Entender-se o termo crime, a que alude o artº 29º nº 5 da Constituição, como referindo-se a um determinado tipo legal, a uma determinada descrição típica normativa seria esvaziar o conteúdo e a ratio do preceito, em frontal violação com os próprios fundamentos do caso julgado. Tal entendimento violaria a paz jurídica e a segurança do cidadão ao esvaziar todo o conteúdo útil do caso julgado. Seria por exemplo permitir, o que não é admissível, que um indivíduo que foi julgado por um crime de ofensas à integridade física (artº 143º do C.Penal) pudesse pelos mesmos fatos, ser segunda vez submetido a julgamento e eventualmente condenado por homicídio (131º do C.Penal)
O termo “crime” não deve assim ser entendido no seu sentido estrito, mas antes como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado de facto ou acontecimento histórico, que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado facto já julgado – e não tanto de um crime – que se quer evitar.
O que o nº 5 do artº 29º da CRP proíbe é no fundo, que um mesmo e concreto objeto do processo possa fundar um segundo processo penal
A pluralidade da intenção criminosa é o critério decisivo para saber se estamos perante uma infração ou um concurso de infrações ( vide Eduardo Correia “Unidade e Pluralidade de Infracções”, in a Teoria do Concurso em Direito Criminal) e impõe a consideração dos factos destes autos que ocorreram em 17 de Julho de 2019, como um crime autónomo.
Portanto, mediando entre os factos objecto do procº nº 30/18.6PJSNT de Sintra, e os factos destes autos, mais de um ano, tendo o arguido sido detido e apresentado ao juiz naquele processo não pôde deixar de tomar consciência da ilicitude e censurabilidade da conduta por si desenvolvida, pelo que fazendo apelo às regras da experiência comum, há que concluir que os factos destes autos não podem ser considerados como integrando a mesma acção e resolução do processo de Sintra, pelo que estamos perante dois crimes, ou, seja, a condenação imposta ao arguido no presente processo não colide com o disposto no nº 5 do artº 29º da Constituição, o princípio do ne bis in idem.
A diligência prevista no artº 52º do DL nº 15/93, de 22-1 (com a epígrafe – Perícia médico-legal) tem como finalidade determinar o grau de imputabilidade do arguido no momento da prática do crime e avaliar do seu estado de eventual toxicodependência atual, para efeitos de aplicação de medida adequada, ou melhor, visa apurar se o estado de toxicodependência em que se encontra o arguido pode impedi-lo de compreender a ilicitude do facto e de atuar conforme a essa compreensão.
I - RELATÓRIO
Nos autos de processo comum singular, com o nº acima mencionado do Tribunal Judicial da Comarca de Beja (Juízo de Competência Genérica de Almodôvar) o Ministério Público requereu o julgamento do arguido, ao abrigo do disposto no artº 16º nº 3, imputando-lhe a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, nº 1, do D. L. nº 15/93, de 22/01.
Realizada a audiência, o tribunal decidiu condenar o arguido J… pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 e 25.º, alínea a), ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, com referência à Tabela I-A, na pena de 4 (quatro) anos de prisão.
Inconformado, o arguido recorreu tendo concluído a motivação com as seguintes conclusões:
«I-. O Arguido J… vinha acusado da prática, como autor, na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-A, anexa àquele diploma legal, conjugados com os art.s 75.º e 76.º do Código Penal.
II. Por sentença, decidiu o douto tribunal a quo condenar o arguido J…, como autor material e na forma consumada, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1 e 25.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-A, anexa àquele diploma legal, conjugados com os art.s 75.º e 76.º do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão.
III. Em primeiro lugar, sempre se dirá que ocorreu violação do princípio non bis in idem ou ne bis in idem significa que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.
IV. Trata-se de um princípio de Direito Constitucional Penal que configura um direito subjetivo fundamental, enunciado no n.º 5 do art.º 29.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
V. Daqui resulta que um cidadão vê garantido o seu direito a não ser julgado mais de uma vez pela prática do mesmo facto punível, defendendo-se contenciosamente contra atos públicos violadores desse direito. Resulta, igualmente, que o legislador deve impedir a possibilidade de as mesmas pessoas serem submetidas a mais do que um julgamento pelo mesmo facto.
VI. Uma vez que, no Juízo Local Criminal de Sintra - Juiz 2 decorreu o processo n.º 30/18.6PJSNT, em que o aqui arguido e Recorrente era também arguido naquele processo.
VII. Nesse processo, o arguido J…, estava acusado como autor, na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, e foi condenado pelo mesmo, ainda que tal sentença não tenha transitado em julgado.
VIII. Nesse processo que decorreu termos em Sintra (ainda não transitado em julgado, repete-se, por do mesmo se ter recorrido), conforme certidão do mesmo junta a estes autos, consta do elenco de factos provados que:
“1.No dia 04/07/2018, pelas 20 horas e 45 minutos, na zona da …, o arguido J…adquiriu, pelo valor de € 500, a indivíduos não concretamente identificados, 30,275 gramas de heroína, com um grau de pureza de 20,6%”.
Quanto a este processo, cuja sentença proferida agora se coloca em crise, estava em causa a seguinte factualidade
“ 2. Com o intuito de adquirir produto estupefaciente para consumir e revender, o arguido, no dia 17 de julho de 2019, deslocou-se ao ….!”
IX. E repare-se que a julgamento do processo que decorreu em Sintra (ainda não transitado em julgado), só decorreu após a prática destes últimos factos de 17 de julho de 2019.
X. Ora, assim sendo, estamos perante um crime exaurido!
XI. O crime exaurido é uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros actos de execução, independentemente de corresponderem a uma execução completa do facto, e em que a imputação dos actos múltiplos e sequentes é imputada a uma realização única – v. neste sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.7.2006, do relator Armindo Monteiro, disponível em www.dgsi.pt.
XII. O crime de tráfico de estupefacientes, concebido como crime de trato sucessivo, de execução permanente, comummente denominado de crime exaurido, fica perfeito com a comissão de um só acto, preenchendo-se com esse acto gerador o resultado típico. O conjunto das múltiplas acções unifica-se e é tratado como tal pela lei e jurisprudência.
XIII. Pelo que, desde já, o arguido também não se pode conformar com a pena aplicada porquanto entende existir violação do princípio Non Bis In Idem, com a sua consequente absolvição.
Sem prescindir nem conceder,
XIV. Por não se concordar também com a decisão relativamente à pena em que foi condenado o arguido, por manifestamente desproporcional, também por tal motivo se interpõe recurso.
XV. Condenar o arguido numa pena de 4 anos de prisão efetiva será inegavelmente afastar mais do que aproxima a inclusão deste indivíduo na sociedade e ainda aumentar, quiçá, a sua dependência de drogas, tal como sucedeu na primeira reclusão.
XVI. Assim, o Arguido deverá ser condenado numa pena nunca superior a 3 anos, e, em qualquer caso, deverá ser sempre suspensa na sua execução, ainda que sujeito a regime de prova.
XVII. O tribunal a quo não ponderou com a objetividade devida a prova produzida em julgamento, para efeitos de determinação da pena, nomeadamente, no facto do arguido ser toxicodependente, ter colaborado com o tribunal e ter real vontade de ultrapassar o seu vício através da desintoxicação, recuperando totalmente a sua vida familiar e social.
XVIII. É inegável que a vontade do Arguido em superar o seu vício, desintoxicando-se, frequentando o CAT assiduamente, permite estabelecer a formulação de um juízo de prognose favorável, ou mera expetativa razoável, relativamente ao comportamento futuro do arguido e ao grau mínimo de tutela do ordenamento jurídico, pelo que deverá haver lugar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada na decisão recorrida.
