ACIDENTE DE VIAÇÃO
ABANDONO DE SINISTRADO
SEGURADORA
DIREITO DE REGRESSO
Sumário

I - Tendo presentes os valores de segurança e certeza do direito e o princípio da igualdade que os Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência visam potenciar, o sentido uniformizador do AUJ nº 11/2015 deverá aplicar-se nos mesmos termos ao artigo 27.º, n.º 1, alínea d) DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto deste diploma, que tem a mesma exacta redacção da alínea c) do artigo 19.º do DL n.º 522/85, de 31/12.
II - Porém, tratando-se da aplicação de uma clara sanção de natureza patrimonial ao condutor do veículo segurado, mesmo que situada no estrito domínio das relações civis, não poderá funcionar em termos puramente objectivos e automáticos pela mera verificação da factualidade objectiva resultante do referido artigo 27.º.
III - É indispensável que o condutor que se encontra vinculado à obrigação de regresso tenha dado causa ao acidente, ou seja, que se verifiquem os pressupostos para que exista obrigação por parte da seguradora de satisfazer uma indemnização ao lesado; e que o condutor tenha actuado censuravelmente na prática do acto em que a seguradora alicerça directamente o respectivo direito; finalmente, importa ainda apreciar da adequação e proporcionalidade das consequências do exercício do direito de regresso por parte da seguradora, à gravidade da infracção praticada pelo condutor.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
           
I. Relatório
A, SA propôs ação declarativa de condenação, com processo comum, contra B, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de 106.520,86 euros, acrescida de juros à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.
Alega, em síntese, que celebrou com o réu um contrato de seguro do ramo automóvel através do qual transferiu para si a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo de matrícula X; no dia 21 de dezembro de 2009, pelas 19:00 horas, na Estrada ----, ocorreu um acidente de viação que teve como intervenientes o veículo seguro conduzido pelo réu e o peão C; o veículo seguro circulava no sentido ---; não tendo o condutor do veículo seguro visualizado atempadamente o peão C, que circulava, apeado, junto à berma direita da via, atento o sentido de marcha do veículo conduzido pela réu, embateu-lhe com a parte frontal direita do veículo seguro, no seu corpo, provocando a projeção do peão e queda na levada existente na berma direita da via; imediatamente após o acidente, o réu colocou-se em fuga, embora se tenha apercebido que havia atropelado uma pessoa e que esta se encontrava caída no solo a necessitar de assistência médica, inexistindo qualquer outra pessoa no local que pudesse acorrer e assistir o ofendido; após a ocorrência do acidente o réu foi submetido ao teste de pesquisa de álcool no sangue, tendo acusado uma taxa 1,74 g/l; O réu foi condenado pela prática de um crime de omissão de auxilio e um crime de ofensas à integridade física por negligência, em virtude dos factos relatados; C e posteriormente os seus herdeiros (mediante incidente de habilitação de herdeiros), deduziu pedido cível no âmbito do processo-crime, peticionando uma quantia superior a 200,000,00€; já após a prolação da sentença no processo crime, e não obstante a remessa dos pedidos cíveis para o tribunal cível, foi possível às partes chegar a um entendimento e celebrar uma transação tendo-se a autora obrigado a liquidar aos herdeiros do peão C a quantia total de 85.000,00€, quantia que a autora pagou; pagou ainda a autora as quantias de 675,00€ + 1.188,87€ a titulo de despesas hospitalares e medicamentosas, de transportes e perdas salariais; pagou ainda a quantia de 19.656,99€ de despesas hospitalares ao Serviço de Saúde ---.
Regularmente citado, o réu contestou, no essencial aceitando alguns dos factos alegados pela autora e impugnando outros, bem como apresentando a sua versão dos factos e suscitando questão de inconstitucionalidade.
Foi proferido despacho saneador que declarou a instância válida e regular, tendo-se procedido à identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas de prova.
Foi admitida a prova apresentada pelas partes.
Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, após o que, com data de 10/9/2020, foi proferida sentença com o seguinte teor decisório:
Face ao exposto, julga-se a presente ação totalmente procedente por provada e, em consequência, condena- se o réu a pagar à autora a quantia de 106.520,86€ (cento e seis mil, quinhentos e vinte euros e oitenta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos à taxa legal de 4% e vincendos, até integral e efetivo pagamento.
*
Inconformado, o réu interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1. O presente recurso de apelação tem por objeto a injusta sentença, proferida a 10.09.2020, pelo Juízo Central Cível do y, que condenou o Recorrente a pagar à A. a quantia de 106.520, 86 €, acrescido de juros vencidos e vincendos, à taxa de 4%, a título de direito de regresso por abandono do sinistrado e versa exclusivamente sobre matéria de direito.
2. Os factos provados e não provados encontram-se melhor descritos no título II da sentença recorrida, os quais foram reproduzidos, por razões de eficácia e eficiência processual, nos pontos 3 e 4 supra das presentes alegações de recurso.
3. Da Fundamentação de Direito decorre que o Tribunal a quo considerou inquestionavelmente assente que “Ora, no caso sub judice a causa dos danos sofridos pelo sinistrado foi o próprio embate”.
4. O que significa que não ocorrerem danos específicos, nem o agravamento de danos resultantes do embate por causa do abandono do sinistrado pelo ora Recorrente.
5. Enunciação da questão de direito a reapreciar: O direito de regresso que assiste à seguradora por abandono do sinistrado, previsto na al. d) do artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, abrange a totalidade dos danos ou tão só e apenas os danos específicos e/ou o agravamento dos danos causados pelo embate que decorrem daquela conduta?
6. A questão em apreço é deveras controversa e tem vindo a ser alvo de respostas contraditórias e entendimentos divergentes, quer no seio da jurisprudência, quer no seio da doutrina.
7. Não obstante a prolação do polémico Acórdão Uniformizador do STJ n.º 11/2015, de 02.07, publicado no DR, 1.ª Série, n.º 138/2015, de 18.09.2015, aprovado com 18 votos a favor e 16 votos de vencido, o thema decidendum permanece envolto em aceso e profícuo debate e está longe de ser ter pacificado.
8. Com a presente apelação Exmos. Senhores Doutores Juízos Desembargadores, pretende-se, corajosa e audaciosamente, obter uma melhor aplicação do Direito e ver reapreciado o seguinte entendimento, tangencialmente uniformizado pelo STJ: «O direito de regresso da seguradora contra o condutor que haja abandonado dolosamente o sinistrado, previsto na parte final da alínea c) do art. 19º do DL 522/85, de 31/12, não está limitado aos danos que tal abandono haja especificamente causado ou agravado, abrangendo toda a indemnização paga ao lesado com fundamento na responsabilidade civil resultante do acidente.».
9. Com a devida vénia, consideração e respeito, consideramos que o entendimento vertido no citado Ac. Uniformizador representa uma cedência perigosa para o próprio Estado de Direito, ilegal, inconstitucional e injusta que vem favorecer injustificadamente o lobby das seguradoras que no nosso país lucram milhões com o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel transformando-o numa espécie de “contrato de adiantamento” de indemnizações, à revelia do regime da responsabilidade civil e sob a égide de um inconcebível e arbitrário direito sancionatório civil erigido ao arrepio do direito punitivo público.
10. O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel constitui um contrato típico, nominado, obrigatório, bilateral e oneroso, através do através do qual o tomador do seguro transfere a responsabilidade civil das pessoas seguras resultante de acidentes de viação para uma empresa seguradora que se obriga a pagar a indemnização eventualmente devida a troca do pagamento de um prémio por parte do tomador do seguro, que possui uma inegável função de socialização do risco (artigo 4.º do DL n.º 291/2007), atenta à perigosidade inerente à condução automóvel, e uma finalidade de efetiva proteção dos lesados.
11. O regime legal do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel prevê situações que conferem um direito de regresso às seguradoras, sendo uma delas a que nos ocupa, ou seja, a situação de abandono do sinistrado, prevista na al. d) do art. 27.º do Decretolei n.º 291/2007, de 21 de agosto.
12. Situações que devem, obrigatória e necessariamente, ser enquadrados e tratadas à luz do regime da responsabilidade civil vigente no nosso sistema jurídico.
