnização, a título de danos não patrimoniais no montante de € 35.000,00 (neste se incluindo o DF de 3 pontos sem esforços acrescidos), que diz que deveria necessariamente ser inferior.
Finalmente, diz, ainda que se entenda não ser de alterar a matéria de facto dada como provada nem tão pouco revogada a sentença no que respeita à atribuição de ajuda de terceira pessoa, o que só por mera hipótese se admite, sempre a quantia arbitrada a esse título, no montante de €37.500,00, se mostra exagerada, devendo a mesma ser manifestamente reduzida.

Vejamos a primeira questão.

A sentença recorrida, depois de descrever em traços largos os danos que a lei civil considera indemnizáveis, o que aqui damos por reproduzido, pronuncia-se em concreto. Em síntese, tem em atenção que as lesões sofridas agravaram temporariamente o estado cognitivo deficitário da Autora, com desorientação no espaço, no tempo, heteropsiquicamente, discurso incoerente, com confabulações, sem actividade alucinatória ou delirante, com insónia e inquietação psicomotora associada a confusão mental, sendo esse contexto confusional mental clinicamente associado à hemorragia intracraniana e ao stress provocado pela cirurgia ortopédica levada a cabo por causas das fracturas sofridas no atropelamento.
A Autora, que antes do acidente já era reformada por invalidez e vivia em casa própria, realizando todas as tarefas quotidianas, bem como a respectiva higiene pessoal, não consegue agora fazer a sua higiene pessoal e as suas demais actividades diárias sem o auxílio de outra pessoa, o que muito a desgosta e entristece.
Mas a sentença lembra também que a Autora, independentemente do acidente sofrido, iria sempre necessitar, em momento futuro não concretamente apurado, de ajuda de terceira pessoa, atento os problemas psíquicos e os défices cognitivos de que sofria. Os descritos danos tiveram como causa, todos eles, o inditoso embate em causa como claramente resulta da factualidade apurada, pelo que os mesmos se encontram abrangidos pela obrigação de indemnizar.

Ora bem.
A teoria nesta matéria é bem conhecida, não sendo necessário repetir à exaustão os conceitos que de todos são conhecidos.

A lei refere-se ao conceito de dano futuro no art. 564º CC, nos seguintes termos:

1) O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão;
2) Na fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior.

A recorrente entende que a indemnização no valor de €37.500,00, a título de ajuda de terceira pessoa, não deve ser mantida. Ou seja, entende que não há nexo de causalidade entre o acidente e esse dano.

O que dizer ?