XIX. Em conclusão, o Recorrente discorda da douta sentença quanto à medida concreta da pena, pois é toxicodependente há muitos anos, esforçando-se o Arguido por sanar o seu vício.
XX. Está ainda provado que o arguido confirmou a posse de estupefacientes, o que significa, juntamente com o actual tratamento um arrependimento não meramente de palavras, mas de actos concretos.
XXI. O arguido está familiar e profissionalmente inserido.
XXII. Face ao exposto, a pena que foi aplicada ao arguido peca por excesso. Desde logo, deverá a pena de prisão ser reduzida e suspensa na sua execução atento o arrependimento do Arguido, e a sua vontade em libertar-se da toxicodependência, libertação essa que está a decorrer e que permite a recuperação positiva do arguido para a sociedade.
XXIII. Não tendo assim decidido, o Tribunal "a quo" violou o art. 71° do CP.
XXIV. Repare-se ainda que houve omissão do exame (perícia médico- legal) a que se reporta o artigo 52 do Decreto Lei 15/93, que apesar de requerida pelo arguido não foi realizada, o que constitui uma nulidade, que desde já ser argui, com as devidas consequências legais, pois seria fundamental para a determinação da medida da pena e serviria para se aferir sobre as capacidades cognitivas e cognoscitivas do arguido».
O Ministério Público respondeu ao recurso dizendo:
«1.Os crimes de tráfico de estupefacientes consubstanciam e integram o conceito de crime exaurido, no entanto, a repetição dos actos de execução apenas integram a realização única de um crime quanto aos factos ocorridos dentro do período de tempo a que a condenação se refere.
2. Desta forma, e não obstante o arguido ter sido condenado nos presentes autos e no proc. n.º 30/18.6PJSNT, pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade e como reincidente, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, respectivamente, não podem os factos em análise nos presentes autos considerar-se englobados na factualidade dada como provada no âmbito do 30/18.6PJSNT, na medida em que ocorreram em momentos totalmente díspares, sem qualquer interligação entre si, executados em locais completamente distintos, sendo que, na ponderação efectuada naqueles autos, em momento algum foi considerada a factualidade ora em análise.
3. Os factos pelos quais o arguido foi julgado nos presentes autos, encontra-se bem delimitada no tempo e circunscreve-se à circunstância de, no dia 17 de Julho de 2019, aquele ter-se deslocado ao …., local onde adquiriu 19,446 gramas de heroína para consumir e revender, sendo que, ao invés, no âmbito do processo 30/18.6PJSNT o arguido foi condenado por se ter deslocado, no dia 04 de Julho de 2018, ou seja, cerca de um ano antes, à zona da …, local onde comprou, pelo valor de € 500,00 (quinhentos euros), 30,275 gramas de heroína, com um grau de pureza de 20,6%, de heroína para consumir e revender.
4. Pelo exposto, conclui-se, objectivamente, não existir qualquer coincidência ou sobreposição temporal entre a factualidade dada como provada nos presentes autos e no proc. 30/18.6PJSNT, até porque ocorreram com um intervalo de diferença superior a um ano.
5. Desta forma, ao invés do alegado pelo recorrente, inexiste identidade dos factos em análise nos presentes autos com aqueles que foram analisados no proc. 30/18.6PJSNT, na medida em que, não obstante o agente e o bem jurídico atingidos serem idênticos, a factualidade ora em análise, foi executada volvido mais de um ano da prática daqueles factos, razão pela qual, não foi, obviamente, considerada ou sequer ponderada em qualquer condenação anterior.
6. Após a análise de toda a prova efectuada em sede de audiência e julgamento, o tribunal a quo condenou o arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 21.º, n.º 1 e art.º 25.º al. a) ambos do D.L. 15/93 de 22.01 com referência à Tabela I-A, na pena de 4 (quatro) anos de prisão efectiva.
7. O Tribunal a quo efectuou uma correcta análise de toda a prova realizada em sede de audiência de julgamento, sendo, em nosso entendimento, e ao invés do alegado pelo recorrente, era materialmente impossível interpretar ou sequer representar o comportamento do arguido como colaborante com a realização da justiça, na medida em que assumiu, ao longo de todo o processo, várias versões díspares e contraditórias, e por outro, recusou, peremptoriamente, a prática dos factos ilícitos pelos quais foi condenado, não obstante toda a prova efectuada em contrário.
8. De igual forma, não poderia ser possível classificar ou sequer conjecturar na postura do arguido algum indicio, vestígio ou desejo em ultrapassar a sua toxicodependência, uma vez que, não evidenciou ou demonstrou qualquer sentido critico, revelando um elevado sentimento de impunidade e desvalor para com as condutas ilícitas assumidas.
9. Assim, consideramos que foi efectuada uma correcta ponderação não só de todos os elementos probatórios, mas também todas as circunstâncias atenuantes e agravantes na determinação da medida da pena, nomeadamente, a elevada intensidade do dolo no cometimento do ilícito, o acentuado grau de ilicitude verificado e ainda o extenso historial criminológico do arguido, com especial enfoque para o facto deste ter averbado no seu registo criminal a condenação em seis ocasiões diferentes, pela prática de diversos crimes, a última das quais, foi condenado, em cúmulo, na pena de 5 anos de prisão efectiva pela prática de um crime de tráfico e um crime de posse de arma proibida.
10. Destarte, e atendendo todas as circunstâncias atenuantes e agravantes analisadas, conclui-se, necessariamente, que o quantum da pena aplicada ao arguido não merece qualquer censura e, nessa medida, não se mostra violado o preceituado no artigo 71.º do Código Penal.
11. Concomitantemente, a decisão condenatória não merece qualquer reparo por não ter determinado que o cumprimento da pena fosse executado em regime de suspensão, na medida em que, de forma fundamentada, correcta e ponderadamente, considerou que a personalidade do arguido, evidenciada não só pelo seu longo historial criminológico, mas também pela sua postura assumida em audiência de julgamento, não permitiria efectuar um juízo prognose favorável acerca do comportamento futuro daquele.
12. Assim, e analisando em pormenor o Certificado de Registo Criminal do arguido resulta, de forma clara e evidente, que a mera ameaça de uma pena de prisão não acautelaria, nem afastaria o arguido da actividade criminosa, ao invés, apenas serviria para engrandecer e ampliar o acentuado sentimento de impunidade que o mesmo já evidencia, razão pela qual, era impossível, em nosso entendimento, efectuar um juízo de prognose favorável à suspensão da execução da pena de prisão.
13. Por fim, o recorrente alegou ter ocorrido uma nulidade em virtude de não ter sido realizada a perícia médico-legal prevista no art.º 52.º do D.L. 15/93 de 22.01, diligência probatória que tem como objectivo aferir se o estado de dependência de droga do arguido atingiu a culpa do mesmo, ou seja, se o estado de toxicodependência poderia impedi-lo de compreender a ilicitude do facto, e por conseguinte, de actuar conforme a essa compreensão.
14. No entanto, compulsados os autos, é possível verificar o arguido, apesar ter sido detido, em flagrante delito, em 17 de Julho de 2019, e subsequentemente, sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, desde o dia 19 de Julho de 2019, apenas em 23 de Dezembro de 2019, ou seja, volvidos mais de cinco meses da sua detenção e a escassos dias de atingir o prazo máximo desta medida de coacção, veio solicitar a realização daquele exame pericial, não invocando qualquer motivo para a sua realização ou sequer fundamento para a necessidade da sua execução.
