I – A presunção de culpa grave estabelecida no n.º 3 do artigo 186.º do CIRE, em relação ao administrador de direito, não está dependente do exercício efectivo de funções por parte do gerente.
II – Os factos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE fazem presumir [presunção iuris tantum] a insolvência culposa do devedor.
Processo n.º 4139/15.0T8VIS-C
Insolvência
Incidente de qualificação da insolvência
Administrador de direito
Insolvência culposa
Sumário:
I – A presunção de culpa grave estabelecida no n.º 3 do artigo 186.º do CIRE, em relação ao administrador de direito, não está dependente do exercício efectivo de funções por parte do gerente.
II – Os factos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE fazem presumir [presunção iuris tantum] a insolvência culposa do devedor.
Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
A (…), credor da insolvente D (…)Lda, requereu se qualificasse a insolvência da sociedade como culposa e se declarassem afectados pela qualificação da insolvência o gerente de direito, S (…), e o gerente de facto, A (…)
O Meritíssimo juiz do tribunal a quo declarou aberto o incidente da qualificação da insolvência.
A administrador da insolvência emitiu parecer no sentido de a insolvência ser qualificada como culposa e de serem afectados pela qualificação S (…), gerente de direito, e A (…), gerente de facto.
O Ministério Público emitiu parecer no mesmo sentido.
A (…) e S (…)opuseram-se à qualificação da insolvência como culposa.
O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência final foi proferida sentença que decidiu:
1. Qualificar a insolvência da devedora D (…)Lda como culposa;
2. Declarar afectados pela qualificação da insolvência o sócio-gerente da insolvente, S (…), e o seu gerente de facto, A (…), fixando em 25% o grau de culpa do 1º, e em 75% o grau de culpa do 2º;
3. Declarar A (…) inibido para a administração de património de terceiros por um período de 4 (quatro) anos;
4. Declarar S (…) inibido para a administração de património de terceiros por um período de 2 (dois) anos;
5. Declarar A (…) inibido para o exercício do comércio durante 4 (quatro) anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
6. Declarar S (…) inibido para o exercício do comércio durante 2 (dois) anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
7. Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre massa insolvente detidos pela insolvente e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;
8. Condenar os afectados pela qualificação da insolvência, S (…) e A (…), a indemnizar os credores da insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do seu património, e na proporção do seu grau de culpa.
S (…) não se conformou com a sentença e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo a revogação da decisão e a substituição dela por acórdão que não qualificasse a insolvência como culposa.
Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. A sentença recorrida é contraditória na sua fundamentação e os factos dados como provados e não provados;
2. A contradição insanável entre factos torna a sentença nula;
3. O tribunal não considerou a efectiva distinção entre gerente de facto e gerente de direito;
4. Para a qualificação da insolvência como culposa é imperativo que se prove o nexo de causalidade entre actuação culposa e a criação ou agravamento da situação de insolvência;
5. A sentença recorrida violou o n.º 3 do artigo 186.º do CIRE.
A (…) respondeu ao recurso, sustentando a confirmação da sentença recorrida, mormente no segmento que qualificou como culposa a insolvência da sociedade, afectando o recorrente com o grau de culpa de 25% nessa insolvência, e que, em consequência, lhe aplicou as consequências legais advindas dessa afectação.
Factos julgados não provados não provados:
a) Que o requerido A (…) sempre agiu enquanto representante do gerente, possuindo poderes delegados pelo gerente para representar a sociedade;
b) Que foi nessa qualidade e munido de poderes delegados pelo gerente para tanto, que assinou o contrato de trabalho com o ora requerente;
c) Que as ordens e instruções que o A (…) transmitia aos funcionários da devedora, eram enquanto superior hierárquico daqueles, funcionário da devedora e de acordo com as instruções e ordens do gerente S(…);
d) Que os assuntos do expediente da sociedade que eram recebidos pelo A (…), eram encaminhados para a análise e decisão do gerente da sociedade, a quem competia a tomada de decisão.
e) Que o requerente sempre soube que o gerente da empresa para quem trabalhava eras S(…);
f) Que o terreno onde funcionava o estaleiro da devedora é pertença de A (…)
Que os pagamentos aos trabalhadores e também ao requerente sempre foram efectuados através de conta bancária da devedora;
g) Que os gerentes não cumpriram as obrigações fiscais da sociedade no ano de 2013;
h) Que os requeridos sabiam, pelo menos desde Maio de 2010, que o activo que a sociedade tinha disponível era insuficiente para liquidar o passivo que lhe era exigível;
i) Que algumas viaturas circulam em França com matrículas francesas, designadamente a viatura com a matrícula portuguesa ES(…)circula em França com uma matrícula francesa.