Primeiro, que não tendo logrado sucesso no seu recurso contra a matéria de facto provada, esta manteve-se, no que agora interessa, inalterada. E o que dela resulta é o seguinte: à data do acidente, a Autora vivia em casa própria, realizando todas as tarefas quotidianas, bem como a respectiva higiene pessoal, necessitando apenas da supervisão de terceiros para toma regular de medicação de acordo com a prescrição médica. Após o acidente, já não consegue fazer a sua higiene pessoal e demais actividades da vida diária sem o auxílio de outra pessoa, o que muito a desgosta e entristece. Daí que ela necessite da ajuda de outra pessoa para todas as suas actividades diárias básicas, nomeadamente, para realizar a sua higiene pessoal e para andar.
A autora está actualmente, e desde 20.03.2017, no Lar da ResiY, estando limitada nos seus movimentos e impossibilitada de sair do Lar pelos seus próprios meios e constrangida a passar grande parte do seu tempo deitada numa cama, o que tudo muito a desgosta e entristece, pois estava habituada a passear a pé pela freguesia onde vivia.
Por outro lado, sabemos que já antes do acidente, a Autora sofria de défices cognitivos (predominantemente de memória) e de demência, e por isso já necessitava de acompanhamento médico na especialidade de psiquiatria ainda antes do acidente.
E, independentemente do acidente sofrido, a autora iria sempre necessitar, em momento futuro não concretamente apurado, de ajuda de terceira pessoa, atento os problemas psíquicos e os défices cognitivos de que sofria, tendo o acidente antecipado tal necessidade em face do agravamento temporário das suas patologias.
Ou seja, sabemos o que mudou na vida da autora em consequência do acidente, e que acabou de ficar descrito. Mas sabemos também que ela já era portadora de um quadro psiquiátrico demencial, que, mesmo que não tivesse ocorrido o acidente, seria suficiente para que a autora fosse sempre necessitar, em momento futuro não concretamente apurado, de ajuda de terceira pessoa.
Assim, o acidente veio antecipar a perda de autonomia da autora e a necessidade de apoio de terceiros.
Esta situação dos autos, que é complexa, vem colocar-nos perante o problema da relevância negativa da causa virtual.
Vamos seguir a lição de Almeida Costa (Direito da Obrigações, 4ª edição, Coimbra Editora, fls. 522), que apresenta o seguinte exemplo: A ministra ao cavalo X de B uma dose mortal de veneno, acontecendo porém que antes de se consumarem os seus efeitos, o cavalo é morto a tiro por C.
Ou seja, A é o autor da causa virtual do dano e C o autor da causa real.
Levanta-se a questão de saber se C deve ser responsável pela indemnização ao dono do cavalo, considerando que o dano sempre se produziria pela intervenção de A.
Almeida Costa responde que “a referida causalidade existe. A causa virtual não possui a relevância negativa de excluí-la, pois em nada afecta o nexo causal entre o facto operante e o dano; sem o facto operante o lesado teria um dano idêntico, mas não aquele preciso dano. Daí que exista, em princípio, a obrigação de indemnizar”.
Na jurisprudência podemos recensar o Acórdão do STJ de 15.3.2005 (Azevedo Ramos), segundo o qual “a causa virtual não possui a relevância negativa de excluir a causalidade, pois em nada afecta o nexo causal entre o facto operante e o dano, já que sem o facto operante o lesado teria dano idêntico, mas não aquele preciso dano”.
Mas aquele mesmo Mestre acrescenta: “encarando o problema noutro plano, o da isenção ou atenuação da obrigação indemnizatória, verifica-se que pode, excepcionalmente, ser tomada em linha de conta a circunstância de que o dano viria a produzir-se como consequência da causa virtual ou hipotética -que, nessa medida, apresenta relevância negativa (arts. 491º, 492º,1, 493º,1, 616º,2, 807º,2 e 1136º,2)”.
Ou, como se escreve no Acórdão do TRP de 12.11.2013 (Vieira e Cunha), “a questão da relevância negativa da causa virtual (única verdadeiramente importante para que o agente possa eximir-se à responsabilidade) assume importância não no domínio do nexo causal, mas antes no capítulo da extensão do dano a indemnizar, como refere o Prof. Antunes Varela, Obrigações, 1º, 3ª ed., pg. 796, cit. in Ac.R.P. 28/3/2011 supra”.
Aplicando esta teoria ao caso dos autos, temos que a autora tinha um determinado padrão de vida, sendo autónoma, que perdeu por causa do acidente. Porém, simultaneamente, ela já transportava dentro de si uma patologia do foro psiquiátrico que iria, no futuro não concretamente determinado retirar-lhe esse padrão de vida e colocá-la numa situação de dependência de terceiros.
O acidente veio antecipar essa situação de dependência e perda de autonomia que a autora infelizmente tinha por certa, embora não datada, devido à doença do foro psiquiátrico que carregava consigo já antes de ser atropelada.
De acordo com a doutrina citada, existe nexo de causalidade entre o acidente e este dano, pelo que o dever da ré indemnizar a autora por este dano, ao contrário do que aquela pretende, existe. Que não reste qualquer dúvida quanto a isso. A autora, por virtude do acidente de que foi vítima, perdeu aquilo que poderemos chamar de “tempo de vida de qualidade”, que ainda teria à sua frente por tempo não determinado, mas que, assim, cessou abruptamente.
Por isso é que a sentença recorrida referiu que “o dano ressarcível é a antecipação no tempo da perda da autonomia da Autora”. A autora deveria ter tido mais tempo de vida com autonomia, tempo esse não determinado nem determinável, mas não o teve por força do atropelamento de que foi vítima.
Esse dano tem repercussões patrimoniais óbvias, que se traduzem na necessidade de contratar terceira pessoa para colmatar a sua falta de autonomia.
E é na quantificação do mesmo que a causa virtual pode vir a ter algum relevo.
Vejamos o raciocínio da sentença recorrida.
Começa por dizer que “a Autora tem ius a ser indemnizada considerando o défice funcional de 3 pontos de que ficou a padecer em consequência do acidente sofrido. Esse défice afecta o corpo e a saúde da Autora, prejudicando-a. (…) Em termos de normalidade, o que se vai operar na Autora é uma diminuição de condição física, resistência e capacidade de esforços, o que se traduzirá numa deficiente ou imperfeita capacidade de utilização do corpo no desenvolvimento das actividades pessoais em geral e numa consequente e igualmente previsível maior penosidade na execução das diversas tarefas que normalmente se lhe depararão no futuro, além da situação de desigualdade em relação aos demais cidadãos. E é precisamente neste agravamento da penosidade (de carácter fisiológico) para a execução, com regularidade e normalidade, das tarefas próprias e habituais de qualquer múnus que implique a utilização do corpo que deve radicar-se o arbitramento da indemnização pelo dano biológico”.
Mais adiante: “mais se provou que, após o acidente, a Autora ficou a depender da ajuda de terceira pessoa para todas as actividades diárias, sendo certo que, antes desse evento, a Autora, não obstante a sua depressão major recorrente e os défices cognitivos (predominantemente de memória) de que padecia, vivia sozinha em casa própria, realizando todas as tarefas quotidianas, bem como a respectiva higiene pessoal.