15. Desta forma, e considerando que, no contacto existente com o arguido, nomeadamente no decorrer do primeiro interrogatório judicial, foi possível verificar e atestar, por um lado, a inexistência de qualquer indício que sustentasse ou justificasse a necessidade de realização de tais diligências periciais, e por outro, a existência efectiva de consciência da ilicitude dos seus actos, mais concretamente por se considerar que a realização de tal exame pericial consubstanciaria uma diligência dilatória e inútil, o supramencionado requerimento apresentado pelo arguido foi indeferido, em 13 de Janeiro de 2020, aquando da prolação do despacho de acusação.
16. Não obstante o exposto, e apesar ter sido notificado do teor do despacho que indeferiu a realização do exame pericial solicitado, o arguido nada alegou ou requereu aos presentes autos, sendo de sublinhar que, aquando das alegações em sede de audiência de julgamento, a sua defensora efectuou menção expressa à execução do referido exame e subsequente despacho de indeferimento que sobre o mesmo recaiu, não invocando, em momento algum, a existência ou ocorrência de qualquer nulidade.
17. Assim, e à semelhança do verificado anteriormente, em sede de recurso, arguido não justifica ou sequer fundamenta a sua pretensão, não invocando qualquer motivo, a não ser uma interpretação literal do supramencionado preceito legal, para a realização de tal exame pericial.
18. Pelo exposto, mais concretamente, por não existir fundamento ou justificação para que a realização da diligência pericial fosse efectuada, consideramos, não assistir razão ao recorrente, e por conseguinte, entendemos não se ter verificado qualquer nulidade, sanável ou insanável, sendo que, a tratar-se de nulidade sanável, a mesma encontrava-se sanada, por não ter sido tempestivamente alegada.
Em suma, a decisão recorrida não merece censura, devendo manter-se nos seus precisos termos.
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas., Venerandos Desembargadores, não deixarão de doutamente suprir.
Deve o recurso ser julgado improcedente, por não provado, mantendo-se a sentença condenatória, nos seus precisos termos».
Nesta Relação o Exmo. Procurador Geral Adjunto emitiu o seu douto parecer no sentido do recurso ser julgado improcedente.
Observado o disposto no art.417º, nº 2, do Código de Processo Penal, o arguido não respondeu
Procedeu-se a exame preliminar e o processo foi o processo submetido à conferência.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1.1. Dos factos provados
Discutida a causa e com relevância para a presente decisão, julgam-se como provados os seguintes factos:
1. O arguido J… é consumidor de produtos estupefacientes e, por ser consumidor habitual e ter frequentemente consigo produtos estupefacientes, o arguido procede à venda de produto estupefaciente, nomeadamente heroína, desde data não concretamente apurada.
2. Com o intuito de adquirir produto estupefaciente para consumir e revender, o arguido, no dia 17 de Julho de 2019, deslocou-se ao ….
3. Naquela data, o arguido adquiriu com o intuito de vender e consumir 19,446 gramas de heroína, com um grau de pureza de 10,3%, correspondente a 20 doses médias individuais.
4. O arguido, após adquirir o produto estupefaciente, ocultou a supramencionada quantidade de heroína, introduzindo-a, após subdividir a mesma em duas embalagens, no interior do seu ânus.
5. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido tinha na sua posse uma nota com o valor de € 50,00, seis notas com o valor de € 20,00, três notas com o valor de € 10,00 e uma nota com o valor de € 5,00, todas emitidas pelo Banco Central Europeu e um telemóvel de marca Samsung, de cor preta, modelo desconhecido.
6. O arguido não era detentor ou titular de licença ou autorização que lhe permitisse adquirir, deter e/ou transportar a supramencionada substância.
7. O arguido conhecia as características do produto que adquiriu e que tinha na sua posse (heroína), estava consciente que se tratava de produto estupefaciente, e, por conseguinte, que a posse, venda, distribuição, compra, cedência, transporte, importação, exportação era proibida e punida por lei como crime.
8. O arguido actuou de forma livre, deliberada e consciente.
9. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal e tinha capacidade para se autodeterminar de acordo com esse conhecimento.
Do relatório social elaborado pela DGRSP:
10. O arguido é natural de uma zona rural do concelho de …, é o mais novo de uma fratria de dois elementos, integrando um agregado familiar de modesta condição sócio económica.
11. Frequentou o ensino até aos 13 anos de idade, altura em que completou o 5º. ano de escolaridade, tendo posteriormente abandonado os estudos, por falta de motivação.
12. Em contexto de reclusão, concluiu o 6º. ano de escolaridade, através do curso EFA, B2.
13. Iniciou o consumo de haxixe por volta dos 16 anos e o consumo de heroína e cocaína, por volta dos 22 anos, dos quais se tornou dependente e, que viria a determinar-lhe forte instabilidade pessoal, residencial e laboral, deslocando-se para o … onde manteve ocupação laboral no ramo da restauração e construção civil e, posteriormente, na manutenção da ….de … e, ainda, na empresa da …, nas …, na área da serralharia.
14. A instabilidade vivenciada manifestou-se num desajuste comportamental, sofrendo reclusões anteriores por práticas criminais de tráfico de estupefacientes, devido ao seu percurso atribulado e criminalmente censurável. Esteve ainda envolvido judicialmente num processo de resistência e coação a funcionário, com decisão judicial de suspensão da execução da pena de prisão, com regime de prova e multa, sujeito a injunções e regras de conduta, que não conseguiu concretizar.
15. Em termos afectivos, o arguido manteve uma união de facto durante cinco anos, com uma jovem portadora de idêntica problemática aditiva.
16. Desta união nasceram duas filhas, tendo a primogénita sido entregue aos cuidados de uma tia materna, à qual foi atribuído o exercício do poder paternal, entretanto falecida.
17. Quanto à filha mais nova, o arguido desconhece o seu paradeiro e o da ex-companheira, cuja ligação se desfez há vários anos.
18. O arguido efectuou diversas tentativas de desintoxicação na Unidade de … especializada na problemática aditiva, mas sem sucesso, mantendo o acompanhamento actualmente por este serviço.
19. No meio social onde se movimentava era referenciado como indivíduo consumidor de estupefacientes, mantendo convivência com outros indivíduos conotados com o tráfico/consumo de drogas.
20. Familiarmente é identificado como sujeito irresponsável, dado não ser capaz de elaborar projetos consistentes e assertivos de vida futura, não possuindo um temperamento difícil.
21. No decurso da prisão preventiva o arguido tem mantido comportamento adequado às normas institucionais e recebe visitas de familiares regulares, nomeadamente, da filha, irmã e sobrinha.
22. Apresenta um percurso vivencial marcado pela toxicodependência, facto que comprometeu o seu ajustamento comportamental, enquanto processo responsável pela instabilidade pessoal, laboral e económica que tem experienciado, bem como, pelos diversos contactos anteriores com o sistema de justiça.
23. Não obstante os tratamentos a que foi sujeito na área das dependências, não encarou os tratamentos com firmeza e empenho, por forma a afastar-se de enquadramentos sociais geradores de risco.
24. A irresponsabilidade e irreflexão do arguido traduziram-se, ao longo da sua vida, pela inexistência de racionalismo das suas escolhas pessoais, na ausência de projectos vivenciais consistentes e não envolvimento em acções pró-ativas, o que não lhe permitiu alcançar objetivos de estabilidade pessoal duradoura, tendentes a uma reinserção socio-laboral estável.
E ainda que:
25. Em período prévio à sua detenção, o arguido residia em casa de uma filha e trabalhava na oficina do genro, como mecânico.
26. Auferia mensalmente cerca de € 1.000,00.
27. É visto pelas pessoas da comunidade como boa pessoa e trabalhador.
