CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL
ACUSAÇÃO PARTICULAR
Sumário

I – Há que identificar um traço distintivo entre o crime de violência doméstica e os crimes de ofensas à integridade física, injúrias, ameaças ou outros, praticados contra as potenciais vítimas desse crime. Esse traço distintivo dependerá da perspectiva adotada a respeito do bem jurídico protegido através da incriminação em apreço,
II - As circunstâncias concretas da prática de injúria, difamação e ameaça em apreço nestes autos não permite qualificar a prática dos autos como de maus tratos psíquicos.
III - Não se provou a frequência da injúria, difamação e ameaça em causa. Estaremos perante uma conduta repetida, mas não se provou a intensidade dessa repetição (sendo que a ausência de prova a este respeito há de beneficiar o arguido, à luz do princípio in dubio pro reo)
IV - A conduta do arguido (que não deixa de configura crimes de injúria, difamação e tentativa de coação através de ameaça) não representa um aviltamento da dignidade humana da vítima com a sua “coisificação” que é própria do crime de violência doméstica. E não provocou, por outro lado, danos na saúde psíquica da vítima. Segundo os critérios acima expostos, não estaremos perante um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, a), do Código Penal.
V - A condenação do arguido pela prática destes crimes não exige o cumprimento do disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, pois eles representam um “minus” em relação ao crime de violência doméstica por que o arguido e recorrente vinha acusado, sendo que a sua defesa em relação a essa acusação já incluía a defesa quanto a tais crimes (ver, neste sentido, o acórdão desta Relação de 28 de março de 2007, proc. n.º 0710448, relatado por Élia São Pedro; o acórdão da Relação de Lisboa de 17 de junho de 2015, proc. n.º 48/13.5PFPDL.L1-3, relatado por Graça Santos Silva; e os acórdãos da Relação de Guimarães de 21 de outubro de 2013, proc. n.º 353/11.5GDMR.G1, relatado por Filipe Melo; de 2 de novembro de 2015, proc. n.º 77/14.1TAAVV.G1, relatado por Manuela Paupério; e de 25 de setembro de 2017, proc. n.º 505/15.9GAPTL.G1, relatado por Armando Azevedo; todos acessíveis in www.dgsi.pt).
VI - Os crimes de injúria e difamação têm natureza particular (ver artigo 188.º, n.º 1, do Código Penal) e não foi deduzida acusação particular pela assistente.
VII - Impedir neste caso a condenação pela prática de crimes de injúria e difamação por ausência de acusação particular quando essa ausência se ficou a dever à dedução de uma acusação pública pela prática de crime de violência doméstica que englobava tais crimes numa relação de concurso aparente, acusação que a assistente acompanhou, frustraria as legítimas expetativas da assistente e representaria uma inaceitável injustiça e uma inaceitável (embora não propositada) “deslealdade processual”.

Texto Integral

Proc. nº 799/18.8GBPNF.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – B… vem interpor recurso da douta sentença do Juiz 2 do Juízo Local Criminal de Penafiel do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este que o condenou, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, a), n. º 2, n.º 4 e n.º 5, do Código Penal, na pena dois anos e quatro meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova; nas penas acessórias de afastamento da assistente C…, da sua residência e do seu local da trabalho e proibição de contactos com ela, também por dois anos e quatro meses, e obrigação de frequência de programa específico de prevenção de violência doméstica, durante esse período de dois anos e quatro meses; e condenação de pagamento à assistente e demandante da quantia de dois mil euros, acrescida de juros legais, a título de indemnização de danos não patrimoniais.