Por fim, há que salientar que a Autora, independentemente do acidente sofrido, iria sempre necessitar, em momento futuro não concretamente apurado, de ajuda de terceira pessoa, atentos aqueles problemas psíquicos e défice cognitivo, tendo-se apurado que o acidente apenas antecipou tal necessidade em face do agravamento temporário das suas patologias”.
Após mais argumentação, que aqui damos por reproduzida, conclui a sentença que “o facto de ser previsível que a Autora futuramente viesse a necessitar da ajuda de terceira pessoa não exclui a obrigação da Ré em indemnizar a Autora pelo custo da ajuda de terceira pessoa de que passou a necessitar em função do agravamento antecipado do seu estado de saúde causado pelo acidente, o qual determinou a antecipada perda da autonomia de que ainda gozava. Sem prejuízo de, obviamente, essa futura e previsível circunstância poder ser tomada em consideração no cálculo da indemnização devida, dado que a autonomia da Autora foi cortada abruptamente, sendo essa cessação antecipada no tempo em razão de um acontecimento imprevisto causado culposamente por terceiro. Contudo, uma coisa é essa concreta necessidade de ajuda de terceira pessoa, outra, bem distinta, é a colocação da necessitada em instituições que prestam serviços a séniores, seja uma unidade de cuidados continuados, um lar ou um hotel residencial ou assistencial”.
Conclui assim a sentença recorrida que a Ré é responsável pelo custo correspondente à ajuda de terceira pessoa para as actividades diárias.
No que merece o nosso apoio.
Contudo, continua, não foi alegado nem apurado um valor para esse concreto custo correspondente à ajuda de terceira pessoa para as actividades diárias.
Inexistindo nos autos elementos capazes de determinar, de modo seguro e definitivo, o concreto custo, ou dispêndio, com a necessidade de auxílio de terceira pessoa e, bem assim, de calcular o concreto momento em que a Autora necessitaria dessa ajuda de terceira pessoa caso não tivesse ocorrido o atropelamento, é de recorrer ao disposto no artº. 566º/3 do Código Civil, arbitrando indemnização segundo juízos de equidade.
Também só podemos secundar esta opção.
Com efeito, estando em causa danos futuros, não há nem poderia haver elementos concretos que nos permitam fazer um cálculo com o mínimo de sustentabilidade. Quando é necessário ressarcir danos futuros, temos sempre de ter presente que estamos perante uma previsão, uma hipótese, não um cálculo.
Citando Antunes Varela (“Das Obrigações em geral”; 5ª Ed.; p.567), escreve-se na sentença que os critérios de equidade a atender são, de modo exemplificativo, o grau de culpa do responsável, a sua situação económica, a do lesado e a do titular do direito de indemnização, os padrões de indemnização normalmente adoptados na jurisprudência e as flutuações da moeda.
Por outro lado, na determinação da indemnização não se pode olvidar que a equidade deve também materializar a justiça do caso concreto, pelo que o julgador deverá ter presente as regras de boa prudência, do bom senso, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida.
No caso, será de considerar que a Autora já necessitava de supervisão para a organização e toma de medicamentação, que padecia de depressão major recorrente e sofria de défices cognitivos (predominantemente de memória) antes do acidente.
Em face disso, e sabendo-se que a Autora goza de uma esperança média de vida de mais dezoito anos, contados desde a data do acidente (cfr., www.pordata.pt onde se refere que, em 2015, a esperança média de vida para as mulheres portuguesas era de 84,3 anos e, para os homens, de 78,1 anos), estimamos, com recurso à equidade, uma antecipação da necessidade de ajuda de terceira pessoa de cerca de um terço desse período de tempo (ou seja, seis anos), posto que, face às limitações que já impendiam sobre a Autora, se afigura mais provável que esta viesse a necessitar do auxílio de terceira pessoa em curto espaço de tempo do que em momento mais próximo ao limite da sua expectável esperança de vida”.
Este raciocínio do Tribunal recorrido parece-nos igualmente justo e equitativo.
No mais e não dispondo os autos de elementos para apurar o concreto custo anual da ajuda com terceira pessoa, recorremos ao critério utilizado no supra mencionado Ac. RL 7.11.2019 (proc. nº. 2273/16.8T8PD.L1-6, disponível em www.gde.mj.pt) – pela sua bondade, mas igualmente por estar solidamente ancorado em critério legal supletivo, embora do foro laboral – no qual se explicita que “é conhecido que o artº 53º da Lei 98/2009, prevê a atribuição de uma prestação suplementar para assistência, por terceira pessoa, em face da situação de dependência em que se encontra o lesado, estabelecendo o artº 54º nº 1 da mesma Lei que essa prestação é fixada em montante mensal e tem como limite máximo o valor de 1,1 IAS”, actualizável anualmente (cfr. artigo 54º/3 da referida Lei 98/2009.
Nos termos da Portaria n.º 27/2020, de 31 de Janeiro, o Indexante dos Apoios Sociais (IAS) fixou-se nos € 438,81 com efeitos a partir de 2020, sendo este valor actualizado a considerar, em face do que dispõe o artigo 611º/2, in fine, do Código Civil.
Justifica-se, neste caso particular, desprezar o valor da retribuição mínima nacional (fixada em € 635,00) e recorrer, como valor indiciário equitativo, àquele indexante, dado que sobre a Autora já impedia uma limitação que determinava a necessidade de auxílio de terceira pessoa para supervisão da organização e toma de medicamentação.
No recurso a tais critérios, ponderando todas circunstâncias do caso concreto, o estimado lapso temporal de antecipação da necessidade de auxílio de terceira pessoa para todas as actividades da vida diária, o valor da reforma auferido pela Autora, o facto de a Autora receber tal capital numa única prestação, a circunstância de o indexante supra referido ser também actualizado anualmente, as condições económicas da Ré (que se presumem desafogadas face à sua boa implantação no mercado), julga-se adequado e equitativo fixar a quantia indemnizatória ora em apreciação no montante de € 37.500,00, já actualizada à presente data (e, por isso, a vencer juros apenas desde a data da presente sentença, nos termos já supra justificados)”.
E, aqui chegados, temos de dizer que toda a linha de raciocínio empregue pelo Tribunal recorrido, que levou ao valor de € 37.500,00, nos parece razoável, justa, equitativa, e prudente.
Apenas o valor encontrado não está totalmente de acordo com as premissas. Sendo certo que estamos perante um juízo de equidade, mesmo assim o mesmo assenta em alguns números considerados significativos, e num determinado lapso de tempo. No caso temos o valor de € 438,81, que iremos arredondar para € 430,00 porque para o juízo de equidade é tudo quanto é preciso.
E em termos de tempo, temos o período de 6 anos (72 meses), que a sentença obteve, julgando de acordo com a equidade, e que nós aceitamos.
Daqui decorre um simples cálculo, que é o de a autora ter direito a um valor mensal de € 430,00 durante os referidos 6 anos. Ora, fazendo uma conta simples de multiplicar, isto dá-nos o valor de € 30.960,00. Valor que iremos arredondar para € 31.000,00, e que será então o valor devido a título de indemnização pelos danos futuros.