28. O arguido esteve privado da liberdade de 18.02.2013 até 21.02.2018, em cumprimento de uma pena única de prisão de 5 anos, em que foi condenado por decisão de 14.02.2014, que transitou em julgado no dia 18.03.2014, proferida no processo n.º 16/12.4GAADV, pela prática, a 18.02.2013, de um crime de tráfico de estupefacientes e de um crime de detenção de arma proibida.
29. O arguido tem os seguintes antecedentes criminais averbados no seu certificado de registo criminal:
a. Por acórdão proferido em Janeiro de 2004, transitado em julgado em 02.07.2002, no âmbito do processo n.º 8/00.6GAORQ, do Tribunal Judicial de Mértola, foi o arguido condenado pela prática, em 16.01.2000, de crime de tráfico de estupefacientes para consumo, na forma tentada, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução, por 5 anos, declarada extinta a 10.09.2007;
b. Por decisão proferida em 23.01.2002, transitada em julgado em 08.02.2002, no âmbito do processo n.º 105/01.0GAMTL, do Tribunal Judicial de Mértola, foi o arguido condenado pela prática, em 04.08.2001, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 4,00, o que perfaz o montante global de € 240,00, declarada extinta pelo cumprimento em 16.05.2002;
c. Por decisão proferida em 19.06.2002, transitada em julgado em 04.07.2002, no âmbito do processo n.º 49/02.9GAMTL, do Tribunal Judicial de Mértola, foi o arguido condenado pela prática, em 18.06.2002, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de € 4,00, o que perfaz o montante global de € 480,00, declarada extinta pelo cumprimento em 08.06.2004;
d. Por decisão proferida em 09.12.2004, transitada em julgado em 07.01.2005, no âmbito do processo n.º 45/04.1GAMTL, do Tribunal Judicial de Mértola, foi o arguido condenado pela prática, em 25.05.2004, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 4,00, o que perfaz o montante global de € 240,00, declarada extinta pelo cumprimento em 27.09.2006;
e. Por decisão proferida em 22.01.2009, transitada em julgado em 23.02.2009, no âmbito do processo n.º 47/08.9GAMTL, do Tribunal Judicial de Mértola, foi o arguido condenado pela prática, em 04.05.2008, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, na pena de 6 meses de prisão, substituída por 180 dias de multa, e de um crime de injúria agravado, na pena de 120 dias de multa, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 220 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, o que perfaz o total de € 1.100,00, convertida, em 07.01.2010, em 146 dias de prisão subsidiária, suspensa por um ano e subordinada a deveres e regras de conduta, declarada extinta a 05.01.2012;
f. Por acórdão proferido a 14.02.2014, transitado em julgado a 18.03.2014, no âmbito do processo n.º 16/12.4GAADV, do Tribunal Judicial de Mértola, foi o arguido condenado pela prática, em 18.02.2013, de um crime de tráfico de estupefacientes e um crime de detenção de arma proibida, nas penas de 4 anos e 6 meses de prisão e de 1 ano de prisão, respectivamente, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 5 anos de prisão efectiva, declarada extinta, por cumprimento, a 21.02.2018.
1.2. os factos não provados
Com relevância para a presente decisão, inexistem factos por provar.
1.3. Da motivação da matéria de facto
O Tribunal formou a sua convicção sobre a matéria de facto, com base na apreciação de forma livre, crítica e conjugada, de todos os meios de prova disponíveis, tendo presentes as regras da experiência comum e a livre convicção que dela formou (artigo 127.º do CPP).
Assim, por mais relevante e decisivo, é de destacar o seguinte:
- as declarações do arguido que, presente em audiência de julgamento, quis falar sobre os factos. Em termos globais, o arguido assumiu-se como consumidor de produtos estupefacientes há mais de 30 anos, nomeadamente heroína, tendo relatado os diversos tratamentos a que se sujeitou, com sucessivas recaídas.
Assumiu ainda a deslocação ao …, no dia em que foi detido à ordem dos presentes autos, esclarecendo que não era a primeira vez que assim sucedia com propósito de adquirir produto estupefaciente. Admitiu, nesse dia, ter adquirido cerca de 20 gramas de heroína, dividida em dois pacotes de cerca de 10 gramas cada, pelos quais pagou individualmente € 125,00, num total de € 250,00.
Disse, porém, que o produto estupefaciente por si adquirido se destinava exclusivamente ao seu consumo pessoal, por altura da concentração de motociclos em …, negando, portanto, que tivesse adquirido tal produto também com intuito de revender a quaisquer terceiros. Negou, igualmente, ter adquirido tal produto estupefaciente a pedido de quaisquer terceiros, tendo afirmado que o dinheiro utilizado para o seu pagamento era exclusivamente seu, assim como a quantia de cerca de € 200,00, que confirmou ter-lhe sido apreendida nesse dia, com a qual disse pretender adquirir cocaína, o que não foi possível, por inexistência desse produto.
Nesta parte, as declarações prestadas em audiência pelo arguido mostraram-se manifestamente divergentes das declarações prestadas em sede de 1.º interrogatório judicial de arguido detido, motivo pelo qual se procedeu à sua reprodução em audiência.
Com efeito, em sede de 1.º interrogatório judicial, o arguido assumiu que se havia deslocado ao … para adquirir produto estupefaciente para si e para terceiro, a pedido deste e que o dinheiro usado para a respectiva compra era pertença de ambos.
Confrontado com a reprodução das declarações prestadas em sede de 1.º interrogatório, o arguido justificou-se, dizendo que, nesse dia, encontrava-se sob o efeito de medicação que lhe havia sido administrada no Hospital de Beja, motivo pelo qual disse ter prestado declarações que não correspondiam à verdade.
- o depoimento das seguintes testemunhas:
(i) F… (militar da GNR do núcleo de investigação criminal de … desde 2015, agente autuante), depôs de forma objectiva, segura e lógica, demonstrando ter conhecimento directo dos factos, por força do exercício das suas funções profissionais. Foi isento e convincente. Assegurou a elaboração do auto de notícia, de fls. 3-6, cujo teor e assinatura reconheceu em audiência e do auto de apreensão de fls. 13-15, confirmando os bens e produtos apreendidos ao arguido.
Esta testemunha, de forma espontânea e coerente, relatou ao Tribunal o modo como teve conhecimento da deslocação do arguido ao …, da operação de interceptação do mesmo e da forma como procederam à sua abordagem, a busca/revista efectuada, a detenção e condução do arguido à unidade hospitalar, os exames a que o mesmo foi sujeito e a forma como descobriram que o arguido ocultava produto estupefaciente no próprio corpo, localizando no tempo e no espaço a ocorrência.
(ii) N… (militar da GNR do núcleo de investigação criminal de … desde 2008/2009), prestou, igualmente, um depoimento objectivo, espontâneo e isento. Demonstrou ter conhecimento directo dos factos por força do exercício da sua actividade profissional. O seu depoimento mostrou-se concordante com o depoimento da testemunha F…. Relatou a abordagem feita ao arguido, o modo agitado e nervoso em que o arguido se encontrava, a sua detenção e condução ao hospital, os exames a que se submeteu e a forma como descobriram que o arguido ocultava produto estupefaciente no organismo. Acrescentou ainda que já conhecia o arguido como traficante, por ter estado envolvido no processo crime em que o arguido acabou por ser condenado em prisão efectiva por tráfico de estupefacientes.
(iii) A… (militar da GNR de … desde 2014), que prestou, igualmente, um depoimento objectivo, espontâneo e isento. Demonstrou ter conhecimento directo dos factos por força do exercício da sua actividade profissional. O seu depoimento mostrou-se concordante com o depoimento das testemunhas F… e N…, tendo relatado todo o procedimento de abordagem do arguido.