Da motivação do recurso constam as seguintes conclusões:
«A – Foi o aqui recorrente, condenado por um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º n.º 1 al. a), e, 2, 4, 5, do Código Penal, a uma pena de dois anos e quatro meses de prisão suspensa por igual período;
B – Os factos dados como provados de 4º a 20º, por si só e no contexto do pós casamento/divórcio, por si só não são suficientes, adequados, e / ou essenciais e necessários para preencher o elemento objetivo e subjetivo do crime de violência doméstica, pelo qual o recorrente foi condenado,
C - O bem jurídico que o tipo da violência doméstica visa proteger é a saúde, enquanto integridade das funções corporais da pessoa, nas suas dimensões física e psíquica – neste sentido, cfr. Nuno Brandão, in “A tutela penal reforçada da violência doméstica”, na Revista Julgar, n.º 12 (Especial), 2010, p. 14 e Plácido Conde Fernandes, in “Violência doméstica – Novo quadro penal e processual penal, na Revista do CEJ, n.º 8 (Especial), 2008,p. 305, que defende que o bem jurídico aqui em causa é “… a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos crueis, degradantes ou desumanos, um bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral. …”– sendo um crime de perigo, porque não pressupõe a verificação da lesão – cfr. Acórdãos do STJ de 30/10/2003, relatado por Pereira Madeira, in CJ, III, do qual citamos: “I - Os bens jurídicos protegidos pela incriminação estabelecida no nº. 2 do art. 152º do CP são, em geral, os da dignidade humana, particularmente, a saúde compreendendo-se nesta o bem estar físico, psíquico e mental podendo a sua violação ocorrer por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade do cônjuge e seja susceptível de por em causa qualquer dos bens acima mencionados.…”; Acórdão da RP de 19/09/2012, relatado por Ernesto Nascimento, no processo 901/11.0PAPVZ.P1, in www.dgsi.pt, “…A conduta típica da violência doméstica é descrita através do conceito de “maus-tratos físicos ou psíquicos”, que podem incluir, designadamente, “castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais”; Acórdão da RP de26/09/2012, relatado por Airisa Caldinho, no processo 176/11.1SLPRT.P1, in www.dgsi.pt, do qual citamos: “I–No ilícito de violência doméstica é objectivo da lei assegurar uma “tutela especial e reforçada” da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa.
D – O que é bem de ver que tais requisitos, e perdoem-me a expressão, não estão preenchidos com dois telefonemas, espaçados no tempo numa situação de divórcio, em que o recorrente, não sabia que estava a ser escutado, e que,
E – A ofendida, podia desligar o telefone, ou até não atender, ou seja, tinha ela o domínio total, da situação, a acrescer, a distância entre o país estrangeiro e a residência da ofendida,
F – Pelo que, não está preenchido o desejo de prevalência, de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto ao perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima.
G - O dolo exigido, é variável, em função da espécie de comportamento do agente, há-de sempre abarcar, pelo menos, o dolo de perigo da afetação da saúde,
H - Para que integre a violência doméstica, a ação do agente há-de constituir o comportamento violento, visto em toda a sua amplitude, que, “… seja tal que, pela sua brutalidade ou intensidade, ou pela motivação ou estado de espírito que o anima, seja de molde a ressentir-se de modo indelével na saúde física ou psíquica da vítima.
I - As condutas do aqui Recorrente, não são idóneas ou suficientes para lesar o bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica,
J - A douta decisão recorrida violou ainda o disposto nos artigos 152.º, n.º 1, alínea a), 153.º e 181.º, todos do Código Penal, na subsunção dos factos em tipologia penal.
L - Pelo que, deverá a douta decisão recorrida ser revogada e substituída por uma outra que absolva o recorrente do crime de violência doméstica p. e p. no art.º 152, n.º 1, alínea a) do CP.»

O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.

A assistente C… apresentou resposta a tal motivação, pugnando também pelo não provimento do recurso.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando também pelo não provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a factualidade provada integra, ou não, a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, a), do Código Penal.

III - Da fundamentação da douta sentença recorrida consta o seguinte:

«(…)
A) Factos Provados

*
II – Fundamentação
1. O arguido B… casou catolicamente com a vítima C… a 13/07/1996, na freguesia …, em Penafiel.
2. De tal relação nasceram dois filhos: D…, a 11/12/1997 e E…, a 02/07/2005.
3. Tendo-se divorciado a 18/12/2015.
4. Sucede que, após o divórcio e até Outubro de 2018, o arguido, em datas não concretamente apuradas, quando em contacto telefónico com a vitima, lhe dizia, repetidamente: “puta, filha da puta”
5. Bem como lhe dizia que se não desistisse dos processos judiciais para cumprimento da obrigação de alimentos devidos aos filhos menores, que intentou, e os processos judiciais relativos à empresa que tiveram juntos, lhe vai bater e matar.
6. O arguido, quando nesse período falava ao telefone com os filhos, por vezes, lhes dizia, repetidamente, referindo-se à vítima, que qualquer dia “fodia-lhe o nariz” e ainda que é uma “puta” e “filha da puta”.
7. O arguido vem provocando medo e receio na vitima, com quem foi casado, tendo atuado sempre com a intenção de alcançar esse resultado, bem como de a subjugar, humilhar e controlar.
8. Através do descrito comportamento, quis, o arguido, com a sua conduta reiterada, diminuir a ofendida na sua dignidade, infligindo-lhe sofrimento psíquico, incluindo agressões verbais e ameaças, pese embora não ignorasse que devia à visada, na qualidade de sua ex-esposa e mãe dos seus filhos, especial respeito e consideração.
9. Dirigiu as expressões referidas a C… com foros de seriedade, bem sabendo que as mesmas eram idóneas a provocar-lhe um sentimento de receio e de inquietação, o que se veio a verificar, e que eram objetivamente ofensivas da sua honra e consideração
10. O arguido agiu sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei.
11. O arguido não tem antecedentes criminais.
12. O arguido desenvolveu o seu processo de socialização no agregado familiar de origem, caracterizando o agregado familiar como transmissor de valores morais e sociais.
13. Abandonou o percurso escolar por falta de motivação, vindo a integrar o mercado de trabalho, aos 15 anos, mantendo a atividade profissional, até à atualidade, na área da instalação de rede de energia elétrica.
14. A nível afetivo o arguido manteve o matrimónio pelo período de 19 anos.
15. O divórcio ocorreu em dezembro de 2015.
16. Atualmente o arguido encontra-se a residir em casa dos progenitores, quando se encontra em Portugal, estando integrado profissionalmente na área da instalação de rede elétrica.
17. B… não reconhece ilicitude nas ocorrências descritas na acusação e só perspetiva a absolvição.
18. Pese embora o arguido refira que tem afectividade pela ex-cônjuge, este não idealiza reconciliação, não mantendo qualquer contacto com a mesma.
19. Os comportamentos do arguido provocaram vergonha, tristeza e falta de auto estima à assistente.
20. Desde a data supra mencionada, não mais o arguido contactou a assistente.