13. O abandono do sinistrado, por comparação com as restantes causas justificativas do direito de regresso, constitui um fundamento sui generis, estranho (no sentido de ser subsequente) à atividade de condução automóvel.
14. Os autos tiveram a sua sorte e não obstante o Tribunal a quo ter dado como provado o abandono, que já havia sido julgado provado no procedente processo-crime que antecedeu a interposição da presente ação, a verdade é que tal facto, por si só, não justifica a criação de uma vantagem patrimonial injustificada a favor da A. seguradora, nem a sua total desresponsabilização das obrigações assumidas no contrato de seguro, que prevê uma obrigação pecuniária (prémio) a seu favor a pagar pelos tomadores do seguro.
15. Na verdade, uma coisa é o abandono doloso provocar danos específicos ou o agravamento dos danos decorrentes do embate, outra coisa é daquela conduta, ainda que ilícita, não resultarem quaisquer danos para o sinistrado.
16. E se na primeira hipótese, se justifica o direito de regresso, seguramente na segunda já não.
17. O que significa que o direito de regresso só pode abranger validamente os danos imputáveis à conduta do abandono, a apurar com base na teoria da causalidade adequada.
18. Por conseguinte, imponha-se à A. seguradora o ónus de alegar e provar a existência de danos específicos ou agravados resultantes do abandono e, ainda, estabelecer o imprescindível nexo de causalidade entre o abandono e esses danos, o que não sucedeu, nem sucede nos presentes autos.
19. Quando a nós, mante-se válida e atual, por igualdade de razão, logica jurídica e por ser transversal aos pressupostos do direito de regresso no âmbito da responsabilidade civil automóvel, a jurisprudência uniformizada pelo Ac. N.º 6/2002, de 28.05, do STJ, publicado no DR, 1.ª Serie-A, n.º 164, de 18 de julho, ainda que a causa do direito de regresso sindicada tenha sido a condução sob o efeito do álcool, no seguintes termos: «A alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.»
20. A evidência que o debate está longe do fim, reside nas divergentes decisões que têm vindo a ser proferidos, destacando-se as que continuam a sufragar o citado entendimento:
- Ac. do STJ de 06/07/2011;
- Ac. do TRG de 12/11/2015;
- Ac. do TRL de 17/05/2012;
- Ac do TRP de 19/01/2012, de 20/09/2012 e de 16/05/2013;
- Ac. do STJ de 09/06/2009, proc. 1582/04.3TVLSB.S1;
Ac. do TRL 14/06/2014, proc. 23529/12.3T2SNT.L1-7;
- Ac. do TRP de 16/05/2013, proc. 7382/11.7TBMAI.P1;
- Ac. do TRP de 15/01/2013, proc. 995/10.6TVPRT.P1: “considerar-se que o segurado que provoca um acidente com uma taxa de alcoolemia superior à permitida por lei, por si só, é condição para legitimar o direito de regresso da seguradora, estar-se-ia a sancionar (civilmente) o agente (segurado) pela taxa de álcool no sangue de que é portador, sem a necessidade de se estabelecer um nexo causal entre esse mesmo estado de alcoolemia e os danos resultantes do acidente, e consequentemente a alterar a natureza reparadora do direito civil (ao invés de sancionadora), pois que se sancionar-se-ia o agente em função da sua culpa e não da causalidade entre a sua acção e os danos casuísticos da mesma.”
- Ac. do TRL, de 03.05.2018, Proc. 7907/16.1 T8SNT.L1-2 (ainda que proferido num caso de consumo de estupefacientes, defende a tese da necessidade do nexo de causalidade adequada).
21. É, quanto a nós, inquestionável que os pressupostos do direito de regresso por abandono do sinistrado, à luz do regime da responsabilidade civil, pressupõem sempre que se estabeleça e demostre o incontornável nexo de casualidade (adequada) entre a conduta/facto e o dano.
22. A disputada uniformização de jurisprudência pelo STJ, acolhida pela sentença recorrida, não obsta a que seja proferida diferente decisão, por ser pacífico atualmente que os Acórdãos Uniformizadores não gozam de força vinculativa, exceto no âmbito do processo em que são proferidos, em virtude de, por força do artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, os juízes julgarem apenas segundo a Constituição e a lei, sem qualquer subserviência a ordens ou instruções, ressalvado o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores.
23. A solenidade e o digníssimo estatuto do STJ, que muito se considera, jamais pode constituir um entrave à perene demanda de obter uma melhor aplicação do Direito.
24. Por conseguinte, este Venerando Tribunal da Relação pode e deve formular o seu próprio juízo e julgamento do caso, visando a melhor aplicação da Constituição e da lei, com o objetivo de efetuar melhor Justiça por ser manifesto que a sentença recorrida enveredou pelo trilho mais fácil e não efetuou o seu próprio juízo de valor sobre um tema tão debatido.
25. É, por conseguinte, perspícuo e natural afirmar que aderimos na íntegra aos fundamentos vertidos nos votos de vencidos ao Ac. Uniformizador do STJ n.º 11/2015 e que se encontram reproduzidos no ponto 36 supra das alegações de recurso e para os quais se remete, destacando-se os votos de vencido dos Exmos. Senhores Doutores Juízes Conselheiros Moreira Alves, João L.M Bernardo e Paulo Armínio de Oliveira Sá.
26. Note-se que a jurisprudência invocada para justificar a admissibilidade da revista que deu origem ao controverso e disputado acórdão uniformizador, maioritariamente vai no sentido da tese de que o direito de regresso abrange somente os danos causados pelo abandono, mais concretamente: Acórdãos do Supremo Tribunal proferidos em 16.4.98 (revista 54/98), 16.12.99 (revista 787/99), 28.2.2002 (revista 192/02), 11.2.2003 (revista 74/03), 9.12.2004 (revista 2876/04), 29.11.2005 (revista 3380/05), 17.1.2006 (revista 2705/05), 30.5.2006 (revista 1219/06), 31.1.2007 (revista 4637/06), 15.3.2007 (revista 407/07), 1.7.2010 (revista 4006/04) e 3.4.2014 (revista 4525/11).
27. Não temos dúvidas que a melhor jurisprudência sobre este tema é que consta do douto Ac. do STJ de 01.02.2011, Proc. 1587/08.5TBOVR.P1.S1.
28. Com efeito, a base do direito de regresso em apreço assenta no instituto da responsabilidade civil e pressupõe, necessariamente, a verificação de todos os seus pressupostos: facto, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade (adequada) entre o facto e o dano.
29. Por sua vez, é incontornável, à luz do estipulado no art. 497.º do C.C, conceber a procedência do direito de regresso sem que o facto tenha causado danos, por tal direito apenas existir na medida das respetivas culpas e das consequências que delas advieram.
30. É injusto impor a transferência da responsabilidade civil automóvel através do seguro obrigatório e fazer recair a totalidade dos danos sobre o tomador do seguro e não somente os que decorrem do eventual ato ilícito por si praticado.
31. Na doutrina, são pertinentes e acertadas as conclusões apresentadas por Araújo, Marisa Isabel Almeida, no artigo com o título “O direito de regresso da seguradora: análise crítica do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 11/2015”, in Lusíada. Direito, n.º 13 (2015):
“O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 11/2015 uniformizou jurisprudência nos seguintes termos:
“O direito de regresso da seguradora contra o condutor que haja abandonado dolosamente o sinistrado, previsto na parte final da alínea c) do art. 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31/ 12, não está limitado aos danos que tal abandono haja especificamente causado ou agravado, abrangendo toda a indemnização paga ao lesado com fundamento na responsabilidade civil resultante do acidente”.
Face ao teor do douto Acórdão, e apesar dos diversos argumentos que do mesmo resultam, é nossa convicção que a interpretação dada ao preceito não vai de encontro ao pensamento do legislador, por um lado nem, por outro, encontra fundamento dogmático.
Sendo certo que o argumento literal é inegável parecendo que o legislador não fez depender de qualquer nexo de causalidade o direito de regresso da seguradora em relação à indemnização paga em caso de abandono da vítima após o acidente não será, em nosso entender, menos verdade, que de entre as causas que o legislador descreve no art. 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31/12 as mesmas encontram o seu fundamento numa razão de equilíbrio contratual entre seguradora e segurado em circunstancias potencializadores de aumento do risco de acidente de viação.