E assim, confirmando o raciocínio mas corrigindo o valor em causa, procede nesta parte o recurso.

Finalmente, a quantificação dos danos não patrimoniais.

A sentença recorrida cita a Prof.ª Teresa Magalhães (“Da Avaliação à Reparação do Dano Corporal”, em www.trp.pt): “o objectivo principal da reparação é ajudar a vítima, de uma forma adaptada às particularidades do seu estado, de modo a repor a sua situação de vida tal como era antes do evento. Desta forma, o dano indemnizável deverá residir muito menos nas sequelas físicas do que nas suas múltiplas consequências no plano da vida quotidiana, da vida afectiva, familiar e da vida profissional ou de formação. De facto, os actos essenciais da vida não se limitam à satisfação das necessidades fisiológicas …; existem outras aspirações a nível da funcionalidade do ser humano, como a possibilidade de comunicar, de obter conhecimentos, de ter passatempos, que devem ser, também, tidas em consideração”.
Nos termos do disposto no artº. 496º/3 do Código Civil, o montante da indemnização por danos não patrimoniais é fixado equitativamente pelo Tribunal, tendo em atenção as circunstâncias referidas no artº. 494º do Código Civil. Para Antunes Varela (“Das Obrigações em geral”; 5ª Ed.; p.567) os critérios de equidade a atender são, de modo exemplificativo, o grau de culpa do responsável, a sua situação económica, a do lesado e a do titular do direito de indemnização, os padrões de indemnização normalmente adoptados na jurisprudência e as flutuações da moeda.

A sentença recorrida chama a atenção para que na determinação da indemnização:
a) não se pode olvidar que a equidade deve também materializar a justiça do caso concreto, pelo que o julgador deverá ter presente as regras de boa prudência, do bom senso, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida.
b) a indemnização não visa tornar indemne o lesado, mas atribuir-lhe uma compensação que contrabalance o mal sofrido (cfr. Antunes Varela; “Das Obrigações em geral”; 4ª Ed.; p.560) no sentido de atenuar ou minorar significativamente os desgostos, as dores e as perdas sofridas (neste sentido, cfr. Ac. STJ 8.6.93; CJ STJ II; p.138; Ac. STJ 11.10.94; CJ STJ III; p.83).
c) na fixação da indemnização aos lesados por via de acidente de viação, o Tribunal não está condicionado pelos valores fixados na Portaria nº. 377/2007

De seguida a sentença recorrida elenca várias decisões de Tribunais superiores, para ter presente como a jurisprudência tem decidido casos análogos:

1. no Acórdão de 20 de Novembro de 2003, proc. nº 03A3450, foi atribuída a indemnização de € 32.421,86 a uma lesada que, tendo a idade de 25 anos no momento do acidente, ficou em estado de coma, foi submetida a diversas intervenções cirúrgicas e sofreu graves lesões por todo o corpo, que lhe provocaram cicatrizes profundas e visíveis;
2. no Acórdão de 15 de Janeiro de 2004, proc. nº 03B926, foi arbitrada uma indemnização de € 10.951,92 a uma lesada que tinha 24 anos à data do acidente, à qual
foi atribuída uma IPP de 10%, mas que ficou a sofrer de lesões graves e visíveis;
3. no Acórdão de 5 de Fevereiro de 2004, proc. nº 04B083, foi atribuída a indemnização de € 24.939,89 a um lesado que, tendo 52 anos à data do acidente, ficou afectado de um IPP de 35% e sofreu lesões muito graves que o obrigaram a diversas intervenções cirúrgicas e implicaram limitações muito sérias à sua mobilidade;
4. no Acórdão de 12 de Janeiro de 2006, proc. nº 05B4176, considerou-se adequada a indemnização de € 12.500,00 atribuir a uma lesada que sofreu várias lesões corporais, dores persistentes e constantes, teve de se submeter a diversos exames e sessões de tratamento, ficou com um nódulo fibroso e hipotrofia numa das pernas de cerca de 2 cm, e à qual foi fixada 5% de IPP;
5. no Acórdão de 4 de Dezembro de 2007, proc. nº 07A3836, foi arbitrado o montante de € 35.000,00 por danos morais a um lesado com 44 anos à data do acidente, na sequência do qual esteve em coma e em perigo de vida durante vários dias e sofreu diversas sequelas, e ao qual foi fixada uma IPP de 47%.
6. no douto Ac. STJ 10.05.2007, proc. nº. 07B1341, considerou-se justificar-se a “a fixação da compensação por danos não patrimoniais no montante de € 9.000,00 no caso de sofrimento físico-psíquico resultante de susto e receio pela própria vida nos instantes anteriores ao embate, do traumatismo torácico anterior e do nariz e das escoriações na face, das dores de grau dois em escala de sete durante dez meses e treze dias e sua continuação em caso de esforço físico e mudanças de tempo, das sequelas envolventes de cervicalgias residuais bilaterais no pescoço, toracalgia mediana anterior, insónias, irritabilidade, ansiedade, défice mnésico progressivo e incapacidade permanente geral de oito por cento implicante de esforço suplementar e desgosto”.
7. no Ac. STJ 7.11.2006, proc. nº. 06A3349 considerou-se adequada uma indemnização de € 20.000,00 a um lesado que “à data do evento com 34 anos de idade – ficou totalmente incapacitado para o exercício da sua profissão habitual, de pedreiro, por limitação dos movimentos de pronação e supinação do úmero esquerdo e limitação da extensão (20º) e flexão (110º) do cotovelo esquerdo, além de limitação da extensão, por défice tendinoso e muscular, das falanges do 5º dedo da mão esquerda (…) sequelas estas a que corresponde uma IPG de 23%, com um dano futuro de 7%”.
8. no Ac. RP 12.12.2000, processo nº. 0021352 (também disponível em www.dgsi.pt, Acórdãos TRP) se fixou em Esc. 3.500.000$00 a indemnização por danos não patrimoniais a uma lesada de 66 anos que sofreu lesões graves, tratamentos dolorosos, estando com 122 dias de incapacidade total para o trabalho e tendo ficado a sofrer de IPP de 27%.
9. no Ac. STJ 2.06.2016 (proc. nº. 2603/10.6TVLSB.L1.S1), fixou-se o montante de € 35.000,00 euros a indemnização por danos não patrimoniais, duma pessoa com 47 anos e um quantum doloris de cinco, numa escala de sete e dano estético 2 numa escala de sete. 10. num outro Ac. STJ 26.01.2016 (proc. nº. 2185/04.8TBOERL1.S1) fixou-se o montante de 45.000,00 euros a indemnização por danos não patrimoniais, duma pessoa com 20 anos, sendo desportista, jovem e saudável, se vê com o corpo com inúmeras cicatrizes em zonas visíveis, padeceu de acentuado grau de sofrimento e relevante dano estético com sequelas psicológicas que implicam perda de auto estima e sentimentos de inibição.
11. o Ac. STJ 30.06.2016 (proc. nº. 161/11.3TBPTB.G1.S1) fixou em € 35.000,00 a indemnização por danos não patrimoniais a um lesado de 18 anos de idade, com 16 pontos de défice funcional, que foi sujeito a uma operação cirúrgica ao úmero e ao fémur, mas que teve alta definitiva sete meses após o acidente.
12. num recente Ac. STJ 14.12.2017 (proc. nº. 589/13.4TBFLG.P1.S1) escreveu-se o seguinte quanto a um lesado que: “(i) teve ser sujeito a diversas intervenções cirúrgicas; (ii) permaneceu diversos períodos internado; (iii), apresenta um dano estético de grau 3, o quantum doloris é fixável no grau 5 e a repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer é de grau 3 (em escalas crescentes até 7); (iv) antes do embate era uma pessoa autónoma, trabalhadora e bem-disposta e agora sente-se limitado, em termos pessoais e profissionais; (v) sabe que o seu estado não melhorará e isola-se em casa, sentindo desgosto por não mais conseguir fazer caminhadas, jogar futebol e andar de bicicleta; (vi) aquando do internamento, e quando se encontrava manietado de pernas e mãos, nasceu o seu filho, sem que lhe pudesse pegar ao colo, tem-se por adequada e quantitativa a indemnização fixada pela Relação a título de danos não patrimoniais no valor de € 30.000,00”.
13. mais recentemente, ainda, o Ac. STJ 19.04.2018 (proc. nº. 196/11.6TCGMR.G2.S1) considerou adequada uma indemnização de € 45.000,00, por danos não patrimonial, a uma lesada com “um deficit funcional permanente de elevado grau (26 pontos), correspondente a uma IPP de 49,2495% e a um dano estético de grau 4, numa escala de 1 a 7, as intensas dores sofridas (de grau 5, numa escala de 1 a 7), o desgosto e amargura de, com 43 anos de idade, se ver fisicamente limitada e sem perspectivas futuras, em termos laborais”.
14. no Ac. RG 16.03.2017 (proc. nº. 956/11.8TBPTL.G1) arbitrou-se uma indemnização de € 25.000,00 por danos não patrimoniais a uma lesada que sofreu “traumatismo no ombro esquerdo, e uma fractura da clavícula esquerda; foi transportada, de ambulância, para a Unidade de Saúde do Alto Minho, onde lhe foi prestada a assistência médica de que necessitava, tendo tido alta nesse mesmo dia; esteve três meses com o braço ao peito; a partir de finais de Outubro de 2010, passou a frequentar consultas de ortopedia no Hospital de Santa Maria, no Porto, onde lhe foram prescritos analgésicos e anti-inflamatórios, que tomou; posteriormente, submeteu-se a sessenta e cinco sessões de fisioterapia, todas elas incidentes nas regiões do ombro esquerdo e do membro superior esquerdo, para recuperação funcional e refortalecimento muscular; dada a violência do embate, o carácter súbito e imprevisto que caracterizou o acidente e a sua incapacidade de lhe escapar, a Autora assustou-se, e receou pela própria vida; em consequência do traumatismo e da fractura da clavícula esquerda, sofreu e ainda sofre dores, atingindo o quantum doloris o grau 4, numa escala de 1 a 7; e sofreu os incómodos por se ter visto na necessidade de suportar uma ligadura de imobilização do ombro esquerdo, ao longo de um período de tempo de três meses (…) tem dores no membro superior esquerdo, nomeadamente quando tenta sopesar, levantar e carregar objectos pesados com a mão esquerda e nas mudanças de tempo; apresenta limitação da mobilidade articular do ombro esquerdo, apenas havendo mobilidade, sem dor, nos movimentos de abdução e flexão acima dos 90º graus; ficou a carecer, até ao fim da vida, de medicamentos analgésicos e anti-inflamatórios para debelar ou atenuar as dores no ombro esquerdo; e sente-se desgostosa e infeliz por ter dores (…)” e sofreu “um Período de Défice Funcional Temporário Total de 134 dias; um Período de Défice Funcional Temporário Parcial de 80 dias; um Período de Repercussão Temporária na Actividade Profissional Total de 87 dias; um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 11 pontos”.
15. no Ac. RE 20.10.2016 (proc. 137/12.3TBPTM.E1) fixou-se uma indemnização de € 2.500,00 por danos não patrimoniais, a uma lesada que “tinha cerca de 46 anos de idade à data do acidente, sofreu 2 dias de incapacidade temporária absoluta e 188 de incapacidade temporária parcial, o quantum doloris foi de grau 3 (numa escala de 1 a 7), não sofreu dano estético, o défice permanente de integridade físico-psíquica foi de 3 pontos, e a repercussão nas actividades desportivas e de lazer foi de grau 3”.
16. no pólo oposto, o Ac. RG 30.05.2019 (proc. 1760/16.2T8VCT.G1) fixou uma indemnização de € 15.000,00, por danos não patrimoniais, a lesado cuja cura das respectivas lesões “demandou um longo período de tempo (205 dias no total), com imobilização do membro superior esquerdo durante um período de seis semanas e a inerente alteração da sua vida pessoal, familiar e profissional, sendo o período de repercussão temporária na actividade profissional total de 150 dias, que o quantum doloris se situou acima da média (4 numa escala de 0 a 7), que as dores e as dificuldades acrescidas na realização das tarefas quotidianas (traduzidas no défice funcional de 4 pontos) o acompanharão ao longo de toda a sua vida, bem como, que o Autor ficou a padecer de um dano estético permanente fixável no grau 2”.