B) Factos Não Provados

1. Os comportamentos do arguido causaram uma profunda depressão da assistente, o que a obrigou a recorrer a tratamento clinico, acompanhamento psiquiátrico e medicação e nunca irá recuperar o equilíbrio emocional que outrora teve.
2. Com tal tratamento psiquiátrico que envolve consultas médicas e compra de medicamentos, a assistente gastou não menos que € 500,00.

C) Fundamentação de Facto

O tribunal formou a sua convicção com base nas declarações da assistente, corroboradas pelos depoimentos dos filhos da assistente e arguido.
Vejamos.
A assistente prestou declarações de forma espontânea, descrevendo os factos que foram considerados provados, contextualizando os mesmos e a motivação do arguido. Referiu que, por vezes, colocou as chamadas do arguido para o seu telemóvel em alta voz por forma a que os filhos soubessem o que pai dizia.
As declarações da assistente mostram-se corroboradas pelos depoimentos de D… e E…, seus filhos com o arguido.
Ambos referiram que o pai lhes telefonava e nesses telefonemas, por vezes, insultava a mãe e ameaçava-a nos termos considerados provados. Também referiram que chegaram a ouvir o que pai dizia diretamente à mãe quando lhe telefonava, ou porque ele falava muito alto e conseguiam ouvir ou porque a mãe colocava a chamada em alta voz, confirmando as declarações da assistente.
De referir que o tribunal não recolheu motivos para duvidar dos depoimentos destas duas testemunhas e que a espontaneidade e simplicidade, principalmente de E…, convenceu o tribunal.
Também a irmã da assistente, F… descreveu alguns telefonemas que ouviu (do arguido para assistente), sendo que confirmou as expressões proferidas pelo arguido. Esclareceu que conseguia ouvir o que o arguido dizia porque este falava muito alto e porque a assistente chegou a pôr algumas chamadas em voz alta.
Assim sendo, o tribunal não teve dúvidas em considerar os factos descritos na acusação.
No que diz respeito aos danos sofridos pela assistente como consequência dos factos praticados pelo arguido vertidos nos factos provados, os mesmos resultam das mais elementares regras da experiência, tendo sido corroborados pelas testemunhas supra identificadas.
Já no que diz respeito àqueles que foram considerados não provados, não foi produzida prova bastante para o tribunal os poder considerar verdadeiros. Desde logo, porque não foi junto qualquer relatório médico a confirmar, sendo que a receita junta aos autos não nos permite concluir que aqueles medicamentos foram prescritos na sequência de um distúrbio causado pelos factos praticados pelo arguido. A falta daquele documento poderia ter sido suprida por prova testemunhal, mas apenas se o médico psiquiatra que terá diagnosticado a assistente tivesse prestado depoimento em audiência, pois só ele poderia esclarecer o diagnóstico eventualmente realizado e os motivos subjacentes ao estado da assistente.
Assim, tais factos foram considerados não provados.
A ausência de antecedentes criminais do arguido resulta do seu CRC junto aos autos.
As condições pessoais, sociais, profissionais e económicas do arguido resultam do relatório social junto aos auto.
Que o arguido não contacta a assistente desde 2018 resulta das declarações desta.
*
III – Enquadramento Jurídico

Do crime de violência doméstica
Ao arguido vem imputada a prática de um crime de violência doméstica atualmente previsto e punido pelo artigo 152º, nº1, al. a) e nº2 do Código Penal.
De acordo com o disposto no artigo 152º, nº1. al. b) e nº 2 do Código Penal, na redação introduzida por aquela Lei “Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privação da liberdade e ofensas sexuais a cônjuge ou ex-cônjuge, é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”, sendo que se os factos forem praticados no domicilio comum, no domicilio da vítima ou na presença de menor, a pena prevista é de dois a cinco anos de prisão.
O bem jurídico protegido pela consagração deste tipo de ilícito é a proteção da dignidade humana.
Estamos perante “Um crime específico que será impróprio ou próprio, consoante as condutas em si mesmas consideradas já constituam crime (caso dos maus tratos físicos, pois que o mau trato físico é sinónimo, aqui, de ofensa à integridade física simples; mas também de algumas espécies de maus tratos psíquicos, como, p.ex., quando estes se traduzam em ameaças puníveis em si mesmas ou em injúrias ou difamações), ou consoante as condutas não configurem em si mesmas qualquer crime (…)” (Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, página 332).
Tal normativo penaliza a violência doméstica e/ou familiar, a qual consiste, segundo a definição apresentada pelo Conselho da Europa, no “ato ou omissão cometido no âmbito da família por um dos seus membros, que constitua atentado à vida, à integridade física ou psíquica ou à liberdade de um outro membro da mesma família ou que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade”.
Assim, verificamos que são várias e diferentes as condutas passíveis de preencherem o tipo de ilícito aqui em análise, desde as ofensas corporais, a humilhações ou injúrias e ameaças, entre outras.
Dos factos dados como provados resulta que o arguido, insultou, ameaçou e diminuiu a assistente na sua dignidade, de forma repetida, reiterada e constante, na presença de filhos menores, após o divórcio e separação.
Assim, tendo resultado provado que o arguido agiu da forma descrita para com a assistente, o que quis, agindo de forma deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo ser tal conduta proibida e punida por lei, cometeu o crime de que vem acusado.
Com efeito, estão preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivo do tipo legal de crime de violência doméstica imputado ao arguido.
Resultou, ainda provada, a prática de factos pelo arguido na residência da assistente e na presença de filhos menores, pelo que está preenchida a agravante prevista no nº2 do normativo supra mencionado.
*
IV –Determinação da Medida Concreta da Pena