Da mesma forma não se vislumbra que o legislador tivesse em mente, para a situação de abandono da vítima, desencadear direito de regresso a favor da seguradora tendo como pressuposto uma função punitiva ou preventiva de qualquer sanção civil alterando o fundamento e a natureza, primárias, da própria responsabilidade civil, nos termos em que é concebida, ainda que reconhecendo a possibilidade de exercício jurídico a este nível por forma a abarcar a figura dos punitite damages entende-se que esta não será a situação em apreço, pelo menos da forma como se encontra gizada. E da mesma forma não se consegue, ainda que fosse esse o pensamento do legislador, como teria e com que fundamento o teria feito, empossado a seguradora como a titular do direito desse exercício dogmático, fazendo com que o valor a suportar pelo segurado, dessa sanção civil punitiva, correspondesse diretamente ao valor da indemnização paga por aquela, revertendo integralmente a seu favor ainda que, nos termos da lei, seria quem devia suportar, em última instância a ablação patrimonial.
Pelo que, ainda que se pudesse concluir que estamos perante uma forma de sanção civil com função preventiva ou punitiva a verdade é que, a nosso ver, estaríamos longe de conseguir, face à solução legal resultante da interpretação em análise, longe de qualquer exercício de responsabilidade civil com aquelas funções, mormente na muito em voga figura dos punitive damages.
Por isto, em nossa opinião, a última parte da alínea c) do art. 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31/12 tem que ser objeto de interpretação restritiva ou corretiva, limitando o direito de regresso da seguradora aos danos causados ou acrescidos causalmente resultantes do abandono, ou seja, os prejuízos suportados em primeira instância pela seguradora, mas que têm nexo causal com aquelas circunstâncias derivadas do abandono dando-se assim, em nosso entender, total cabimento ao fundamento do diploma em que a norma se insere, bem como ao fundamento do elenco de causas em que a seguradora tem direito de regresso e que o legislador elencou taxativamente no referido art. 19.º e que, a nosso ver, encontram razão de ser no aumento dos risco de circulação segurado constituindo, neste caso, o direito de regresso, o equilíbrio do contrato.”
32. Por fim, importa invocar a inconstitucionalidade da interpretação da al. d) do art. 27.º do DL n.º 291/2007, vertida na douta sentença, que acolheu o entendimento do citado Acórdão Uniformizador, quando subsume o direito de regresso decorrente do abandono doloso a uma “sanção civil”, por esta figura ser completamente estranha aos fins exclusivamente reparatórios do instituto da responsabilidade civil, tal como se encontra configurado no nosso ordenamento jurídico.
33. Em face à punição criminal e contraordenacional da omissão de auxílio, em sede própria (de direito punitivo), o legislador já acautelou as necessidades de prevenção geral e especial que considerou adequadas, não se compreendendo como é possível, à luz do princípio constitucional da tipicidade dos ilícitos criminais e das respetivas penas e do non bis idem, consagrados nos n.ºs 1, 3, 5 do art. 29.º da CRP, conceber a figura de uma sanção civil, por força do exercício do direito de regresso, imposta totalmente à revelia do direito público punitivo.
34. Exmos. Senhores Doutores Juízes Desembargadores, nem a derradeira condenação do Recorrente em pena de prisão efetiva teria as duras e desproporcionais consequências que a manutenção da condenação no pagamento da dívida terá por ser certo que, atentas as suas condições pessoais, sociais, profissionais e económicas (constantes da sentença penal junta com a P.I), o mesmo ficará, até à prescrição da mesma (20 anos ou mais, atentas as eventuais causas de interrupção e suspensão) acorrentado a uma sanção civil sem que da sua conduta tenham decorridos quaisquer danos para o sinistrado para além dos que resultaram do acidente.
35. Na verdade, o que a douta sentença fez, ainda que com base no entendimento uniformizador do STJ, é o equivalente a sancionar civilmente e de modo muito mais grave do que criminalmente um inocente, cuja conduta ilícita de abandono não provocou quaisquer danos!
36. Exmos. Senhores Doutores Juízes Desembargadores, o clamor deste recurso é o seguinte: sanciona-se civilmente e de modo muito mais grave do que criminalmente, um cidadão que transferiu obrigatoriamente a responsabilidade civil automóvel para uma seguradora, por uma conduta (abandono) que não causou quaisquer danos, com injustificada afronta do princípio da proporcionalidade, como princípio ínsito ao próprio conceito da JUSTIÇA!
37. Na verdade, é manifesto que a desproporcional “sanção civil”, em face à medida da pena aplicado no processo-crime, é muito mais gravosa e pesada que a própria pena criminal, aplicada em sede própria e com base nos princípios e normas penais, que foram o produto de uma evolução e de grandes conquistas históricas do povo e dos Estados Democráticos de Direito.
38. Em síntese, o entendimento do STJ, sufragado pela sentença recorrida, constitui uma dupla punição, camuflada de sanção civil, que consubstancia uma autêntica punição à revelia do direito público punitivo, e por, conseguinte, inconstitucional e ilegal.
39. Para além da violação do princípio da dupla punição pelo mesmo facto, o entendimento de que o abandono do sinistrado abrange a totalidade dos danos com base na figura da sanção civil, concebida com total desprezo pelos pressupostos da responsabilidade civil, constitui uma afronta do princípio da tipicidade dos ilícitos criminais e das respetivas penas, por, efetivamente, uma sanção civil mais gravosa que a própria punição criminal representar uma verdadeira punição efetuada à revelia da lei criminal, sem as garantias e direitos de defesa conferidos aos arguidos.
40. A interpretação em causa viola, ainda, o princípio da media da culpa e o principio da proporcionalidade, na medida em que, face à obrigatoriamente do pagamento de um prémio de seguro (que por si só já satisfaz o necessário equilíbrio contratual das prestações do contrato de seguro), faz recair sobre o R. segurado a totalidade do pagamento dos danos, cuja responsabilidade transferiu e não somente os danos excedentes causados pelo facto ilícito por si praticado, com a agravante de ser efetuado em beneficio (enriquecimento) injustificado da seguradora.
41. A mitigação efetuada no douto Acórdão Uniformizador e acolhida (em teoria) pela sentença recorrida, com recurso ao princípio da proporcionalidade, com a finalidade de evitar uma ablação patrimonial, através da ponderação da gravidade da infração, da medida da culpa, de modo a que infrações pouco relevantes ou censuráveis possam causar perdas patrimoniais graves e comprometedoras da sobrevivência do obrigado, se tolera a intolerável interpretação da norma em causa, de cuja prova são algumas lamentáveis e recentes decisões dos nossos tribunais, que, seguindo o caminho mais fácil, se enfileiraram na jurisprudência uniformizada sobre este tema sem um olhar critico e desconsiderando a coerência e unidade do sistema jurídico.
42. Com efeito, a referida interpretação, ao descurar todos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e do direito punitivo, continua a ser inconstitucional e permissiva de uma arbitrariedade inaceitável.
43. Examos. Senhores Doutores Juízes Desembargadores importa atender a mais uma intolerável consequência, que seguramente escapou ao STJ e ao Tribunal a quo, decorrente do facto de ter sido a A., na qualidade de seguradora, a negociar e a fixar, por acordo com o lesado, o quantum indemnizatório, sem qualquer intervenção e participação do Recorrente.
44. O que na prática e em última analise significa que a sentença recorrida e o entendimento consignado no Acórdão Uniformizador do STJ, muito reprovavelmente, vêm permitir que sejam as seguradoras a fixar o montante da sanção civil a aplicar aos segurados (tomadores dos seguros), ao arrepio da demostração e prova do nexo de causalidade entre a conduta justificativa do direito de regresso e os danos e em total desconsideração pelo princípio da medida da culpa e das respetivas consequências.
45. A decisão recorrida viola, por conseguinte, a al. d) do n.º 1 do art. 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, o n.º 1 do art. 483.º, o 494.º e n.º 2 do art. 497.º do C.C.