E, tendo em consideração os critérios jurisprudenciais que destas decisões se retiram, as circunstâncias do caso concreto, o período de internamento e de recuperação a que foi obrigada, as duas fracturas sofridas, o quantum doloris (de grau 5 numa escala crescente de 1 a 7 e por isso acima da média), o dano estético de grau reduzido, a idade da vítima e os demais danos sofridos (em especial o agravamento da doença pré-existente e consequente antecipação da perda de autonomia), o Tribunal considerou adequada e justa uma indemnização de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) por danos não patrimoniais.
E não temos razões para discordar.
Com o que esta parte do recurso improcede.

Recurso interposto pela autora:

a) A autora/recorrente pretende que a fórmula encontrada pela sentença recorrida não lhe atribui a compensação pela totalidade dos danos futuros que são previsíveis, (n.º 2 do art. 564.º do CC).
Aqui pouco há a dizer, pois já referimos que concordámos com o juízo efectuado pelo Tribunal recorrido, e apenas corrigimos o cálculo efectuado, nos termos que supra ficaram expostos, o que nos levou ao valor de € 31.000,00
Com efeito, quando estamos a tratar de danos futuros estamos a lidar com uma ficção. O futuro, por definição, não ocorreu ainda, e o que se trata é de fazer uma previsão com base nos dados do presente. Não há grandes margens para cálculos nem demonstrações de valores diversos: o que o Tribunal tem de fazer é um juízo prudente, assente na equidade, procurando a justiça do caso concreto.
Ora, o julgamento prudente feito pelo Tribunal recorrido, ainda para mais dificultado pela intromissão da causa virtual que é a patologia psiquiátrica de que a autora já padecia e que iria num futuro não determinável retirar-lhe a autonomia, tudo como ficou supra explicado, mereceu a nossa concordância. Assim, mantemos o valor de € 31.000,00, como supra ficou exposto.

b) E afirma ainda que face à jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal de Justiça, o valor da indemnização dos danos não patrimoniais (com excepção do dano biológico), sempre deveria ter sido fixada em € 45.000,00.
Aqui também não temos mais a acrescentar, pois já concordámos que a jurisprudência dos Tribunais superiores é consentânea e congruente com o valor que o Tribunal encontrou para compensar (não ressarcir) este tipo de danos.

c) Afirma a autora e recorrente: o Mmo. Juiz “a quo” fixou em € 10.000,00 a indemnização do dano biológico, valor extremamente reduzido tendo em consideração as particularidades e os graves resultados do sinistro. Entende a recorrente que essa indemnização não deverá ser fixada em montante inferior a € 20.000,00.

Ora, “a lesão corporal sofrida em consequência de um acidente de viação constitui em si um dano real ou dano-evento, que tem vindo a ser designado por dano biológico, na medida em que afecta a integridade físico-psíquica do lesado, traduzindo-se em ofensa do seu bem “saúde”. Trata-se de um “dano primário”, do qual, podem derivar, além de incidências negativas não susceptíveis de avaliação pecuniária, a perda ou diminuição da capacidade do lesado para o exercício de actividades económicas, como tal susceptíveis de avaliação pecuniária (Vide, a este propósito, as doutas considerações do ac. do STJ, de 21-03-2013, relatado por Salazar Casanova, no processo n.º 565/10.9TBVL.S1, acessível na Internet - http://www. dgsi.pt/jstj). Como é sabido, os nossos tribunais, com particular destaque para a jurisprudência do STJ, têm vindo a reconhecer o dano biológico como dano patrimonial, na medida em que respeita a incapacidade funcional, ainda que esta não impeça o lesado de trabalhar e que dela não resulte perda de vencimento, uma vez que a força de trabalho humano sempre é fonte de rendimentos, sendo que tal incapacidade obriga a um maior esforço para manter o nível de rendimento anteriormente auferido. E que, em sede de rendimentos frustrados, a indemnização deverá ser arbitrada equitativamente, de modo a corresponder a um capital produtor do rendimento que o lesado não irá auferir, que se extinga no fim da sua vida provável e que é susceptível de garantir, durante essa vida, o rendimento frustrado (Acórdão do STJ de 1... de 2017 (Manuel Tomé Soares Gomes).

O Tribunal recorrido explicou o valor que alcançou da seguinte forma:

No sentido de considerar o dano biológico como dano patrimonial vejam-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 04.10.2007, 19.05.2009 e 07.06.2011 (todos disponíveis em www.gde.mj.pt).
No primeiro pode ler-se que “a mera afectação da pessoa do ponto de vista funcional, isto é, sem se traduzir em perda de rendimento de trabalho, releva para efeitos indemnizatórios, como dano biológico, porque determinante de consequências negativas a nível da actividade geral do lesado. O referido dano biológico, de cariz patrimonial, justifica, com efeito, a indemnização, para além da valoração que se imponha a título de dano não patrimonial”.
Já no Ac. STJ 19.05.2009 escreveu-se que “a incapacidade parcial permanente, afectando ou não, a actividade laboral, representa, em si mesmo, um dano patrimonial futuro, nunca podendo reduzir-se à categoria de meros danos não patrimoniais” e que “o dano biológico repercute-se na qualidade de vida da vítima afectando a sua actividade vital, é um dano patrimonial já que as lesões afectam o seu padrão de vida”.
Em sentido idêntico veja-se o Ac. STJ 07.06.2011 (também disponível em ww.gde.mj.pt) onde se sentenciou que “a incapacidade funcional, ainda que não impeça o lesado de continuar a trabalhar e ainda que dela não resulte perda de vencimento, reveste a natureza de um dano patrimonial, já que a força do trabalho do homem, porque lhe propicia fonte de rendimentos, é um bem patrimonial, sendo certo que essa incapacidade obriga o lesado a um maior esforço para manter o nível de rendimentos auferidos antes da lesão”.
Ainda no sentido de considerar que o entendimento mais adequado é o de considerar dano biológico como de cariz patrimonial podemos citar o Ac. RL 12.13.2012 (também disponível em www.gde.mj.pt) que reconhecendo a existência das três vertentes em que tem sido feito o enquadramento do dano biológico (dano patrimonial, dano não patrimonial ou tertium genus) entende aquela como a mais adequada e também a maioritária na jurisprudência e que “o chamado dano biológico reconduz-se a um dano corporal que consiste na diminuição ou lesão da integridade psico-física da pessoa em si e por si considerada” sendo que “qualquer que seja o enquadramento jurídico, o que é indiscutível é que a perda genérica de potencialidades laborais e funcionais do lesado constitui um dano ressarcível, pelo que haja ou não afectação da capacidade de ganho do lesado impõe-se sempre o ressarcimento autónomo do dano biológico”.
No mesmo sentido, veja-se o recente Ac. RG 25.05.2016 (disponível em www.gde.mj.pt), onde se defendeu que “a afectação da pessoa do ponto de vista funcional, ainda que não se traduza em perda de rendimento de trabalho, releva para efeitos indemnizatórios –como dano biológico-patrimonial– porque é determinante de consequências negativas ao nível da actividade geral do lesado e, especificamente da sua actividade laboral, designadamente, num jovem, condicionando as suas hipóteses de emprego, diminuído as alternativas possíveis ou oferecendo menores possibilidades de progressão na carreira, bem como uma redução de futuras oportunidades no mercado de trabalho, face aos esforços suplementares necessários para a execução do seu trabalho”.
Isto, sem prejuízo, obviamente de se considerar que, em certas situações, a avaliar casuisticamente, o dano biológico possa ser indemnizado como dano não patrimonial, isto na esteira, por exemplo, do expendido no Ac. RP 24.02.2015 (também disponível em www.gde.mj.pt) onde se pugnou no sentido de que “o dano biológico abrange todas as ofensas à integridade física e/ou psíquica sofridas pelo lesado, quer delas resulte ou não perda da capacidade de ganho deste e, no primeiro caso, ainda que importem incapacidade permanente absoluta ou incapacidade para a profissão habitual”, diferindo, nuns casos e noutros, o “modo de calcular a respectiva indemnização, pois: - se o lesado ficou afectado de alguma percentagem de IPG ou Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica, mesmo que compatível com o exercício da actividade profissional habitual, mas implicando esforços suplementares, aquela é calculada segundo os parâmetros do dano patrimonial futuro; - se o lesado não ficou afectado de qualquer IPG ou Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica, a indemnização é fixada nos termos dos danos não patrimoniais”.
Consideraremos, na particularidade concreta do caso sub iudice, em que a Autora era já reformada por invalidez à data do atropelamento e à data da entrada da presente acção em juízo, que o défice funcional de que ficou a padecer deverá ser indemnizado a título de dano não patrimonial, pois que tal afectação não implicou, nem implica, mediata ou imediatamente, a perda de quaisquer rendimentos, nem tão pouco o acidente em apreço foi causa de impossibilidade ou limitação do desenvolvimento de qualquer actividade angariadora de rendimentos, posto que a Autora já não desenvolvia qualquer actividade laboral propiciadora de rendimentos.
Com efeito, estamos perante uma situação excepcional – conforme já supra referido – que justifica plenamente a consideração do dano biológico na vertente não patrimonial, sob pena de, sendo posto no plano patrimonial se correr o risco de, injustamente, privar a lesada do direito a ser efectivamente ressarcidas pelas lesões sofridas.
Com efeito, e porque seria totalmente injusto e desconforme ao direito deixar sem ressarcimento o défice funcional permanente da integridade físico-psíquico de 3 pontos de que ficou a padecer a Autora, concluímos que tal dano deve ser ressarcido no plano não patrimonial, para o que é equitativo, vistos os factos apurados e a idade da vítima, atribuir-lhe a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros)”.

Na mesma linha, podemos citar o Acórdão do STJ de 7.6.2018 (Rosa Tching), no qual se decidiu: “O dano biológico, para além de se apresentar como um dano real ou dano evento, é também um “dano primário”, na medida em que, enquanto dano corporal lesivo da saúde física ou psíquica, está na origem de outros danos (danos-consequência), designadamente a frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer actividades ou tarefas para além da actividade profissional habitual do lesado, bem como os custos de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas actividades ou tarefas. Um défice funcional genérico permanente de 5%, não deixa de relevar enquanto dano biológico, quando consubstanciado na diminuição, em geral, da capacidade profissional do lesado, sendo passível de indemnização, pois pese embora não represente uma incapacidade para o exercício da sua profissão habitual, exige-lhe esforços suplementares no desempenho das tarefas específicas da sua actividade profissional habitual. A indemnização deste dano biológico não deve ser calculada com base no rendimento anual do autor auferido no âmbito da sua actividade profissional habitual na medida em que o sobredito défice funcional genérico não implica incapacidade parcial permanente para o exercício dessa actividade, envolvendo apenas esforços suplementares. Correspondendo as limitações de mobilidade de que o autor ficou afectado a um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 5 pontos percentuais, a partir da consolidação das lesões em 11.03.2011, data em que o autor contava 32 anos de idade, e implicando este défice, para além do acréscimo de esforço físico no desenvolvimento da sua actividade de empresário agrícola que vinha então exercendo, uma inegável redução da sua capacidade económica geral, mormente para se dispor ao desempenho de outras actividades económicas concomitantes ou alternativas que, presumivelmente, ainda lhe pudessem surgir na área da sua formação profissional, ao longo da sua expectativa de vida de cerca de 44 anos, julgamos ser de manter a indemnização, no montante de € 26.381,91, arbitrada ao autor no acórdão recorrido, que a pecar, só peca por defeito.
Supomos que o confronto com o caso julgado neste último aresto nos mostra que o valor fixado pela sentença recorrida não merece censura.
Também aqui improcede o recurso da autora.

c) Quanto à ajuda de terceira pessoa, entende a autora que a sentença recorrida deveria ter considerado como base de cálculo o valor do salário mínimo nacional e não o indexante dos apoios sociais, (IAS), até porque este valor corresponde a cerca de metade do que é pago mensalmente ao Lar ResiY.
E considerar que a ajuda de terceira pessoa ocorreu com uma antecipação de 12 anos na sequência da verificação do atropelamento. Pelo que a indemnização deveria ter sido fixada em € 70.000,00.
Mas, em qualquer dos argumentos, não lhe assiste razão. Já vimos supra como o Tribunal recorrido chegou àqueles valores, e tivemos ocasião de referir que concordávamos com o juízo de equidade que lhes subjaz.
Agora, mais nada há a dizer a não ser remeter para a análise supra.
Também improcede esta pretensão da recorrente.

d) Finalmente, não concorda a autora com a absolvição da R. seguradora no que se refere ao pagamento das quantias consideradas provadas em 21, 22, 40 e 41 da respectiva lista.
Tais despesas são consequência directa e necessária do acidente, foram realizadas no período que se enquadra no défice temporário parcial fixado em 26.12.2017 e não ocorreriam se o acidente não tivesse surgido.
No pagamento destas quantias, cujo valor somado ascende a € 2.238,13, deve a seguradora também ser condenada.

Vejamos de que despesas estamos a falar: “21. A A. teve de pagar à Unidade de Continuados ... a quantia de € 297,15. 22. À Santa Casa da Misericórdia de ... a A. pagou a quantia de € 1.763,09. 40. Em 30 de Dezembro de 2016, a Autora adquiriu sapatos de rede “nursing” para utilização na Unidade de Cuidados Continuados no que gastou a quantia de € 19,60. 41. Em 17 de Dezembro de 2016, com a aquisição de televisor e cabo para utilização na Unidade de Cuidados Continuados ..., a Autora despendeu a quantia de € 158,29.

Ora, o Tribunal recorrido explicou convincentemente, e correctamente, porque excluiu estas despesas da obrigação de indemnização que recaía sobre a ré.

Pode ler-se na sentença: “com efeito, temos na situação sub iudice, que o processo causal degenerativo da Autora já se encontrava em curso para concretizar a necessidade da ajuda da terceira pessoa, mas o dano provocado pelo atropelamento em apreço vem dar causa ao resultando daquele primeiro processo, antecipando a sua ocorrência no tempo. (…) Contudo, uma coisa é essa concreta necessidade de ajuda de terceira pessoa, outra, bem distinta, é a colocação da necessitada em instituições que prestam serviços a séniores, seja uma unidade de cuidados continuados, um lar ou um hotel residencial ou assistencial. Efectivamente, tal colocação obtém benefício de uma panóplia de serviços que ultrapassa em muito a mera assistência de terceira pessoa (2).
Como se extrai, para o caso concreto, do teor do contrato celebrado com a ResiY (e denominado de alojamento e prestação de serviços – cfr. fls.48), os serviços prestados por esta entidade vão desde o alojamento à alimentação, ao tratamento de roupa e aos cuidados de saúde elementares (médicos e de enfermagem), passando, também, pelo apoio psicossocial e o conforto pessoal.
Nessa medida, a Ré não pode ser responsabilizada pelo pagamento com os internamentos nas unidades de cuidados continuados (que ocorrem, aliás, já depois de findo o período de défice funcional temporário total) que incluem também cuidados médicos e de enfermagem, nem pela liquidação das quantias correspondentes ao fundo de compensação e à mensalidade liquidados pela Autora como contrapartida daqueles serviços prestados pela ResiY porquanto não se provou que o internamento daquela nesta instituição foi determinado pelo evento danoso (cfr. ponto II.26 dos factos não provados) mas também porque não foi causado qualquer dano na habitação da Autora, no seu vestuário ou calçado e na sua alimentação ou em quaisquer outros bens materiais. Em consequência, a Ré só é responsável pelo custo correspondente à ajuda de terceira pessoa para as actividades diárias, não lhe sendo imputáveis também os custos com sapatos rede nursing, nem mesmo com a televisão e o cabo adquirido”.
Entendemos que a explicação é cabal, pelo que quaisquer palavras extra seriam desnecessárias.

Improcede também esta parte do recurso da autora.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso da ré parcialmente procedente, e o da autora totalmente improcedente, e em consequência fixa a título de indemnização pelos danos futuros (ajuda de terceira pessoa), a quantia de € 31.000,00, mantendo-se em tudo o mais a sentença recorrida.

Custas do recurso da ré na proporção de ¾ para esta e ¼ para a autora, e custas do recurso da autora a suportar por esta (art. 527º,1,2 CPC).

Data: 28/1/2021

Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Joaquim Boavida)


1. Diagnostics and Statistical Manual on Mental Disorders, 5ª edição
2. Realce nosso.