Feito pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido, importa agora determinar a natureza e medida da sanção a aplicar.
O crime de violência doméstica pelo qual o arguido vai condenado é punido com pena de prisão de dois a cinco anos (artigo 152º, nº1, al. a) e nº2 do C.P.).
Resulta do art. 72º, nº1 do C.P. que a determinação da pena concreta, dentro da moldura penal cominada nos referidos preceitos legais, far-se-á em função da culpa e das exigências de prevenção geral e especial do agente, determinando o nº2 do mesmo preceito legal que, para o efeito, se atenda a todas as circunstâncias que deponham contra ou a favor do arguido, desde que não façam parte do tipo legal de crime (para que não se viole o princípio "ne bis in idem", uma vez que tais circunstâncias já foram tomadas em consideração pela própria lei para a determinação da moldura penal abstrata).
Para o efeito, atribui-se à culpa a função única de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração positiva das normas e valores) a função de fornecer uma moldura de prevenção cujo limite máximo é dado pela medida ótima da tutela dos bens jurídicos - dentro do que é considerado pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exato da pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização do agente.
No caso concreto importa considerar:
que a ilicitude associada à prática dos factos na pessoa da assistente é moderada, atendendo aos concretos factos praticados – insultos, ameaças, humilhações (que não se consubstanciaram em factos intrinsecamente muito gravosos) – e à reiteração dos mesmos durante três anos, sendo que os mesmos foram praticados depois do divórcio, não esquecendo, porém, que o ilícito em análise abarca factos muito mais gravosos que se podem prolongar por uma vida inteira;
que o dolo foi direto, tendo o arguido consciência que praticava aqueles factos, que com eles causava sofrimento à assistente e ao ofendido, e querendo esse resultado;
as exigências de prevenção geral são acentuadas, atenta a frequência deste tipo de criminalidade na sociedade atual, designadamente no que diz respeito ao crime de violência doméstica. Há, assim, que reafirmar perante a comunidade o valor das norma jurídicas violadas.
relativamente às exigências de prevenção especial há que referir que:
o arguido não tem antecedentes criminais;
o arguido não cessou o seu comportamento após a rutura do casal, mas desde finais de 2018 que não contacta com a assistente;
o arguido encontra-se profissional e familiarmente integrado.
Assim, atento o exposto, entende-se ser de aplicar ao arguido uma pena de dois anos e quatro meses de prisão pela prática do crime de violência doméstica.
Atendendo à medida concreta da pena de prisão fixada, impõe-se que se pondere a suspensão da execução da mesma, nos termos do artigo 50º, n.º 1 do Código Penal.
Aquele normativo estabelece que “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Subjacente à decisão de suspender a execução de uma pena de prisão está uma prognose social favorável ao agente, baseada num risco prudencial.
O tribunal, ao suspender a execução da pena de prisão, terá que refletir sobre a personalidade do arguido, sobre as condições da sua vida, sobre a sua conduta anterior e posterior ao delito e sobre o circunstancialismo envolvente da infração.
Assim, atendendo aos factos provados, nomeadamente que o arguido não tem antecedentes criminais encontrando-se profissional e socialmente bem integrado, entende o tribunal que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Desta forma, vai o arguido condenado na pena de dois anos e quatro meses de prisão, suspensa por igual período (artigo 50º, nº1 e 5 do Código Penal).
O nº2 do artigo 50º do Código Penal estabelece que o “tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades de punição (…) determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova”.
“O regime de prova é uma modalidade da suspensão da execução da pena de prisão, tendo como elemento diferenciador das outras modalidades a existência de um plano individual de readaptação social que é executado com vigilância e apoio de serviços tecnicamente apetrechados para o efeito, no caso os Serviços de Reinserção Social” (Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, Almedina, 2007, página 216).
Ora, considerando a natureza do crime de violência doméstica pelo qual o arguido vai condenado, e por forma a assegurar a interiorização pelo mesmo da censurabilidade dos factos por si praticados, este tribunal julga conveniente promover a reinserção do arguido na sociedade, pelo que, torna- se adequado fazer acompanhar a suspensão da pena de prisão do arguido de regime de prova.
De facto, através da elaboração de um plano individual de readaptação e do acompanhamento por técnicos especializados, imprime-se à pena em que o arguido é condenado “um cunho profundamente educativo e corretivo”(Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, Almedina, 2007, página 1041)
Pelo exposto, é o arguido condenado na pena de dois anos e quatro meses de prisão, suspensa por igual período e sujeita a regime de prova, cujo plano individual de readaptação social será elaborado pelos Serviços de Reinserção Social nos termos do nº 3 do artigo 494º do Código de Processo Penal, que deve incluir nos termos do disposto no artigo 34ºB da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, o afastamento do arguido da assistente, da sua residência e local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio durante o período da suspensão. O crime em análise pode, ainda, punido com uma pena acessória de proibição de contacto com a vítima, pelo período de 6 meses a cinco anos.
Considerando que o arguido não cessou o seu comportamento com o divórcio e a separação do casal (arguido/assistente), entendemos aplicar esta mesma pena acessória ao arguido pelo período de dois anos e quatro meses, porém, considerando que já não contacta a vitima quase há dois anos e que se encontra, quase sempre, a trabalhar no estrangeiro, não se determina que esta pena acessória seja fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância.
Nos termos do disposto no artigo 152º, nº4 do C.P. vai, ainda, o arguido condenado na pena acessória de obrigação de frequência de um programa especifico de prevenção da violência doméstica, a indicar pela DGRSP, durante o período da suspensão.
*
V – INDEMNIZAÇÃO