46. A interpretação da al. d) do n.º do art. 27.º do DL n.º 291/2007, de que o direito de regresso da seguradora “não está limitado aos danos que tal abandono haja especificamente causado ou agravado, abrangendo toda a indemnização paga ao lesado com fundamento na responsabilidade civil resultante do acidente.”, padece de clamorosa inconstitucionalidade por violação dos princípios constitucionais da tipicidade dos ilícitos criminais e das penas e do non bis, consagrados no n.ºs 1, 3 e 5 do art. 29.º da CRP, bem como do principio da proporcionalidade e da medida da culpa, como princípios ínsitos ao conceito do Justiça, tal como consagrada e proclamado pelo Estado de Direito Democrático.
47. Por a condenação em apreço configurar uma efetiva condenação camuflada de sanção civil, a sentença recorrida viola o n.º 1 do art. 1.º, n.º 2 do art. 40.º e n.º 1 do art. 70.º do CP e todas as demais normas e princípios elementares do direito punitivo público consagradas na CRP, no CP e no CPP.
Nestes termos, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por uma outra que julgue a ação totalmente improcedente e, consequentemente, absolva o R. dos pedidos.
Mais se pede que seja declarada a manifesta inconstitucionalidade da al. d) do n.º 1 do art. 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto (anterior alínea c) do art. 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31/12), quando interpretada no sentido de que o direito de regresso decorrente do abandono abrange a totalidade dos danos causados e indemnizados pela seguradora, efetuada pelo Acórdão Uniformizador do STJ n.º 11/2015, de 02.07, publicado no DR, 1.ª Serie, n.º 183/2015, de 18.09 de 2015 e que veio a ser acolhida pela sentença recorrida, a qual deve ser objeto de uma interpretação restritiva, compatível com a CRP e o Direito Punitivo Público e com a unidade do sistema jurídico no que respeita ao regime da responsabilidade civil, no sentido de o direito de regresso conferido à seguradora pela al. d) do n.º 1 do art. 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, abranger somente os danos específicos e derivados, concreta e diretamente do abandono da vítima ou agravamento dos danos causados pelo acidente decorrentes desse abandono, e não a totalidade dos danos originados pelo acidente e que a seguradora indemnizou, assim se fazendo JUSTIÇA.
*
A autora contra-alegou, apresentando as seguintes conclusões:
1. A ora Recorrida concorda, em pleno, com a douta Sentença proferida pelo douto Tribunal a quo.
2. A Sentença objecto de recurso não padece de qualquer vício, no que respeita à matéria de direito e decisão de mérito, concordando integralmente com a aplicação do Direito ao caso em apreço.
3. Está provado que o recorrente abandonou o sinistrado após o ter atropelado, se ter apercebido desse facto e de que o sinistrado se encontrava caído numa levada, gemendo!
4. O recorrente, devido ao sinistro em apreço nos autos foi acusado e condenado, em procedimento criminal, pela prática de um crime de omissão de auxílio, facto comprovado nos autos.
5. Nos autos está provado, o sinistro, a culpa do recorrente na produção do mesmo, os danos decorrentes do sinistro para o sinistrado e valores liquidados pela Recorrida e que o recorrente abandonou o sinistrado após a ocorrência do acidente e sem prestar qualquer auxílio ao mesmo.
6. Resulta do disposto no art. 27º n.º 1 alínea a) do D-L- 297/2007 que a seguradora que tiver satisfeito a indemnização tem direito de regresso contra o condutor…quando este haja abandonado o sinistrado.
7. No âmbito desta legislação foi proferido a Acórdão Uniformizado de Jurisprudência do STJ de 2/5/2015 sob o n.º 11/2015.
8. A jurisprudência uniformizada e, actualmente, sem discussão entende que satisfeita indemnização a seguradora tem direito de regresso contra o condutor que tenha abandonado, dolosamente, o sinistrado, e que esse direito de regresso não se limita aos danos causados, ou agravados, pelo abandono, abrangendo toda a indemnização que tenha sido paga ao lesado em consequência do acidente.
9. No caso dos autos é indubitável que o Recorrente abandonou dolosamente o sinistrado, com efeito basta atentar nos pontos 11 e 12, 22 a 24 e 30 a 32 dos factos provados na douta Sentença, os quais não são objecto de recurso pelo recorrente o qual os aceita, e inclusive os confessou em sede de declarações de parte.
10. O dolo do Recorrente é evidente e inequivocamente grave e censurável jurídica e socialmente.
11. No que respeita à invocada inconstitucionalidade do Acórdão Uniformizador STJ 11/2015, e da interpretação nele contida de que o direito de regresso, nestes casos, de abandono doloso do sinistrado, não se encontra limitado aos danos que advieram ou acresceram com o próprio abandono em si, entende a ora recorrida que tal questão já foi debatida por diversas vezes e objecto de análise superior. Sendo que o entendimento dominante é o de que a interpretação efectuada por este Acórdão Uniformizador não fere a Constituição.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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II. Objecto e delimitação do recurso
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece, sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
Inconstitucionalidade do regime legal que estatui o direito de regresso da seguradora contra o condutor que haja abandonado dolosamente o sinistrado, na interpretação do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 11/2015, no sentido de que esse direito de regresso não está limitado aos danos que tal abandono haja especificamente causado ou agravado, abrangendo toda a indemnização paga ao lesado com fundamento na responsabilidade civil resultante do acidente.
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III. Os factos
Receberam-se, da primeira instância, o seguinte elenco de factos provados e não provados:
1. A autora exerce autorizada a indústria de seguros em diversos ramos (alínea A) dos "factos admitidos por acordo ou provados por documento").
2. No exercício da sua atividade, a autora contratou com o réu um contrato de seguro do ramo automóvel através do qual assumiu a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo de matrícula X, titulado pela Apólice n.° 004623586 (alínea B) dos "factos admitidos por acordo ou provados por documento").
3. No dia 21 de dezembro de 2009, pelas 19:00 horas, ocorreu um acidente de viação que teve como intervenientes:
- o veículo seguro de matrícula X conduzido pelo réu;
- o peão C (alínea C) dos "factos admitidos por acordo ou provados por documento") .
4. O acidente ocorreu na Y (alínea D) dos "factos admitidos por acordo ou provados por documento") .
5. No local referido em 4., a estrada configura uma reta e possui dois sentidos de marcha, com uma hemi-faixa de rodagem em cada sentido (alínea E) dos "factos admitidos por acordo ou provados por documento").
6. O pavimento é de alcatrão, encontrando-se molhado no momento do acidente (alínea F) dos "factos admitidos por acordo ou provados por documento").
7. No momento em que ocorreu o embate era noite o tempo estava de chuva e nevoeiro (alínea G) dos "factos admitidos por acordo ou provados por documento") .
8. O condutor do veículo de matrícula X não visualizou atempadamente o peão (alínea H) dos "factos admitidos por acordo ou provados por documento").
9. O qual circulava, apeado, junto à berma direita da via, atento o sentido de marcha do veículo conduzido pelo réu (alínea I) dos "factos admitidos por acordo ou provados por documento").
10. Indo-lhe embater com a parte frontal direita do veículo seguro, no seu corpo (alínea J) dos "factos admitidos por acordo ou provados por documento").
11. Provocando a projeção do peão e queda na levada existente na berma direita da via (alínea L) dos "factos admitidos por acordo ou provados por documento").
12. Por sentença proferida em 16 de dezembro de 2016, no âmbito do processo comum singular n.° 424/09.8PATS, que correu termos no Juízo de Competência Genérica de Ponta do Sol, Juiz 1, o réu foi condenado pela prática de um crime de omissão de auxilio, previsto e punido 200°, n.°s 1 e 2 do Código Penal, e de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo artigo 148°, n.°s 1 e 3 do Código Penal, tendo-se aí considerado provados, além do mais, os seguintes factos:
"1. O arguido B, no dia 21 de Dezembro de 2009, por volta das 19 horas, conduzia o veículo automóvel de  marca Nissan, modelo Micra, de cor vermelha, com a matrícula X, na Estrada ---, circulando do lado direito daquela via.