Previamente importa dizer que a sentença impugnada qualificou a insolvência da sociedade como culposa ao abrigo das seguintes normas constantes do n.º 2 e 3 do artigo 186.º do CIRE:
1. Alíneas a), b), d), e) e f) do n.º 2;
2. Alíneas a) e b) do n.º 3.
Efectuou, no entanto, a seguinte distinção: as acções subsumíveis às hipóteses previstas nas alíneas do n.º 2 eram imputáveis ao gerente de facto; as que preenchiam as hipóteses das alíneas a) e b) do n.º 3 eram imputáveis ao ora recorrente.
Concretamente, o ora recorrente foi declarado afectado pela qualificação culposa da insolvência da sociedade, porque, sendo seu gerente de direito, não cumpriu o dever de requerer a declaração de insolvência dela e porque não depositou as contas do exercício de 2014 e na interpretação do tribunal a quo o incumprimento de tais obrigações previsto nas alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE, faz presumir a insolvência culposa da sociedade.
O recorrente começou por censurar a decisão recorrida com a alegação de que havia contradição insanável entre a decisão de julgar não provado que “os requeridos sabiam, pelo menos desde Maio de 2010, que o activo que a sociedade tinha disponível era insuficiente para liquidar o passivo que lhe era exigível” e o seguinte passo da fundamentação da decisão: “Ora, o dever de apresentar a sociedade à insolvência cabe apenas ao gerente de direito que, no caso, é S (…). Com efeito, o art. 19º do CIRE estabelece que “Não sendo o devedor uma pessoa singular capaz, a iniciativa da apresentação á insolvência cabe ao órgão social incumbido da sua administração, ou se não for o caso, a qualquer um dos seus administradores.” No caso em apreço, o órgão social incumbido da administração da Insolvente é a gerência. O gerente único é S (…). Este, portanto, tinha o dever de apresentar a sociedade à insolvência, nos trinta dias posteriores à data do conhecimento da situação de insolvência ou data em que devesse conhecê-la”.
Segundo o recorrente, esta contradição era insanável e gerava a nulidade da decisão pelo seguinte: se ele, recorrente, não tinha conhecimento da saúde financeira da insolvente, jamais podia prever ou dar cumprimento ao dever de se apresentar à insolvência; e se não tinha conhecimento não se podia presumir a sua culpa grave para efeitos de qualificação da insolvência.
Apreciação do tribunal:
Pelas razões a seguir expostas é de julgar improcedente o fundamento do recurso ora em apreciação.
Em primeiro lugar, a alegada contradição da decisão assenta numa premissa errada. Com efeito, partiu do pressuposto de que a decisão de julgar não provado que os requeridos sabiam desde, pelo menos, Maio de 2010, que o activo que a sociedade tinha disponível era insuficiente para liquidar o passivo que lhe era exigível, significava que ele, recorrente, não tinha conhecimento da situação financeira da sociedade desde pelo menos Maio de 2010, quando a decisão de julgar não provado um facto significa tão só que, produzida a prova, o julgador não se convenceu da realidade desse facto. A decisão de julgar não provado um facto não significa a prova da realidade contrária a ele. No caso, a decisão de julgar não provado que os requeridos sabiam, desde pelo menos, Maio de 2010 que o activo que a sociedade tinha disponível era insuficiente para liquidar o passivo que lhe era exigível não significa a prova de que o ora recorrente não tinha conhecimento da situação financeira da insolvente.
Em segundo lugar, a decisão de julgar não provado o facto destacado pelo recorrente e o trecho da fundamentação acima transcrita não são contraditórios entre si. Com efeito, sob um ponto de vista lógico, há contradição entre duas proposições, quando, referindo-se elas à mesma realidade, a afirmação de uma delas exclui necessariamente a afirmação da outra e, no caso, a decisão de julgar não provado o facto acima mencionado não exclui as afirmações constantes do trecho da fundamentação acima transcrita.