A assistente, deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido por danos não patrimoniais no montante de € 3.000,00 e por danos patrimoniais no montante de € 500,00.
Nos termos do art. 129º do Código Penal, “a indemnização de perdas e danos emergente de crime é regulada pela lei civil”.
Assim sendo, para se considerar que a lesada tem direito a indemnização por perdas e danos que sofreu, terá que previamente verificar- se se o demandado civil incorreu em responsabilidade pela prática de facto ilícito.
Nos termos definidos pelo art. 483º, nº1 do Código Civil “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigada a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Os pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos são:
- facto voluntário do lesante,
- ilicitude do mesmo,
- imputação do facto ao lesante,
- dano, e
- nexo de causalidade entre o facto e o dano (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, Almedina, 1999, pp. 516).
Face à factualidade dada como provada e dos considerandos já supra expostos aquando da análise da responsabilidade criminal do arguido, verifica-se que com o seu comportamento, o arguido/demandado praticou factos, ilícitos que causaram danos à assistente, pelo que o mesmo se acha incurso em responsabilidade civil extra-contratual, com a correlativa obrigação de indemnizar os danos causados.
De facto, não há espaço para dúvidas no que respeita à prática de factos ilícitos pelo arguido.
Por outro lado, os danos sofridos pela assistente/lesada estão patentes nos factos dados como provados no que respeita à humilhação, medo, vergonha.
Por fim, o nexo de causalidade entre os factos e os danos também resultou provado, uma vez que estes apenas existem e são sofridos pela lesada como consequência daqueles.
Do que fica dito, também podemos concluir que os danos patrimoniais alegados pela demandante não resultaram provados (os danos em si bem como, a existirem, o nexo de causalidade), pelo que se absolve o arguido/demandado nesta parte do pedido.
Atento a que os danos sofridos que se encontram provados são não patrimoniais, importa salientar que, face ao preceituado no artigo 496º do Código Civil, somente serão levados em linha de conta, aqueles que, pela sua gravidade, mereçam tutela jurídica, fixando-se a respetiva indemnização equitativamente, sem olvidar as circunstâncias consagradas no artigo 494º do mesmo diploma legal.
Este tipo de prejuízos é insuscetível de avaliação pecuniária, uma vez que atingem bens que não integram o património do lesado, apenas podendo ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente.
Esclarecem Pires de Lima e Antunes Varela que “a gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objetivo, e não à luz de fatores subjetivos. Por outro lado, a gravidade apreciar-se-á em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado” (in Código Civil Anotado, Volume I, Coimbra Editora, 1987, pp. 499).
Ora, atendendo aos factos ilícitos praticados pelo arguido, às sequelas sofridas pela ofendida dadas como provadas e às regras da experiência comum, tudo conduz à conclusão que os danos sofridos por aquela revestem um grau de gravidade elevado, pelo que justificam a concessão de uma compensação pecuniária à lesada.
Importa, pois, fixar o quantum indemnizatório a atribuir como forma de compensar a lesada, havendo, para tanto, que atentar no critério do artigo 496º, n.º 3, 1ª parte do Código Civil, de acordo com o qual o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º do Código Civil: grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso que o justifiquem.
Acresce que a indemnização por danos não patrimoniais não visa ressarcir a lesada de qualquer prejuízo, mas antes compensá-la pelo sofrimento.
De facto “É consabido que os danos não patrimoniais não são reparáveis — atenta a sua natureza — com a atribuição ao lesado de determinada quantia em dinheiro; todavia, de entre as duas doutrinas que sobre a matéria se perfilavam — ressarcibilidade e não ressarcibilidade deste tipo de danos —, optou a nossa lei pela primeira, no entendimento de que a prestação pecuniária, além de constituir para o lesante uma sanção, tem a virtualidade de contribuir para atenuar, minorar e de algum modo compensar os danos sofridos pelo lesado. Ora, face à manifesta impossibilidade de apagar-reparar o dano, visa-se atenuar um mal consumado, possibilitando à lesada, com o recebimento de uma quantia em dinheiro, a satisfação de utilidades e prazeres que de algum modo o compensem do mal sofrido. Esta natureza compensatória da indemnização a arbitrar pressupõe, como acima se disse, que se tenha em conta a gravidade do dano causado — a intensidade e duração da dor física ou psíquica, ou dos sentimentos negativos provocados —, sob pena de se pôr em causa a sua seriedade e o respeito devido a quem o sofreu. Vem a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores afirmando, uniformemente, que a indemnização por danos não patrimoniais não pode ser simbólica, devendo antes ser de montante que viabilize o fim a que se destina, a saber, atenuar a dor sofrida pela lesada” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27/06/2007, processo 256/05.2GCAVR.C1, disponível em www.dgsi.pt).
Considerando a natureza dos danos sofridos (a humilhação, o medo, o constrangimento, tudo no seio da família) que merecem a tutela do direito, atenta a sua gravidade, e as restantes circunstâncias supra referidas, designadamente a reiteração do comportamento durante três anos é de reputar equitativa a fixação da compensação que será paga pelo arguido, a título de danos não patrimoniais, no montante de € 2.000,00 (dois mil euros).
Pelo exposto, o arguido vai condenado a indemnizar a ofendida no montante € 2.000,00 (dois mil euros), acrescido dos juros de mora, calculados desde a notificação da demandada para contestar o pedido de indemnização civil até efetivo e integral pagamento, à taxa legal que sucessivamente vigorar para os juros civis.
(…)»