2. Nessa mesma  altura, C circulava apeado, na mrgem daquela estrada, no mesmo sentido que o arguido e junto ao percurso de uma levada    paralela à referida rua.
3. A estrada referida em (1) é marginada por algumas casas e estabelecimentos comerciais, é pavimentada com alcatrão, apresentando-se o respetivo piso em bom estado de conservação, e tem uma largura total de seis metros, com dois sentidos de circulação, sem qualquer separador.
4. No dia, hora e local referidos em (1)  chovia com intensidade, pelo que o piso da estrada encontrava-se molhado, e começava já a escurecer na altura.
 5. O arguido conduzia o mencionado veículo, nas aludidas circunstâncias de tempo e lugar, de forma desatenta e descuidada, pois não cuidou de verificar, como lhe competia, a possível existência de pessoas que pudessem circular na berma da estrada, junto à levada referida, não conservando, por isso, uma distância daquela berma que lhe permitisse evitar um acidente.
6. Assim, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em (1), e em consequência direta e necessária da forma desatenta como o arguido guiava, do desrespeito pelo distanciamento obrigatório da margem direita da estrada por ele levado a cabo, aquele não vislumbrou atempadamente a presença do ofendido na berma da rua, logo a seguir à casa n.° 227, situada na margem direita da estrada, atento o seu sentido de circulação, embatendo por isso contra este último, com a parte frontal direita da sua viatura, o que o fez cair no solo, projetando-o para o interior da levada existente junto à estrada.
7. O troço da Estada ---, onde ocorreu o aludido acidente, configura uma reta, precedida de uma ligeira curva aberta, com boa visibilidade.
8. Seguidamente, e logo após a ocorrência do acidente descrito em (6), o arguido, embora se tenha apercebido perfeitamente de que atropelara um transeunte, que consequentemente o mesmo ficara caído no chão, com ferimentos e a necessitar de cuidados médicos, e que mais ninguém ali se encontrava para o acudir, abandonou imediatamente o local, deixando, por isso, o ofendido entregue a si mesmo, carecido da assistência imediata que tal situação requeria.  (...)  - (alinea M) dos "factos admitidos por acordo ou provados por documento").
13. No âmbito do processo referido em 12. foi deduzido pedido de indemnização civil por C contra a aqui  autora e o aqui réu, pedindo a condenação solidária a pagar-lhe quantia não inferior a €60.000 a titulo de indemnização pela incapacidade total e permanente para o trabalho, quantia não inferior a €20.064,66 pelo rendimento que deixou de auferir durante todo o período em que esteve impossibilitado para o trabalho, e quantia não inferior a €120.000 a titulo de indemnização pelos danos não patrimoniais, tudo acrescido de juros à taxa legal já vencidos e vincendos a  contar  da citação e até efetivo pagamento (alinea N) dos "factos admitidos por acordo ou provados por documento").
14. Já após a prolação da sentença referida em 12., e não obstante a remessa    dos pedidos cíveis para    o tribunal cível, foi possível às partes chegar a um entendimento e celebrar uma transação, no âmbito da qual a autora se obrigou a liquidar aos   herdeiros do peão C a quantia total de 85.000,00€ (alinea O) dos "factos admitidos por acordo ou provados por documento") .
15. No cumprimento de tal transação, a autora liquidou a quantia de 85.000,00€ (alinea P) dos "factos admitidos por acordo ou provados por documento").
16. Mais    pagou as quantias      de 675,00€      +         1.188,87€ a título de despesas hospitalares e medicamentosas, de transportes e perdas salariais (alinea Q) dos "factos admitidos por acordo ou provados por documento").
17. Pagou ainda a quantia de 19.656,99€ de despesas hospitalares ao Serviço de Saúde --- (alinea R) dos "factos admitidos por acordo ou provados por documento").
18. Em sede de inquérito no âmbito do processo referido em 12., em 16 de abril de 2012, foi proferido pelo Ministério Público despacho de onde consta, além do mais, o seguinte:
"DO ARQUIVAMENTO
Nos presentes autos foram denunciados factos suscetíveis de integrarem, abstratamente, para além dos ilícitos a seguir indicados na acusação deduzida, a prática de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 291° do Código Penal, ou eventualmente de um crime de condução perigosa, previsto e punido pelo artigo 291°, n.° 1, do mesmo diploma legal, porquanto foi participado que o denunciado, B, tendo sido o responsável pelo acidente de viação descrito nos autos, possuía uma T.A.S. no sangue de 1,74 g/l e violou outras regras legais estradais.
Porém produzida toda a prova possível em sede de inquérito ora findo, não é possível demonstrar que, aquando da ocorrência do acidente em causa, que terá tido lugar às 19.00H, no dia 21 de dezembro de 2009, o denunciado, entretanto constituído como arguido, estivesse a conduzir sob a influência da T.A.S. atrás referida.
Isto porque, na altura do acidente, o arguido não foi fiscalizado, pois fugiu do local, tendo sido submetidos ao exame de pesquisa de álcool no sangue apenas quando se dirigiu voluntariamente à esquadra, às 20.45H, ou seja, cerca de uma hora e quarenta e cinco minutos depois da eclosão do acidente.
Face a tais premissas, embora seja possível e plausível que o arguido estivesse já com aquela T.A.S. quando provocou o acidente, o certo é que, tendo o exame em causa sido realizado apenas uma hora e quarenta e cinco minutos depois da ocorrência do facto nuclear aqui em apreço, à luz de uma análise objetiva dos factos, estribada nas chamadas regras da lógica e experiência comum, somos forçados considerar admissível, face às declarações do arguido, a dúvida sobre se o mesmo, no momento em questão, possuía efetivamente aquela T.A.S.
Destarte, e na ausência de outra prova que possa dissolver a dúvida instalada, a conclusão a retirar, por força da aplicação do princípio do in dúbio pro reu, segundo o qual perante a constatação de uma duvida razoável quanto à verificação dos factos imputados ao arguido esta tem de ser solucionada em benefício do mesmo, é a de que não ficou demonstrado que o arguido tenha conduzido sob a influência da T.A.S. atrás referida.
(...)
Assim sendo, e não se vislumbrando a realização de mais diligências tidas por úteis, determino o arquivamento dos autos, nesta parte quanto aos crimes de condução em estado de embriaguez ou eventualmente condução perigosa imputados ao arguido), por carência de indícios, nos termos do disposto no artigo 277° do Código de Processo Penal" (alinea S) dos "factos admitidos por acordo ou provados por documento").
19. No local a velocidade máxima permitida é de 50 km/hora.
20. O veículo seguro de matrícula 33-91-MA circulava no sentido ---.
21. Circulando o respetivo condutor desatento e alheado dos demais utentes da via.
22. Imediatamente após o embate, o réu abandonou o local.
23. Embora se tenha apercebido que havia atropelado uma pessoa e que esta se encontrava caída no solo a necessitar de assistência médica.
24. Inexistindo qualquer outra pessoa no local que pudesse acorrer e assistir o sinistrado.
25. Cerca de duas horas após o embate o réu foi submetido ao teste de pesquisa de álcool no sangue, tendo acusado a presença de 1,74 g/l.
26. O veículo referido em 2. era de marca Nissan, modelo Micra, de cor vermelha.
27. A estrada possui uma levada paralela.
28. No momento e local do embate o réu circulava no lado direito, atendo o seu sentido de marcha.
29. Entre a hora do embate e a comparência voluntária do réu na esquadra da PSP, mediaram cerca de 2 horas.
30. O réu apenas se apercebeu do peão no momento do embate com a parte lateral dianteira da viatura, e não conseguiu desviar-se a tempo de evitar o embate.
31. O réu, ao aperceber-se do embate, parou a viatura, constatando que o lesado havia caído na berma da estrada, junto da levada.