(iv) L… (militar da GNR do núcleo de investigação criminal de … desde 2014), prestou, igualmente, um depoimento objectivo, espontâneo e isento. Demonstrou ter conhecimento directo dos factos por força do exercício da sua actividade profissional. O seu depoimento mostrou-se concordante com o depoimento das testemunhas F…, N… e A…, tendo relatado todo o procedimento de abordagem do arguido.
(v) R… (pintor da construção civil, residente na localidade do …, concelho de …, conhecido/amigo do arguido há cerca de 20 anos). Prestou um depoimento objectivo, porém pouco relevante para a convicção do Tribunal. Em termos globais, disse ser consumidor de produtos estupefacientes, nomeadamente heroína, há cerca de 18 anos. Confirmou ter-se deslocado com o arguido, por mais do que uma ocasião, à zona do … (…/…) com o intuito, cada um, de adquirir produto estupefaciente. Disse, porém, desconhecer qual o destino do produto adquirido pelo arguido. Mais disse que o viu o arguido consumir produto estupefaciente, mas não teve conhecimento directo de quaisquer vendas de tal produto pelo arguido. Acrescentou que nunca pediu ao arguido para adquirir produto estupefaciente para si, nem lhe entregou qualquer quantia monetária para esse efeito.
(vi) A… (cantoneiro, residente em …, conhecido do arguido há cerca de 25 anos). O seu depoimento foi objectivo e seguro. Foi isento e convincente, revelando-se determinante para a formação da convicção do Tribunal. Esclareceu a sua relação com o arguido, afirmou ser consumidor de produto estupefaciente há cerca de 30 anos (haxixe, heroína, cocaína), em tratamento no CAT. Disse já ter feito consumos de produto estupefaciente com o arguido e, de forma contextualizada, objectiva e coerente, esclareceu que, sabendo que o arguido é consumidor de produto estupefaciente que habitualmente tem na sua posse, ocasionalmente, por mais do que uma vez, já o contactou com vista à aquisição de produto estupefaciente, o que fez, relatando o procedimento, a quantia adquirida de cada vez, a periocidade e o preço (€ 10,00 a dose), afirmando que, a última aquisição de produto estupefaciente ao arguido, ocorreu cerca de 2/3 meses antes deste ser detido à ordem dos presentes autos.
(vii) L… (auxiliar de sondador, residente em …, conhecido do arguido há cerca de 10 anos). Prestou um depoimento claro, espontâneo, objectivo e coerente. Foi isento, credível e determinante para a formação da convicção do Tribunal. Esclareceu a sua relação com o arguido. Relatou ser consumidor de produto estupefaciente há cerca de 10/12 anos, nomeadamente heroína, actualmente em tratamento. De forma contextualizada e espontânea, afirmou ter adquirido heroína ao arguido, mediante o pagamento da quantia de € 20,00, por duas doses. Situou no espaço e no tempo os acontecimentos, esclarecendo que a última compra de produto estupefaciente ao arguido ocorreu cerca de 2/3 meses antes deste ser detido à ordem dos presentes autos. Esclareceu ainda o modo como contactava o arguido (por telefone ou encontro na rua); e
(viii) F… (mineiro reformado, residente em …, amigo do arguido há cerca de 10/12 anos). Descreveu a sua relação com o arguido e com a sua família. Depôs sobre a personalidade e características pessoais do arguido.
- encontra-se junto aos autos a seguinte prova documental: (i) o auto de notícia de fls. 3-6; (ii) declaração do arguido de fls. 11; (iii) declaração média de fls. 12; (iv) auto de apreensão de fls. 13 a 15; (v) reportagem fotográfica de fls. 19 a 22; (vi) teste rápido de fls. 23; (vii) auto de pesagem de fls. 24; (viii) auto de detenção de fls. 25; (ix) ofícios da Altice de fls. 160 e 252; e (x) declarações da ARS de fls. 96 e 159; e
- a prova pericial, nomeadamente o relatório do exame pericial de fls. 269 a 270.
Concretizando:
Quanto à deslocação do arguido ao … no dia 17.07.2019 para aquisição de produto estupefaciente descrita nos pontos 2) a 5) da factualidade dada como provada, a mesma resultou assente com base nas declarações do arguido que a confirmou, conjugada com o depoimento dos agentes militares da GNR inquiridos em sede de audiência, os quais, em depoimento espontâneo, esclareceram a abordagem do arguido, as circunstâncias em que tal abordagem ocorreu, a revista e busca efectuada à viatura em que o arguido se fazia transportar, a condução do arguido ao hospital e os produtos/bens/objectos apreendidos, tudo em conformidade com o auto de notícia de fls. 3-6, o auto de apreensão de fls. 13-15, a reportagem fotográfica de fls. 19 a 22, a declaração do arguido de fls. 11, a declaração média de fls. 12 e o auto de detenção de fls. 25.
O arguido confirmou ainda a respectiva posse do produto estupefaciente apreendido, o que aliado à circunstância de todo o produto estupefaciente apreendido se encontrar oculto no organismo do arguido, leva a que não haja quaisquer dúvidas de que o produto apreendido pertencia ao mesmo.
Negou, porém, o arguido que proceda à venda de produto estupefaciente e que visasse destinar o produto estupefaciente apreendido a revenda, tendo-se escudado no consumo exclusivo do mesmo.
Sucede que, nesta parte, as declarações do arguido não mereceram qualquer credibilidade e, como tal, não obtiveram acolhimento por parte do Tribunal, pelos fundamentos que se passam a explicar.
Por um lado, quando confrontadas as declarações prestadas pelo arguido em audiência e aqueloutras prestadas em sede de 1.º interrogatório judicial de arguido detido são manifestas as discrepâncias, não tendo o arguido logrado justificar, de forma convincente, a razão dessas divergências.
Por outro lado, a versão relatada pelo arguido mostra-se frontalmente contrariada pelos depoimentos das testemunhas A… e L… que, num discurso objectivo, espontâneo e que o Tribunal reputou como isento e credível, e de forma contextualizada, relataram contactos estabelecidos junto do arguido com vista à compra de produto estupefaciente, nomeadamente heroína, concretizando as aquisições efectuadas, o modo de procedimento, as quantias monetárias entregues ao arguido contra a entrega por este de produto estupefaciente, situando temporalmente o seu comportamento, nomeadamente em período anterior à detenção do arguido à ordem dos presentes autos.
Pelo que, tudo conjugado, é manifesto que o arguido não destinava o produto estupefaciente apreendido exclusivamente a seu consumo pessoal, tendo o Tribunal ficado convencido de que o arguido destinava, igualmente, o produto estupefaciente à venda a terceiros, motivo pelo qual o descrito nos pontos 1) a 3) dos factos foi dado como provado.
Quanto à natureza, quantidade, grau de pureza e número de doses individuais referenciados no ponto 3) dos factos provados, atendeu-se ao teor do auto de apreensão de fls. 13-15, teste rápido de fls. 23 e auto de pesagem de fls. 24, devidamente conjugados com o teor do relatório pericial de fls. 269-270.
O vertido no ponto 5) assenta ainda no auto de apreensão de fls. 13-15 e respectiva reportagem fotográfica de fls. 19 a 22, tendo sido apreendido ao arguido, para além do produto estupefaciente, a quantia de € 205,00 e um telemóvel da marca Samsung. A respeito, deste último objecto, cumpre notar que as testemunhas A… e L…, quando inquiridas, referiram que, uma das formas de contactar o arguido com vista a aquisição de produto estupefaciente, era efectivamente através do contacto telefónico estabelecido para esse efeito.