IV 1. – Cumpre decidir.
Vem o arguido e recorrente alegar que a factualidade provada não integra a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, a), do Código Penal. Alega que, estando em causa telefonemas de um país estrangeiro (onde ele passou a residir) quando ele e a assistente já estavam divorciados, não se verifica o desejo de prevalência, de dominação sobre a vítima, nem se evidencia um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto ao perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima
Vejamos.
Há que identificar um traço distintivo entre o crime de violência doméstica e os crimes de ofensas à integridade física, injúrias, ameaças ou outros, praticados contra as potenciais vítimas desse crime.
Esse traço distintivo dependerá da perspectiva adotada a respeito do bem jurídico protegido através da incriminação em apreço,
De acordo com Plácido Conde Fernandes, esse bem jurídico é «a saúde enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral». Para que uma conduta integre o crime em questão, exige-se «uma intensidade do desvalor, da acção e do resultado, que seja apta e bastante a molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana» (in «Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal», Revista do CEJ, nº 8 (especial), 1º semestre de 2008, p. 304 a 308).
Para André Lamas Leite, «o fundamento último das acções abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo» (in «A violência relacional íntima», Julgar, nº 12 (especial), Novembro de 2010, p. 49).
Alega o arguido e recorrente que no caso em apreço a circunstância de estarmos perante conversas telefónicas de um país estrangeiro onde ele passou a residir numa altura em que ele e a assistente já estavam divorciados leva a que se considere não estar verificada a relação de domínio sobre a vítima que é própria do crime de violência doméstica. E alega também que a conduta em causa não representa um aviltamento da dignidade da vítima, nem é suscetível de provocar danos na saúde física ou psíquica desta.
A circunstância de o arguido e a vítima estarem divorciados e não coabitarem (residindo até em países diferentes) não afasta, por si só, a verificação dos pressupostos do crime de violência doméstica. A atual redação do artigo 152.º, n.º 1, do Código Penal inclui (na sua alínea a)) o ex-cônjuge como potencial agente deste crime. Podemos dizer que o legislador presume (e trata-se de uma presunção legal) que entre o ex-cônjuge autor de maus tratos físicos e psíquicos, privações de liberdade e ofensas sexuais e a vítima se verifica a situação de domínio a que alude o arguido e recorrente, ou seja, que essa relação de domínio não deixa de existir pelo facto de o casamento estar dissolvido e já não existir coabitação (desde que estejamos perante uma conduta de maus tratos físicos e psíquicos, privações de liberdade e ofensas sexuais).
Tudo está em saber se, no caso em apreço, estamos perante uma situação de maus tratos psíquicos. Sendo certo que uma qualquer injúria, difamação ou ameaça praticada por ex-cônjuge não configura necessariamente um mau trato psíquico e, portanto, um crime de violência doméstica
Podemos dizer que as circunstâncias concretas da prática de injúria, difamação e ameaça em apreço nestes autos não permite qualificar essa prática como de maus tratos psíquicos.
Não se provou a frequência da injúria, difamação e ameaça em causa. Estaremos perante uma conduta repetida, mas não se provou a intensidade dessa repetição (sendo que a ausência de prova a este respeito há de beneficiar o arguido, à luz do princípio in dubio pro reo)
A circunstância de o arguido e a assistente não coabitarem e residirem em países diferentes (não sendo, por si só, impeditiva da verificação da prática de maus tratos psíquicos) reduz o impacto da conduta em causa (que seria, naturalmente, maior se agente e vítima convivessem diariamente ou se encontrassem com frequência). Há que considerar também, a este respeito, que se provou que desde a data da prática dos factos nunca mais arguido e assistente contactaram.
Não se provou o que era alegado pela assistente: que o comportamento do arguido nela tenha provocado uma profunda depressão (que a obrigaria a recorrer a tratamento clinico, acompanhamento psiquiátrico e medicação) e que ela nunca irá recuperar o equilíbrio emocional que outrora teve. Se tais factos tivessem sido provados, diferente seria, obviamente, a conclusão quanto à ocorrência de maus tratos psíquicos
Podemos afirmar que a conduta do arguido (que não deixa de configura crimes de injúria, difamação e tentativa de coação através de ameaça) não representa um aviltamento da dignidade humana da vítima com a sua “coisificação” que é própria do crime de violência doméstica. E não provocou, por outro lado, danos na saúde psíquica da vítima. Segundo os critérios acima expostos, não estaremos perante um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, a), do Código Penal.