32. Ouviu lamentos.
Factos não provados
a) O referido em 21. verificou-se também em relação à configuração, sinalização;
b) O condutor do veículo seguro circulava com os reflexos, sentidos e discernimento tolhidos pelo consumo de álcool;
c) O réu sabia que a ingestão de bebidas alcoólicas na quantidade em que conscientemente o fez, o poderia influenciar negativamente, como influenciou, na condução automóvel;
d) O réu agiu deliberada, livre e conscientemente, sabendo que, ao iniciar a condução, nas circunstâncias em referidas em b) e c), punha em causa a segurança rodoviária, fazendo perigar a integridade física e a vida de todos os restantes utentes da via em que seguia;
e) No troço da Estrada ---, onde ocorreu o embate, a reta referida em 5. é precedida de uma curva aberta com visibilidade;
f) À data do acidente a estrada possuía plantas do lado da berma, era marginada por algumas casas e estabelecimentos comercias, tinha a largura total de seis metros, sem qualquer separador entre os dois sentidos de circulação;
g) O peão referido em 8. e 9. transportava um guarda- chuva preto.
h) O réu conduzia a cerca de 40 km/h;
i) O réu não tinha ingerido bebidas alcoólicas no dia o acidente, estava totalmente lúcido e sóbrio, com os seus reflexos e discernimento num estado normal;
j) O réu apenas consumiu bebidas alcoólicas depois do embate, porque ficou nervoso, transtornado e psicologicamente afetado e perturbado com o acidente, por inclusive ser vizinho e conhecer a vítima;
l) Foi neste intervalo de tempo que, por causa do seu estado de nervosismo, transtorno e perturbação, o réu ingeriu álcool em casa;
m) A chuva, o nevoeiro e o facto de estar escuro não permitiram ao réu ver, a tempo de se desviar, o peão que circulava;
n) O embate ocorreu logo a seguir a uma planta arbórea, que deitava para a berma da estrada;
o) O peão efetuou um desvio para o interior da estrada ao passar por tal planta, no momento que a viatura estava a passar por si;
p) Em face do referido em 32., entrou em pânico, ficou muito nervoso e sem capacidade de ajuizar as suas ações;
q) A sua reação, porque não tinha telemóvel, concebida por si, como sendo a melhor solução para prestar auxílio e apoio à vítima, foi ir pedir ajuda à sua esposa, em virtude da sua casa de morada de família ficar localizada a cerca de 2 minutos do local do acidente;
r) A qual pegou no TM e imediatamente se dirigiu para o local do embate;
s) O réu, em face ao seu estado de nervosismo e ansiedade, permaneceu em casa;
t) No momento referido em 31.,            32., p) e q) o réu não tinha conhecimento da gravidade das lesões e do perigo.
u) Quando a mulher do réu chegou ao local, o que demorou uns minutos, a vítima já estava a ser socorrida, tendo a ambulância chegado logo de seguida.
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IV. O mérito do recurso
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Inconstitucionalidade do regime legal que estatui o direito de regresso da seguradora contra o condutor que haja abandonado dolosamente o sinistrado, na interpretação do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 11/2015.
Em causa nesta instância recursória apenas se escontra esta questão, pois que as dúvidas sobre o regime legal aplicável foram solucionadas pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência em questão.
Na presente acção a Autora alegou factos tendentes a demonstrar a culpa efectiva e exclusiva do condutor do veículo cuja circulação havia segurado na produção do acidente objecto dos presentes autos.
Conforme decorre dos fundamentos de facto supra descritos, a matéria de facto alegada pela autora relativamente à dinâmica do acidente logrou revelar-se provada em termos que determinaram a conclusão na sentença recorrida pela responsabilidade exclusiva do condutor do veículo seu segurado pela ocorrência do acidente, conclusão que não vem posta em causa no presente recurso.
Efectivamente não são discutidos em sede recursória os pressupostos da responsabilidade civil do condutor: o facto ilícito e, no caso, doloso a merecer condenação criminal; a existência dos danos; bem como o nexo de causalidade entre o facto ilícito e os danos provados.
Ora, nos termos do disposto no artigo 483.º do Cód. Civil “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação".
Concluindo-se, como se concluiu na sentença, pela culpa do lesante - condutor do veículo segurado -, na produção do acidente, assenta-se igualmente na sua responsabilidade pelo ressarcimento dos danos dele emergentes, atento o disposto no referido preceito legal.
Nos termos do artigo 4.º do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico (…) deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, como no caso dos autos se verifica.
Assim, por força do contrato de seguro celebrado entre o tomador do seguro e a seguradora e titulado pela apólice junta aos autos, a companhia de seguros é a responsável pela satisfação ao lesado dos danos emergentes do evento danoso decorrente de culpa exclusiva do condutor do veículo cuja circulação estava devidamente segurada, já que nos termos do artigo 64.º, n.º 1, alínea a), do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, as acções destinadas à efectivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, em caso de existência de seguro, devem ser deduzidas obrigatoriamente só contra a empresa de seguros, quando o pedido formulado se contiver dentro do capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório, como acontece no caso dos autos.
Consequentemente, a ora autora encontrava-se obrigada a satisfazer ao lesado os danos decorrentes do acidente de viação em causa, o que fez.
Tendo efectuado o pagamento da indemnização ao lesado nos termos sobreditos, a Companhia de Seguros pretende agora por via desta acção exercer o direito de regresso contra o condutor do veículo em virtude de este ter abandonado o sinistrado no local do acidente, omitindo a devida prestação de auxílio, tendo peticionado o valor total que suportou.
Funda, portanto, o seu direito no artigo 27.º, n.º 1, alínea d), do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, de acordo com o qual, uma vez satisfeita a indemnização, a seguradora tem direito de regresso contra “o condutor, se não estiver legalmente habilitado, ou quando haja abandonado o sinistrado”.
O Supremo Tribunal de Justiça, reunido em pleno das secções cíveis no dia 2 de Julho de 2015, pelo Acórdão n.º 11/2015, proferido no processo P.620/12.0T2AND.C1.S1, e publicado no Diário da República, 1.ª Série – N.º 183, de 18 de Setembro de 2015, uniformizou jurisprudência, nos seguintes termos:
“O direito de regresso da seguradora contra o condutor que haja abandonado dolosamente o sinistrado, previsto na parte final da alínea c) do artigo 19.º do DL n.º 522/85, de 31/12, não está limitado aos danos que tal abandono haja especificamente causado ou agravado, abrangendo toda a indemnização paga ao lesado com fundamento na responsabilidade civil resultante do acidente”.
Efectivamente, no caso objecto desse acórdão a revista excepcional havia sido admitida por acórdão da competente formação, em virtude de ter por cumulativamente verificados os respectivos pressupostos (contradição jurisprudencial, ao nível do STJ, acerca da interpretação da norma em causa e relevância jurídica da questão), e, por despacho do Exm.º Conselheiro Presidente do STJ, nos termos do artigo 686.º, n.º 1, do CPC, foi determinado o julgamento ampliado da revista.
Conforme desse despacho decorre, foi reconhecido pelo Exm.º Conselheiro Presidente que o Supremo Tribunal de Justiça de há muito que se defronta com a controvérsia que constitui o assunto decidendo no objecto da presente revista, existindo decisões divergentes que não permitem considerar consolidado e estável o sentido da jurisprudência sobre a questão a decidir.
Pronunciaram-se no sentido de o direito de regresso da seguradora em caso de abandono do sinistrado abranger todos os danos emergentes do acidente, nomeadamente, os Acórdãos do Supremo Tribunal proferidos em 29.4.99 (revista 283/99), 24.5.2001 (revista 825/01), 27.9.2001 (revista 2198/01), 3.7.03 (revista 1272/03) e 13.10.2011 (revista 526/06). Mas pronunciaram-se no sentido de o mesmo direito de regresso, abranger apenas os danos acrescidos causalmente resultantes do facto do abandono, nomeadamente, os Acórdãos do Supremo Tribunal proferidos em 16.4.98 (revista 54/98), 16.12.99 (revista 787/99), 28.2.2002 (revista 192/02), 11.2.2003 (revista 74/03), 9.12.2004 (revista 2876/04), 29.11.2005 (revista 3380/05), 17.1.2006 (revista 2705/05), 30.5.2006 (revista 1219/06), 31.1.2007 (revista 4637/06), 15.3.2007 (revista 407/07), 1.7.2010 (revista 4006/04) e 3.4.2014 (revista 4525/11).