Por sua vez, quanto ao conhecimento do arguido, à consciência da ilicitude e à vontade de praticar os factos por parte deste [pontos 7) a 9) da factualidade dada como provada], cumpre, antes de mais, referir que tais factos, referentes a estados psíquicos, respeitam essencialmente ao foro interno, psicológico e íntimo do arguido, pelo que a sua verificação não é passível, por norma, de qualquer demonstração directa, sendo, ao invés, apenas revelada por indícios que as regras da experiência e da lógica permitem associar. Assim, a convicção do Tribunal fundou-se em conclusões lógicas formuladas com base na globalidade da factualidade e nos actos objectivamente praticados pelo arguido dados como provados, em conjugação com as regras da normalidade e da experiência comum.
Assim, tudo visto e ponderado, verifica-se que a prova produzida foi suficiente para comprovar com rigor todos os factos dados como provados.
A factualidade descrita nos pontos 10) a 24) extraiu-se do teor do relatório elaborado pela DGRSP e junto aos autos.
O vertido nos pontos 25) a 26) resultou das declarações do arguido que, nesta parte, se mostraram credíveis e mereceram acolhimento.
Para prova do referido no ponto 27), atendeu-se ao depoimento da testemunha F… que depôs sobre a personalidade e características pessoais do arguido.
E os antecedentes criminais do arguido descritos nos pontos 28) e 29) tiveram por base o teor do certificado do registo criminal, junto aos autos, de fls. 435-439.
III- Apreciação do recurso
O objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na respetiva motivação, arts. 403º, nº 1 e 412ºnº 1 do CPP.
As conclusões do recurso destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões da discordância da recorrente em relação à decisão recorrida, a nível de facto e de direito, por isso, elas devem conter um resumo claro e preciso das razões do pedido (cfr. neste sentido, o Ac. STJ de 19-6-96, in BMJ 458, 98).
Perante as conclusões do recurso, as questões a decidir são as seguintes:
1ª- Da violação do princípio ne bis in idem.
2ª- Da perícia a que se reporta do artº 52º do DL nº 15/93, de 22-1.
3ª- Da medida da pena.
4ª- Da suspensão da pena.
III-1ª- Da violação do princípio ne bis in idem.
O arguido alega foi violado o princípio ne bis in idem, dado que os factos que ocorreram, no dia 4-7-2018, pelos quais foi condenado no proc. nº 30/18.6PJSNT (T. Sintra) por decisão ainda não transitada e os destes autos, que ocorreram no dia 17-7-2019, integram um só crime de tráfico de estupefacientes, dado que este é um crime exaurido que se consuma com o primeiro ato de execução, sendo os atos posteriores a continuação do crime já iniciado.
Cumpre decidir.
Este princípio está previsto no artº 29º nº 5 da Constituição, que dispõe que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.
´Como referem, Gomes Canotilho e Vital Moreira em “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Volume I, 4ª ed. Coimbra editora pág 497 e 498, este princípio «comporta duas dimensões: a) como direito subjetivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra atos estaduais violadores desse direito (direito de defesa negativo);b) como princípio constitucional objetivo (dimensão objetiva do direito fundamental) obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material, de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto.
(…) A Constituição proíbe rigorosamente o duplo julgamento e não a dupla penalização, mas é óbvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infração, como a aplicação renovada de sanções jurídico-criminais pela prática do mesmo crime».
Importa assim, delimitar o conceito de «mesmo crime», a que alude o artº 29º nº 5 da Constituição. Tal conceito não deve nem pode ser interpretado no seu sentido estrito técnico-jurídico.
É que o termo “crime” refere-se, por um lado, “a acção ou omissão” previamente declarada punível e cujos pressupostos devem estar fixados na lei anterior, ou que seja considerada criminosa segundo os princípios gerais de direito internacional comummente reconhecidos (artigos 29º, nºs 1 e 2 da Constituição); por outro lado, a conduta do agente que se torna como referência (nº 4 do citado normativo) e por outro ainda, o ato praticado pelo agente e que é objeto de sentença condenatória (artº 27º nº2 )
Assim, crime significa, aqui, um comportamento de um agente espácio-temporalmente delimitado e que foi objeto de uma decisão judicial, ou melhor, de uma sentença ou decisão que se lhe equipare.
Entender-se o termo crime, a que alude o artº 29º nº 5 da Constituição, como referindo-se a um determinado tipo legal, a uma determinada descrição típica normativa seria esvaziar o conteúdo e a ratio do preceito, em frontal violação com os próprios fundamentos do caso julgado. Tal entendimento violaria a paz jurídica e a segurança do cidadão ao esvaziar todo o conteúdo útil do caso julgado. Seria por exemplo permitir, o que não é admissível, que um indivíduo que foi julgado por um crime de ofensas à integridade física (artº 143º do C.Penal) pudesse pelos mesmos fatos, ser segunda vez submetido a julgamento e eventualmente condenado por homicídio (131º do C.Penal)
O termo “crime” não deve assim ser entendido no seu sentido estrito, mas antes como uma certa conduta ou comportamento, melhor como um dado de facto ou acontecimento histórico, que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado facto já julgado – e não tanto de um crime – que se quer evitar.
O que o nº 5 do artº 29º da CRP proíbe é no fundo, que um mesmo e concreto objeto do processo possa fundar um segundo processo penal». Neste sentido, vide Frederico Isasca em “Alteração substancial dos factos e Sua Relevância no Processo Penal português, Almedina, pág. 220 e 221.
Quanto ao que deve entender-se por “ objeto do processo”, o mesmo autor conclui: « O objeto do processo penal será, assim, o acontecimento histórico, o assunto ou pedaço de vida vertido na acusação e imputado como crime, a um determinado sujeito e que durante a tramitação processual se pretende reconstituir o mais fielmente possível».
Importa agora saber, quando é que um facto se pode considerar “o mesmo” e assim saber se está a ser objeto dum duplo julgamento.
Como ensinam Tereza Beleza e Frederico Lacerda da Costa Pinto em “Direito Processual Penal I, Objecto do Processo, Liberdade de Qualificação jurídica e Caso julgado”, 2001 acessível no endereço eletrónico https:docentes.fd.unl.pp. pp 25 e 26” (…) A doutrina aponta três vetores da identidade do facto que devem ser tidos em conta, a saber: a identidade do agente, a identidade do facto legalmente descrito e a identidade do bem jurídico. Agente, facto e bem jurídico são os três crivos de identificação da identidade do acontecimento que se pretende submeter a um processo. Só perante a identidade destes três conjuntos de elementos (agente, facto legalmente descrito e bem jurídico) é que se pode afirmar que o facto que se pretende submeter a um certo processo é o mesmo ou é concomitantemente, a outro processo. Os três crivos de identidade do facto atrás avançados (agente, facto e bem jurídico) correspondem ao núcleo mais consensual que sobre esta matéria se encontra na doutrina.
(…) Existirá dupla valoração sobre o mesmo facto quando o juízo de valor jurídico formulado incida sobre o mesmo agente e o mesmo facto em função da tutela do mesmo bem jurídico. Isto acontecerá independentemente da natureza da sanção aplicável. Para além destes casos de identidade plena dos factos, ainda será necessário ponderar as situações de identidade parcelar dos factos em função das relações lógicas e axiológicas de identidade (i. e. consunção e eventualmente, especialidade) e subordinação (i.e. subsidiariedade) entre as normas que valoram as situações jurídicas. O que vale por dizer que a dupla valoração só é realmente evitada quando se sujeita o material analisado às regras vigentes que regulam as relações de concurso de normas. Só assim se pode garantir que uma pessoa ou entidade não é duplamente julgada ou condenada pelo mesmo facto no seu todo ou em parte (…)».
No caso em apreço, nos presentes autos e no processo nº 30/18 do T. Sintra o agente e o bem jurídico atingidos são os mesmos, mas não há identidade de factos.
Na verdade, o crime de tráfico de estupefacientes como crime exaurido implica que todos os actos múltiplos se unifiquem num só crime. Só que é imperioso considerar que a intervenção das autoridades policiais e a detenção do arguido põe termo á execução do primeiro crime de tráfico.
O arguido no dia 4 de Julho de 2018, deslocou-se à Serra das Minas, Sintra, onde adquiriu 30,275 gramas de heroína, foi detido e foi sujeito a interrogatório no dia seguinte, pelo que ao ser detido pôs termo à execução do crime de tráfico.
No dia 17 de Julho de 2019, passado mais de um ano, após os factos que ocorreram em Sintra, o arguido deslocou-se ao Algarve onde adquiriu 19,446 gramas de heroína para consumir e revender, pelo que estamos perante uma autónoma e diversa resolução criminosa e um novo crime de tráfico de estupefacientes.
A pluralidade da intenção criminosa é o critério decisivo para saber se estamos perante uma infração ou um concurso de infrações ( vide Eduardo Correia “Unidade e Pluralidade de Infracções”, in a Teoria do Concurso em Direito Criminal) e impõe a consideração dos factos destes autos que ocorreram em 17 de Julho de 2019, como um crime autónomo.
Portanto, mediando entre os factos objecto do procº nº 30/18.6PJSNT de Sintra, e os factos destes autos, mais de um ano, tendo o arguido sido detido e apresentado ao juiz naquele processo não pôde deixar de tomar consciência da ilicitude e censurabilidade da conduta por si desenvolvida, pelo que fazendo apelo às regras da experiência comum, há que concluir que os factos destes autos não podem ser considerados como integrando a mesma acção e resolução do processo de Sintra, pelo que estamos perante dois crimes, ou, seja, a condenação imposta ao arguido no presente processo não colide com o disposto no nº 5 do artº 29º da Constituição, o princípio do ne bis in idem.
Improcede, pois, o alegado pelo arguido quando á violação deste princípio.
III-2ª- Da perícia médico-legal a que se reporta do artº 52º do DL nº 15/93, de 22-1.
O arguido alega ter ocorrido uma nulidade, ao não ter sido realizada a perícia médico-legal prevista no artº 52º do DL nº 15/93, de 22-1 que requereu, e que em seu entender seria fundamental para a determinação da pena e para aferir das suas capacidades cogniscitivas.
Cumpre decidir.
Dispõe o artº 52º do DL nº 15/93, de 22-1 (com a epígrafe – Perícia médico-legal):
“1. Logo que, no decurso do inquérito ou da instrução, haja notícia de que o arguido era toxicodependente à data dos factos que lhe são imputados, é ordenada a realização de perícia adequada à determinação do seu estado.
2. Na medida do possível, o perito deve pronunciar-se sobre a natureza dos produtos consumidos pelo arguido, o seu estado no momento da realização da perícia e os eventuais reflexos do consumo na capacidade de avaliar a ilicitude dos seus actos ou de se determinar de acordo com a avaliação feita.
3. Pode ser ordenada, quando tal se revele necessário, a realização de análises a que se refere o nº 4 do artº 43º”.
Esta diligência tem como finalidade determinar o grau de imputabilidade do arguido no momento da prática do crime e avaliar do seu estado de eventual toxicodependência atual, para efeitos de aplicação de medida adequada, ou melhor, visa apurar se o estado de toxicodependência em que se encontra o arguido pode impedi-lo de compreender a ilicitude do facto e de atuar conforme a essa compreensão.
O arguido foi detido em flagrante delito em 17 de Julho de 2019 e sujeito à medida de coação de prisão preventiva no dia 19 de Julho e só em 23 de Dezembro de 2019 veio solicitar a realização do exame pericial.
A jurisprudência tem considerado que « a realização de tal diligência probatória, tem de ser obrigatoriamente fundamentada, e como consta do despacho recorrido, suportada em realidades de intoxicação que originem ou provoquem efeitos profundos em termos psicológicos e por conseguinte que causem “…desorientação tempo espacial, a despersonalização, as alucinações visuais, auditivas e tácteis, a paranoia, a psicose, a esquizofrenia, as ideias delirantes, as sensações de mudança da própria realidade, a angústia são alterações psíquicas suficientemente importantes para sustentar sérias dúvidas sobre a existência de uma correcta compreensão do acto…”, vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31-03-2001, consultável em www.dgsi.pt.
Ora, o arguido não fundamentou o requerido, isto é, não indicou qualquer motivo para a realização da diligência pericial, além de que no decorrer do primeiro interrogatório foi possível verificar e atestar, por um lado, a inexistência de qualquer indício que sustentasse ou justificasse a necessidade de realização de tal diligência e por isso, foi indeferido o requerido por despacho prévio à acusação.
O arguido foi notificado deste despacho e não recorreu do mesmo, pelo que transitou em julgado.
Não assiste, assim, razão ao arguido ao alegar em recurso que a não realização da diligência constitui uma nulidade, já que tal questão foi objecto de apreciação e o arguido conformou-se com a mesma já que não recorreu, pelo que não se vislumbra a existência da nulidade invocada, mas s mesmo que existisse, o que não concebemos estaria sanada nos termos do artº 120º nº 2 al. d) e nº 3 al. c) do CPPenal.
III- 3ª- Da medida concreta da pena.
O arguido alega que, a pena que lhe foi aplicada é excessiva, dado que o tribunal não teve em conta as seguintes circunstâncias: o ser toxicodependente, ter colaborado com o tribunal e demonstrado uma real vontade de ultrapassar o seu vício através da desintoxicação, e o ter confirmado a posse dos estupefacientes, o que juntamente com o atual tratamento significa que está arrependido não meramente através de palavras, mas de atos concretos.
Há que decidir.
O arguido incorreu no crime de crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 25º al. a) do D.L. nº 15/93, de 22-1 a que cabe a pena de prisão de 1 a 5 anos.
Preceitua o artigo 40º do Código Penal que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (nº 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (nº 2).
O artigo 71º do mesmo diploma estipula, por outro lado, que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” (nº 1), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra esse mesmo agente (nº 2 do mesmo dispositivo).
A função primordial de uma pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.
O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.
O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa protecção dos bens jurídicos.
Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.
Conforme muito bem se escreve no Ac. do S.T.J. de 29-05-2008 (in www.dgsi.pt), a pena assume “um cariz utilitário, no sentido de eminentemente preventivo, não lhe cabendo, como finalidade, a retribuição qua tale da culpa; a avaliação da culpa do agente fica ao serviço, fundamentalmente, de propósitos garantisticos e no interesse do arguido. A doutrina vem defendendo que, se as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, então, o processo de determinação da pena concreta a aplicar refletirá, de um modo geral, a seguinte lógica: a partir da moldura penal abstrata procurar-se-á encontrar uma submoldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias, e como limite inferior, o quantum abaixo do qual “já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar” (Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 229); será dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva que deverão atuar os pontos de vista da reinserção social; quanto à culpa, para além de suporte axiológico-normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar”.
O tribunal aplicou ao arguido a pena de 4 anos de prisão e para a determinação da pena nos termos do artº 71º do C.Penal teve em conta as seguintes circunstâncias:
- em desfavor do arguido, o facto de ter atuado com dolo na forma mais grave a direta, o grau de ilicitude que é mediano atenta a quantidade, a natureza e o modo de execução do crime, as exigências de prevenção especial que são imperiosas face à idade do arguido e às condenações já sofridas, tendo cumprido uma pena de prisão efetiva de cinco anos de prisão por tráfico de estupefaciente e detenção de arma proibida, que foi declarada extinta em 21-02-2018, a falta de interiorização do desvalor da sua conduta e a ausência de manifestação de censura, face á postura em audiência, já que apenas assumiu a detenção do produto apreendido, alegando que era para seu consumo exclusivo.
- a favor do arguido, a sua inserção profissional e social. Após o cumprimento da pena de prisão efetiva e antes da sua detenção à ordem destes autos conseguiu reintegrar-se profissionalmente, trabalhando como mecânico da oficina do seu genro e é visto pela comunidade como bom trabalhador. Antes de detido residia com a filha.
E ainda as exigências de prevenção geral que são muito elevadas, tendo em conta os bens jurídicos protegidos que são a saúde pública na sua dimensão física e psíquica, a frequência com que ocorre este crime e as consequências nefastas causadas por este tipo de crime, para além da destruição física e mental do organismo humano potencia a prática de condutas delituosas e o aumento de delinquência ligada à obtenção de bens e/ou valores, que permitam a aquisição de tais substâncias, por parte dos consumidores.
Importa, agora, analisar as circunstâncias invocadas pelo arguido.
O facto de ser toxicodependente não desculpabiliza a sua conduta, nem constitui uma circunstância atenuante da sua responsabilidade, sendo antes indiciador da falta de preparação para manter uma conduta lícita, já que há uma certa culpa na formação da personalidade, porquanto não se adquire tal característica de um momento para o outro, já que a mesma obedece a um percurso umas vezes mais rápido, outras vezes mais longo de degradação da personalidade.
Quanto ao ter colaborado com o tribunal tal circunstância também não se verifica, já que ao longo do processo assumiu versões díspares sobre os factos, em audiência referiu que o produto estupefaciente que adquiriu se destinava ao seu consumo pessoal, enquanto que quando foi ouvido em 1º interrogatório afirmou que, o adquiriu para si e para terceiro, a pedido deste e que o dinheiro usado para a respetiva compra era pertença de ambos.
Em relação à circunstância de ter demonstrado uma real vontade de ultrapassar o vício através da desintoxicação, a mesma também não se vislumbra, dado que já efetuou diversas tentativas de desintoxicação, sem sucesso, o que demonstra que é portador de uma personalidade frágil, que não encarou os tratamentos com empenho e força de vontade, de forma a deixar de uma vez por todas o consumo e o tráfico de estupefacientes e a reintegrar-se de uma forma estável na sociedade.
Ponderando os elementos tidos em conta pelo tribunal nomeadamente o grau de ilicitude do facto, o elevado grau de intensidade do dolo, o extenso historial criminológico do arguido, que cumpriu uma pena de prisão de 5 anos, por tráfico de estupefacientes e detenção de arma proibida que foi declarada extinta em 21-02-2018 e passados apenas cerca de um ano e cinco meses incorreu nos factos destes autos, e ainda as exigências de prevenção geral e especial já assinaladas consideramos como justa e adequada a pena aplicada pelo tribunal da 1ª instância.
4- Da suspensão da pena.
O arguido alega que a pena deve ser suspensa na sua execução, fundamentado a sua pretensão com os argumentos de que face à sua força de vontade em superar o vício da toxicodependência, em conjugação com a frequência assídua do CAT é possível formular um juízo de prognose favorável, quanto ao seu comportamento futuro.
Cumpre decidir.
Estabelece o nº 1 art. 50º do actual Código Penal que : «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».
Ao arguido foi aplicada a pena de quatro anos de prisão.
Pressuposto material da aplicação da suspensão de execução da pena de prisão é um prognóstico favorável pelo tribunal relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça da pena seja adequada a realizar as finalidades da punição (Ac. do STJ de 11/05/1995, in proc. nº 4777/3ª).
A suspensão da execução da pena “deverá ter na sua base uma prognose social favorável ao réu, a esperança de que o réu sentirá a sua condenação como uma advertência de que não cometerá no futuro nenhum crime” (Ac. do STJ proc. 1092/01 – 5ª secção).
“O tribunal deverá correr um risco prudente, uma vez que esperança não é seguramente certeza, mas se tem dúvidas sobre a capacidade do réu para compreender a oportunidade que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa” (Leal - Henriques e Simas Santos, Código penal em anotação ao art. 50º).
Assim, as penas de prisão aplicadas em medida não superior a 5 anos devem ser, em princípio suspensas na sua execução, salvo se o juízo de prognose sobre o comportamento futuro do agente se apresentar desfavorável, ou a suspensão for impedida por prementes exigências de prevenção geral.
Será possível formular um juízo de prognose favorável sobre comportamento futuro do arguido?
Como resulta da matéria provada, o arguido já sofreu seis condenações, três por crime de condução sem habilitação legal, uma por crime de resistência e coação sobre funcionário e injúria e duas por tráfico de estupefacientes e detenção de arma, sendo que esteve privado da liberdade de 18.02.2013 até 21-02-2018 em cumprimento de uma pena de 5 anos de prisão (por tráfico e detenção de arma) e cometeu os factos destes autos, cerca de um ano e cinco meses após o cumprimento da pena, pelo que não interiorizou a gravidade da sua conduta.
Por outro lado, o arguido iniciou o consumo de estupefacientes aos 16 anos e de heroína por volta dos 22 anos dos quais se tornou dependente, tendo feito várias tentativas de desintoxicação, mas sem sucesso pelo que demonstra ser portador de uma personalidade frágil, sem força de vontade para de uma vez por todas deixar de se dedicar ao consumo e tráfico de estupefacientes, de forma a não prejudicar a sua saúde e a dos outros.
Deste modo, face às condições de vida do arguido, à sua conduta anterior e posterior, aos tratamentos de desintoxicação a que já se submeteu sem sucesso e que cometeu os factos destes autos, cerca de um ano e cinco meses após ter cumprido uma pena de cinco anos, por tráfico de estupefacientes infere-se que é portador de uma personalidade que revela indiferença e desvalor pelas decisões judiciais e não se mostra na firme disposição deixar de uma vez por todas o mundo do crime, pelo que não é possível formular um juízo de prognose favorável quanto ao seu comportamento futuro com vista à suspensão da execução da pena, e por isso, a ameaça da pena não satisfaz as finalidades da punição.
Por outro lado, “A suspensão da execução da pena de prisão também não pode ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime. (....) estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas simplesmente considerações de prevenção geral sobre a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita – mas por eles se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto em análise” (cfr. Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993 & 520).
No caso em apreço, as exigências de prevenção são elevadas, dadas as consequências nefastas já mencionadas, que resultam do tráfico de estupefacientes.
Assim, o sentimento jurídico da comunidade impõe que o arguido cumpra a pena de prisão que lhe foi cominada, uma vez que só assim se cumprem as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento.
Perante os factos praticados e a sua personalidade do arguido não é possível efectuar um juízo de prognose favorável no sentido de que a ameaça de prisão será suficiente para que não volte a delinquir, sendo certo que seria também sentida pela comunidade como injustificada indulgência perante a sua conduta e, portanto, insuficiente para satisfazer as exigências de prevenção geral que no caso se fazem sentir.
Impõe-se pois, manter a condenação do arguido em pena de quatro anos prisão efetiva.
IV - DECISÃO
Nestes termos, acordam os Juízes da 1ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas pelo arguido com taxa de justiça que se fixa em 4 Ucs.
Notifique
Évora, 12-01-2021
(Texto elaborado e revisto pelo relator).
José Simão
Maria Onélia Madaleno