IV 2. –
Impõe-se, porém, a condenação do arguido e recorrente pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal (crime punível com pena de prisão até três ou multa até cento e vinte dias), no que se refere às expressões dirigidas à assistente e referidas no ponto 4 do elenco dos factos provados; pela prática de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1, do mesmo Código (crime punível com pena de prisão até seis meses ou pena de multa até duzentos e quarenta dias), no que se refere à expressões dirigidas aos filhos da assistente e referidas no ponto 6 do elenco dos factos provados; e pela prática de um crime de coação através de ameaça agravada, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 154.º, n.º 1 e n.º 2, 155.º, n.º 1, a), 22.º, n.º 1 e n.º 2, b), 23.º, n.º 2, e 73.º, n.º 1, a) e c), do Código Penal (crime punível com pena de prisão de um mês a três anos e quatro meses), no que se refere à expressões referidas em 5 e 6 do elenco dos factos provados.
Não se tendo provado a frequência com que as expressões em causa foram proferidas e a data em que o foram, não temos elementos que nos permitam considerar com certeza que estamos perante mais do que uma resolução criminosa, pelo que deverá o arguido ser condenado apenas pela prática de um de cada um desses crimes (e não vários).
A condenação do arguido pela prática destes crimes não exige o cumprimento do disposto no artigo 358.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, pois eles representam um “minus” em relação ao crime de violência doméstica por que o arguido e recorrente vinha acusado, sendo que a sua defesa em relação a essa acusação já incluía a defesa quanto a tais crimes (ver, neste sentido, o acórdão desta Relação de 28 de março de 2007, proc. n.º 0710448, relatado por Élia São Pedro; o acórdão da Relação de Lisboa de 17 de junho de 2015, proc. n.º 48/13.5PFPDL.L1-3, relatado por Graça Santos Silva; e os acórdãos da Relação de Guimarães de 21 de outubro de 2013, proc. n.º 353/11.5GDMR.G1, relatado por Filipe Melo; de 2 de novembro de 2015, proc. n.º 77/14.1TAAVV.G1, relatado por Manuela Paupério; e de 25 de setembro de 2017, proc. n.º 505/15.9GAPTL.G1, relatado por Armando Azevedo; todos acessíveis in www.dgsi.pt).
É certo que os crimes de injúria e difamação têm natureza particular (ver artigo 188.º, n.º 1, do Código Penal) e não foi deduzida acusação particular pela assistente, Nem o poderia ter sido, face à acusação pública pela prática de crime de violência doméstica (que a assistente acompanhou).
Há que considerar, a este respeito, o que se afirma no acórdão desta Relação de 9 de março de 2020 (in C.J. 2020, II, pg. 264):
«Os pressupostos processuais em geral, de que os atinentes à procedibilidade são uma espécie, só podem estar ao serviço da justiça do caso concreto, se assim não for, é a própria verdade que não se atinge.
O Estado não pode assumir-se como desleal para com o ofendido nos casos em que tudo indicava uma regularidade da instância e, mais tarde, fruto de alteração de qualificação jurídica, um dos factos que não tinha que ser previsto pelo ofendido, dizer-lhe que, por uma questão formal de ausência de queixa, não mais se pode continuar com o processo»
O que nesse acórdão se afirma quanto a uma ausência de queixa, poderá dizer-se da ausência de acusação particular no caso em apreço. Impedir neste caso a condenação pela prática de crimes de injúria e difamação por ausência de acusação particular quendo essa ausência se ficou a dever à dedução de uma acusação pública pela prática de crime de violência doméstica que englobava tais crimes numa relação de concurso aparente, acusação que a assistente acompanhou, frustraria as legítimas expetativas da assistente e representaria uma inaceitável injustiça e uma inaceitável (embora não propositada) “deslealdade processual”.
Podem ver-se, neste sentido, os acórdãos desta Relação de 30 de janeiro de 2013, proc. n.º 1743/11.9TAGDM.P1, relatado pelo também aqui relator; e de 27 de abril de 2016, proc. n.º 780/13.3GALSD.P1, relatado por Vítor Morgado; o acórdão da Relação de Lisboa de 17 de junho de 2015, proc. n.º 48/13.5PFPDL.L1-3, relatado por Graça Santos Silva; e o acórdão da Relação de Guimarães de 25 de setembro de 2017, proc. n.º 505/15.9GAPTL.G1, relatado por Armando Azevedo, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
Afirma-se nesse acórdão da Relação de Lisboa de 17 de junho de 2015:
«A exigência de dedução de queixa-crime e de constituição de assistente, nos crimes particulares, reconduz-se à colocação na disponibilidade da vontade do ofendido da efectivação da punição pelos crimes de que foi vitima. Ora, a manifestação da vontade, por parte da ofendida, da vontade de persecução da tutela penal dos direitos violados expressa pela dedução de queixa, constituição de assistente, acompanhamento da acusação e prestação de declarações em sede de audiência é suficiente e adequada a prover à tutela dos interesses inerentes ao instituto da acusação particular. Exigir que, a par de todas essas inequívocas manifestações de vontade de ver condenado o autor dos factos delituosos, a vítima tivesse praticado um acto puramente formal de acusação, que depende de notificação para o efeito, quando tal notificação não foi feita nem tinha campo de aplicação, seria impor uma perversidade ao sistema, sem vantagem para qualquer dos direitos ou interesses em colisão. Manifestando-se a vontade de persecução penal, inequivocamente, por outra via - a única compatível com a indiciação processual à data da acusação - não há fundamento que permita ignorá-la, em benefício de uma pura formalidade – processualmente descabida, em face dessa indiciação processual e das normas processuais vigentes à referida data, que excluíam a possibilidade de dedução de uma acusação particular»
Podemos dizer que a ratio da exigência, nos crimes de natureza particular, de uma iniciativa do/a assistente como a dedução de acusação particular é satisfeita num caso como o que está em apreço pela circunstância de o/a assistente acompanhar a acusação pública pelo crime de violência doméstica onde se integram, numa relação de concurso aparente, crimes particulares de injúria e difamação. E não só ao/à assistente não era processualmente exigível fazer mais do que isso, como não lhe era sequer processualmente possível fazer mais do que isso.
Pode ver-se, também neste sentido, André Lamas Leite. «A falta de condições de procedibilidade para a ação penal e verdadeiras “decisões surpresa”; interrogações e propostas de iure condendo, in Revista do Ministério Público, ano 39, 155, julho-setembro de 2008, pgs. 83 e 84.
Importa, então, determinar as penas e suas medidas, correspondentes aos crimes em causa.
No que se refere aos crimes de injúria e difamação, à luz do disposto no artigo 70.º do Código Penal, e considerando, sobretudo, o facto de o arguido não ter antecedentes criminais, deverá optar-se pela pena de multa.
Na determinação da medida dessa pena de multa, à luz do disposto no artigo 71.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo Código, há que considerar, para além das circunstâncias consideradas na sentença recorrida na determinação da pena relativa ao crime de violência doméstica e acima referidas, a circunstância de a vítima ter sido casada com o arguido e ser mãe dos seus filhos, o que lhe impõe um dever de particular respeito (circunstância que não foi considerada na medida da pena correspondente ao crime de violência doméstica, por estar ínsita no tipo legal em causa; mas que não o está nestes crimes).
E o mesmo deverá dizer-se quanto ao crime de crime de coação através de ameaça agravada, na forma tentada.
Assim, entende-se adequada a pena de cinquenta dias de multa, quanto ao crime de injúria e de setenta dias de multa quanto ao crime de difamação.
Quanto ao crime de crime de coação através de ameaça agravada, na forma tentada, entende-se adequada a pena de quatro meses de prisão.
À luz do que dispõe o artigo 45.º, n.º 1, do Código Penal, e considerando também e sobretudo a circunstância de o arguido não ter antecedentes criminais, tal pena deverá ser substituída por multa.
Há que proceder a cúmulo jurídico de tais penas de multa, nos termos dos artigos 77.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal.
Na determinação da medida da pena resultante desse cúmulo, há que considerar, em especial, a ligação de todos os crimes ao conflito que opõe o arguido à assistente, o período de tempo a que tais crimes são relativos e a circunstância de o arguido não ter contactado a assistente desde a data da prática do último desses crimes.
Entende-se, assim, adequado fixar a pena correspondente a esse cúmulo jurídico de duzentos dias de multa
Na fixação da taxa diária correspondente às penas de multa, há que considerar o disposto no artigo 47.º, n.º 2, do Código Penal.