Em terceiro lugar, a contradição que gera a nulidade da sentença é a prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, ocorrendo quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão. Para efeitos da citada alínea, os fundamentos e a decisão que se têm em vista são, respectivamente, os fundamentos jurídicos e a decisão final. E assim a contradição que causa a nulidade da sentença é a que se dá quando os fundamentos jurídicos da decisão apontam num sentido e a decisão final vai em sentido oposto ou diferente.
Tomemos o caso dos autos. Visto que a decisão final foi a de qualificar a insolvência como culposa e a de declarar o ora recorrente afectado pela qualificação da insolvência como culposa, esta decisão estaria em oposição com os respectivos fundamentos jurídicos, se estes apontassem em sentido contrário, ou seja, no sentido de qualificar a insolvência como fortuita ou no sentido de declarar não afectado pela qualificação da insolvência o ora recorrente. O exame da sentença mostra claramente que os fundamentos jurídicos dela apontavam precisamente no sentido do que foi decidido a final.
A segunda linha argumentativa do recorrente é constituída pela alegação de que ele era gerente de direito e que tal situação não era irrelevante para a sua culpa, pelo que sempre deveria excluir-se a sua culpa grave. Invocou, em abono da sua alegação, dois acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte, o primeiro proferido em 11-03-2010, no processo n.º 00349/05.6BEBRG e o segundo proferido no dia 10-11-2016, no processo n.º 00313/11.6BEBRG, dos quais resultava, segundo o recorrente, que a responsabilização dos gerentes não se bastava com a mera titularidade do cargo, exigindo ainda o efectivo exercício de funções de gerência.
Ao alegar no sentido acima exposto, o recorrente argumenta como se resultasse do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE que a presunção de culpa grave nele estabelecida, em relação ao administrador de direito, pressupusesse o exercício efectivo das funções de gerente.
Pelas razões a seguir expostas é de julgar improcedente o fundamento de recurso ora em apreciação.
Em primeiro lugar, os acórdãos indicados pelo recorrente em abono da sua argumentação foram proferidos em recursos interpostos contra decisões tomadas em processos de execução fiscal, nos quais se deu a reversão fiscal contra os gerentes das primitivas executadas, para efectivar a responsabilidade tributária deles, gerentes. Estava em causa nos recursos a interpretação do artigo 24.º da Lei Geral Tributária [LGT], na parte em que este dispõe sobre a responsabilidade dos gerentes pelas dívidas tributárias das sociedades.
Visto que a decisão que é objecto do presente recurso não tem qualquer relação com a questão da reversão fiscal ou com a responsabilidade subsidiária dos gerentes pelas dívidas tributárias da sociedade e que a norma do artigo 24.º da LGT não é aplicável ao presente litígio, não tem interesse para a decisão da presente apelação o sentido com que tal norma foi interpretada e aplicada pelos dois acórdãos do Tribunal Central Administrativo Norte.
Em segundo lugar não tem amparo no n.º 3 do artigo 186.º do CIRE o argumento de que a presunção de culpa grave nele estabelecida, em relação ao administrador de direito, pressupõe que este exerça efectivamente as funções de gerente.
Primeiro: a letra do preceito não contém qualquer elemento que aponte no sentido de que a presunção de culpa grave nele prevista, em relação ao administrador de direito, está dependente do exercício, por ele, da administração efectiva da sociedade. Visto que, segundo o n.º 3 do artigo do artigo 9.º do Código Civil, na fixação do sentido da lei, o intérprete presumirá que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados é de presumir que a letra do preceito expresse em termos adequados o pensamento legislativo.
Segundo: os factos que servem de base à presunção remetem para normas sobre deveres ou obrigações dos administradores, sendo que os administradores que são tidos em vista são os de direito, ou seja, os que foram designados ou nomeados segundo o que está previsto na lei ou no contrato de sociedade. Vejamos.
A base da presunção é constituída por omissões, concretamente pela omissão de cumprimento dos seguintes deveres:
1. Do dever de requerer a declaração de insolvência;
2. Do dever de elaborar as contas anuais;
3. Do dever de submetê-las à devida fiscalização;
4. Do dever de as depositar na conservatória no registo comercial.
Estes deveres têm a sua fonte na lei e os respectivos sujeitos passivos são os administradores de direito. Assim:
O dever de requerer a declaração de insolvência está previsto no n.º 1 do artigo 18.º do CIRE. Em casos como o dos autos, em que o devedor é uma sociedade, o artigo 19.º do mesmo diploma faz recair tal sobre o órgão social incumbido da sua administração, ou, se não for o caso, a qualquer um dos seus administradores.
Quando ao dever de elaborar as contas da sociedade, ele está previsto no n.º 1 do 65.º do CSC. Da conjugação deste número com o n.º 4 do mesmo preceito resulta que o dever em causa recai sobre os “membros da administração que estiverem em funções ao tempo da apresentação…”.
Quanto ao dever de depositar as contas, ele está previsto no n.º 1 do artigo 70.º do Código das Sociedades Comerciais [CSC] combinado com os artigos 3.º, n.º 1, alínea n), 15.º, n.º 1, e 42.º, todos do Código de Registo Comercial. Embora o n.º 1 do artigo 70.º não identifique quem deve pedir o registo das contas, é de afirmar que tal pedido cabe aos administradores da sociedade, dado que se trata de um acto de administração da sociedade.
Terceiro: resulta da alínea a) do n.º 1 do artigo 64.º do Código das Sociedades Comerciais que os administradores nomeados ou designados nos termos da lei ou do contrato de sociedade têm o dever de administrar a sociedade, e de administrá-la com a diligência de um gestor criterioso, e o dever de acompanhar a sua actividade e a sua situação económica e financeira. Por sua vez resulta do n.º 1 do artigo 257.º do mesmo diploma que os gerentes de uma sociedade por quotas podem ser destituídos por justa causa, constituindo justa causa de violação, designadamente, a violação grave dos deveres do gerente.
Interpretando a lei de um ponto de vista sistemático, não faria sentido que ela, numas normas, impusesse ao administrador de direito o dever de administrar a sociedade e sancionasse a violação deste dever com a destituição e, noutras, o desonerasse do cumprimento de alguns dos seus deveres específicos (como são o dever de requerer a declaração de insolvência e o dever de depositar as contas na conservatória do registo comercial) com base no incumprimento culposo do dever de administrar a sociedade.
Assim, estando o administrador de direito obrigado a cumprir os seus deveres, quer os gerais previstos no artigo 64.º do CSC, quer os deveres legais específicos, como sucede com os que estão em causa no presente recurso, é de afirmar que o ora recorrente, gerente de direito da sociedade, apesar de não exercer efectivamente a administração dela, tinha, por força da lei, o dever de requerer a declaração de insolvência dela e o dever de depositar as contas relativas ao exercício de 2014.
Não tendo cumprido tais deveres, há base de facto suficiente para presumir a culpa grave dele, nos termos do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE.
A terceira linha argumentativa do recurso versa sobre a interpretação do preceito acabado de referir.
Diz o recorrente que, ainda que o gerente de direito pudesse ter agido com culpa grave, ele pode não ter contribuído para a criação ou agravamento da situação de insolvência, o que era o caso dos autos. Invocou o acórdão do tribunal da Relação de Coimbra, proferido em 21-01-2014 no processo n.º 174/12.8TJCBR-C, designadamente a passagem onde se afirmou que “a prova dos factos do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE apenas faz presumir a culpa grave, importando, para a qualificação da insolvência como culposa que se prove ainda o nexo de causalidade entre tal actuação culposa e a criação ou agravamento da situação de insolvência”.
Apreciação do tribunal:
O fundamento do recurso ora em apreciação tem por base a interpretação do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE no sentido de que os factos previstos nas alíneas a) e b) fazem presumir [presunção iuris tantum] que o incumprimento das obrigações neles previstas procede de culpa grave do administrador, mas não fazem presumir que a situação de insolvência foi criada ou agravada pela acção do administrador. Segundo esta interpretação, a prova do incumprimento das obrigações previstas na norma não seria suficiente para qualificar a insolvência como culposa. Além da prova dele, seria necessário a prova de que a situação de insolvência foi criada ou agravada pela acção do administrador.
No entender deste tribunal a norma é de interpretar, no entanto, no sentido de que os factos nela previstos [alíneas a) e b)] fazem presumir [presunção iuris tantum] a insolvência culposa do devedor. E assim, como se decidiu, entre outros, no acórdão do tribunal da Relação de Coimbra de 22-11-2016, proferido no processo n.º 2675/13.1TBLRA-C.C1, e no acórdão do STJ proferido em 23-10-2018, no processo n.º 8074/16.6T8CBR-D, ambos publicados em www.dgsi.pt, a insolvência do devedor que não se apresentou à insolvência nos termos prescritos pelo n.º 1 do artigo 18.º do CIRE presume-se culposa [presunção relativa ou juris tantum]. Segue-se daqui que, provando-se o não cumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência, a qualificação da insolvência como culposa só é de afastar se o administrador provar que a insolvência da sociedade não foi causada culposamente por ele.
As razões deste entendimento são as seguintes.
Em primeiro lugar, esta interpretação tem cabimento na letra da lei. Com efeito, a expressão “presume-se a existência de culpa grave” acolhe sem esforço o seguinte sentido: “presume-se a existência de culpa grave na criação ou agravação da situação de insolvência...”.
Em segundo lugar, o pensamento legislativo, reconstituído a partir do preâmbulo do diploma que aprovou o Código da Insolvência (Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março) e de outras normas do CIRE, designadamente dos n.ºs 1, 2 e 5, do artigo 186.º, apontam no sentido de que o alcance da presunção é o que foi assinalado na decisão recorrida. Vejamos.
Ao falar sobre as soluções do CIRE relativas ao dever de apresentação à insolvência, escreveu-se no preâmbulo o seguinte: “Com o intuito de promover o cumprimento do dever de apresentação à insolvência, que obriga o devedor pessoa colectiva ou pessoa singular titular de empresa a requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 60 dias seguintes à data em que teve, ou devesse ter, conhecimento da situação de insolvência, estabelece-se presunção de culpa grave dos administradores, de direito ou de facto, responsáveis pelo incumprimento daquele dever, para efeitos da qualificação desta como culposa”.
No nosso entender, este trecho do relatório aponta no sentido de que o propósito da lei foi o de erigir o incumprimento do dever de apresentação à insolvência como base de presunção de insolvência culposa e não apenas como presunção de culpa referida ao não cumprimento de tal dever.
No mesmo sentido depõe a seguinte passagem do preâmbulo dedicada à explicação do novo incidente de qualificação de insolvência: “O incidente destina-se a apurar (sem efeitos quanto ao processo penal ou à apreciação da responsabilidade civil) se a insolvência é fortuita ou culposa, entendendo-se que esta última se verifica quando a situação tenha sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave (presumindo-se a segunda em certos casos), do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, e indicando-se que a falência é sempre considerada culposa em caso da prática de certos actos necessariamente desvantajosos para a empresa”.
No mesmo sentido depõe o n.º 5 do artigo 186.º cujos termos são os seguintes: “Se a pessoa singular insolvente não estiver obrigada a apresentar-se à insolvência, esta não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que determinante de um agravamento da situação económica do insolvente”.
Com efeito, se o legislador, no caso de pessoa não obrigada a apresentar-se à insolvência, entendeu que a não apresentação ou a apresentação tardia, ainda que determinante de um agravamento da situação de insolvência, não era de considerar insolvência culposa, é de presumir, por aplicação do n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil, que quando afirmou que presumia-se a existência de culpa grave dos que não cumpriram o dever de requerer a declaração de insolvência estava a presumir a culpa no agravamento da situação de insolvência.
A interpretação que se vem defendendo é ainda aquela que preserva melhor a unidade do sistema jurídico, designadamente a relação do n.º 3 com as normas antecedentes. Vejamos.
O CIRE distingue dois tipos de insolvência, a culposa e a fortuita [artigo 185º].
O n.º 1 do artigo 186º diz que a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Esta noção geral de insolvência culposa é complementada pelo n.º 2 e pelo n.º 3 do mesmo preceito.
Sobre o n.º 2 não há dúvidas de que, nas suas várias alíneas, tipifica acções que qualificam a insolvência como culposa. E qualificam-na sem necessidade de demonstração que causaram ou agravaram a insolvência e/ou que o devedor actuou com dolo ou com culpa grave. Mais: tal preceito não só não exige, para qualificar a insolvência como culposa, a prova de que a acção do devedor causou ou agravou a insolvência e/ou a prova de que actuou com dolo ou com culpa grave, como veda ao devedor a prova de que a sua acção não causou a insolvência nem a agravou, bem como veda a prova de que não actuou com dolo ou com culpa grave.
Entre tais acções estão algumas que seguramente nem causaram nem agravaram a situação de insolvência. É o caso das tipificadas nas alíneas h) e i), respectivamente: incumprimento em termos substanciais da obrigação de manter contabilidade organizada, manutenção de uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou a prática de irregularidades com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor [alínea h)]; incumprimento, de forma reiterada dos deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.º [alínea i)].
Porém, tais acções foram erigidas em presunções inilidíveis ou em ficções legais de insolvência culposa porque os dados da experiência revelam que elas estão associadas com elevada probabilidade a situações de insolvência culposa e porque, em tais situações, tornava-se difícil a prova da conduta que causou ou agravou a situação de insolvência.
Nesta linha, é de presumir que a norma do n.º 3 do artigo 186.º se insira no sistema que complementa o n.º 1 do artigo 186.º; e complementa-o mediante a indicação de condutas que fazem presumir (iuris tantum) uma situação de insolvência culposa.
A favor desta interpretação cita-se ainda a seguinte nota de direito comparado.
Sabe-se, através do preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE, que o tratamento dispensado ao incidente de qualificação da insolvência inspira-se, quanto a certos aspectos, na Ley Concursal Espanhola [Lei 22/2003, de 9 de Julho].
O artigo 165.º desta lei, sob a epígrafe “presunções de culpabilidade”, estabelece no n.º 1 que a insolvência se presume culpável, salvo prova em contrário, quando o devedor ou os seus representantes legais, administradores ou liquidatários tiverem incumprimento o dever de requerer a declaração de insolvência.
Dadas as semelhanças notórias entre os termos deste preceito da lei Espanhola e os da alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE pode dizer-se com segurança que aquele preceito serviu de inspiração à norma da lei portuguesa.
Ora, como se pode ler na sentença do Tribunal Supremo Espanhol proferida em 1/6/2015, no recurso n.º 1449/2013, publicada em http://www.poderjudicial.es/, constitui jurisprudência consolidada a que afirma que o artigo 165.º, n.º 1, da Lei Concursal é uma norma complementar do artigo 164.º, n.º 1 (cuja epígrafe é insolvência culposa), que contém a concretização do que pode constituir uma conduta gravemente culposa com incidência causal na criação ou agravação da insolvência e que estabelece uma presunção iuris tantum, que, no caso do incumprimento do dever de requerer a declaração de insolvência, se estende tanto ao dolo ou culpa grave como à sua incidência causal na agravação da insolvência. Isto é, a norma da Lei Concursal que inspirou a alínea a) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE é interpretada pelo tribunal superior do poder judicial de Espanha no sentido de que estabelece uma presunção iuris tantum de insolvência culposa.
Visto que – como se afirmou mais acima - o ora recorrente, enquanto gerente da sociedade não requereu a declaração de insolvência da sociedade, como era seu dever, nem depositou na conservatória do registo comercial as contas relativas ao exercício de 2014, há base para presumir, ao abrigo das alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE, que a situação de insolvência da sociedade foi criada por ele com culpa grave.
Uma vez que o ora recorrente não ilidiu esta presunção [a ilisão da presunção obrigava, por força do n.º 2 do artigo 350.º do Código Civil, à prova do contrário, ou seja, à prova de que a situação de insolvência não fora criada em consequência da actuação culposa do ora recorrente] é de concluir que, ao qualificar a insolvência como culposa ao abrigo das alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE, e ao declarar afectado por tal qualificação o ora recorrente, a sentença recorrida não violou as citadas normas nem a alínea a) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE [norma que serviu de apoio à decisão recorrida para declarar o ora recorrente afectado pela qualificação da insolvência como culposa].
Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.
Vista 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de o recorrente ter ficado vencido no recurso, condena-se o mesmo nas custas do recurso.
Coimbra, 22 de Junho de 2020
Emídio Santos ( Relator)
Catarina Gonçalves
Maria João Areias