Considerando que não existe jurisprudência estável, torna-se provável a persistência de condições que não permitem fazer prevalecer uma das soluções em conflito. A segurança e a coerência aconselham, por isso, o julgamento ampliado da revista, estabelecendo precedente orientador susceptível de garantir a estabilidade da jurisprudência sobre a matéria em causa.
Do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência supra identificado, tirado por uma maioria a favor desse sentido de 18 Exm.ºs Juízes Conselheiros - para cujo texto remetemos, evitando repetição inútil -, constam exaustivamente os argumentos expendidos por quem defendia cada uma das posições referidas, e constam ainda as várias declarações de voto que espelham a divergência manifestada por 16 Exm.ºs Juízes Conselheiros relativamente ao sobredito sentido uniformizador. Ou seja, decorre do próprio Acórdão que continua a existir uma divisão muito significativa no nosso mais Alto Tribunal e argumentos muito importantes para defender a posição contrária à ali vertida, ou seja, a que consideraria que “o direito de regresso conferido à seguradora pelo artigo 19 alínea c) do D.L. 522/85, de 31/12, apenas abrange os danos derivados, concreta e directamente do abandono da vítima ou agravamento dos danos causados pelo acidente decorrentes desse abandono, e não a totalidade dos danos originados pelo acidente e que a seguradora indemnizou”, como consta, por exemplo, da declaração de voto do Exm.º Conselheiro Moreira Alves.
Como é sabido, ao contrário do que acontecia com o regime dos Assentos, que o artigo 2.º do Código Civil de 1966 integrava nas fontes normativas, os Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência não gozam de força vinculativa a não ser no âmbito do processo em que são proferidos, uma vez que do artigo 4.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto que aprovou a Lei de Organização do Sistema Judiciário, decorre que os juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores.
Não obstante, como sublinha o Exm.º Conselheiro Abrantes Geraldes, “o sistema tem convivido de forma salutar com a força persuasiva de tais arestos que é projectada pela conjugação de diversos factores: a solenidade do julgamento (Pleno das Secções Cíveis), a qualidade dos seus protagonistas e a valia da fundamentação, o que é demonstrado pelo generalizado respeito que as instâncias vêm demonstrando pelas soluções uniformizadoras que acabam por impor-se às polémicas jurisprudenciais que as precedem ou que procuram prevenir. (…)
Com efeito, malgrado a ausência de um efeito vinculativo extraprocessual, não seria coerente um sistema em que, admitindo uma tão solene forma de julgamento, não previsse mecanismos que lhe atribuíssem, ao menos, um carácter persuasivo.
Assim, ante a publicitação de uma solução uniformizadora emanada do Supremo, sem embargo de situações-limite em que outra solução seja justificada pelas circunstâncias, só uma incompreensível teimosia poderá justificar, na generalidade dos casos, o não acolhimento pelas instâncias da jurisprudência fixada (…) [s]aindo beneficiados com a resolução ou prevenção de querelas jurisprudenciais os valores da segurança e certeza do direito e também o princípio da igualdade perante a lei interpretanda, o incremento dessa actividade judicativa repercutir-se-á também, em termos mediatos, na redução da litigância, ante a perspectiva da previsível resposta a determinada questão jurídica que tenha sido objecto de uniformização jurisprudencial.
Através da uniformização de jurisprudência sai valorizada a competência que exclusivamente é atribuída ao Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista, traduzida através de acórdãos com valor para-legislativo, ao mesmo tempo que, sanando ou prevenindo polémicas jurisprudenciais, potencia os factores da segurança e da certeza na aplicação do direito, contribuindo também para a maior eficácia e celeridade do sistema judiciário” - Uniformização de Jurisprudência, in Texto que segundo o autor serviria de base à intervenção programada no Colóquio realizado no Supremo Tribunal de Justiça, no dia 25-6-2015, disponível em http://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/ager_MA_26301.pdf..
Assim, tendo presentes os valores de segurança e certeza do direito e o princípio da igualdade que os Acórdãos de Uniformização de Jurisprudência visam potenciar, e volvendo ao caso dos autos – reportado a acidente que aconteceu já após a vigência da alteração introduzida ao regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel pelo DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto -, consideramos que, apesar de o citado Acórdão de Uniformização de jurisprudência se ter pronunciado sobre um acidente ocorrido ainda na vigência do artigo 19.º, alínea c), do DL n.º 522/85, de 31/12, o seu sentido uniformizador deverá aplicar-se nos mesmos termos ao artigo 27.º, n.º 1, alínea d) do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, que tem a mesma exacta redacção daquele indicado normativo.
Efectivamente, o direito de regresso por banda da seguradora contra o condutor que abandonou o sinistrado, foi definido pelo legislador no artigo 27.º do DL n.º 291/07, nos precisos termos em que já constava do texto do citado artigo 19.º do DL n.º 522/85, diferentemente do que ocorreu com o preceituado no tocante à condução sob efeito do álcool.
De facto, como se aduziu no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, “[s]aliente-se que esta previsão normativa, constando do texto do citado art. 19º, foi integralmente mantida no art. 27º do DL 291/07 (apesar de o legislador, ao editar este diploma, não desconhecer seguramente as dúvidas e controvérsias que a interpretação da referida norma já então suscitava na jurisprudência)…
Na verdade, dificilmente haveria forma mais inadequada de o legislador se exprimir, se pretendesse restringir o direito de regresso aos danos causados ou agravados especificamente em consequência do abandono doloso do sinistrado: efectivamente, o preceito, no seu sentido literal e imediato, parece pretender ligar o surgimento do direito de regresso ao simples facto do abandono da vítima, sem aludir minimamente à exigência de um qualquer nexo causal entre tal facto do abandono e os danos cujo ressarcimento fundaria a acção de regresso da seguradora”.
Reconhecendo - como afirmado na declaração de voto do Exm.º Conselheiro Paulo Sá -, que o argumento da manutenção pelo legislador do mesmo texto pode ser reversível, o certo é que no caso em apreço não deixa de impressionar porquanto, sendo já longas e conhecidas as divergências jurisprudenciais existentes sobre a interpretação da alínea c) do artigo 19.º, fácil teria sido ao legislador proceder à alteração desta alínea, como fez no caso da condução sob o efeito do álcool, clarificando a sua intenção.
Ora, até por comparação com o regime anterior, devemos notar, como salienta o Acórdão Uniformizador, que a evolução legislativa ocorrida na passagem do DL 522/85 para a actual lei do seguro obrigatório automóvel, parece fazer-se no sentido de (ao menos na literalidade dos preceitos) acentuar a vertente de objectividade no funcionamento dos pressupostos do direito de regresso atribuído à seguradora: assim, desde logo, no que respeita à condução sob influência do álcool e estupefacientes, o art. 27º al. c) do DL 291/07 prescreve agora que a seguradora tem direito de regresso contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos.
Deste modo, ponderando que o elemento literal em nada favorece a interpretação restritiva ou correctiva do âmbito da norma, tanto mais que o legislador não viu necessidade de esclarecer a respectiva intenção na alteração efectuada ao regime do seguro obrigatório automóvel; que pode considerar-se que, de um ponto de vista funcional, à acção de regresso deva atribuir-se a natureza de sanção civil, “levando as finalidades de prevenção geral e de reforçada censura ético-jurídica de determinadas condutas estradais à personalização da responsabilidade do seu autor, apagando ou precludindo, no plano das relações internas entre seguradora e tomador/beneficiário do seguro, a garantia de cobertura dos riscos de circulação que normalmente decorreria da vigência do contrato”; concluímos nos termos já referidos pela aplicação do sentido em que a jurisprudência foi uniformizada relativamente à alínea c) do artigo 19.º do DL n.º 522/95, de 31-12 à norma hoje contida no artigo 27.º alínea d), do DL n.º 291/2007, considerando que o direito de regresso da seguradora contra o condutor que haja abandonado dolosamente o sinistrado, não está limitado aos danos que tal abandono haja especificamente causado ou agravado, mas abrangendo toda a indemnização paga ao lesado com fundamento na responsabilidade civil resultante do acidente.
Efetivamente, a função de socialização do risco, assegurando um ressarcimento efetivo da indemnização devida por acidente de viação através do seguro obrigatório, não tem cabal justificação nas situações taxativas enunciadas na lei e que extravasam a assunção de riscos assumidos pelas seguradoras, alterando o equilíbrio contratual da relação entre seguradora e segurado, pelo que o direito de regresso repõe a proporcionalidade e adequação do contrato, num sentido mais conforme à ratio do instituto do seguro obrigatório.
Daí que se assevere que o direito de regresso reconhecido às seguradoras comunga de uma dupla finalidade: “por um lado, deve ser visto como um mecanismo de salvaguarda do sentido da responsabilização do lesante, evitando a absoluta socialização do risco; por outro lado, ele deve ser entendido como um instrumento de salvaguarda do equilíbrio contratual que foi quebrado”, neste caso com o abandono de sinistrado – veja-se Mafalda Miranda Barbosa, in Cadernos de Direito Privado, n.º 50, Abril/Junho de 2015, pág. 45.
Porém, como novamente no Acórdão Uniformizador se recorda, a aplicação, como acontece neste tipo de situação -, de uma clara sanção de natureza patrimonial ao condutor do veículo segurado, mesmo que situada no estrito domínio das relações civis, nunca poderá funcionar em termos puramente objectivos e automáticos pela mera verificação da factualidade objectiva resultante, no caso, do artigo 27.º, sendo indispensável que se efectue quanto à própria factualidade constitutiva do direito de regresso, um juízo de censura incidente sobre a conduta do agente e contemplando, por exemplo, a possível ocorrência de causas de exclusão da culpa.
Ou, como se refere no Ac. da Relação de Guimarães, de 8/10/2020 (António Penha), disponível em www.dgsi.pt:
 Por conseguinte, estes fundamentos justificam a solução privilegiada pelo legislador, sem prejuízo de não impedir ao lesante abandonante a possibilidade de provar a ausência de dolo na sua retirada do local do sinistro (art. 342º, n.º 2, do C. Civil).
No mesmo sentido, veja-se o Ac. da Relação do Porto de 27/4/2017 (Cecília Agante), disponível na mesma base de dados:
É sobre o segurado que impende a prova do afastamento do carácter doloso do abandono, por se tratar de um facto impeditivo do direito de regresso da seguradora demandante.
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No caso dos autos é, portanto, indispensável que o condutor que se encontra vinculado à obrigação de regresso tenha dado causa ao acidente - em qualquer uma das modalidades de responsabilidade civil: por factos ilícitos ou objectiva -, ou seja, que se verifiquem os pressupostos para que exista obrigação por parte da seguradora de satisfazer uma indemnização ao lesado; e ainda que o condutor tenha actuado censuravelmente na prática do acto em que a seguradora alicerça directamente o respectivo direito.
Finalmente, importa ainda atentar no princípio estruturante da adequação e da proporcionalidade, não podendo admitir-se em face do mesmo que infracções muito pouco relevantes no plano ético jurídico, cometidas em circunstâncias que justificariam um reduzido ou francamente atenuado juízo de censura, possam conduzir a drásticas perdas patrimoniais, que ponham em causa a sobrevivência económica do obrigado em via de regresso.
E, com esta restrição, se afastam as dúvidas sobre a (in)constitucionalidade da interpretação normativa em questão, suscitadas pelo recorrente.
Dúvidas a que o próprio Acórdão responde, nos seguintes termos:
"Como é evidente, a previsão legislativa de sanções patrimoniais civis - totalmente autónomas do sancionamento penal e contra-ordenacional - envolvendo a preclusão da garantia de cobertura que normalmente emergiria do seguro vigente, com base no cometimento pelo beneficiário do seguro de um facto ilícito e fortemente censurável - em nada colide com o principio non bis in idem: na verdade, a sanção civil aqui instituída liga-se exclusivamente à definição do âmbito da cobertura do risco pela seguradora, no plano das relações internas entre esta e o seu segurado, nada tendo a ver com um duplo julgamento do arguido/responsável civil no âmbito institucional do direito sancionatório público.
(...)
É, assim, indispensável que o vinculado à obrigação de regresso tenha, não apenas dado culposamente causa ao acidente - ou, no caso de abandono de sinistrado, que ora nos ocupa, responda ao menos objetivamente pelos danos causados pelo acidente, por se verificarem, os respetivos pressupostos, determinando o pagamento de uma indemnização ao lesado pela seguradora - mas também que haja atuado censuravelmente na prática do ato em que se alicerça diretamente o direito de regresso da seguradora.
Por outro lado, o princípio estruturante da adequação e da proporcionalidade impõe que se deva necessariamente confrontar e comparar a gravidade da infração cometida e da culpa do agente na prática do ato que vai despoletar o direito de regresso da seguradora e as consequências, nomeadamente em sede de ablação patrimonial, que podem emergir desse exercício: não pode admitir-se, em homenagem a tal princípio fundamental, que infrações muito pouco relevantes no plano ético  jurídico, cometidas em circunstâncias que justificariam um reduzido ou francamente atenuado juízo de censura, possam conduzir a drásticas perdas patrimoniais, que ponham em causa a sobrevivência económica do obrigado em via de regresso.
Porém, esta necessidade de concreta ponderação entre a gravidade e censurabilidade do facto constitutivo do direito de regresso da seguradora e a intensidade e onerosidade que a perda da garantia do seguro envolve, a realizar na ótica do princípio fundamental da proporcionalidade e da adequação e numa perspetiva de concordância prática , não se coloca seguramente na situação que nos ocupa, face à delimitação do conceito de abandono de sinistrado a que se procedeu - concluindo que só cabem no seu âmbito factos dolosos do condutor, envolvendo a formação e consumação de uma vontade deliberada de omitir a prestação da assistência devida à vítima.
Não pode seguramente, perante esta delimitação factual do conceito de abandono de sinistrado, - e face às inequívocas gravidade e censurabilidade ético-jurídica deste comportamento - considerar-se inadequada ou desproporcionada a preclusão da cobertura que, em condições normais, decorreria do contrato de seguro em vigor".
Nestes termos, ponderando a matéria de facto provada, da qual claramente decorre que o acidente se deveu a culpa exclusiva do condutor do veículo segurado na autora, ou seja, que por força do contrato de seguro esta estava constituída na obrigação de indemnizar o lesado; e que o abandono do sinistrado pelo condutor se deveu a facto doloso deste e fortemente censurável, já que o mesmo, sabendo que embatera num peão, apercebendo-se que o mesmo teria caído numa levada e que gemia, não lhe prestou auxílio e pôs-se em fuga.
Impressiona, em particular, a seguinte factualidade provada:
20. O veículo seguro de matrícula X circulava no sentido ---.
21. Circulando o respetivo condutor desatento e alheado dos demais utentes da via.
22. Imediatamente após o embate, o réu abandonou o local.
23. Embora se tenha apercebido que havia atropelado uma pessoa e que esta se encontrava caída no solo a necessitar de assistência médica.
24. Inexistindo qualquer outra pessoa no local que pudesse acorrer e assistir o sinistrado.
27. A estrada possui uma levada paralela.
28. No momento e local do embate o réu circulava no lado direito, atendo o seu sentido de marcha.
29. Entre a hora do embate e a comparência voluntária do réu na esquadra da PSP, mediaram cerca de 2 horas.
30. O réu apenas se apercebeu do peão no momento do embate com a parte lateral dianteira da viatura, e não conseguiu desviar-se a tempo de evitar o embate.
31. O réu, ao aperceber-se do embate, parou a viatura, constatando que o lesado havia caído na berma da estrada, junto da levada.
32. Ouviu lamentos.
Consequentemente, no presente caso, são elevadas quer a gravidade da infracção quer a culpa do condutor, na modalidade de dolo, sendo adequado e proporcional que suporte as consequências do exercício do direito de regresso por parte da seguradora.
Nestes termos, improcede o presente recurso, mantendo-se na íntegra a decisão sob recurso, que se mostra juridicamente impecável.
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V. Decisão                                              
Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em, na improcedência da apelação, manter a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
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Lisboa, 21 de Janeiro de 2021
Nuno Lopes Ribeiro
Gabriela de Fátima Marques
Adeodato Brotas