IV 3. -
A alteração de qualificação jurídico-criminal da conduta do arguido não influi na responsabilidade civil dela decorrente, Mantém-se a ilicitude dessa conduta (decorrente da prática de crimes), os danos não patrimoniais dela decorrentes e os demais pressupostos dessa responsabilidade. Assim, e quento a este aspeto, mantem-se o que foi decidido na sentença recorrida

Não há lugar a custas (artigo 513,º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal).

V – Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido, absolvendo-o da prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, a), n. º 2, n.º 4 e n.º 5, do Código Penal, por que vinha acusado.
Pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, condenam o arguido em cinquenta dias de multa, à taxa diária de oito euros.
Pela prática de um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal, condenam o arguido em setenta dias de multa, à taxa diária de oito euros.
Pela prática de um crime de um crime de coação através de ameaça agravada, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 154.º, n.º 1 e n.º 2, 155.º, n.º 1, a), 22.º, n.º 1 e n.º 2, b), 23.º, n.º 2, e 73.º, n.º 1, a) e c), do Código Penal, condenam o arguido em cento e vinte dias de prisão, substituídos por igual tempo de multa, à mesma taxa diária de oito euros.
Operando o cúmulo dessas penas de multa, condenam o arguido em duzentos dias de multa, à mesma taxa diária de oito euros, o que perfaz a multa global de mil e seiscentos euros
Mantem-se a decisão da sentença recorrida no que se refere à condenação do arguido e demandado em indemnização civil.

Notifique.

Porto, 12/01/2021
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo